domingo, 29 de setembro de 2013

Autores projetam episódio final de 'Breaking Bad'; confira

A pedido da Folha, três roteiristas e escritores criaram uma sinopse do que gostariam de ver no último episódio de 'Breaking Bad', que vai ao ar hoje nos EUA
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Com o desespero dos personagens, tudo pode ocorrer
ANTONIO PRATA
COLUNISTA DA FOLHA
A genialidade de "Breaking Bad" não está em impedir que a gente adivinhe o que vai acontecer a cada episódio, mas em nem sequer nos permitir saber o que a gente quer que aconteça. Já me vi torcendo pro Walter White se salvar e ser morto --na mesma cena.
No últimos dois capítulos, contudo, acho que a série exagerou na meta-anfetamina. Tá difícil torcer tanto pro WW se dar bem quanto mal. E o Jesse, coitado, com duas namoradas mortas, torturado por neonazis, drogadito, inseguro e carente: de que adianta ser libertado do cativeiro?
O lado bom de terem calcinado os personagens no fogo do desespero é que tudo pode acontecer. WW pode matar a família e ir ao cinema, para matar os neonazistas, pegar o dinheiro e salvar Jes-se, pode matar Jesse ou ser morto por ele. Só uma coisa eu acho obrigatória acontecer, para a série ser coerente com o breu que propôs: a bufunfa deve ter um destino ridículo.
Ficar com Saul, com seu capanga de cabeça cônica, com a Marie (bitch!) ou ser levada pelo vento, num daqueles belos desertos do Novo México.
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Walter White arma espetáculo para morrer
FELIPE SANT'ANGELO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Walt surge na casa de Lydia, e ameaça: se não ajudar, não verá mais a filha. Ela atrai a gangue de Todd para um encontro. Quando percebem que é uma armação, querem matá-la. Mas Todd não permite.
Walt entra na base deles e encontra seu dinheiro. Joga gasolina em tudo.
Surge Jesse: "Hey, Mr. White". A DR termina com um apontando a arma pro outro.Todd e gangue chegam ameaçando. Walt avisa: o dinheiro está coberto de gasolina.
Sirenes. Helicópteros. Imprensa e polícia chegam. Walt armou um espetáculo para morrer. Jesse o mata diante das câmeras. Tiros, fogo, mortes. Todd tenta proteger Lydia, mas é morto por ela, que foge sozinha. Jesse se entrega.
Skyler recebe uma carta póstuma de Walt com um endereço. Lá, vê um barril de dinheiro, mas queima tudo.
No final, festinha familiar, dessas bem ordinárias que rolavam na série, só que mais melancólica. Walt. Jr. namora, o bebê cresceu e Marie voltou a ser clepto.
P.S. - e o casal mala de químicos ricos morre envenenado pela ricina.
FELIPE SANT'ANGELO é dramaturgo, roteirista e escritor
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Chefe do tráfico se matará com cigarro venenoso
RONALDO BRESSANE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Como típico fã de "Breaking Bad", torço para que Walter White consiga a sua impossível redenção dizimando o bando nazista de Jack e Todd, fazendo pazes sinceras com Jesse Pinkman, levando Walter Jr. e Holly à Disney --e afinal expire de câncer após uma trepada monumental com a Skyler E a Lydia (no quesito sexo, a bem da verdade, o cinquentão ficou devendo na série toda).
Mas, como típico fã de "Breaking Bad", sei que Vince Gilligan vai me dar um baile e mudar o eixo narrativo para um lado inimaginável.
Assim, quem sabe, depois que o mal de WW metastasiou tudo à volta, atingirá o último ser puro da série, Walter Jr. --que, com o sumiço do pai e sob o aconselhamento de Pinkman, se vingará de Jack, Todd e Lydia e em seguida se tornará o maior traficante do oeste: o legítimo herdeiro de Heisenberg.
Já Walter White, arrependido por ter contaminado de maldade até mesmo seu ingênuo filho, se matará fumando aquele cigarro de ricina que ficou o tempo todo escondido em sua cueca furada.
RONALDO BRESSANE é escritor, jornalista e roteirista da graphic novel "V.I.S.H.N.U."

Peças estreladas falam sobre amizade, sexo e solidão na velhice - FABIANA SERAGUSA

FOLHA DE SÃO PAULO - REVISTA SÃO PAULO
Duas peças em cartaz na cidade de São Paulo e avaliadas com três estrelas (consideradas boas) pelos críticos da Folhafalam sobre os desejos e as preocupações de mulheres e homens idosos.
Uma delas é "À Beira do Abismo me Cresceram Asas", na qual Maitê Proença e Clarisse Derzié Luz interpretam duas senhoras com mais de 80 anos que vivem em um asilo.
Já em "Azul Resplendor", o personagem de Pedro Paulo Rangel se declara à atriz vivida por Eva Wilma --e eles passam a conversar sobre trabalho e sexo.
Abaixo, saiba mais sobre as duas produções.

Peças sobre idosos

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João Caldas/Divulgação
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Cena de "Azul Resplendor"
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À Beira do Abismo me Cresceram Asas
A partir de relatos reais, a peça mostra duas mulheres de mais de 80 anos que moram há muito tempo em um asilo. Lá, relembram os namoros, os casamentos e a saudade dos amigos e dos filhos, que nunca aparecem nos dias de visita.
Informe-se sobre o evento
Azul Resplendor
Longe dos palcos há mais de 30 anos, Blanca recebe a visita inesperada de Tito, seu mais devotado fã --e que é apaixonado por ela. Após o reencontro, eles falam sobre o trabalho na velhice e sobre como é lidar com o sexo.
Informe-se sobre o evento

