quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Marcelo Coelho

Águas e águas
Nos contos de João Anzanello Carrascoza, memórias se misturam com sentimentos de ameaça e de presságio
No final de "O Céu que Nos Protege", filme de Bernardo Bertolucci com Debra Winger e John Malkovich, o narrador faz algumas reflexões sobre a história que acaba de contar.
"Como não sabemos a hora em que vamos morrer, temos a tendência de achar que a vida é uma espécie de poço inesgotável": poderíamos sempre tirar água lá de dentro.
"Mas", prossegue, "as coisas só acontecem um número determinado de vezes, um número bem pequeno, na verdade. Quantas vezes você irá ainda ver uma lua cheia nascendo no horizonte? Vinte, talvez. Quem sabe menos."
Ele também pergunta: "Quantas vezes você ainda vai se lembrar de uma certa tarde na sua infância, uma tarde bem comum, mas que se tornou uma parte tão íntima de você mesmo que você não poderia imaginar sua vida sem ela?"
São feitos de tardes assim os contos de "Aquela Água Toda", de João Anzanello Carrascoza (ed. Cosac Naify). O livro, curtinho, concentra-se em lembranças de infância, tendo como personagem principal alguém a quem o autor, na maioria das vezes, se refere só como "o menino".
Assim, na primeira história (a que dá nome ao livro), ficamos sabendo que "o menino estava na alegria". Era verão, e a mãe anuncia: "Iriam à praia de novo". Em menos de quatro páginas, o conto mostra toda a expectativa do personagem até entrar novamente no mar.
"Ele flutuava no silêncio, de tão feliz", escreve Carrascoza. Na véspera da viagem, o menino demora para dormir: "Não podia perder aquele futuro que chegava, de mansinho, aos seus pés".
Até que ele adormece no sofá, e o pai leva-o para a cama, "com seus braços de espuma".
A grandeza literária do autor não está apenas em manter, com admirável simplicidade, todas aquelas sensações do menino num âmbito de imagens marinhas: flutuação, espuma, dias que se aproximam de nossos pés como a água da rebentação.
O conto também evoca outro tipo de ambiguidade, que certamente sentimos ao entrar nas águas do mar. Ao mesmo tempo em que nos acolhe, o mar é infinito; pode ser uterino, mas é desconhecido também.
Também a infância se compõe de familiaridade e descoberta. Tudo é novo, mas não há nada mais forte do que a rotina, a sensação de que nada, nunca, irá mudar. O pai, carregando o menino nos braços, é suave, leve, contorna o corpo e brinca à sua volta, como a espuma.
Como a espuma, contudo, haverá de desaparecer rapidamente. Os contos de "Aquela Água Toda" estão longe de trazer uma visão adocicada da infância. Tem-se frequentemente a sensação de que algo muito ruim irá acontecer.
Por acaso, antes de ler o livro, eu o abri em uma página que terminou me preparando para o clima geral dessas narrativas de Carrascoza. O céu é sempre azul e o dia está sempre começando; as pessoas cuidam de abrir a janela, abrir a porta, de modo que o mundo, indubitavelmente bom, venha a oferecer-se em luz.
É a luz, entretanto, que torna mais branco ainda o papel de uma carta --que o menino não pode ler. O rosto da mãe se modifica. Também o coração do leitor se aperta, e irá apertar-se várias vezes nas poucas páginas desse livro belíssimo.
Reencontro em "Aquela Água Toda" as emoções de outra narrativa extraordinária, "Uma Morte em Família", de James Agee (ed. Companhia das Letras).
O romance começa com uma evocação da noite e do calor no sul dos Estados Unidos. O lirismo dessa passagem levou o compositor Samuel Barber a criar uma de suas mais belas obras para canto e orquestra, "Knoxville: Summer of 1915", que não é difícil de achar no YouTube.
A família inteira, mãe, pai, tios, resolve se deitar à noite no quintal. Todos, diz o narrador, são maiores do que eu; a grama está úmida, as estrelas estão vivas, ouve-se o rumor de um bonde na distância. Cito traduzindo com minhas palavras.
"Depois de um tempo me carregam para a cama. O sono, suave e sorridente, me acolhe; e todos me acolhem, os que cuidam silenciosamente de mim, como alguém amado e familiar naquela casa."
Mas nenhum deles, prossegue Agee, "nenhum deles, não agora, não em momento nenhum, nenhum deles me dirá, nunca, que pessoa eu sou".
Acrescente-se que, se lhe tivessem dito, Agee provavelmente não teria escrito livro nenhum. E João Anzanello Carrascoza não teria recolhido, de suas memórias junto ao mar e no quintal de casa, tanta água. São águas e águas.
Felizmente, o poço a que se refere Paul Bowles (autor do livro que inspirou "O Céu que Nos Protege") é profundo o bastante para saciar a sede de muita gente e para alimentar as memórias de mais de um leitor --mesmo depois de terem desaparecido, como espuma, os personagens de tantas histórias.

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