domingo, 13 de outubro de 2013

O livro a respeito do livro que inspirou Tiradentes - RONALDO VAINFAS

folha de são paulo
HISTÓRIA
Escrevam o que eu li

RESUMO
Capítulo desprezado na aurora da historiografia brasileira e valorizado nos anos 1970 por Kenneth Maxwell, a Inconfidência Mineira ganha, sob a coordenação do britânico, nova antologia. "O Livro de Tiradentes" retraça e analisa a influência das ideias libertárias dos colonos ingleses nos EUA sobre a conspiração das Gerais.
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Poucos episódios da história brasileira deram tanto o que falar como a Inconfidência ou Conjuração Mineira de 1789. Inconfidência ou conjuração? Dá quase no mesmo, pois a primeira significa "infidelidade ao príncipe", e a segunda, conspiração contra ele.
Prosseguindo com os dilemas vocabulares, é válido dizer história brasileira sem que houvesse o Brasil como nação no final do século 18? Claro que sim, deixando os preciosismos de lado, sobretudo neste caso. Porque a Inconfidência Mineira, além de esboçar, na época, alianças com outras capitanias, foi tema impactante na construção da memória nacional. Memória, história e historiografia: dimensões do conhecimento que seguem juntas, rivalizando desde sempre.
Basta lembrar que, no século 19, em meio à construção do Estado imperial, a Inconfidência nem sequer era considerada tema relevante e, no campo da memória, não tinha valor para a caracterização da identidade brasileira. O século 19 era tempo de Império, e a dinastia reinante era a mesma do século 18, em Portugal, a Casa de Bragança, contra a qual se insurgiram os inconfidentes. Melhor silenciar.
O primeiro a mencionar a Inconfidência foi o historiador inglês Robert Southey, em sua "History of Brazil", publicada antes mesmo da independência, entre 1810 e 1819.
Minimizou, porém, a importância do episódio, assim como o principal historiador do oitocentos brasileiro, Francisco Adolpho de Varnhagen, autor da portentosa "História Geral do Brasil", em cinco volumes (1854-57). Historiador competente nas lides da pesquisa documental, Varnhagen era, porém, um bajulador da monarquia e mentor da tese de que a nossa história era nada mais, nada menos do que uma continuação da história portuguesa.
A intelectualidade abrigada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro --criado em 1838 para escrever a história da jovem nação--, ainda que polemizasse sobre diversos temas, como a importância do índio (mas não a do africano) em nossa formação histórica, não dava bola para os movimentos conspiratórios do século 18 ou do início do 19. Celebravam o modelo de independência vencedor, encabeçado por dom Pedro 1º.
Dos gabinetes do instituto às ruas do Rio de Janeiro: foi na atual praça Tiradentes, que já se chamou Rossio Grande, no século 17, e na praça da Constituição (a portuguesa), em 1821, que se erigiu a estátua equestre de dom Pedro 1º, em 1862. Justo no lugar onde Tiradentes foi enforcado e esquartejado, em 1792.
A praça só ganhou o nome atual em 1890, com a Proclamação da República, esta sim valorizadora da Inconfidência Mineira como precursora da independência nacional. História ou memória? História nova, republicana, que por isto valorizou a primeira ideia de República esboçada no Brasil, à diferença da historiografia imperial.
Justiça seja feita. O historiador carioca Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891) publicou uma importante "História da Conjuração Mineira", em 1873, editada pela Garnier. Foi o primeiro a utilizar os Autos da Devassa, em versão manuscrita, o que não é pouca coisa. Mas a importância da Inconfidência só foi reconhecida após 1889, sobretudo pelo Estado, empenhado em reconstruir a memória nacional à luz dos valores republicanos.
José Murilo de Carvalho esclarece, no clássico "A Formação das Almas" (1990), como o até então obscuro Tiradentes foi transformado em herói nacional; em pinturas e retratos, é representado como o próprio Cristo, mártir da República: cabelos longos, barba e bigode.
Nossa historiografia, neste ponto, ficou atrás da história e da memória. O celebrado Capistrano de Abreu, em seus "Capítulos de História Colonial" (1907), tratou a Inconfidência Mineira com desfaçatez, afirmando que mal se diferenciava dos levantes pernambucanos, quer a Guerra dos Mascates (1710-11), quer a Revolução de 1817 contra o futuro dom João 6º, pai de nosso primeiro imperador.
DEVASSA
Desprezada pelos historiadores brasileiros ou mitificada pela memória republicana, a Inconfidência Mineira precisou de um brasilianista para, de fato, vir à luz, como objeto da história brasileira. Coube ao britânico Kenneth Maxwell a tarefa demiúrgica de explicar a Inconfidência Mineira em livro que, na versão brasileira (1977), intitulou-se "A Devassa da Devassa". O original em inglês data de 1973, mas as duas edições apareceram durante os anos de chumbo no Brasil.
Maxwell "devassou" a urdidura da conspiração, considerando sua relação com a conjuntura europeia do período --tempo de revolução -- e com o estilo da administração colonial, em especial o sistema de contratos. A cobrança de impostos atrasados (derrama) foi mesmo o estopim da conspiração, embora o próprio governador das Minas, o visconde de Barbacena, tenha considerado a cobrança abusiva.
Não por acaso, Kenneth Maxwell é o coordenador de "O Livro de Tiradentes" [org. Bruno Carvalho, John Huffman e Gabriel de Avilez Rocha; trad. Maria Lucia Machado e Luciano Vieira Machado, Companhia das Letras, 2013, R$ 38, 458 págs.], obra de grande valor, pois acrescenta novidades factuais e suscita reflexões sobre a mais badalada conjuração da história luso-brasileira.
Que livro é esse? Tiradentes escreveu algum livro? Nada disso. Tiradentes tinha, sim, um exemplar do "Recueil des Loix Constitutives des États-Unis de l'Amérique", tradução para o francês de vários documentos da Revolução Americana, com destaque para a Declaração de Independência, os Artigos da Confederação e as Constituições de 6 dos 13 Estados que compunham a república.
O "Livro de Tiradentes" é, na verdade, a primeira tradução para o português daquele "Recueil", publicado em Paris em 1778. Nada comprova melhor a presença das ideias dos revolucionários estadunidenses na Inconfidência do que a circulação deste livro entre os conspiradores das Gerais: ideias e fórmulas políticas que prevaleciam, de longe, sobre as que motivaram a Revolução Francesa irrompida no mesmo ano.
Pouco antes de ser preso no Rio, em 10 de maio de 1789, Tiradentes deu o livro para Francisco Xavier Machado, porta-estandarte dos Dragões de Minas, para que o levasse de volta às Gerais. O dragão, porém, entregou o livro ao governador, visconde de Barbacena, originando uma investigação paralela à devassa movida contra os inconfidentes.
No seu ensaio introdutório, Maxwell conta em detalhes a história desse livro, traduzido para o francês por iniciativa de Benjamin Franklin, embaixador dos revolucionários americanos na corte dos Bourbons. Boa parte dessa história está relacionada à busca do apoio francês para a guerra contra os ingleses, o que acabou ocorrendo, além de divulgar a revolução na Europa. O francês era a língua diplomática por excelência, além de ser a língua dos "philosophes" do Iluminismo setecentista.
No tempo da Conjuração Mineira, alguns desses textos normativos tinham caducado, como os Artigos da Confederação, pois a Constituição dos Estados Unidos já tinha sido aprovada em 1787.
Em todo caso, o livro é de enorme interesse, pois permite rastrear a cultura política dos inconfidentes. A solução radical dos revoltosos das colônias inglesas, presente na Declaração de 1776, sem dúvida pesou na conspiração das Gerais, o que se confirma nos documentos da devassa, presos os inconfidentes. Afinal, entre 1788 e 1789, os conspiradores parecem ter se inspirado na Revolução Americana, sobretudo porque ela explodiu com motivações antifiscais.
Nesta edição do "Livro de Tiradentes", além do texto de Maxwell, há outros dois muito valiosos: uma análise erudita do conteúdo do "Recueil" assinada por pesquisadores de Harvard e Princeton, e um estudo de Júnia Furtado e Heloísa Starling, docentes da UFMG, sobre a cultura política dos inconfidentes.
Destaque para as considerações sobre o valor da república como regime de governo; a ideia de pátria, que variava do arraial do Tejuco até Minas, embora os conspiradores tenham buscado atiçar outras capitanias para o movimento, sem nenhum êxito; o lastro intelectual dos conspiradores, formados em Coimbra, na maioria, alguns em Montpellier, na França, um deles na Inglaterra.
Entre outras qualidades, esse livro permite aprofundar o impacto real da ideias revolucionárias dos colonos ingleses na conspiração dos mineiros. O famoso encontro de José Joaquim da Maia, codinome Vendek, com Thomas Jefferson, na França, em 1786, é somente a ponta de um iceberg. Os conjurados não só estavam a par da experiência norte-americana como sonhavam com eventual apoio militar dos EUA. Delírio.
Dois aspectos desse paralelismo merecem uma palavra a mais. A questão da representação política, por exemplo, nos EUA, se ancorava nos Estados federados, herdeiros da autonomia institucional de cada colônia; no Brasil --onde, já dizia Capistrano, não havia sequer uma "consciência capitaneal"--, os conspiradores apostaram nas câmaras municipais, reduto dos "homens bons" na América portuguesa. Uma instituição arcaica. Impossível compará-la com os comitês distritais do republicanismo da Pensilvânia, o mais radical da Revolução Americana.
Outro ponto chave é o da escravidão, que já nos EUA se mostrava problemático. Em algumas constituições previa-se a extinção da escravidão, ou do tráfico, em outras não. O próprio Jefferson, embora considerasse a escravidão um opróbrio, defendia o regime como necessário para a economia da jovem nação. Ele mesmo possuía 267 escravos na Virgínia.
No caso de Minas, houve quem cogitasse a libertação dos escravos para lutar pela causa, mas a maioria achava isso um perigo e um desastre, pois não haveria "ninguém para trabalhar nas minas". Todos os conspiradores das Gerais, sem exceção, eram escravistas. Cláudio Manuel da Costa tinha 31, o traidor Joaquim Silvério do Reis, mais de 200, Alvarenga Peixoto, 132. Até Tiradentes, o mais modesto deles, possuía cinco escravos. O lema dos conjurados, "Liberdade ainda que tardia", só valia para os brancos inadimplentes.

