domingo, 10 de novembro de 2013

No dia da eleição - Charles Bernstein

folha de são paulo 
IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
No dia da eleição
CHARLES BERNSTEINTRADUÇÃO RÉGIS BONVICINO

Eu ouço o gemido da democracia, no dia da eleição.
As ruas estão cheias de promessas falsas, no dia da eleição.
Os canalhas votam, os santos votam, no dia da eleição.
Os mortos disparam sua fúria, no dia da eleição.
Meu irmão, afogado em mágoas, no dia da eleição.
A irmã lava a roupa suja, no dia da eleição.
Lentamente, eu me aproximo das vozes sombrias, no dia da eleição.
Os homens se preparam para morrer, no dia da eleição.
A manhã silente defende sua ninhada, no dia da eleição.
Ainda assim, doce, vacilante, no dia da eleição.
No dia da eleição, os gatos tomam chá com o sagui.
No dia da eleição, a mãe recusa seu leite.
No dia da eleição, as rãs coaxam ferozes: parece até que Marte
despencou na Terra.
No dia da eleição, o homem de ferro emite gemidos femininos.
O ar podre, vermelho, intercalando, quixotesco, vulnerável, torpe,
no dia da eleição.
Seus olhos deslizam, no dia da eleição.
As carpideiras carpem, os gementes gemeram, as crianças
dormem, sós, na cama, no dia da eleição.
Sem dúvida, um cometa veio me ver, ígneo, desavindo, tórrido, dedilhado,
no dia da eleição.
No dia da eleição, a transgressão do alarme fátuo e aspiração ignominiosa
abate o salto dourado a um corset degradê de cristas.
O tirano se torna príncipe, no dia da eleição.
Nem amigo ou inimigo, medo menos ainda destino, no dia da eleição.
O mendaz mente para o carneiro, no dia da eleição.
O ultimo poderá ser o primeiro e o primeiro o último da fila, no
dia da eleição.
O mendigo feito rei, no dia da eleição.
"Deixe aquele que não está com os meus poemas ser assassinado!" no dia da eleição.
Deixe o puro pecar, no dia da eleição.
Os fantasmas se vestem com ternos, no dia da eleição.
No dia da eleição, o enxofre cheira a cerveja.
No dia da eleição, o ministro se caga de medo.
No dia da eleição, o polaco e o judeu dançam o foxtrote.
No dia da eleição, o sapato não se encaixa no pé, o tiro sai pela culatra,
o garçom faminto se rebobina antes de inteirar-se dos fatos.
A grade não degrada o violinista, no dia da eleição.
Galochas e lágrimas, no dia da eleição.
O esperma não encontra o ovo, no dia da eleição.
O tambor retumbante se torna gorjeio de sabiá, no dia da eleição.
Eu sinto como se um pesadelo findasse, mas não consigo me levantar, no dia da eleição.