De urubus e outros entortamentos - Noemi Jaffe

Noemi Jaffe: De urubus e outros entortamentos

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Tendências / DebatesCom insistência, o poeta Ferreira Gullar vem reiterando em sua coluna naFolha que os "urubus presos em gaiolas", ou "o casal nu postado numa porta" não são obras de arte.
Seus principais argumentos seriam: 1) o fato de elas não terem sido produzidas por mãos humanas e o fato de que este seja, há mais de 5.000 anos, o critério para definir o que é arte; 2) o fato de elas não poderem ser consideradas belas; 3) o fato de não poderem ser criticadas, pois não haveria critério para avaliar algo que ninguém fez.
Em primeiro lugar, o argumento de que a arte tenha sido feita de uma certa maneira há muito tempo não define o que é arte. O ser humano trabalhou durante séculos como artesão dos produtos que consumia e, na atualidade, mal coloca a mão sobre esses produtos. Isso não muda o termo "trabalho" para ambas as intervenções: artesanal ou eletrônica.
Seguindo por esse raciocínio, os urubus de Nuno Ramos podem igualmente ser chamados de arte. E, mesmo assim, também neles houve intervenção humana: na concepção, na montagem, na relação espacial que se criou pelo contraste entre os urubus e o prédio de Niemeyer, no poema emitido pelas caixas de som e no estranhamento causado pela presença horrífica em um lugar em que se supõe encontrar somente o "belo".
Poemas de Carlos Drummond de Andrade se baseiam em bulas e verbetes de lista telefônica: onde está a mão humana? No efeito combinatório (o que não é pouco). O mesmo se aplica a Marcel Duchamp, a Marina Abramovic e tantos outros.
Gullar cita a ausência do "belo" para desqualificar os urubus. Ora, um dos méritos da arte moderna e contemporânea foi relativizar e ampliar a ideia de belo. Platão já questionava como era possível, para um escultor, esculpir belamente um homem feio. Seriam belas esculturas.
Por que não posso considerar que algo emocionante ou estranho também seja tido como arte? E por que não posso chamar de belo aquilo que me faz revisitar o conceito do que seja belo?
Afinal, Van Gogh foi considerado feio em seu tempo, assim como o próprio Picasso, citado por Gullar sob a rubrica de "cubistas".
Finalmente, não é verdade que não possa haver crítica de arte sobre o trabalho de Nuno Ramos, tanto que houve, assim como as há relativas a várias obras conceituais, minimalistas etc., que tampouco exigem o trabalho direto da mão humana.
Eu mesma escrevi sobre uma obra de Tatiana Blass: um carro semienterrado numa calçada de rua. Escrevi sobre o efeito de estranhamento, sobre a intervenção estético-crítica e sobre a "beleza" inesperada desse entortamento do banal.
Muito me estranha que alguém que tenha escrito sobre o apodrecimento e sobre a morte não entenda o papel do assim chamado "feio" na arte. É certo que foi o próprio poeta que produziu esses poemas. Mas que se pense no "Poema Tirado de uma Notícia de Jornal", de Manuel Bandeira. A arte existe justamente porque a vida não basta (como já dizia Fernando Pessoa) e essas obras não negam a arte, mas a reafirmam, problematizam e ampliam a dimensão da própria vida.
NOEMI JAFFE, 51, é escritora e doutora em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo

"Eu não sou um daqueles esquerdistas loucos" Slavoj Zizek

Ricardo Mioto 
RESUMO Autor de novo livro sobre o totalitarismo, o esloveno relativiza a sua crítica à democracia liberal, dizendo que ainda é melhor ser controlado nos EUA do que na China. Dizendo-se excluído da grande mídia por ser tachado de radical, afirma que não se pode comparar a União Soviética de Josef Stálin à Alemanha de Adolf Hitler.
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O filósofo esloveno Slavoj Zizek, 64, conhecido tanto pelo jeito informal quanto pelo elogio à violência como forma de ação política, diz ser mal interpretado quando tomado como um defensor do terrorismo ou crítico ferrenho à social-democracia.
Em entrevista à Folha, ele critica a opressão nos países ocidentais, demonstrada pelas revelações sobre espionagem, mas também o relativismo cultural da esquerda.
Lançando agora "Alguém Disse Totalitarismo? Cinco Intervenções no (Mau) Uso de uma Noção" [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$ 39, 184 págs.], Zizek defende ainda a dissociação entre a violência na Alemanha nazista e na União Soviética sob Stálin. Para o filósofo, o caso soviético foi um desdobramento trágico de um propósito original nobre, enquanto os nazistas sempre desejaram aquilo que colheram. Leia a seguir trechos da entrevista.
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Folha - O senhor faz uma crítica muito forte à democracia liberal. Diz, no novo livro, que os partidos de esquerda erraram ao aceitá-la e que não tem medo de ser visto como antidemocrático ou totalitário.
Slavoj Zizek - Veja bem, não estou dizendo que a democracia liberal seja algo ruim. Claro que eu prefiro isso a uma ditadura aberta. Mas a democracia liberal tem as suas limitações.
Em primeiro lugar, seus mecanismos tradicionais não são fortes o suficiente para controlar problemas ecológicos e econômicos.
Em segundo, veja o que as revelações recentes sobre espionagem nos dizem. É fácil ver o jeito como somos oprimidos e controlados em um Estado abertamente autoritário, como a Rússia ou a China. Se alguém diz "na China, nossa liberdade é limitada", meu Deus, você está falando o óbvio!
Mas o fato é que, na democracia liberal, também somos muito controlados e oprimidos, embora a maioria das pessoas tenha a sensação de que suas vidas são livres.
Isso não quer dizer que todo controle seja igual. Claro que, nesse sentido, prefiro os EUA à China. O que teria acontecido com Bradley Manning [soldado do Exército americano condenado por vazar documentos ao Wikileaks] se ele fosse chinês ou russo? Na China, teriam prendido até a sua família.
Qual seria a alternativa às democracias liberais?
Bom, não é um problema simples. Não concordo com quem diz que bastaria que um Hugo Chávez assumisse o comando e tudo se resolveria... Não é só uma questão de imperialismo americano ou algo assim, é toda nossa organização social, tecnológica.
Você vai se surpreender, mas sou contra ficar esperando uma revolução. O Brasil, apesar de todas as limitações, mostra que é possível melhorar as coisas. Se os pobres estão melhor, se a classe média se fortaleceu, é cínico dizer: "Ah, mas são as mesmas velhas relações capitalistas".
Eu discordo daquela esquerda que nega isso, para quem a social-democracia é um compromisso com a burguesia que só atrapalha a revolução autêntica. Mas isso não significa que não exista uma problemática tendência neutralizante da democracia liberal.
Mas o sr., como intelectual e escritor, não utiliza justamente a liberdade da democracia para expor suas ideias e convencer as pessoas?
Veja, não sou daqueles que dizem "nossa liberdade é ilusão, vamos jogá-la fora". A liberdade é muito preciosa.
Mas você pergunta sobre a minha condição pessoal. Não é que eu possa publicar tudo que eu queira. Recentemente recebi muitos ataques. Na "New Republic", no "New York Times". O "The Telegraph", na Inglaterra, disse que eu era um fascista de esquerda. Fui acusado até de defender um novo holocausto. E o espaço para responder, quando existe, é mínimo.
A liberdade deles de criticar não é a mesma que o sr. tem para opinar?
Mas há a proporção, é diferente. Publicar na mídia marginal, em pequenas editoras, é fácil, mas a grande mídia é muito fechada.
Não sou só eu. Veja Noam Chomsky. É um intelectual extremamente conhecido, mas você nunca o viu na grande mídia americana. E não estou falando da Fox News. Você nunca viu Chomsky ser convidado a falar na CNN, mesmo no "New York Times" ele é boicotado. Claro que você pode falar que Chomsky é livre para fazer o que quiser, mas há essa exclusão do espaço público.
Vejo seu nome na grande mídia.
Sim e não. Há três ou quatro anos, publicaram aqui e ali sobre mim no "New York Times". Agora não mais. Na França, há dois ou três anos, escrevia regularmente para o "Le Monde". Agora estou fora, fui considerado radical demais. Na Alemanha foi parecido.
Não é paranoia minha. Não estou dizendo que haja conspiração, mas que, se você passa de determinado um ponto, decidem que isso é demais. Eu fico me perguntando que limite é esse. Sempre fui muito crítico à esquerda, escrevo muitas críticas a Stálin.
Claudius Ceccon
Sobre Stálin, o senhor defende que não há como comparar a União Soviética de Stálin com a Alemanha nazista de Hitler.
Veja, a União Soviética stalinista foi horrível. A quantidade de assassinatos, o sofrimento.
O que eu digo é que Stálin e Hitler não foram iguais. A prova, para mim, é a existência de dissidentes. Stálin teve a todo tempo de lutar contra quem o questionava. Muita gente dizia que Stálin tinha traído o comunismo autêntico, Trótski é um exemplo. Desculpe, mas não havia ninguém assim no nazismo, nenhum grupo questionando Hitler, dizendo que ele era um traidor do nazismo autêntico.
Na União Soviética, algo que originalmente era para dar na libertação do povo --a Revolução de Outubro-- terminou em um pesadelo. Mas o objetivo inicial era outro. O nazismo era diferente. Os nazistas conseguiram exatamente o que eles queriam.
Mas o sr. escreve que não vê contradição entre violência e política.
Esse é um ponto importante a esclarecer. Há uma violência no mundo para permitir que as coisas continuem como são. Violência para mim não envolve só armas, polícia, gangues.
Há, por exemplo, a violência social, a violência econômica --uma crise financeira brutal que acaba com empregos e economias de milhões não é uma violência?
Para entender o terrorismo, por exemplo, você tem de entender esse tipo de violência. Não estou dizendo que uma coisa justifica a outra. Mas a violência econômica ou social tem consequências.
Que relação há entre essa forma de ver a violência e a crítica que o sr. faz à noção de direitos humanos?
Eu não sou um daqueles esquerdistas loucos, que acham que os direitos humanos são apenas uma ideologia do imperialismo. Eu concordo que, em algumas situações, direitos humanos podem ser importantes.
Eu não compro o relativismo de esquerda que diz que nós não deveríamos impor uma noção ocidental de direitos humanos. Isso justifica qualquer coisa. Se estão arrancando os clitóris das mulheres, dizem "é a cultura deles, não deveríamos intervir". É nesse sentido que critico a tolerância.
O que me incomoda é que as decisões de intervenção em nome dos direitos humanos são arbitrárias. Agora se fala muito na Síria. Mas, se você quiser ver sofrimento de verdade, vá ao Congo.
Em dez anos, morreram 4 milhões de pessoas. O Estado não funciona, os poderosos aterrorizam a população enquanto vendem minerais preciosos a empresas ocidentais. Esse é o pesadelo verdadeiro sobre direitos humanos. Mas ninguém se importa. Os países estão fazendo negócios lá --e não só os EUA mas também a China, vários outros--, então ninguém dá bola.
Eu fui a Ramallah, na Palestina e falei: "Vocês sofrem com Israel, mas, para as pessoas do Congo, mudar para cá seria um sonho".
Decide-se fazer intervenções por motivações geopolíticas e econômicas. Aí, de repente, surgem milhões de imagens terríveis do lugar. Agora lemos todos esses artigos sobre como o Irã é opressivo para as mulheres. Mas o Irã é um paraíso feminista perto da Arábia Saudita, e não se fala sobre isso.
O sr. diz que o totalitarismo é mal compreendido. Em que sentido?
Eu não gosto do termo totalitarismo. Ele tem sido usado de maneira muito genérica. Do mesmo jeito que, nos anos 1960, manifestantes de esquerda diziam que os Estados Unidos eram fascistas.
Meu medo é que o mesmo aconteça com o termo "totalitário" e ele acabe sem sentido, banalizado. Veja como Hannah Arendt usava o termo. Ela é muito específica: apenas nazistas e soviéticos --e estes somente por alguns anos-- foram totalitários.
O que muda agora dizer que Assad é totalitário? Claro que ele é um cara mau. Mas totalitário? Ao falar isso, uma análise real de como funciona o regime, das suas particularidades, se torna difícil.
O sr. defende muito a ordem, acha que o mundo é melhor quando tudo está organizado. Seria, nesse sentido, um totalitário?
Nesse sentido, sim. Esse é, aliás, o meu problema com o Brasil. Rio, Carnaval, Bahia, eles dançam muito, se divertem muito, por mim iriam a um gulag [risos].
A sério: eu não acho que desordem, Carnaval, seja libertação. O problema das nossas sociedades é que elas são muito caóticas.
É isso que os americanos não entendem: se você quiser ser um ser humano verdadeiramente livre --ir aonde você quiser, encontrar quem você quiser--, você precisa de uma estrutura muito rígida de ordem pública, de boas maneiras. Sem isso, nossa liberdade é sem sentido. Liberdade e ordem andam juntas. Veja a economia soviética. Não é que ela fosse superorganizada. É o contrário. Por baixo da superfície planejada, nada funcionava, um grande improviso. A União Soviética era autoritária, mas ela não era organizada. O que ela precisava não era de mais caos, mas de mais ordem.
Para isso, acho que precisamos de mais Estado, de poderes internacionais. Os problemas que confrontamos não serão resolvidos nesse nível estúpido de comunidades locais, democracia local.
No livro, o sr. conta a história de um amigo americano que foi à Romênia após a democratização, nos anos 1990, quando a polícia secreta local decidiu ser mais amigável. No hotel, ele ligou para a esposa e disse que o país era pobre, mas as pessoas muito agradáveis. Ao desligar, o telefone toca: um oficial da polícia secreta que ligava para agradecer as palavras gentis. O sr. dedica o livro a esse policial.
Essas histórias sempre me fascinaram, histórias de como, na passagem de um sistema para o outro, a linguagem e algumas regras de comportamento se conservam e criam confusão.
O sujeito da polícia é um caso. Na época da queda do comunismo na Iugoslávia, havia uma rádio independente, de estudantes. Eles convidaram um antigo comunista, um "real" burocrata, para falar.
Perguntaram a ele sobre sexo, e ele queria agradar os jovens, mostrar que aceitava os novos tempos. Então ele disse: "Eu concordo com vocês, sexo é um instrumento muito importante na construção do progresso social e político da nação". Todos ficaram sem reação [risos]. Eu amo esses momentos.
RICARDO MIOTO, 23, é jornalista da Folha
CLAUDIUS CECCON, 75, é arquiteto e cartunista