Sadie - Alice Munro - trad. Caetano W. Galindo

folha de são paulo
IMAGINAÇÃO
Sadie
ALICE MUNROtradução CAETANO W. GALINDO
Quando eu tinha cinco anos, de repente meus pais apareceram com um menininho, que minha mãe disse que era o que eu sempre quisera. De onde ela tirou essa ideia eu não sei. Ela deu uma bela enfeitada naquilo, tudo inventado, mas difícil de contrariar.
Aí um ano depois apareceu uma menininha, e de novo foi uma balbúrdia, mas menos que da primeira vez.
Até a época do primeiro bebê, eu não me lembro de ter sentido algo diferente do que aquilo que a minha mãe dizia que eu estava sentindo. E até aquela época, a casa toda era tomada pela minha mãe, pelos passos dela, pela sua voz, por aquele cheiro poeirento, mas funesto que ocupava todos os cômodos mesmo quando ela não estava dentro deles.
Por que eu digo funesto? Eu não tinha medo. Não é que a minha mãe me dissesse exatamente como eu devia me sentir a respeito das coisas. Ela era uma autoridade no assunto, isso nem se questionava. Não só no caso de um irmão mais novo, mas também quanto ao cereal Red River, que me fazia bem e de que, portanto, eu devia gostar. E quanto à minha interpretação do quadro que ficava no pé da minha cama, que mostrava Jesus tolerando que as criancinhas viessem até ele. Tolerar significava outra coisa naquele tempo, mas não era nisso que a gente se concentrava. Minha mãe apontava a menininha meio escondida num canto porque queria ir até Jesus, mas era tímida demais para isso. Aquela era eu, minha mãe dizia, e eu achava que era, mas não teria entendido isso sem ela me dizer e na verdade preferia que não fosse assim.
O que me deixava tristíssima mesmo era a Alice no país das maravilhas imensa e presa no buraco do coelho, mas eu ria, porque a minha mãe parecia estar adorando.
Mas foi com a chegada do meu irmão e com aquele falatório todo sobre como ele era um tipo de presente pra mim que eu comecei a aceitar o quanto as certezas que minha mãe tinha a meu respeito diferiam das minhas próprias.
Acho que isso tudo estava me preparando para o momento em que a Sadie veio trabalhar para nós. Minha mãe tinha se recolhido para sabe-se lá qual território que ela ocupava com os bebês. Sem ela por ali o tempo todo, eu podia pensar no que era verdade e no que não era. Eu já sabia o suficiente para não falar dessas coisas com ninguém.
A coisa mais estranha da Sadie -- apesar de não ser muito comentada lá em casa -- era que ela era uma celebridade. A nossa cidade tinha uma rádio onde ela tocava violão e cantava o tema de abertura da programação, que ela mesma tinha composto.
"Olá, olá, olá, todo mundo..."
E meia-hora depois era, "A-deus, a-deus, a-deus, todo mundo." Entre um e outro, ela cantava músicas que as pessoas pediam e também algumas que ela mesma escolhia. As pessoas mais sofisticadas da cidade tendiam a rir das músicas dela e da rádio toda, que diziam que era a menor do Canadá. Essas pessoas escutavam uma estação de Toronto que transmitia canções populares da época -- "Three little fishes and a mommy fishy too..." -- e Jim Hunter berrando as desesperadas notícias da guerra. Mas as pessoas das fazendas gostavam da rádio local e daquelas canções que a Sadie cantava. A voz dela era forte e triste e ela cantava sobre a solidão e a dor.
Apoiada na cerca fria
De um curral imenso
Olhando pela trilha ao fim do dia
É só em você que eu penso
Quase todas as fazendas daquele canto do país tinham sido desmatadas e ocupadas havia coisa de cento e cinquenta anos, e de quase qualquer casa de fazenda dava para avistar outra casa de fazenda a poucos pastos de distância. Ainda assim, as músicas que os fazendeiros queriam ouvir falavam todas de vaqueiros solitários, do encanto e da decepção de lugares distantes, dos crimes horrorosos que faziam criminosos morrerem com o nome da mãe nos lábios, ou o de Deus.
Era isso que a Sadie cantava com tanto sentimento num tom de contralto encorpado, mas trabalhando com a gente ela era cheia de energia e de confiança, gostava de conversar e em especial de conversar sobre si própria. Normalmente não tinha ninguém para ouvir o que ela dizia, só eu. As ocupações dela e as da minha mãe as mantinham separadas quase o tempo todo e de qualquer forma eu acho mesmo que elas não teriam gostado de conversar. Minha mãe era uma pessoa séria, como já insinuei, que tinha dado aulas na escolinha antes de dar aulas para mim. Talvez ela tivesse gostado se a Sadie fosse alguém que ela pudesse ajudar, ensinando a não dizer "Cês quer". Mas a Sadie não dava muitos indícios de querer ajuda de quem quer que fosse, ou de querer falar de um jeito diferente de como sempre falara.
Depois da ceia, que era a refeição do meio-dia, a Sadie e eu ficávamos sozinhas na cozinha. Minha mãe aproveitava para tirar uma soneca e, se estivesse num dia de sorte, os bebês dormiam também. Quando ela acordava, punha um vestido diferente, como se estivesse esperando uma tarde tranquila, mesmo que seguramente fosse haver mais fraldas para trocar e também mais daquela atividade desagradável que eu me esforçava para não ver, a menorzinha chupando um peito dela.
Meu pai também tirava uma soneca -- talvez uns quinze minutos na varanda com o "Saturday Evening Post" cobrindo a cara antes de voltar para o celeiro.
A Sadie esquentava água no fogão e lavava a louça, com a minha ajuda e com as persianas abaixadas para não deixar entrar o calor. Quando a gente acabava, ela esfregava o chão e eu secava, com um método que eu tinha inventado -- patinando de um lado para outro com panos de chão nos pés. Aí a gente retirava as espirais de papel pega-mosca amarelo e grudento que tinham sido colocadas depois do café da manhã e que àquela altura já estavam pesadas, cheias de moscas pretas mortas ou que zumbiam quase mortas, e pendurava as espirais novinhas, que estariam cheias das recém-mortas na hora do jantar. Tudo isso enquanto a Sadie me falava da vida dela.
SOBRE O TEXTO
Este trecho é o início do conto "O Olho", que integra a mais recente coletânea de Alice Munro, premiada com o Nobel de Literatura na última quinta. "O Olho" é um dos quatro escritos de inspiração autobiográfica com que a escritora canadense encerra "Querida Vida", volume de 2012 que a Companhia das Letras lança em novembro. Leia a versão integral do conto e resenha de "Querida Vida" em folha.com/ilustrissima.