Viagens às terras do nunca mais China, 1966 - ANTONIO SILVIO LEFÈVRE

folha de sao paulo 
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Viagens às terras do nunca mais
China, 1966
ANTONIO SILVIO LEFÈVRE
Em 1964, ano do golpe militar, levado pela generosidade e ingenuidade juvenis a fazer bobagens, eu, um estudante de medicina na USP, fui parar no Tiradentes --presídio por onde mais tarde passaria a futura presidente Dilma Rousseff-- e acabei exilado em Paris.
A experiência de estar ali naquele momento se revelaria extremamente enriquecedora. Não apenas por ter-me permitido estudar na Sorbonne e morar com o "pai adotivo" Antonio Candido (então lecionando lá), mas por ter vivido a revolta que partiu de Paris em maio de 68 para contaminar o mundo.
Nada, porém, foi mais enriquecedor do que as viagens que pude fazer, a partir de Paris, para destinos ao leste de Berlim, nada recomendados a qualquer brasileiro que temesse ficar com a "ficha suja".
A mais emocionante de todas foi a mais extrema: com jovens de vários países, sendo eu o único brasileiro, fui à China. Era agosto de 1966 quando deixamos Paris de trem e chegamos a Moscou.
O conflito sino-soviético estava no auge e, enquanto visitávamos a cidade, acreditamos ter sido seguidos por agentes da KGB, desconfiados de que fôssemos espiões a serviço dos chineses.
Ao longo de uma semana viajando de trem, vimos comboios militares repletos de armas, em plena guerra do Vietnã. Recebidos como heróis pelos chineses --afinal, poucos ocidentais iam até lá--, no primeiro dia fomos conhecer a Universidade de Pequim.
Qual não foi a nossa surpresa ao chegar lá e dar de cara com uma manifestação de estudantes, incompreensível para nós. Nossos guias, estupefatos, não conseguiam nos explicar o que acontecia.
À noite nos levaram para jantar num restaurante de especialidades do sul da China. Mal havíamos comido o primeiro prato quando uma multidão enfurecida começou a gritar na porta. Um dos guias foi conversar com eles e, ao voltar, nos explicou:
"São discípulos do presidente Mao Tse-tung e vieram aqui para fechar este restaurante, símbolo de privilégios burgueses. Em respeito aos camaradas estrangeiros, porém, esperarão que terminemos o jantar." Sem esquecer a sobremesa, saímos depressa de lá -- bem a tempo de vê-los entrar e quebrar tudo.
Nos dias seguintes, cenas estranhas se desenrolaram, tanto em Pequim quanto em Xangai: desfiles pelas ruas, com pessoas acorrentadas e com chapéus de bruxa, sendo insultadas e torturadas pelos jovens manifestantes de fitas vermelhas nos braços.
Eram os guardas da Grande Revolução Cultural Proletária, desencadeada então pelo presidente Mao, cujo livrinho vermelho de ensinamentos eles ostentavam como pequenas bíblias. "O presidente Mao vai lhes explicar tudo pessoalmente", nos anunciou com orgulho o guia-chefe, marcando nossa visita ao Grande Timoneiro para o dia seguinte.
Ao chegarmos à Cidade Proibida, que abrigava a sede do governo, nos informaram de que o encontro com Mao não seria possível. Fomos recebidos por Chen Yi, ministro do Exterior, intelectual que falava francês correntemente.
Chen Yi explicou-nos então que a Revolução Cultural havia sido posta em marcha por Mao para combater o perigo revisionista e o risco da restauração do capitalismo na China.
O ministro aproveitou para nos informar que havíamos sido convidados pelos camaradas vietnamitas a visitar os subterrâneos de sua guerra --assim poderíamos dar testemunho ao mundo de sua luta contra o imperialismo ianque.
Para nossa sorte, na véspera da visita programada, houve intensos bombardeios americanos nos locais aos quais nos destinávamos. Os chineses, por precaução, resolveram cancelar o "passeio".
Não fosse isso eu talvez não estivesse aqui para contar essa história, ou a história da deposição de Chen Yi, e depois a da prisão de Jiang Qing, mulher de Mao, e a do fim da Revolução Cultural, com a vitória do capitalismo (de Estado) na China.
Mas tudo isso aconteceria vários anos depois, quando nós, testemunhas do momento histórico, já tínhamos perdido, havia tempo, as nossas ilusões esquerdistas.
O que sobrou foi o relato das viagens de um estudante sonhador às terras do nunca mais.