O barquinho que se tornou "O Barquinho" - Roberto Menescal

Com 14 anos, ganhei um material para mergulho. Coisa muito simples, uma máscara de mergulho, um pé de pato e um canudo para respirar na superfície. Como sou capixaba, mesmo morando no Rio de Janeiro, era no Espírito Santo que passava todas as férias.
Fiquei apaixonado pelo mar e pela caça submarina, tornando-me um terrível predador, querendo caçar todos os grandes peixes que via.
Aos 17 anos, comecei em Vitória a tocar violão, e no fim dessas férias, voltando ao Rio com essa novidade, descobri que Nara Leão, minha namoradinha nessa época, também tinha começado a tocar o instrumento em suas férias em Campos do Jordão.
Foi uma maravilha, pois quase todas as noites eu ia a seu apartamento para tocarmos. Sempre aparecia alguém para cantar e tocar com a gente, e assim foi-se armando um grupo que em dois anos começou a compor suas músicas e se tornou o que foi chamado de "a turma da bossa nova".
A turminha da gente de vez em quando ficava chateada comigo, pois várias vezes fugi de entrevistas e mesmo de alguns shows porque tinha pescaria marcada.
Claro que minhas histórias de pescador, comprovadas por fotos, faziam sucesso nos nossos encontros e cada vez mais minhas músicas nasciam do mar.
Um dia em 1961 resolvi levá-los para um passeio de fim de semana. Pegamos um barco alugado em Arraial do Cabo (RJ) e começamos nossa aventura. O dia estava lindíssimo, com águas claras e quentes, e as poucas ondas, apesar de assustarem a moçada, não prejudicaram nosso passeio.
Comecei a mergulhar e a pegar lagostas, badejos e outros peixes, deixando de boca aberta a turma, Nara Leão, Ronaldo Bôscoli, o pessoal do Tamba Trio, algumas das meninas que nos acompanharam e minha futura mulher, Yara.
Levei-os para um lugar mais raso onde todos desajeitadamente fizeram o batismo no fundo do mar. Lá pelas 15h, desligamos o motor e fomos fazer um lanche, deixando que o barco deslizasse à vontade por aquele lindo dia.
Acervo Pessoal
Ronaldo Bôscoli (1928-94) e Menescal (à dir.) após pescaria em 1961
Ronaldo Bôscoli (1928-94) e Menescal (à dir.) após pescaria em 1961
Quando fomos ligar o motor para continuarmos o passeio, ele não quis pegar de jeito nenhum, apesar das dezenas de tentativas que fizemos, até acabar a bateria.
Claro que o pavor crescia cada vez que víamos o quanto estávamos longe da ilha. Fiquei tentando acalmar a turma enquanto tentava fazer o motor pegar, girando uma manivela.
Para tentar mostrar que tudo ia correr bem, eu cantarolava junto ao barulho que o motor fazia nessas tentativas de funcionamento.
De repente, perto das 18h, vimos uma grande embarcação de pesca vindo do horizonte em direção a Cabo Frio. Amarramos algumas roupas coloridas aos remos e fizemos sinais para que nos vissem.
Em poucos minutos eles mudaram o rumo. Os pescadores vindo da Bahia nos deram todo o apoio e começaram a nos rebocar em direção ao Arraial do Cabo.
Neste mesmo momento, Bôscoli e eu fizemos de brincadeira o verso: "O barquinho vai, e a tardinha cai", refrão que fomos cantando até nossa chegada ao cais, enfim são e salvos!
No dia seguinte, no apartamento de Nara Leão em frente ao mar de Copacabana, Bôscoli me perguntou: "Beto, como foi aquela melodia que você fez ontem no barco?". Respondi cantando: "O barquinho vai, a tardinha cai".
Ele me disse "não, essa eu me lembro, estou falando daquela quando você tentava fazer o motor pegar". "Ronaldo", falei, "não me lembro exatamente, mas foi uma coisa meio sincopada, igual ao barulho de um motor falhando, tá, tá, tá, tá...".
Então começamos a compor esse que se tornaria nosso maior sucesso, "O Barquinho".
ROBERTO MENESCAL, 75, é compositor.

O poeta e a floresta [Thiago de Mello]