    O útero e o riso - Arte brasileira em território germânico - Raquel Cozer

    folha de são paulo
    DIÁRIO DE FRANKFURT
    O MAPA DA CULTURA
    RAQUEL COZERCerca de 20 crianças alemãs fazem fila para entrar no útero de Lygia Clark (1920-88). Nenhuma delas jamais ouviu falar na artista brasileira, mas isso não as impede de quererem ser concebidas, geradas e dadas à luz na instalação "A Casa É o Corpo" (1968), que recria o nascimento. "Bem-vinda à vida!", graceja uma segurança a uma menina que conclui o périplo.
    A considerar as 3.000 pessoas que passaram por ali desde a abertura da mostra "Brasiliana", cinco dias antes, não é uma piada nova. "Nunca vi os seguranças se divertirem tanto", diz a curadora Martina Weinhart, que passou dois anos selecionando as obras que ficam até janeiro na galeria Schirn, uma das maiores de Frankfurt, no microcentro histórico da cidade.
    A mostra integra a programação local em torno do Brasil, convidado de honra da Feira do Livro de Frankfurt deste ano. Seu conteúdo surpreendeu até Weinhart, que, em 30 anos de curadoria, nunca tinha ouvido falar em Lygia, Cildo Meireles e Tunga, para ficar em três dos mais famosos selecionados. "Eles são muito conhecidos no Brasil, mas aqui não. É tudo tão sensual", diz, antes de ter a voz abafada pelos risos da obra sonora "rio oir" (2011), de Cildo.
    Dos dois mais jovens expostos, Henrique Oliveira, 40, e Maria Nepomuceno, 37, ela conseguiu obras exclusivas --respectivamente, como define, uma "gruta de compensados de favela" e uma "experiência brasileira em Marte".
    JEITINHO "BRASILÊS"
    Mais conhecido na Alemanha do que no Brasil é Zé do Rock, 57, que há duas décadas habita território germânico e lança agora livro de forte sotaque "brasilês".
    "Per Anhalter Durch die Brasilianische Galaxis" (de carona pela galáxia brasileira), resultado de três meses de viagem, foi um dos títulos preparados para esta edição da feira pela A1 Verlag, editora "klein, aber fein" (pequena, mas fina) que também publica João Paulo Cuenca e Ana Paula Maia. O lançamento lhe rendeu espaço no nobre Sofá Azul, com entrevistas gravadas para a TV alemã.
    Zé do Rock não é uma estrela. Está para a cena literária alemã como o poeta marginal Chacal para a brasileira, como diz o poeta brasileiro Age de Carvalho, que vive em Viena. Mas não passa despercebido. "To em fremt do stand de informassoes. Eu tenho ropa colorida", escreve, no "brasilês" que inventou, em SMS enviado para se identificar. Logo é localizado: veste calça amarela, camiseta azul, casaco branco, tênis com cadarços abóbora e mochila preta e cinza.
    O livro novo é seu quinto, dos quais só um, de 1998, saiu no Brasil, como "Zé do Rock - O Erói sem Nem Um Agá" (L&PM, esgotado).
    CAPITAL DO CRIME9
    Toda vez que vai à Feira de Frankfurt, a 153 km de Stuttgart, onde mora, Zé do Rock se lembra de São Paulo. "O que São Paulo é em termos de cidade a Feira de Frankfurt é em termos de feira. Um monstro", diz. E vê outra semelhança: "A criminalidade em Frankfurt está igual à de São Paulo. Lá diminuiu, aqui aumentou".
    A fama de capital do crime da Alemanha não é um título que Frankfurt ostente com orgulho como o de maior centro financeiro do país. A cidade lidera há mais de duas décadas pesquisa anual do Departamento Federal de Criminalística da Alemanha. Tem cerca de 700 mil habitantes e média de 16 mil delitos a cada 100 mil pessoas.
    Não é algo que o morador perceba tanto, mas o turista pode reparar de primeira. O maior índice de furtos acontece com desprevenidos no aeroporto. Fora de lá, terá mais chance de conhecer a violência local quem se aventurar pela zona de prostituição.
    SEM DESPRENDIMENTO
    Por falar em delitos, quem anda frequentando as páginas policiais do "Frankfurter Allgemeine Zeitung", maior jornal da cidade, é um bispo católico em Limburg (a 76 km de Frankfurt).
    Franz-Peter Tebartz-van Elst já andava na mira da imprensa pelo pouco desprendimento material. Resolveu processar a "Der Spiegel" após texto da revista afirmar que ele tinha ido visitar crianças pobres da Índia viajando em primeira classe, mas acabou acusado de prestar falso testemunho na ação.
    Na última terça, o "Frankfurter" informou que a já polêmica construção de sua imensa casa custou não os "meros" 15 milhões de euros que se pensava, mas 31 milhões (R$ 93 milhões). Na quinta, o arcebispo alemão Robert Zollitsch disse que recomendaria ao papa Francisco, famoso por defender uma vida modesta, tirar Tebartz-van Elst do cargo.