Humoristas dominam debate público nos EUA

folha de são paulo
DIÁRIO DE WASHINGTON
O MAPA DA CULTURA
Política é coisa séria?
Humoristas dominam debate público nos EUA
RAUL JUSTE LORES
As manhãs de Domingo são o horário favorito da TV americana para tratar de política. Todos os grandes canais abertos (e os principais da TV paga) têm mesas- redondas com deputados, ministros, comentaristas e lobistas.
Mas a tradição, criada em 1947, com o "Meet the Press", o programa mais antigo em atividade nos EUA, está ameaçada. Audiências têm caído, o público, envelhecido, e os convidados, com seus cabelos acaju e ternos acima do tamanho, se repetem por todos os canais.
Em contraponto, a política tem ganho terreno em outros horários da grade. Desde o início deste ano, duas das maiores audiências entre os "talks shows" de fim da noite são de comediantes que tratam quase exclusivamente do tema.
Jon Stewart, com o programa "The Daily Show", e Stephen Colbert ("The Colbert Report") são líderes entre o público de 18 a 49 anos. As duas atrações, do canal pago Comedy Central, têm deixado para trás figuras históricas como David Letterman e Jay Leno, das grandes redes abertas CBS e NBC.
Mas a maior sensação atual na TV americana, em termos de política, se chama Bill Maher. O militante ateísta comanda o programa "Real Time with Bill Maher", que vai ao ar nas noites de sexta-feira na HBO norte-americana.
A atração já recebeu figuras distintas como o escritor Salman Rushdie e o cientista Richard Dawkins, o jornalista Glenn Greenwald e o cineasta Oliver Stone.
Maher, também produtor da série "Vice" (que andou levando os Harlem Globetrotters à Coreia do Norte), faz barulho defendendo posições como o fim do embargo a Cuba e ironizando o juiz da Corte Suprema que disse que o diabo existe. Seus monólogos ao final do programa, chamados de "new rules", se tornaram imperdíveis para o público que, para se informar sobre o poder, trocou os políticos pelos humoristas.
FUSÃO LATINA
Quem não sofre com perda de público e tem filas de políticos querendo aparecer em seus programas é a Univision, rede famosa pela programação em espanhol.
Mas, como a imigração latino-americana encolheu nos últimos anos, o grupo tem cobiçado a geração de filhos de migrantes já nascidos nos EUA e que têm no inglês seu primeiro idioma.
Em parceria com a rede ABC, a Univision criou recentemente um canal para esse grupo, pretendendo, de quebra, atrair uma fatia do público jovem em geral, que anda deixando a TV aberta. Lançado há duas semanas, o "Fusion" já chega a 20 milhões de lares americanos.
O CÉU É O LIMITE
A capital dos EUA tem atraído milhares de jovens que cresceram nos subúrbios vizinhos de Maryland e Virginia, mas que pretendem morar em áreas centrais, mais agitadas e caminháveis.
O problema é um só: espaço. As cidades-dormitório possuem 5 milhões de habitantes, enquanto em Washington só há 650 mil pessoas.
Com isso, o metro quadrado encareceu muito, e o governo quer mudar uma das características históricas da cidade: o limite de altura das construções.
Desde 1910, a legislação determina que a altura dos prédios não ultrapasse a largura das ruas e avenidas. Com poucas exceções, os edifícios em ruas secundárias não superam os 27 metros de altura (9 andares) e, em avenidas, 40 metros (13). A lei foi criada depois da inauguração do polêmico (e pavoroso) Hotel Cairo, de 1894, que tem 50 metros. A prefeitura pretende aumentar o limite em 25%, mas só o Congresso americano pode aprovar a mudança.
FLUXO E REFLUXO
Depois que protestos pela morte de Martin Luther King, em 1968, provocaram a destruição de bairros inteiros da cidade, a capital assistiu a um êxodo da população branca para os subúrbios, e diversas áreas centrais se tornaram de maioria negra.
O retorno dos jovens dos subúrbios brancos para áreas centrais está mudando a composição étnica de Washington. Logan Circle, por exemplo, que tinha maioria negra, tornou-se terreno de restaurantes caros, gays e de juventude branca. No contrafluxo, muitas famílias negras e latinas estão migrando para os subúrbios. A proporção de negros na cidade, que em 1980 chegou a ser de 70%, hoje é de 49,5%