folha de são paulo
CLAUDIO LEAL
ilustração DEBORAH PAIVA
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RESUMO Aos 87 anos e preparando novos livros de prosa e poesia, o escritor e diplomata repassa sua trajetória. Ele, que ao voltar do exílio em 1977 regressou também ao seu Amazonas natal, levou a reportagem a conhecer as casas que Lucio Costa projetou para ele e que, entregues ao poder público, se deterioram na floresta.
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Os gaviões espreitam o poeta e guincham entre as copas das árvores, no barranco do rio Andirá. Corpo nas águas escuras, enfiado num calção de rapazote, Thiago de Mello impõe silêncio e indica o ninho, imita-lhes os chiados. E celebra: "Ela veio me ver, rapaz. Não disse que a gaviã me conhecia? Bem, ao menos inventei que me conhece. Querida gaviã!".
A Freguesia do Andirá possui pouco mais de 4.000 habitantes, esse casal de gaviões e três acapuranas geminadas, com flores rosadas, em frente à casa do poeta. Distrito de Barreirinha (AM), a 331 km de Manaus, o vilarejo fica próximo dos índios maués.
Em agosto, Amadeu Thiago de Mello, 87, revisou um livro de inéditos, "Ajuste de Contas", a ser lançado no primeiro semestre de 2014 pela Global, de São Paulo. "Se eu não deixar alguns dormindo, vão beirar uns cem poemas", avisa. Escreveu-os no Chile, na Bolívia, no Peru, na ilha de Páscoa, em Portugal, na França, na Alemanha, na Espanha e na Amazônia, onde mora desde que retornou do exílio, em outubro de 1977.
Na floresta, desafia as complicações coronarianas e prepara um livro de memórias, "Eu E Os Outros Comigo", e mais dois de prosa, um deles ao estilo dos cronistas antigos: "Livro narrativo da situação quase desdenhável do meu corpo, ao qual devo tanta felicidade, escrito com a ajuda fascinante da memória e certas impertinências da imaginação". Haverá ainda um volume de conversas com o músico Manduka, "pássaro-cantor que se calou" -seu primogênito morreu em 2004, aos 52 anos, vítima de um acidente vascular cerebral.
Alguns poemas estão zangados, adverte Thiago, tornando à superfície do rio, cabelos de caboclo molhados. "Manuel Bandeira era um danado", retoma. "Ele me dizia: 'Às vezes um poema fica zangado. É só dar atenção que a zanga passa'." Na estrofe final do inédito "Cântico de júbilo", Thiago ausculta suas batidas de octogenário:
"Como fulgor de aurora, me levanta/ a alegria de ouvir meu coração/ batendo firme, cântico de júbilo,/ por me ver perseguir, perseverante./ Ele não sabe que algo se germina,/ conspira escuro contra esse fervor./ Nem poderá prever o instante certo/ do seu silêncio. Que não seja perto."
TEMPLO
Um apartamento no centro de Manaus é seu único pouso urbano. Em Barreirinha, sozinho ou ao lado da mulher, a poeta Pollyanna Furtado, 32, Thiago se dedica a poemas, leituras, música e banhos de água doce. Nos cinco dias em que a reportagem o visitou, esteve acompanhado somente por Luís Carlos, 49, caseiro e guardião de seu templo na floresta.
Nas cheias, o Andirá sobe acima da metade dos pilotis de 2,25 metros das casas -além da residência do escritor, há outras duas construções nas laterais, repletas de livros. O projeto é um dos cinco que o arquiteto e urbanista Lucio Costa (1902-98), autor do Plano Piloto de Brasília, fez no Amazonas -todos para o poeta. Na casa da Freguesia, traçou uma varanda de madeira, de onde Thiago conversa "com as acapuranas e com o rio".
O "vago mago", como o definiu o chileno Pablo Neruda, conhece os sortilégios medicinais. Três vezes ao dia, bebe o chá de unha-de-gato, para enfrentar sua neuropatia. Adiciona ao guaraná dos maués uma colher de mirantã, o pó usado no tratamento de nevralgias e fraquezas do estômago. Seus amigos podem receber, pelo correio, pacotes de ervas amazônicas. Assim fez com o jornalista Armando Nogueira (1927-2010), que usou a unha-de-gato para fortalecer o sistema imunológico durante o tratamento para o câncer.
Ouve Mozart no café da manhã; no quarto de música, além de fotografias de Pixinguinha, Tom Jobim, Gilberto Gil, Villa-Lobos e Pablo Milanés, há um mural de mulheres amadas, cujos rostos são contemplados no momento de escolher um disco ou de mexer os gelos do uísque. Dez casamentos, "uns de papel, outros só de amor", e quatro filhos: além de Manduka (com Pomona Politis, sua primeira mulher), é pai de Carlos Henrique (com Ayla), 54, Isabella (com Maria de Lourdes), 43, e Thiago Thiago (com Ana Helena), 32.
A coletânea de traduções "Poetas da América de Canto Castelhano" (Global, 2011) testemunha suas andanças na América Latina. Depois de Jorge Amado, Thiago talvez seja o escritor brasileiro que mais conquistou amizades com artistas, políticos e grandes autores do continente. Do colombiano Gabriel García Márquez, recebeu, numa dedicatória de 1978, o epíteto de "guru grande". Do argentino Jorge Luis Borges, ganhou um ensinamento, numa entrevista realizada em Buenos Aires, em 1981: "Deveríamos talvez falar com todas as pessoas como se já estivessem mortas, deveríamos tratá-las com a máxima bondade".
Nas paredes, há lembranças de encontros com Ernesto Cardenal, Fidel Castro, García Márquez, Borges, Mario Benedetti, Pablo Neruda, Salvador Allende e Violeta Parra. Em qualquer desvio de papo, sorri lembrando uma advertência de Neruda, na Isla Negra, onde vivia o Nobel chileno: "'Compañerito', a árvore de tua conversa tem muitos ramos".
ÓRFÃO
"Eu morrendo ou o Thiago morrendo, o que sobreviver vai se sentir muito órfão", diz Carlos Heitor Cony, amigo do poeta há mais de 60 anos. O romancista e colunista da Folha conheceu Thiago de Mello no Rio, para onde o amazonense se mudou em 1941.
Thiago foi batizado como escritor em 1952 por uma crítica de Álvaro Lins, que assinava um influente rodapé literário no jornal "Correio da Manhã".
Seu livro de estreia, "Silêncio e Palavra" (1951) o vinculou à Geração de 45, a mesma de Lêdo Ivo e João Cabral de Melo Neto, e encantou o crítico: "Poetas principais de nossa literatura moderna: estou tentado a pedir-vos um lugar, ao vosso lado, para o poeta de Silêncio e Palavra. Com 26 anos e um só livro publicado, o sr. Thiago de Mello bem demonstra, todavia, que já se acha em condições de situar-se na primeira linha da nossa poesia contemporânea".