      Dois olhares sobre os jogos de "Decameron" - ALCIR PÉCORA

      Folha de são paulo
      RESUMO Duas novas edições se voltam para o clássico de Boccaccio: uma antologia, lançada pela Cosac Naify, mais fiel a aspectos sintáticos do italiano; e uma versão integral do texto, pela L&PM. Apesar do bom nível das traduções, faltam aparatos críticos e notas para ampliar as possibilidades de interpretação do texto pelo leitor.
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      De uma vez, apareceram duas novas traduções do "Decameron" (1349-53, revisto em 1370-71), de Giovanni Boccaccio (1313-75). Uma delas, integral, efetuada por Ivone C. Benedetti [L± R$ 74; 632 págs.]. A outra, contendo uma seleção de dez histórias, escolhidas entre as mais celebradas do volume, de responsabilidade de Maurício Santana Dias [Cosac Naify; R$ 62; 128 págs.].
      O argumento do livro é conhecido: atingida pela peste negra, em 1348, Florença vê-se na iminência do caos: a organização política entra em colapso, rompe-se a autoridade familiar e pública, desbaratam-se os costumes. A violência e o assombro das mortes sucessivas levam a situações extremas: da entrega a excessos luxuriosos imediatistas, sem esperança de futuro, à autoflagelação, quando apenas a expiação dolorosa parecia responder ao castigo.
      Nesse cenário tétrico, dez jovens da alta sociedade -sete mulheres e três rapazes, acompanhados de sete serviçais- buscam sobreviver à catástrofe, agindo com bom senso e lucidez.
      Retiram-se juntos para propriedades fora da cidade e, ali, procuram restabelecer uma rotina; o asseio pessoal, o decoro civil, as práticas cristãs e o prazer da conversação são a base do autogoverno do grupo.
      Decidem ainda que, da sesta ao crepúsculo, sob o comando de um "rei" ou "rainha" eleito a cada dia e que decidiria o tema da jornada, contar-se-iam histórias a fim de tornar mais leve o dia. E o plano é rigorosamente seguido durante dez jornadas -justamente o significado do termo grego "decameron".
      As jornadas são dez, mas se estendem, de fato, por um período de 14 dias. Isto porque, dando início às sessões numa quarta-feira, interrompem as reuniões às sextas, dia simbólico da Paixão de Cristo, destinado a orações, e também aos sábados, reservados para lavar a cabeça e jejuar.
      Apenas duas das dez jornadas têm temas livres; as demais seguem instruções, como a de contar histórias nas quais os protagonistas se saem bem, após tribulações várias; ou, ao contrário, histórias de amantes recíprocos que tiveram final infeliz; ou sobre pessoas que, por meio do engenho sutil, conseguiram conquistar um bem desejado; histórias nas quais alguém, com respostas prontas, safou-se de perigos etc.
      Por esse esquema, notam-se ao menos quatro forças posicionadas no centro do tabuleiro do "Decameron", a saber:
      1) o esforço dos jovens para recriar uma corte, refundar uma ordem política, quando a cidade real parece sucumbir ao caos;
      2) o peso enorme da fortuna, isto é, do acaso e da contingência, que se abate sem causa ou aviso sobre as ações e vidas humanas;
      3) a tirania e alcance das paixões amorosas, que não acatam condição de nascimento, situação econômica ou temperamento individual, a todos arrastando pelo desejo de gozo com promessas inseguras e perigosas;
      4) a bravura do engenho, isto é, do entendimento pronto e perspicaz, apto como nenhuma outra faculdade humana a fazer frente ao imprevisto da fortuna.
      As cem narrativas contadas pelas dez personagens acomodam, com invenção copiosa, gêneros retóricos muito diversos, como as "novelas" (isto é, narrativas de assuntos diversos, compostas de vários episódios, quase independentes entre si), as "fábulas" (análogas aos "fabliaux" franceses, isto é, historietas em prosa ou verso, de natureza cômica, escabrosa ou obscena), as "parábolas" (vale dizer, alegorias, exemplos, contos moralizados de intenção pedagógica) ou, enfim, as "histórias" (que fazem referência a passagens históricas e personagens ilustres).
      Alex Cerveny/Arte Folha
      No conjunto, as novelas organizam em "estilo médio" -equidistantes do sublime e do pedestre, como propõe um conhecido estudo de Francesco Bruni- uma enorme variedade de registros discursivos. Nessa perspectiva, as histórias contadas pelos jovens sobreviventes produzem, por meio da exímia arte de narrar, uma espécie de "Paideia", reinterpretada em contexto cristão.
      Elas trazem à vida um repertório de invenções arquitetadas como educação da elite, mas uma educação menos apegada à pureza da doutrina ou à substância do conceito do que à conversação variada, ao entretenimento elegante, à sutileza com que a arte costura, num só tecido, os mil pontos da língua dos acidentes.
      NOVAS TRADUÇÕES
      Ambas as novas traduções, feitas diretamente do italiano, são de bom nível. Comparando trechos aleatórios do livro, a de Santana Dias parece mais literal, mais fiel aos termos repetidos e à sintaxe apta a múltiplas intercalações do italiano, o que pode, por vezes, soar menos fluente em português. E poderia ser ainda mais literal, arcaizando e toscaneando o português até onde suportasse a inteligibilidade da língua.
      Com um exemplo simples: na primeira frase da primeira novela da primeira jornada, aparece duas vezes a palavra "coisa", e na frase seguinte, o termo "coisas".
      A tradução de Santana Dias mantém a repetição na primeira frase, mas a altera na terceira ocorrência por "obras"; Benedetti usa apenas uma vez "coisas" na primeira frase, substituindo-a, na segunda, por uma anáfora ("as fez").
      Por quê? Talvez porque hoje soe mal a repetição? Ela, porém, é parte de um estilo que não a considera deselegante ou redundante, em parte porque são histórias para ser lidas em voz alta, em parte porque a repetição favorece o ritmo solto e o temperamento leve, um despejo médio, prosaico, cuja graça não convém desdenhar.
      O aparato crítico das duas edições é reduzido: no caso da antologia, se limita a uma breve introdução de Santana Dias, modesta na pretensão interpretativa, mas adequada na aproximação tanto do mais importante especialista no "Decameron", Vittore Branca, que acentua os aspectos "medievais" do livro, quanto do já citado Bruni. Traz também uma seleta e útil bibliografia para os que desejem avançar os estudos sobre o livro.
      No caso da edição integral da L&PM, a introdução ficou a cargo de Carlos Eduardo Berriel, professor de teoria literária na Unicamp, estudioso do Renascimento e editor da revista "Morus", dedicada aos estudos utópicos.
      Aqui a intenção interpretativa articula aspectos da vida social europeia e da biografia de Boccaccio -por exemplo, fazendo-o ver, em Nápoles, a sua amada Fiammetta, à imagem da Beatriz de Dante ou da Lauretta de Petrarca. No entanto, mais que vividas, tais passagens são lugares comuns do gênero biográfico, anedotas assentadas em tópicas retóricas e não histórias que se possam confirmar.
      Berriel também entrega o "Decameron", sob uma "concepção inteiramente laica", ao "Renascimento" e "à variedade da realidade da vida", o que faria das suas novelas uma quase antecipação do "romance enquanto gênero". É uma leitura que, mais recentemente, tende a ser criticada, porque reforça uma visão teleológica da história, segundo a qual os eventos de uma época se explicam mais pelo que resultariam em outra do que pelas referências próprias do seu modo de significação.
      Na edição da Cosac Naify, não há notas de nenhuma espécie, nem textuais, nem interpretativas, o que, no caso de um livro escrito há 650 anos atrás, enfraquece as possibilidades de uma leitura bem-feita.
      Não porque se deva ser didático a respeito dele, ou porque não sustente uma inteligibilidade atual, mas sim porque notas bem informadas multiplicam a capacidade de o leitor aproveitar a potência significativa do texto.
      Na edição da L&PM, há algumas notas -poucas, a considerar qualquer boa edição italiana, como a da Mursia, a cargo de Cesare Segre, ou a da Einaudi, do citado Branca. Entretanto, parte delas se gasta por uma opção questionável, qual seja, a de reverter para o francês os nomes italianizados por Boccaccio. A opção se complica ao alterar o título alternativo do livro, apresentado por Boccaccio em sua primeira didascália: "Comincia il libro chiamato Decameron cognominato principe Galeotto...".
      Ao traduzir Galeotto por Galehaut, Benedetti busca ser fiel ao nome original do amigo dedicado de Lancelote, no célebre ciclo bretão.
      Mas Galehaut é opção estranha ao original boccacciano. Se fosse para traduzir o nome, não seria mais próprio, em vez de lhe dar uma retroversão francesa, aportuguesá-lo para Galeote, nome consagrado do herói nas traduções do ciclo do Graal para nossa língua?
      Outra complicação se dá pelo honorífico "príncipe", mantido pela tradutora junto a Galehaut, pois se trata de voz genérica italiana para referir um "cavaleiro nobre". Ma, se o italianismo se mantém, não seria mais justo deixar tudo por conta do "Príncipe Galeotto", assim como para os demais nomes italianizados, e ter mais espaço para notas filológicas, retóricas e históricas que ampliassem as estratégias interpretativas do texto?
      Seja como for, estas são observações incidentais, que contam pouco diante do que um e outro tradutor tão bem fez ao presentear-nos com tal obra de cultura.
      TRABALHO GRÁFICO
      No que toca ao trabalho gráfico e de editoração, as duas edições são bem diferentes.
      A da L&PM, com número muito maior de páginas, é mais simples, sem deixar de ser bem impressa, revisada e facilmente manuseável.
      A capa faz uso de uma pintura a óleo de Gustaaf Wappers (também conhecido como Gustave Wappers, 1803-74), que, à maneira acadêmica do século 19, retrata o próprio Boccaccio a contar histórias para a rainha de Nápoles e uma dama, ambas vestidas como cortesãs e atiradas languidamente sobre o leito desarrumado.
      É uma cena conforme à fama mais licenciosa que os tempos acentuaram no "Decameron", mas que pouco tem a ver com o rígido decoro com que se comporta o grupo dos dez jovens narradores, tal como o livro o propõe.
      Os grandes tipos do título e do autor, que ocupam um terço da capa, empregam uma tipologia de estilo híbrido, com detalhes da letra romana como na perna da frente do "R", bem como na proporção geral; acrescentam-se estilizações e traços figurativos, como espadas no "M" e "N", arco ogival e barra dupla no "A" -esse arco, por exemplo, lembra a fórmula pseudogótica atualmente muito empregada em séries juvenis de sucesso.
      Portanto, não se cuidou, aqui, para que a capa fosse verossímil ao "trecento" italiano, mas tampouco se quis que parecesse completamente contemporânea: há uma referência genérica ao acadêmico, como a dizer que se trata de livro antigo ou clássico.
      A edição da Cosac Naify, ao contrário, faz uma clara opção por um livro visualmente autoral e contemporâneo ao delegar toda a ilustração do volume, em capa dura, ao artista plástico paulistano Alex Cerveny. A solução da capa se dá em termos tipológicos, com aplicações de vinhetas alusivas a grotescos de manuscritos iluminados.
      O efeito é elegante, já pela eliminação das serifas, pelo rigor geométrico e pelo emprego do estilo "monoline", isto é, sem variação na espessura dos traços. Há ligaturas interessantes -por exemplo, entre "C" e "A" e entre "O" e o "N".
      Internamente, as ilustrações são numerosas, não havendo página em que não se encontrem desenhos, vinhetas ou intervenções em vermelho e azul no próprio corpo do texto. A aparência geral é luxuosa, a ponto de dar ao livro certo ar decorativo, senão mesmo de "coffee table book": aquele que não só se lê, mas se deixa estar sobre os móveis como ornamento.
      ALCIR PÉCORA, 59, é professor de teoria literária da Unicamp, autor do livro "Máquina de Gêneros" (Edusp) e organizador de "Por Que Ler Hilda Hilst" (Globo).