Quando a emenda é pior que o soneto - Fernando Rodrigues

folha de são paulo
ESPECIAL REPÚBLICA
ANÁLISE
Quando a emenda é pior que o soneto
A reforma política não precisa ser vasta
FERNANDO RODRIGUESRESUMO As imperfeições do modelo político brasileiro estimulam o clamor por amplas reformas, mas intervenções do Congresso quase sempre tornam pior o que já é ruim. Encontrar elixir contra todos os males é tarefa quase inexequível; muitas vezes, alterações mínimas e de resultado a longo prazo podem ser mais eficazes.
Quase ninguém o defende, mas o sistema político-eleitoral em vigor é o mais sofisticado e eficiente que o Brasil já teve em toda a sua história republicana.
Há liberdade de expressão acima da média na comparação com outras democracias jovens como a brasileira (basta olhar em volta, na América Latina). As instituições são independentes. Os avanços republicanos têm sido cristalizados em leis civilizatórias como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Acesso à Informação.
Essas normas são votadas e aprovadas pelo mesmo Congresso que de vez em quando preserva o mandato de um corrupto, mas também volta e meia expulsa um político ladrão.
Há um clamor latente por uma política de melhor qualidade, até porque o Brasil chegou tarde, só no final da década de 1980, à democracia estável. As imperfeições do modelo produzem a sensação de que a degradação é maior do que a realidade poderia tolerar. Quase todos então imaginam ter a solução de sistema ideal. Sonham com uma lei que seja um elixir para curar todos os males da política.
Encontrar tal legislação é tarefa próxima do inexequível. Há uma infinidade de estudos e análises sobre como é difícil formatar um sistema de democracia representativa eficaz e justo.
George G. Szpiro, um matemático e jornalista, investigou as opções mais relevantes desde a Grécia Antiga. Chegou a uma conclusão desalentadora: "Infelizmente, a única forma de governo que evita paradoxos, inconsistências e manipulações é a ditadura", escreveu em seu "Numbers Rule" (Princeton University Press, 2010).
O problema maior das democracias representativas é a velocidade com que as coisas andam. O modelo tem muitas qualidades, mas um gigantesco defeito: a evolução e a consolidação das regras se dá de maneira muito lenta.
Tome-se o caso norte-americano. A Constituição é de 1787 e está em vigor há 226 anos. Em seu livro "Democracia na América" (1835-40), Alexis de Tocqueville nota um costume ruim dos norte-americanos na primeira metade do século 19, momento constitutivo daquele país.
O pensador francês escreveu sobre a inconveniência das alterações constantes de leis, "um grande mal". E cita uma frase de Thomas Jefferson (1743-1826), presidente dos EUA de 1801 a 1809, a quem descreve como "o maior democrata" daquele país: "A instabilidade das nossas leis é realmente uma inconveniência muito séria. Creio que deveríamos tê-la evitado decidindo que se deixasse sempre um ano inteiro passar entre a apresentação de um projeto e a sua aprovação final".
Essa afeição por alterações constantes de leis é, no Brasil, um obstáculo para o aperfeiçoamento do sistema. O senso comum diz que, sem uma ampla reforma política, o país não terá jeito.
Mas as últimas intervenções do Congresso brasileiro nesse campo foram de qualidade duvidosa.
No atual contexto, deixar o modelo vigente decantar, com alterações mínimas, seria talvez uma opção a considerar. Como escreve o especialista David M. Farrell em um dos mais amplos estudos sobre sistemas eleitorais ("Electoral Systems "" a Comparative Introduction", Palgrave Macmillan, 2011), numa democracia que está funcionando às vezes é melhor "manter o mal conhecido do que fazer uma incursão pelo desconhecido", tornando pior o que já é ruim.
Alterações pontuais foram aprovadas nas últimas duas décadas a pretexto de diminuir o custo das campanhas eleitorais. Na prática, tiveram o efeito de cercear a liberdade de expressão dos políticos de partidos mais modestos. Desde 1997, o Brasil é um dos únicos países do planeta (talvez o único) no qual é proibido fazer uma camiseta ou boné na garagem de casa com a foto e o número do candidato durante uma campanha.
O sistema atual decerto tem defeitos. Mas torna-se quase sempre pior a cada alteração votada pelo Congresso --seja porque as regras são restritivas ou porque complicam o modelo. A chamada minirreforma (ou nanorreforma, segundo outra alcunha) que está prestes a ser chancelada pelo Senado é tão bizantina que define até a dimensão máxima permitida (50 x 40 centímetros) de folhetos e adesivos que poderão ser distribuídos em campanha.
Mas o erro maior dos que defendem a reforma política é imaginar que seja possível implementar mudanças de grande porte como a alteração do sistema de votação (do atual proporcional para algum tipo de modelo distrital). Ou fazer valer o pilar mais básico da democracia: "Um homem, um voto" (hoje, os eleitores de Estados pequenos valem muito mais do que os do Sudeste, pois elegem seus deputados com menos votos).
Antes de tentar empreender uma grande reforma política é necessário alguma profilaxia dentro do Poder Legislativo: o Congresso com 20 partidos representados (dos 32 existentes no país), tem seu funcionamento prejudicado.