Reprodução
Impulsionado pela acolhida, rejeitou o conselho dado por Drummond, logo ao conhecê-lo no final dos anos 1940, no Ministério da Educação: "Não faça isso, ninguém vive de poesia no Brasil". Abandonou o curso de Medicina, ingressou na diplomacia e seguiu fiel à literatura, lançando "Narciso Cego" em 1952, "A Lenda da Rosa" em 1956 e "Vento Geral" em 1960.
Assemelhava-se, recorda Cony, a "um personagem de Proust no Rio". "Vestia-se elegante, ternos bem cortados. Era cronista do jornal 'O Globo' e editado de José Olympio". No exterior, atuaria como adido cultural na Bolívia e depois no Chile até o golpe de 1964.
Na Hipocampo, criada com o também poeta Geir Campos na década de 50, editou 20 obras em dois anos, incluindo Drummond, Cecília Meireles, Jorge de Lima e o primeiro livro de Paulo Mendes Campos, "A Palavra Escrita". Eram edições artesanais, distribuídas aos assinantes do selo, em que as folhas soltas eram "envelopadas" dentro das capas. Esse aspecto desagradava Rubem Braga, que mandava costurar seus exemplares.
Dos tempos à frente da Hipocampo, o poeta guarda uma anedota envolvendo Guimarães Rosa, que lançou pelo selo "Com o Vaqueiro Mariano" (1952). Ao regressar da tipografia, em Niterói, Thiago avisou a Rosa que estava tudo rodado. "Não me diga essa desgraça!", dramatizou o mineiro, sob a luz de um lampião de Copacabana. "Eu pago seus custos, os papéis, as tintas! Preciso trocar um verbo. O pelo da vaca banhado de lua não reluz, obluz! Obluz!"
No Rio, o amazonense tornou-se íntimo também do romancista José Lins do Rego e do poeta Manuel Bandeira. Sempre a chamá-lo de "o sacana do De Mello", Zé Lins fez dele quase um irmão mais novo. Em 1957, nos últimos três meses de vida do autor de "Menino de Engenho", assumiu o posto de acompanhante de quarto no hospital.
A amizade com Bandeira gelou dois meses depois do golpe de 1964, com a publicação de "Os Estatutos do Homem", poema traduzido para mais de 30 línguas e incorporado ao livro "Faz Escuro Mas Eu Canto" (Civilização Brasileira, 1965). Saiu dedicado a Cony.
Em 11 de junho, Bandeira enviou uma carta de rompimento, em que defendia o golpe e repreendia Thiago pela dedicatória. "Chorei quando ele me pediu por escrito que eu não o considerasse mais seu amigo. Uma surra. Aproveitou para machucar o Cony, o primeiro dos intelectuais brasileiros a escrever contra a ferocidade dos militares", lembra o poeta na floresta. "Devolva essa carta... Ela queimará as suas mãos pelo resto da vida", recomendou Neruda ao adido cultural brasileiro no Chile, seu camarada desde 1960.
"Havia aí um problema pessoal entre mim e Bandeira", revela Cony, ao lembrar do episódio: "Não rompeu com o Thiago só por ideologia. Bandeira tinha sido padrinho de casamento de uma moça que se separou do marido para casar comigo. Ele me chamou de canalha, uma coisa violenta. Não respondi devido ao respeito que tenho pelo Bandeira, que acho o melhor poeta brasileiro".
De volta ao país, em 1965, após a renúncia à carreira diplomática no Chile, Thiago e suas irmãs visitaram o briguento, com o qual costumavam ter sessões musicais. Numa reconciliação, Bandeira recitou de cor o "Poema Perto do Fim", de "Faz Escuro Mas Eu Canto". Abraçado ao jovem poeta, sussurrou: "Esqueça aquela carta...".
Naquele ano, na prisão, Thiago aproximou-se ainda mais de Cony -ambos "recém-chegados" de um protesto de artistas e intelectuais contra a ditadura, em frente ao hotel Glória, no dia de uma conferência da Organização dos Estados Americanos no Rio. No quartel do Exército, o homem do Andirá queixou-se em dó de peito: "Sou índio, preciso tomar banho de rio".
MERCÊS
Não há vento. Nas águas mornas do rio Andirá, o poeta cantarola "Les Feuilles Mortes", de Jacques Prévert, e divaga: "Quero comemorar os meus 90 anos. O que vier, como diria Dom Quixote, serão mercês". E mergulha.
Há cinco anos desvia-se da cidade para a casa da Freguesia. Para aportar na Freguesia, pega um avião noturno de Manaus a Parintins, onde dorme numa pousada e embarca de manhã na voadeira Nina, do barqueiro Getúlio. A lancha encosta na entrada de sua casa. No lar ou em trânsito, veste-se de branco. "Sempre gostei de roupa branca", contou. "Mas, no exílio, eu usava era o cinza do capote, para não morrer de frio!"
"Entre a ilha e a mata, dobra à direita pro Igarapé do Pucu", reforça com o condutor do barco Nicodemos, que nos leva a Barreirinha.
Na saída no porto, equilibra-se numa tábua. Moto-taxistas se oferecem para levá-lo ao mercado, sem cobrar nada. De lá, carregando frutas e ovos, leva a reportagem a visitar as antigas moradias, projetadas por Lucio Costa, "o homem mais delicado que já conheci". Apresentados por Drummond em 1948, não se afastariam mais.
No retorno de Portugal (a última parada do exílio), em 1977, Thiago havia anunciado, em entrevista, que voltaria a morar na Amazônia, para servir à causa ecológica (lançaria "Mormaço na Floresta", em 1986, e "Amazonas, Pátria da Água", em 1991) e aprender com os locais. Passados alguns dias, Lucio ligou: "Venha buscar a sua casa".
O arquiteto, cuja mãe, Alina, era amazonense, assim anota o fato em "Registro de uma Vivência" (1995): "Finalmente, numa como que volta às origens, dei o risco da casa que, em Barreirinha, no coração da Amazônia, o poeta nativo constrói com zelo e amor".
Nos anos posteriores, sairiam da prancheta ainda uma biblioteca e um "torreão", com janelas quebra-vento, para servir de local de trabalho. O conjunto, erigido em 1978, foi nomeado Porantim do Bom Socorro.
Em 1992, o então chanceler Fernando Henrique Cardoso convidou o poeta a reassumir o posto de conselheiro cultural no Chile, "para pagar uma dívida da pátria". Com a mudança de domicílio, o governo do Amazonas comprou os três imóveis e repassou-os à prefeitura de Barreirinha.