      Antonio Prata

      Diário da paternidade II
      Até os três meses era claro, minha filha me notava só como um assistente, um estagiário da mãe
      Ontem, às 4h17 da madrugada, ninando minha indômita filha pelo quarto, cheguei à seguinte imagem: é como se eu fosse um patinador no gelo, dando volteios em câmera lenta, agarrado a uma tainha de cinco quilos que se debate em fast-forward. Quando ela finalmente dorme no meu colo, contudo, a coloco no berço e volto para o quarto, me sinto como o Amyr Klink retornando ao lar depois de ter sido o primeiro homem a atravessar o Atlântico num barquinho a remo. Momentos tétricos, momentos épicos.
      Ter filho te insere, imediatamente, no entusiasmadíssimo clube dos que têm filhos. Um clube que você até sabia que existia, mas para o qual não dava a menor bola. É algo assim como, de uma hora pra outra, passar a torcer pra Portuguesa --na atual fase da Portuguesa.
      Lusa! Lusa! Lusa!
      Às vezes, na rua ou no mercado, percebo que homens ou mulheres com criança de colo estão com medo de mim. É que lhes lancei meu olhar "eu-também-tenho-uma-filha-recém-nascida-eu-sei-o-que-é-isso-que-coisa-mais-linda-que-coisa-mais-doida-parabéns-por-atravessarem-o-Atlântico-todas-as-noites-tamo-junto-Lusa-Lusa!". Infelizmente, a se julgar pelas respostas faciais, toda a intenção do meu olhar se perde em algum lugar entre o córtex e as retinas, me deixando apenas com essa expressão de tarado ou maníaco religioso louco de ácido prestes a, sei lá, lamber alguém.
      Quantos rostos têm um bebê? Olivia espicha o pescoço, é Audrey Hepburn, retrai, é John Goodman --e eu nunca tinha reparado que o John Goodman podia ser tão lindinha. Numa mesma foto, ela parece a minha irmã ao nascer, meu avô paterno aos 80 e sua prima Nina, de 5. O mais legal, no entanto, é quando a olhamos e falamos: "Agora ela não parece ninguém, agora ela tá com cara de Olivia".
      Outro dia fomos ao pediatra e tive que preencher uma ficha. Vi lá "Nome do pai" e já saí escrevendo: "Mario Alberto Campos de Moraes Prata". Levou uns cinco segundos para eu entender que o pai era eu. Pensando bem, talvez ainda não tenha entendido. Terei que preencher mais algumas fichas até que a ficha caia de vez.
      Semana passada, Olivia fez 3 meses: nossas olheiras aparentam 300 anos; nossos corações rejuvenesceram 30 --e não são à toa os múltiplos de 3.
      Durante três meses eu fui apenas um assistente desqualificado. Olivia chorava, eu chegava pra socorrer e, do fundo do berço, ela franzia a testa: "Saco, mandaram o estagiário...". Mas, para minha felicidade, após 90 dias tudo mudou: eu chego, ela sorri. Minha filha finalmente se deu conta da existência do seu pai! (Ou, talvez, só tenha começado a achar graça deste desengonçado estagiário da mãe.)
      Agora, com licença: o Atlântico me chama e, pelo rugir das ondas, não está nada pacífico.

        Falta de cadastro nacional permite um RG por Estado

        folha de são paulo
        Repórter tira carteira de identidade em 9 Estados
        Sem implantação de cadastro nacional, é possível fazer RG com outro nome
        Lei criada em 1997 que prevê um registro único para armazenar os dados de todo o país nunca saiu do papel
        REYNALDO TUROLLO JR.ENVIADO ESPECIAL AOS ESTADOS DE AL, ES, MS, PB, RN, AC, RO, RS E MGA lei criada em 1997 para unificar a emissão de carteiras de identidade no país nunca saiu do papel, omissão do governo federal que permite a uma mesma pessoa ter um RG em cada Estado.
        Ou seja: um mesmo nome, mas 27 documentos com numerações diferentes.
        E essa mesma pessoa pode ainda tirar facilmente um RG com a própria foto e outro nome, prática que serve de base a uma série de crimes.
        Folha encontrou essas brechas em apuração iniciada em janeiro deste ano.
        O mesmo repórter, com RG original de SP, viajou a oito capitais e, em cada uma delas, fez uma nova carteira.
        Foi assim em Vitória, Campo Grande, Maceió, João Pessoa, Natal, Rio Branco, Porto Velho e Porto Alegre.
        Ter um RG em cada Estado é possível porque a emissão dos documentos é estadual, e os institutos de identificação não trocam informações.
        Previsto em lei desde 1997 para corrigir essa falha, um cadastro nacional de identidades, que deveria armazenar eletronicamente dados de todas as pessoas, nunca saiu do papel, embora tenha sido anunciado pelo ex-presidente Lula em dezembro de 2010.
        Atualmente o único requisito para fazer um RG é a apresentação da certidão de nascimento ou de casamento.
        A falta de um sistema que reconheça digitais coletadas em outros Estados permitiu ao repórter fazer em Belo Horizonte um RG com sua foto e suas digitais, mas com o nome de um colega do jornal.
        Expedido por órgão oficial, o documento com o nome incorreto é válido e revela a brecha. Basta que o fraudador tenha certidão de nascimento ou casamento.
        Para corrigir as falhas existentes, o governo federal anunciou em 2010 a implantação do RIC (Registro de Identidade Civil), um cartão com chip para substituir o atual RG em até dez anos.
        O projeto, porém, empacou. Um contrato com a Casa da Moeda para emissão de 2 milhões de RICs, ao custo de R$ 90 milhões, fracassou. Foram produzidos apenas 14 mil cartões, e só 52 estão válidos.
        O RIC teve de ser "redesenhado" em 2012. Foi previsto um custo de R$ 6 bilhões em 12 anos. Decisões sobre onde ficará o cadastro nacional de identidades e qual tecnologia será usada nunca foram tomadas, porque aguardam decisão do Palácio do Planalto.

          José Simão

          folha de são paulo
          Ueba! Eike vai pro Bolsa Familiax!
          E o PSDB é o Benjamin Button que deu errado: nasceu velho e continua velho! É O NOVO!
          Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Festival de Piadas Prontas! "Narcisa Tamborindeguy se filia ao partido errado". Ai, que ferradura! Confundiu o PSD com PSDB. Imagine na hora de votar!
          Um cara no Twitter disse que a Narcisa devia entrar pro LSD! Porque ela parece um fliperama que deu "tilt"!
          Ela tem mania de abrir a janela do apartamento e gritar: "Rio, eu te amo!". E todo mundo acha lindo. Se um corintiano abre a janela e grita, o vizinho chama a polícia! Rarará!
          Outra piada pronta: "Enquanto confessa os pecados, mulher furta padre na catedral de Ribeirão Preto". A mulher furtou o iPhone 5 do padre. Mas roubar iPhone 5 não é pecado, é necessidade. Furto famélico.
          Outra: "Menino entra no hospital para realizar cirurgia na língua e o médico opera a fimose, em Ponta Grossa". Isso que é falta de comunicação. E o médico não era cubano!
          E essa: "Ideli Salvatti usa helicóptero do Samu para périplos em Santa Catarina".
          É o IDELICÓPTERO! Tudo certo: como ela se chama Salvatti, usou o Samu! Samu salvatti a Ideli!
          E diz que o Eike vai entrar pro Bolsa Família. BOLSA FAMILIAX! Rarará!
          E essa dupla? Eduardo Marina. Marinardo e Eduina! A Marina parece o Vasco: tanto barulho pra ser vice no final!
          A Marina se filiou ao PSB, que filiou dois socialistas convictos: Heráclito Fortes, do DEM, e Bornhausen, do DEM. Deu Em Merda!
          O Partido Socialista Brasileiro filia qualquer um, contanto que não seja socialista!
          Então estamos assim: o PT se junta ao Maluf e ao Sarney. Marina se filia ao PSB, que filiou Heráclito Fortes e Bornhausen.
          E o PSDB é o Benjamin Button que deu errado: nasceu velho e continuou velho! É O NOVO!
          E eu não entendo nada que a Marina fala. Fala grego, com legenda em curdo e dublado em sânscrito. Parece filme da Mostra! Rarará!
          Marinardo e Eduina. Lua de mel do barulho. No segundo dia da lua de mel, a Marina teve uma crise alérgica. Por isso que o Campos tem aquele olho esbugalhado. "Tô com alergia". "JÁ?". E esbugalha o olho! Rarará!
          O Campos tem um ovo frito de cada lado do nariz! Ovo verde! Rarará!
          Nóis sofre, mas nóis goza!
          Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