Erra quem imagina que o número de partidos políticos no Brasil é excessivo. O mal reside no fato de legendas quase sem voto serem tratadas como se gigantes fossem.
No momento em que consegue seu registro, uma nova agremiação, sem nunca ter recebido um voto, já tem direito a cerca de R$ 50 mil por mês do Fundo Partidário (as regras para usufruir dele estão no site do Tribunal Superior Eleitoral) e acesso ao rádio e à TV --tudo pago com o dinheiro dos contribuintes. Se conseguir a filiação de dois ou três deputados, passa a ter também uma atuação dentro do Congresso com direito a uma estrutura de liderança (cargos e mordomias).
O impacto desses "sem voto" é nefando no Congresso. A votação de um projeto de lei se torna muito complexa quando é necessário ouvir a posição oficial de 20 ou mais partidos e os discursos de cada líder de legenda.
Em anos eleitorais, há um leilão dos partidos nanicos, que oferecem seus tempos de TV e de rádio nas 27 unidades da Federação: muitos traficam esse ativo como se fosse uma propriedade privada.
Duas medidas ajudariam a mitigar essas aberrações: o fim das coligações para eleições a cargos proporcionais (de deputados) e uma cláusula de desempenho. Elas teriam a eficácia de uma pré-reforma política.
LIBERALIDADE A coligação em eleições proporcionais é uma liberalidade brasileira. Confunde os cidadãos. Vota-se no candidato A, de um partido conservador, mas é possível acabar elegendo junto o candidato B, de uma sigla liberal.
O sistema se chama proporcional porque os votos dados a todos os candidatos de um partido (ou coligação) são somados. A divisão de cadeiras da Câmara é feita para cada grupo de legendas proporcionalmente ao total de votos que cada uma delas obteve.
Coligações eleitorais são comuns no mundo todo na escolha de representantes do Executivo. São eleições majoritárias, uninominais. É natural que, em alguma circunstância, conservadores e liberais decidam apoiar o mesmo nome para comandar o país, um Estado ou uma cidade.
No caso de legisladores eleitos pelo sistema proporcional, esse tipo de aliança faz pouco ou nenhum sentido. Quando o eleitor escolhe um deputado conservador, talvez o faça porque seja contra a liberalização das drogas. Mas se esse político estiver coligado a um candidato liberal, o voto do eleitor ajudará a ambos na eleição.
A eleição de 2010 deu para a Câmara deputados de 22 partidos. Desses, 17 perderiam vagas se não fossem permitidas coligações nas eleições proporcionais. Haveria menos fragmentação.
Bancadas maiores para alguns poucos partidos não são garantia de mais coesão interna no Congresso. Mas esse certamente é um primeiro passo para uma governança política mais eficaz.
DESEMPENHO Outra providência útil para o Brasil seria a cláusula de desempenho ou de barreira. Vários países já estipulam um percentual mínimo de votos para que agremiações partidárias possam usufruir de dinheiro público em campanhas e ter outras regalias.
No Brasil, adotou-se uma regra muito flexível quando voltou a vigorar o pluripartidarismo, no início dos anos 1980. Foi uma reação à violência institucional da ditadura militar, que, em 1965 passou a permitir apenas duas siglas: a Arena (Aliança Renovadora Nacional, pró-governo) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro, de oposição consentida).
Hoje, basta ao partido existir para ter acesso ao rádio e à TV a cada seis meses, em rede nacional. Esse benefício não é gratuito. É pago com dinheiro público. As emissoras têm direito a abater do imposto devido parte considerável do que deixam de ganhar pela cessão dos horários. Em anos eleitorais, a estimativa de renúncia fiscal chega perto de R$ 1 bilhão (cifra nunca detalhada pela Receita Federal).
Há uma discussão antiga no Congresso para endurecer essa regra. Estipular, digamos, que só partidos com 3% dos votos para deputado federal em todo o país e em, pelo menos, nove unidades da Federação possam ter amplo acesso à TV, ao rádio, ao Fundo Partidário e ao funcionamento pleno dentro do Congresso.
Se a cláusula de desempenho existisse hoje, apenas nove partidos teriam passado por ela, considerados os votos de 2010: DEM, PDT, PMDB, PP, PR, PSB, PSDB, PT e PTB (veja quadro ao lado).
Ainda seriam muitas legendas. A solução seria determinar um aumento gradual do percentual. Poder-se-ia até começar com 2,5% (para permitir a entrada de partidos mais ideológicos como PPS, PC do B e PSOL) na eleição de 2018. Todos teriam tempo para se preparar. Depois, o percentual poderia ir a 3,5% em 2022. E a 4,5% ou a 5% em 2026.
Com a cláusula de desempenho em vigor e o fim da coligação em eleições proporcionais, o Legislativo tomaria outra feição depois de dois ou três ciclos eleitorais. Estaria pavimentado o caminho para uma reforma política mais profunda --se ainda fosse necessária.
Para quem julgar esse cronograma lento ou inexequível, a alternativa é forçar uma reforma política ampla por meio de uma revolução. Não é fácil. Os protestos de junho nas ruas brasileiras pediam muitas mudanças. O Congresso se mexeu quase nada para atender à demanda dos manifestantes.