"Thiago era adorado pelos meios culturais e políticos de Santiago. A ele nunca faltou coragem para receber de braços abertos os exilados brasileiros. Sua condição de adido cultural da embaixada e seu sentimento fraterno e democrático serviram de apoio a muitos de nós. Thiago morava na casa que era do Neruda (hoje é museu), o que já mostra o quanto ele era bem relacionado por lá. Foi em sua casa que conheci Salvador Allende", rememora o ex-presidente FHC.
Nos anos 90, Lucio Costa projetou ainda uma nova casa, à beira do Paraná do Ramos, um braço do Amazonas, e inflou a generosidade: uma cama pensada especialmente para o quarto do poeta harmonizava-se às medidas de uma janela, para que Thiago, deitado, pudesse ver o rio de sua aldeia.
MEMORIAL
A casa do Paraná do Ramos foi o ponto inicial do roteiro. Nela funciona precariamente um Memorial Thiago de Mello, mas, no acervo, não restou nenhuma obra do homenageado. O secretário municipal de Cultura, Aderaldo Tavares, relata que a luz esteve cortada até janeiro, quando ele assumiu o cargo. Tavares afirma que encontrou as casas "totalmente abandonadas".
"Conseguimos abrir para os estudantes que procuram o Memorial. Já solicitamos ao governo um projeto de restauração de todas as casas. Tivemos uma resposta de que vai ser feito", ressalta.
Por e-mail, a Secretaria da Cultura do Estado informa que a casa do Paraná do Ramos é a única das construções de Lucio Costa que foi "incorporada ao patrimônio do Estado". "Além de recuperada, foi transformada em espaço de cultura e concedida em comodato à Prefeitura do município de Barreirinha, responsável até então pelo imóvel."
No segundo andar do que deveria ser seu memorial, Thiago recolhe do chão os desenhos originais de Lucio. Vai levá-los para restauro. A cama, quebrada, foi confinada a um quarto minúsculo. "Uma das maiores tristezas que já tive em minha vida é isso acontecer na terra onde nasci. É a expressão da cultura do Brasil", diz, indignado. "Eu não devia ter voltado".
Vamos depois ao Porantim do Bom Socorro. O sítio não possui segurança. Construída com madeira, a casa tem poças d'água, escadas vacilantes, infiltrações, marimbondos. Lucio Costa traçou apenas o corrimão esquerdo da escada, mas a prefeitura acrescentou o direito e jogou um piso ladrilhado sobre a terra batida.
Demolida, a biblioteca virou um prédio de concreto. O torreão está pichado com palavrões. "Demoliram a biblioteca em que trabalhei! Demoliram!", lamenta Thiago, ao verificar o avanço da degradação. Cerca de 2.000 livros foram roubados ao longo de uma década, durante suas viagens e ausências. Folhas de edições antigas foram encontradas nas bordas de fossas.
"Na volta do Chile [em 1996], sentei na calçada e chorei lágrimas de esguicho, como dizia Nelson Rodrigues. Como fizeram isso? Nunca mais piso aqui", jura Thiago. No barco, muda de ideia e se diz decidido a lutar pela restauração e pelo tombamento dos prédios. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não há "registro de pedido de tombamento desses imóveis".
"Mais que o tombamento, deve-se garantir a preservação das obras. O tombamento é um instrumento extremo, que não garante a preservação da obra em sua integridade", defende a professora e arquiteta Ana Luiza Nobre.
Nobre, professora da pós-graduação em arquitetura da PUC-RJ e ex-diretora da Casa de Lucio Costa, no Rio, define as casas como "exemplares raros de inflexão da linguagem arquitetônica moderna -em seu caráter por princípio universalizante- a uma situação muito específica, do ponto de vista cultural, climático etc". Daí, diz ela, seu "valor inestimável para o quadro da arquitetura no Brasil".
A professora recorda que Lucio Costa havia adotado procedimentos semelhantes num projeto dos anos 1940, o Park Hotel de Nova Friburgo, na região serrana do Rio, em que usou estrutura de madeira. "O contexto amazônico é determinante e se soma ao fato da casa ter sido projetada para um poeta, produto do encontro de dois artistas."
Na Freguesia, fora da zona urbana, em sua atual casa (a única bem conservada do conjunto de construções de Lucio Costa), Thiago explica a demora de 17 anos para denunciar o início da depredação: "Sou filho de Barreirinha. Sou um homem de bem. Para falar, eu teria que envolver meu povo".
Voltar às origens amazônicas é um gesto corajoso, avalia o romancista Milton Hatoum, julgando que a província pode ser cruel com os que regressam. "Mas, quando você fica longe do seu lugar, às vezes sua literatura esmorece". O amazonense Hatoum destaca o engajamento de Thiago nas manifestações contra as "barbáries urbanas" em Manaus.
DORES
A destruição de casas e livros reaviva dores da ditadura chilena. "Perdi muita coisa de grande valor quando a casa em que eu morava foi invadida pelos primatas de Pinochet, três dias depois do golpe, em setembro de 73. Eu era refugiado, desde 1970, ano da eleição do meu Salvador Allende, a cujo governo servi como diretor de comunicação da Reforma Agrária", narra Thiago.
Ele lembra ter retornado um mês após o golpe à casa onde vivia, no bairro santiaguino de Vitacura, para constatar que não havia mais quadros. Uma fogueira de livros ardeu no jardim, segundo a proprietária. Conta que sumiram com as provas de uma obra que escrevia sobre a ilha de Páscoa. E jamais reencontrou uma pasta de pelica que guardava as cartas de Bandeira e Neruda.
"Hoje vai ter canto do rio", pressente o poeta, ao ver a agitação fluvial. A noite da Amazônia está crivada de sons de pássaros. Recolhido entre os livros, chora ao lembrar de todas as casas devastadas.
O poeta ressurge purificado para a despedida, duas noites depois. O banho de cheiro da vizinha dona Coló derramou ervas e aromas sobre seu corpo: mucuracaá, pinhão, canela, arruda, sândalo, cuia-mansa, rosa branca grande, galhotinha, manjericão e patchuli. À beira-rio, Thiago limpa a gaita para tocar uma música de Garoto. Há um bom tempo não ouvia "Terra", de Caetano Veloso, canção que o faz sentir como se "dirigindo o planeta". Golpeia o ar no refrão, como rédeas: "Terra". Sob a luz lunar, o vago mago obluz.
CLAUDIO LEAL, 31, é jornalista.
DEBORAH PAIVA, 62, é artista plástica.