            'Não dormi com o presidente', avisa consultora que inspirou 'Scandal'

            folha de são paulo
            Judy Smith, ex-gestora de crise na Casa Branca, diz ter ética e atitude diferentes da personagem
            Série é a primeira com protagonista negra na TV americana em 35 anos; 2ª temporada é exibida aqui pelo Sony
            MARCO AURÉLIO CANÔNICODO RIOOlhando para a plateia majoritariamente feminina que acabara de assistir ao piloto da série "Scandal", cuja protagonista é inspirada em sua vida, a americana Judy Smith, 54, se antecipa à pergunta que inevitavelmente viria.
            "Devo deixar uma coisa clara antes de começarmos: não dormi com o presidente", diz ela, referindo-se ao ocupante da Casa Branca e diferenciando-se da protagonista.
            "Com nenhum deles."
            Não que Smith, uma gerenciadora de crises que atuou em casos históricos dos governos Reagan (Irã-Contras), Bush (Guerra do Golfo) e Clinton (o escândalo Monica Lewinsky), fosse admitir caso tivesse feito como Olivia Pope, seu alter ego na série.
            Sigilo e discrição são essenciais em sua área de atuação, como ela ressalta para o público que assistiu a sua palestra no último domingo, durante o Festival do Rio.
            Seu trabalho foi a inspiração para "Scandal", produzida por Shonda Rhimes (criadora de "Grey's Anatomy") e hoje em sua segunda temporada no Brasil, onde novos episódios são exibidos pelo canal Sony às segundas, 22h.
            A série conta a história de uma ex-consultora de mídia da Casa Branca, interpretada por Kerry Washington ("Django Livre"), que abre uma empresa de gerenciamento de crises, ajudando a proteger a imagem pública de figuras da elite --políticos, executivos, celebridades e corporações.
            "Scandal se tornou algo importante porque foi a primeira vez que uma mulher afro-americana interpretou a protagonista na TV, nos últimos 35 anos", diz Smith, que é também uma das produtoras e consultora de roteiro.
            "O público feminino fica feliz de ver alguém com quem pode se identificar. Olivia é uma mulher forte, no ápice de sua forma, mas não é perfeita, tem uma vida pessoal um tanto tumultuada, para dizer o mínimo."
            DURONA
            Diferentemente do estilo "gladiadora de terno" que caracteriza a protagonista da série, Smith diz adotar uma postura mais suave e mais dentro da lei.
            "Não encorajo meus investigadores a bater nos outros para obter informação ou a mexer em cenas de crimes."
            Ela e Pope têm em comum o que ela chama de "compaixão pelo cliente". Mas mesmo quando eles praticaram algum crime?
            "Todos cometemos erros. A diferença é que os erros que eu e você cometemos não aparecem nos jornais ou na televisão. Acredito muito no perdão e na redenção. O importante é aprender com os erros", responde.

              Marcelo Gleiser

              folha de são paulo
              Cinco bilhões de anos de solidão
              Mesmo se houvesse mais seres inteligente na galáxia, estariam tão longe que, para todos os efeitos, estamos sós
              Cinco bilhões de anos de solidão. Esse é o nome do novo livro do jornalista Lee Billings, lançado na semana passada nos EUA. O título, obviamente, faz menção ao romance de Gabriel García Márquez, com os cem anos mudados para 5 bilhões.
              Os 5 bilhões aqui retratam, em números arredondados, a idade da Terra e do Sistema Solar. O número mais preciso é 4,5 bilhões de anos, mas ficaria meio estranho no título de um livro.
              A afirmação de que são 5 bilhões de anos de solidão vem do fato de que não temos indicação de que haja outras formas de vida no Cosmo, especialmente inteligentes. Billings traça a história da busca pela vida extraterrestre, incluindo entrevistas com alguns de seus protagonistas.
              Quando falamos de vida extraterrestre, temos de ter cuidado para diferenciar entre vida simples e vida complexa. Por vida simples, entende-se seres unicelulares, como bactérias. A vida surgiu há cerca de 3,5 bilhões de anos, 1 bilhão de anos após a formação do nosso planeta.
              Por que a demora? Durante seus primeiros 600 milhões de anos, a Terra foi bombardeada por asteroides e cometas, que tornavam sua superfície um inferno. Só em torno de 3,9 bilhões de anos atrás é que a coisa se acalmou e os oceanos fincaram pé. Se a primeira vida de que temos informação surgiu cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, foram apenas 400 milhões de anos entre a calmaria dos bombardeios celestes e a vida. Não é muito tempo quando se pensa em bilhões de anos.
              A vida na Terra foi dominada por bactérias por quase 3 bilhões de anos. Houve uma sofisticação em que células simples (procariotas) tornaram-se mais complexas (eucariotas, com o material genético protegido num núcleo), mas ficou por aí. A transição da vida unicelular para a multicelular deu-se em torno de 600 milhões de anos atrás e, na explosão do Cambriano (540 milhões de anos atrás), tomou força.
              Se as leis da física e da química são as mesmas no Cosmo, e se só na nossa galáxia há cerca de 200 bilhões de estrelas e mais de 1 trilhão de planetas e luas, é natural especularmos que há a probabilidade de existirem outras terras --planetas com água, carbono e oxigênio, onde a vida também é sofisticada.
              Mas esse raciocínio é simplista, como explico no livro "Criação Imperfeita". A história da vida em um planeta reflete sua história.
              A trajetória da vida na Terra é única e depende de vários fatores geofísicos: a existência de uma Lua grande, que estabiliza a inclinação do eixo de rotação do planeta; de um campo magnético forte o suficiente para refletir radiação cósmica nociva a seres vivos; de placas tectônicas que, ao moverem-se, regulam o gás carbônico na atmosfera, que por sua vez é densa e rica em oxigênio. A lista é longa. Seres complexos precisam de planetas estáveis, com muita energia disponível. Não basta o planeta ter água líquida e carbono para que tenha vida.
              Quando vemos as várias barreiras que a vida simples transpôs para tornar-se inteligente, entendemos o título do livro de Billings. Mesmo se outros seres inteligente existirem na galáxia, estariam tão longe que, para todos os efeitos, estamos sós.
              E se estamos sós neste planeta mágico, temos de aprender a celebrar nossa existência e a proteger o que temos a todo custo.

                Mônica Bergamo

                folha de são paulo

                Fenômeno na internet, humorista Felipe Neto já fez seu primeiro milhão

                Quem só conhece o carioca Felipe Neto, 25, pela fama conquistada na internet, com vídeos em que mistura humor e palavrões para reclamar de tudo e de todos, não reconheceria o rapaz tímido e ponderado que acompanha o repórter Marco Aurélio Canônico a um restaurante mexicano, na Barra da Tijuca, no Rio.
                *
                "Aquele não sou eu, é um personagem", diz o criador do Não Faz Sentido, canal hospedado no YouTube desde 2010, com mais de 2,5 milhões de inscritos e 49 vídeos que somam quase 180 milhões de visualizações --a maior média por vídeo dos canais nacionais no site.
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                "Meu objetivo era interpretar, porque eu estava muito afastado do teatro, onde comecei com 12 anos. Coloquei óculos escuros e incorporei uma coisa mais agressiva, para transformar num projeto de vídeo", explica.

                Felipe Neto é fenômeno na internet

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                Rony Maltz/Folhapress
                AnteriorPróxima
                Felipe Neto, ator e empresário, no escritório de sua empresa, Parafernalha, no Rio de Janeiro, com o cenário de videogame que é usado na gravação de esquetes e programas
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                A repercussão dos vídeos --principalmente daqueles em que ataca alvos da idolatria adolescente, como o cantor Fiuk e os filmes da série "Crepúsculo-- transformou o rapaz em celebridade da web e trouxe anunciantes e dinheiro (segundo ele, seu faturamento com publicidade ultrapassou US$ 1 milhão, cerca de R$ 2,1 milhões).
                *
                "Quando ganhei meu primeiro dinheiro com o Não Faz Sentido, comecei a perceber que o estilo do canal tinha prazo de validade. É um projeto repetitivo, estridente, agressivo, não tinha como fazer aquele modelo se perpetuar." Criou então a Parafernalha, produtora de vídeos de humor lançada em 2011, espécie de precursora teen do Porta dos Fundos.
                *
                A escolha do nome da produtora foi tão aleatória que Felipe nem sequer sabia a grafia correta (parafernália). "Quando fui registrar um CNPJ, dei o primeiro nome que veio à cabeça, e não sabia como se escrevia."
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                Hoje, a Parafernalha emprega mais de 30 pessoas e coloca no YouTube dois vídeos por semana (às quartas e aos sábados), conseguindo mais de 20 milhões de acessos por mês e atraindo anunciantes como Pepsi e Credicard. Também lançou, no início deste ano, a primeira minissérie brasileira da Netflix, "A Toca", inspirada na britânica "The Office", com três episódios de meia hora.
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                Ele passou pela televisão, com duas séries no Multishow e um quadro no dominical "Esporte Espetacular", da Globo. "Eu tinha o sonho de fazer TV, mas, quando fiz, perdi o tesão. Os anunciantes controlam tudo, você tem quase zero liberdade criativa. Eu vinha da internet, onde tinha 100% de liberdade."
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                Quando fala de conquistas e de planos futuros, Felipe incorpora um empresário ambicioso e meticuloso, versado no linguajar dos livros de RH e calejado no trato com a imprensa --fez "media training" após "sofrer muito preconceito de jornalistas".
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                Narra sua história ao estilo "self-made man": nasceu em uma família de classe média baixa no subúrbio carioca de Engenho Novo e, na base do autodidatismo, aprendeu inglês ("Não tinha grana para o cursinho") e webdesign.
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                Começou a trabalhar aos 13 anos fazendo bico como vendedor durante as férias. Juntou dinheiro e arriscou na internet. Montou um serviço de telemensagens e criou o Is Free, site de compartilhamento de séries de TV (já extinto).
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                Diz ter nascido com "essa gana por empreender". Encontraria o caminho para a fama ao gravar e colocar no YouTube os vídeos em que incorporava seu personagem mal-humorado e reclamão.
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                "Sempre tive interesse pela internet. Quando eu tinha 11 anos, a família inteira se uniu para me dar um computador de Natal. Chorava pedindo. Me interessei pelos websites, me tornei designer gráfico. Estudei sozinho, como tudo que estudei na vida", diz. Chegou a fazer faculdade de desenho industrial e de direito, mas abandonou ambas.
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                Na mesma época em que ganhou o computador, foi diagnosticado com deficit de atenção --a falta de interesse na escola fez a mãe o levar a um psiquiatra. "Ele me deu receita para tomar Ritalina, mas minha mãe não quis e eu também fiquei com medo."
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                Hoje em dia vai ao psiquiatra semanalmente e toma Ritalina desde os 23 anos, "porque meu problema tem de ser controlado mesmo. Quando a Parafernalha começou a dar certo, eu comecei a ter obrigações que eram muito chatas, e não fazia. Aí comecei a tomar o remédio".
                *
                A outra droga que consome é o cigarro. Cioso de sua imagem, pede para não ser fotografado com um dos dois que acende ao longo das seis horas em que a Folha o acompanha. "Muito adolescente me trata como ídolo. Se me vê fumando, pode até condenar, mas já cria uma maior naturalidade, entendeu? Eu tratava com mais naturalidade porque minha mãe fumava."
                *
                Felipe morou sempre com a mãe, Rosa, que é pedagoga e funcionária de creche há 27 anos ("Suga muito dela, ela trabalha 12 horas por dia"). Alexandre, o pai, é psicólogo; tinha 19 anos quando o filho nasceu e separou-se da mulher três meses depois.
                *
                Há três anos, Felipe vive com a gaúcha Maria Eduarda Magalhães, 24, que não o conhecia até vê-lo no "Programa do Jô", em 2010. Gostou do que ouviu e escreveu para ele. O encontro demorou alguns meses, até que ela foi passar férias no Rio e não voltou mais.
                *
                O casal mora próximo ao escritório. "Tenho zero luxo, não tenho carro, moro num apartamento alugado, pequenininho. Tudo que ganhei investi nas empresas."
                *
                Seu investimento mais recente é a Paramaker, uma agenciadora de canais de vídeo. "A gente agencia hoje mais de 2.500 canais do YouTube brasileiro, com 250 milhões de visualizações por mês. Dos dez canais mais vistos do país, cinco são nossos: o do Cauê Moura [Desce a Letra], Mundo Canibal, Parafernalha, Não Faz Sentido e o da Kéfera [5inco Minutos]."
                *
                A empresa surgiu da união com os americanos do Maker Studios, líderes mundiais em gerenciamento de canais do YouTube. A rotina de Felipe é hoje mais empresarial e menos artística (quase não participa de vídeos). Mas nos fins de semana ele experimenta a vida de celebridade, viajando para promover seu livro "Não Faz Sentido - Por Trás da Câmera" (ed. Casa da Palavra).
                *
                Lançada em agosto, a obra está na lista das mais vendidas e esgotou a primeira edição (15 mil exemplares). Felipe é um dos autores que Paulo Coelho sugeriu que fossem levados para a Feira de Frankfurt --as ausências teriam feito o mago recusar o convite do governo brasileiro.
                *
                "As pessoas, assistindo a 30 segundos de um vídeo, criavam uma imagem sobre mim, como se eu fosse um cara rebelde que falava dos adolescentes para fazer sucesso. E não faziam a menor ideia de como eu tinha chegado até ali", diz Felipe, sobre o que o levou a escrever o livro.
                *
                "Sofro com esse estigma. Não estou mais fazendo reunião com o Multishow, mas com o presidente de uma empresa de mídia que controla, sei lá, R$ 2 bilhões por ano. Esse cara ter essa imagem de mim, do tipo 'ah, vou conversar com um moleque', é muito pior do que um jornalista me metendo o pau."
                Mônica Bergamo
                Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

                Mauricio Stycer

                folha de são paulo
                Cortina de números
                A divulgação de índices de audiência nunca ocorreu de forma tão aberta e agressiva quanto nos dias de hoje
                A ombudsman da Folha tratou em recente coluna (15/9) dos riscos que os jornalistas especializados em televisão correm ao divulgar números de audiência.
                No texto, Suzana Singer observa: "Ao jornalista cabe desconfiar dos números mais vistosos e lembrar-se da máxima de que estatísticas bem torturadas dizem qualquer coisa'. Os canais de TV, do mesmo modo que as empresas, produzem centenas de dados positivos, oferecidos diariamente à imprensa. É a aposta no vai que cola..."
                O alerta não poderia ter sido feito num momento mais apropriado. Não me lembro de nenhum outro período em que a divulgação de índices de audiência tenha ocorrido de forma tão aberta e agressiva quanto hoje.
                Os números informados em colunas de jornal e sites, como lembra a ombudsman, "são sempre obtidos de segunda mão", uma vez que o Ibope não os fornece ao público, mas apenas a seus clientes.
                O instituto, porém, não se opõe a que as emissoras passem adiante os dados consolidados de audiência (somente a divulgação dos dados "prévios" não é autorizada). Record e SBT informam diariamente a jornalistas da área, por e-mail, números que consideram interessantes divulgar.
                A Band, quando algum programa seu consegue algum resultado extraordinário, faz o mesmo. Já a audiência da maior parte dos programas da Globo é publicada, também de forma diária, em diferentes blogs.
                Essa divulgação, quase simultânea, eventualmente dá margem a confusões. Há poucas semanas, vi que Record e SBT festejaram, nas respectivas comunicações que enviaram à imprensa, a conquista da vice-liderança num mesmo horário. Como seria possível? Uma análise mais detalhada dos números, sem eufemismos, mostrou que não houve vencedoras na batalha, mas um empate.
                Na luta agressiva que travam pela vice-liderança, posição fundamental do ponto de vista do mercado publicitário, Record e SBT naturalmente não fazem estardalhaço sobre uma informação que diz muito das transformações pelas quais passa a indústria audiovisual: a rigor, nenhuma das duas está em segundo lugar.
                Com exceção da manhã, nas demais faixas do dia, o conjunto que o Ibope chama de "Outros Canais" já ocupa o segundo lugar no ranking das audiências. Ou seja, depois da Globo, o segundo maior contingente de espectadores está sintonizado em coisas como TV paga, internet conectada à TV, UHF, games etc.
                A frenética divulgação de números de audiência ajuda a dar relevo ao impacto que a Globo, por ter a grade mais estável e longeva, tem sofrido em meio ao processo de mudanças nos hábitos dos telespectadores.
                Pelo menos uma vez por semana, algum levantamento de dados feito pela concorrência chega aos sites ou colunas de jornais informando que determinado programa da Globo atingiu a sua mais baixa audiência na história. Um ponto menos destacado nestes estudos é que a audiência perdida não está migrando para os seus concorrentes diretos.
                Por fim, chama a atenção neste ambiente agitado a iminente chegada ao Brasil de um concorrente ao Ibope, o grupo alemão GfK, contratado pelas principais emissoras de TV aberta, exceto a líder. É um sinal de que a guerra descrita neste texto tende não apenas a continuar, como a ganhar novos contornos.