Em livro, Mara Gabrilli fala do acidente que a deixou paralisada e de conquistas - Monica Bergamo

Em livro, Mara Gabrilli fala do acidente que a deixou paralisada e de conquistas


O risco de errar ao fazer qualquer projeção sobre a personalidade de Mara Gabrilli, 46, baseando-se só em seu aspecto físico de pessoa com tetraplegia é imenso.
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Mara é inquieta, liberta, sensual, provocadora. Nada tem de sofredora, de dependente ou de boazinha, como pode transparecer ao receber comida na boca de uma de suas fiéis ajudantes, relata o colunista Jairo Marques.
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Talvez, por essa razão, a biografia que a deputada federal pelo PSDB-SP lança amanhã, "Depois daquele Dia", pela editora Saraiva, cause surpresas em seus fãs, críticos e eleitores.
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Na obra, escrita pela jornalista Milly Lacombe, Mara sofre um bocado e faz chorar com os detalhes de seu gravíssimo acidente de carro, mas também diverte, fica nua, transa, queima baseados e inspira multidões.

Mara Gabrilli lança biografia

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Adriano Vizoni - 26.set.13/Folhapress
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Mara Gabrilli na sala de seu apartamento nos Jardins
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"Morria de vergonha de ler o livro terminado. É minha vida, em detalhes, que está ali! Fico imaginando algum deputado velhinho lendo e olhando desconfiado para mim lá na Câmara", diz, soltando uma gargalhada.
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A tragédia que mudou a sua vida ocorreu em 1994. Ela viajava com o então namorado, Paulo Fishberg. Os dois, e mais um amigo, voltavam de um fim de semana no litoral norte de São Paulo, lugar de paixão de Mara. O casal estava em crise e, no carro, ensaiava uma discussão. Ele conduzia em alta velocidade. Ela lembra que implorava mentalmente para que parasse de correr. Em vão.
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O carro despencou de uma altura de 15 m. Mara se recorda de que, presa nas ferragens, foi socorrida pelo amigo. Ele tirava cacos de vidro de sua boca, que sangrava. Ela detalha também a dor. Era como se seu pescoço estivesse sendo esmagado.
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Todos se recuperaram bem. Só Mara ficou com sequelas graves. Tem hoje apenas movimentos do pescoço para cima. Precisa de ajuda 24 horas por dia. Conta com um motorista e três assistentes pessoais.
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De família rica do ABC Paulista, dona de empresa de ônibus, concessionária de carros e imóveis, Mara teve e tem o melhor em reabilitação e cuidados, que incluiu uma temporada de tratamento nos EUA. Isso a ajudou a desenvolver habilidades sensoriais "inimagináveis".
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"Tive transformações óbvias no meu corpo, mas estou sempre o reencontrando e acho que, talvez, ele não tenha se modificado tanto como achei que seria após o acidente. Vejo funções e possibilidades muito novas para ele dentro da minha cabeça."
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E as "possibilidades" foram sendo abertas desde a UTI, no hospital Albert Einstein, onde Mara ficou por 50 dias, entre tubos de oxigênio e testes atrevidos em sua nova sexualidade.
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De lá, ela telefonou para o namorado pedindo que fosse visitá-la. Tinha muito desejo. Pediu que ele a tocasse.
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Depois do tratamento nos EUA, voltou a morar com os pais. Alugou um flat para manter a privacidade em alguns momentos. Às vezes ela e Paulo se encontravam lá, mas o namoro já tinha desandado. Conta que, tempos depois, começou a namorar o nutricionista Alfredo Galebe.
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Três meses mais tarde, foram pela primeira vez para um motel. O prédio tinha escadas. Ele carregou Mara nas costas. Já no quarto, ajudou a namorada a tirar toda a roupa. Tarefa nada fácil, já que ela usa cintas para dar sustentação à musculatura.
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Galebe a ajudava a se movimentar e a abraçá-lo. A partir daí, na definição dela, o romance ficou tórrido. Durou sete anos.
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"Às vezes, a própria pessoa com deficiência não sabe que pode ser feliz em sua sexualidade. Para mim, sexo sempre foi gostoso, saudável. Quando percebi que essa parte ia continuar após o acidente, fiquei muito aliviada." Em setembro de 2000, ela posou nua para a revista "Trip".
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Depois do acidente, Mara continuou a estudar. Formou-se em publicidade e em psicologia. Abriu uma ONG para ajudar pessoas com deficiência. As portas para a política se abriram. Seu primeiro cargo foi o de secretária municipal da Pessoa com Deficiência, na gestão de José Serra (2005-2006).
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Há alguns anos, o pai, Luiz Alberto Gabrilli Filho, sofreu um aneurisma e quatro AVCs. Ficaram, então, dois cadeirantes em casa. Hoje, ela mora sozinha em um apartamento nos Jardins.
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A ajudante Rosa ajeita a mão de Mara em uma taça de vinho diversas vezes ao longo da entrevista. Embora ela não consiga se mexer, a acompanhante simula os movimentos. Ela usa, por exemplo, uma bicicleta ergométrica, onde seu corpo é encaixado para ser exercitado.
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"Mara não poderia viver como uma pessoa passiva. Ela não era passiva em nada e, ainda que não conseguisse mais se mover do pescoço para baixo, jamais conseguiria ser uma mulher sem atitude", narra trecho do livro.
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Sim, a cabeça da "ongueira", ex-secretária municipal, ex-vereadora e a mulher mais votada para um cargo do Legislativo federal também se transformou com o "chacoalhão" que a vida deu na garota atrevida dos anos 1980.
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"Tomei uma porrada imensa da vida e tive de pensar tudo diferente, tive que construir uma nova Mara", diz ela. "Sou humana. Tem horas que enlouqueço com bobagens corriqueiras. Mas, na maioria das vezes, faço uma reflexão e dou um grande sorriso."
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"Depois daquele Dia" tem narrativa não linear. Ora o leitor está à mesa de jantar dos Gabrilli com Mara e a mãe, Claudia, tendo algum tipo de conflito, ora mergulha na intimidade da biografada.
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"Minha mãe sempre foi muito rígida comigo, mas o temperamento dela foi fundamental para que eu tivesse força de seguir em frente e encarasse meus desafios."
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*Certo dia,* quando ainda militava no terceiro setor, cismou: queria se encontrar com o então presidente Lula para falar sobre esquemas de corrupção em empresas de ônibus na região do ABC. "Até parece", desafiou a mãe. Mara saiu com sua cadeira motorizada e foi sozinha até a porta do prédio do petista. Ameaçou fazer um escândalo -e ele a recebeu.
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O livro já tem contrato para se tornar filme e Mara faz planos ambiciosos de, um dia, comandar o Palácio Matarazzo, sede da Prefeitura de São Paulo, a bordo de sua cadeira de rodas. Mas sobre isso ela não dá declarações, nem mesmo ao longo das 318 páginas de sua biografia.
Mônica Bergamo
Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

Mauricio Stycer

Um rosto comum
Estrelato tardio de Bryan Cranston, protagonista de 'Breaking Bad', pode servir de lição no Brasil
No site da revista "New Yorker" está disponível um vídeo de pouco mais de dois minutos, intitulado "A evolução de Bryan Cranston", com um resumo da carreira do ator. A primeira cena o mostra como garoto-propaganda de um remédio para hemorróidas, nos anos 80, e a última no papel de Walter White, o protagonista de "Breaking Bad".
Nos 25 anos que separam as duas imagens, Cranston fez de tudo um pouco, faturando algum dinheiro com publicidade, mas sem conseguir emplacar um único papel significativo, entre as dezenas que fez na televisão e no cinema.
Não fosse a fama atual, poucos lembrariam que viveu, em participações especiais, um conselheiro sentimental em "Matlock" (1991), um dentista que se converte ao judaísmo para contar piadas de judeu em "Seinfeld" (1997) ou um neurótico enrascado em "Arquivo X" (1998).
A primeira boa oportunidade só veio em 2000, quando interpretou o pai do protagonista na sitcom "Malcolm in the Middle". Foram seis temporadas, que renderam três indicações ao Emmy. Em 2007, finalmente, foi escalado para viver Walter White --"o papel que sem dúvida será a primeira linha do meu obituário", como diz à "New Yorker", no perfil de dez páginas que ganhou na edição de 16 de setembro.
Agora requisitado para o cinema (fez "Argo" e vai ganhar um bom dinheiro por sua participação no próximo "Godzilla"), Cranston está muito longe de ser um galã. Ao contrário, é um rosto comum.
Em um momento em que a legislação no Brasil estimula a produção de séries e programas de ficção para a TV paga, o estrelato tardio do protagonista de "Breaking Bad" é um caso interessante e mostra como é difícil encaixar o ator certo no papel justo para ele.
Para quem está escrevendo e dirigindo programas com produção independente, a escalação de elenco tem sido um tema complexo. Em primeiro lugar, existe uma restrição importante: atores vinculados à Globo por contrato não podem participar. Isso exclui do raio de ação não apenas os nomes mais famosos, mas também profissionais mal aproveitados pela emissora.
Essa dificuldade aparece em alguns bons projetos exibidos recentemente. Penso, por exemplo, em "O Negócio", que tem o selo de qualidade da HBO. A série, sobre o mundo da prostituição de luxo, tem ótima produção, bom roteiro, grandes personagens, e um elenco competente, mas sem brilho. O quadro é semelhante em "Beleza S/A", produção da O2, exibida pelo GNT, cuja história, ambientada em uma clínica estética, poderia ir mais longe com a ajuda de atores mais fortes.
Uma escalação que resultou perfeita foi a de Zé Carlos Machado para viver o protagonista da série "Sessão de Terapia", cuja segunda temporada começa no dia 7 de outubro, no GNT. Um "rosto comum", como Bryan Cranston, Machado tem sólida carreira no teatro, em São Paulo. Também fez alguns bons papéis no cinema, como em "Ação Entre Amigos", de Beto Brant, e "Casa de Alice", de Chico Teixeira.
O acerto da escalação de Machado mostra que é possível, ainda que possa parecer difícil, encontrar grandes atores para viver bons personagens na TV, ainda que não tenham feito nenhum papel relevante em novelas da Globo.