                  Ferreira Gullar

                  folha de são paulo
                  Um novo Carnaval
                  Hoje, ninguém sabe de cor os sambas das escolas, que antigamente eram cantados por todos
                  Fernando Pamplona revolucionou o Carnaval carioca, mas, antes dele, eu já assistia ao desfile das escolas de samba. É que me casara com uma moça da Tijuca, Thereza Aragão, que amava o Carnaval e a música popular. Ela seria, anos mais tarde, responsável, com suas segundas-feiras de samba, no Teatro Opinião, em Copacabana, por levar o samba de subúrbio para a zona sul do Rio.
                  Naqueles anos, o desfile era na avenida Presidente Vargas, no trecho próximo à Candelária, e não havia nem passarela nem arquibancada. A gente assistia ao desfile inteiro, em pé, nas calçadas. Depois, o desfile foi transferido para a avenida Rio Branco, o que melhorou para nós que passamos a assisti-lo das janelas da Redação do "Jornal do Brasil", onde eu trabalhava.
                  Foi quando Pamplona surgiu, emprestando ao Salgueiro uma concepção nova do desfile carnavalesco, não só plasticamente, mas também tematicamente. Aí ele nos ganhou. Thereza, eu, Vianinha e a turma inteira do grupo Opinião nos tornamos frequentadoras do desfile e dos ensaios do Salgueiro.
                  As alegorias e fantasias das escolas de samba, até então, tinham gosto acadêmico, mesmo porque seus autores eram gente da Escola Nacional de Belas Artes e o pessoal mais conservador, para quem vestir-se de princesa é que era beleza.
                  Deve-se reconhecer, também, que fantasiar-se de nobre correspondia à aspiração dos sambistas, que viam a nobreza como um sonho inalcançável, a não ser no Carnaval. Fantasiar-se de conde era tornar-se conde por algumas horas.
                  Pamplona rompeu com isso, não só acabou com as fantasias de príncipes e princesas, como pôs como enredo a história do negro, descendente de escravos. Foi o caso do enredo "Quilombo dos Palmares", que assinalou mais uma vitória do carnavalesco inovador.
                  Se do ponto de vista do enredo, como se viu, Pamplona rompeu com a tradição, creio que foi no plano visual que seu ímpeto inovador foi mais determinante. Lembro-me do entusiasmo de que fomos tomados ao ver as alas do Salgueiro vestidas com fantasias de grande beleza e despojamento.
                  Foi a visão moderna das artes plásticas --particularmente a tendência abstrata geométrica-- que inspirou Pamplona e sua equipe. Mais que os adereços e enfeites, o que encantava era a beleza do vermelho e do branco, explorados em sua simpleza e plenitude. E mais o contraste com a pele negra dos passistas e das passistas, revoando no asfalto. Ver aquelas alas desfilando foi uma experiência inesquecível.
                  E, como tinha que ser, a nova concepção do desfile carnavalesco conquistou outras escolas. Nem todas com a mesma facilidade, especialmente aquelas mais antigas e de mais arraigadas tradições. A Mangueira, por exemplo, resistiu à inovação, até onde pôde e, de qualquer modo, jamais se deixou subverter pela revolução salgueirense.
                  Mas essa revolução não se limitou ao âmbito das escolas e dos desfiles. Fascinou uma nova geração de artistas e intelectuais da zona sul do Rio, que passaram a frequentar não só os desfiles, como também os ensaios das escolas e até desfilar nelas. Era branco no samba? Era, mas com paixão.
                  Alguns anos depois, construiu-se a Passarela do Samba, mal apelidada de Sambódromo. As antigas arquibancadas de madeira e tubos de metal eram montadas para o desfile e desmontadas depois. A nova passarela, em concreto armado, é permanente, custou caro e fica grande parte do tempo sem utilidade.
                  O desfile, por sua vez, sofreu mudanças. Porque as escolas cresceram, foi necessário estabelecer um limite de tempo para cada uma desfilar, o que levou à aceleração do ritmo dos sambas-enredo, que viraram marchas.
                  Hoje, ninguém sabe de cor os sambas das escolas, que antigamente eram cantados por todos. O som dos alto-falantes estendidos por toda avenida torna inaudível o canto das alas, o que reduz a emoção e a participação do espectador. As escolas passaram a alugar fantasias para estrangeiros desfilarem, gente que não sabe cantar nem dançar o samba da escola.
                  Depois de tudo isso, Fernando Pamplona, que trazia o Carnaval no sangue, nunca mais foi assistir aos desfiles. Nem eu.

                    Pão e Circo - Paula Cesarino Costa

                    folha de são paulo
                    Pão e Circo
                    RIO DE JANEIRO - A farra era total sob a tenda montada no verão carioca de 1982. Um grupo de jovens, magros e animados, inventou um jeito diferente de levar ao público teatro, circo, música, dança.
                    O documentário "A Farra do Circo", de Roberto Berliner e Pedro Bronz, não pretende contar a história definitiva do Circo Voador e da geração capitaneada por Perfeito Fortuna. Mas, ao mostrar parte dela, revela como, há 31 anos, um grupo de malucos beleza decidiu erguer uma lona no Arpoador e criar um espaço cultural onde, de dia, 300 jovens eram funcionários, professores e praticantes das mais diversas artes.
                    A ideia era boa, mas durou pouco. O poder público apontou irregularidades e fechou o lugar. Atrapalhou o que se construía. A lona foi para a Lapa, região degradada do centro.
                    Premiado no Festival do Rio e programado para a Mostra de Cinema de São Paulo, "A Farra do Circo" mostra como a originalidade artística pode dar vigor a uma cidade. No caso, como o Circo Voador deu início à revitalização (que ainda iria demorar) da Lapa, hoje lotada e moda entre cariocas e turistas.
                    Só com imagens de arquivo, algumas precárias, o documentário --sem usar o corte para o close de alguém careca, gordo ou ressentido contando como era ser cabeludo, magro e sonhador-- registra como uma trupe desorganizada, sem dinheiro e quase sem patrocínio mudou o panorama da cultura carioca.
                    Ali surgiu o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone --que trouxe uma lufada de novidade num país sob o efeito dos anos de ditadura--, com gente como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita, Deborah Colker, Gringo Cardia e Chacal.
                    O filme tem o mérito de lembrar que cultura é arma de transformação. O Circo Voador parecia um projeto de desbunde de quem ganhava dinheiro para o pão de cada dia, mas foi uma ação política efetiva.

                      Helio Schwartsman

                      folha de são paulo
                      Imaginando biografias
                      SÃO PAULO - Que me perdoem os músicos que defendem a necessidade de autorização do retratado para a publicação de biografias, mas essa é uma posição insustentável. Ela contraria não só o ordenamento constitucional como também princípios elementares da razoabilidade. Alguns experimentos mentais mostram isso com clareza.
                      Imagine um vilão bem malvado, tipo Hitler ou Stálin. Imagine ainda que ele esteja vivo e morando no Brasil. Pelo artigo 20 do Código Civil, ninguém pode escrever e comercializar uma biografia desse personagem sem seu aval. E será que um retrato de Hitler que contasse com sua aprovação poderia ser fiel à história?
                      O problema, obviamente, não está restrito a biografias. Imagine que um historiador tenha redigido uma obra sobre acontecimentos recentes do país e, de passagem, ele tenha citado um político que, por alguma razão, não tenha ficado bem na foto. Bem, pelo nosso Código Civil, esse representante do povo, se julgasse que sua honra, boa fama ou respeitabilidade foram atingidos, poderia pleitear e obter da Justiça a proibição do texto. E isso mesmo que ele não seja o fulcro da obra e os fatos relatados sejam rigorosamente verdadeiros.
                      Vamos agora dar asas à imaginação. Suponha que alguém decida publicar um índice de todas as condenações judiciais sofridas por um homem público que não goza do favor da mídia, com hiperlink para as sentenças. Obviamente, a vítima dessa biografia tecnológica poderia considerar que sua reputação foi prejudicada e recorrer aos sempre justos magistrados. O que eles deveriam fazer? Deveriam censurar uma publicação que remete a documentos oficiais?
                      Não tenho nada contra o biografado abocanhar parte dos lucros. Mecanismos de mercado já incentivam acordos, uma vez que é muito mais fácil escrever esse tipo de obra com a ajuda da pessoa retratada. Resta óbvio, porém, que a regra vigente, na forma em que está, é absurda.
                      helio@uol.com.br