    Municípios são novas estrelas da federação

    folha de são paulo
    Odorico Paraguaçu vestia o paletó às pressas quando recebia um telefonema do governador.
    Mas, se a novela "O Bem-Amado" (1973) se passasse hoje, o prefeito de Sucupira talvez não se mostrasse tão reverente: estaria acostumado a tratar diretamente com a Presidência da República de assuntos relativos a creches, postos de saúde e Bolsa Família. Até o célebre cemitério que pretendia inaugurar poderia receber verbas de algum convênio com o governo federal.
    Prefeitos com mais verbas e poderes são a mais recente inovação do federalismo brasileiro, cuja história se confunde com a da República. Em contrapartida, os Estados se encontram enfraquecidos.
    "As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil", estabelecia o segundo artigo do decreto número 1 de 1889, o inaugural da era republicana.
    Sob óbvia inspiração da bem-sucedida experiência norte-americana, procurava-se levar a sério a ideia de Estados autônomos para formular as próprias leis e cuidar de sua administração, a ponto de seus governantes serem chamados inicialmente de presidentes.
    Um século depois, o Brasil seria mais original, ao decidir alçar também os municípios à categoria de entes federativos, em um modelo inédito de autonomia local. Na prática, as cidades ganharam um Executivo, um Legislativo e o fim da tutela dos Estados. Em termos ainda mais concretos, houve uma multiplicação do número de prefeituras e câmaras municipais, mais atribuições e mais recursos.
    Segundo levantamento do economista José Roberto Afonso, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, desde a Constituição de 1988, os municípios elevaram de 13,3% para 18,5% sua participação nas receitas públicas do país --via arrecadação própria e repasses obrigatórios feitos pelas instâncias estadual e federal. No mesmo período, a fatia dos Estados no bolo tributário caiu de 26,6% para 24,6%.
    Nessas contas não entram as crescentes verbas transferidas voluntariamente da União e dos Estados para os municípios. "Cada vez mais há uma ponte direta entre governo federal e governos locais, sem envolver os Estados; em federações tradicionais, isso é impossível ou proibido", observa Afonso.
    GUERRA Se a lógica federativa supõe a cooperação entre seus entes para promover políticas públicas e desenvolvimento econômico, há algo de anormal na experiência brasileira. Basta dizer que o principal tema de discussão entre os governadores do país é a guerra fiscal: a disputa entre os Estados pela atração de investimentos por meio de incentivos tributários.
    Sem conseguir chegar a um acordo em torno de uma política que deprime sua capacidade de arrecadar, os Estados acumulam outros contenciosos, como a repartição dos tributos arrecadados pela União e das receitas esperadas com o petróleo do pré-sal.
    "O que quebrou os Estados foi a crise dos anos 1990", diz o cientista político Antonio Lassance, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Naquela década, o endividamento excessivo dos governos estaduais foi solucionado por um socorro financeiro federal. Desde então, os Estados são devedores da União e precisam se submeter às exigências da credora. Novas dívidas, por exemplo, com o sinal verde do Tesouro Nacional.
    O poder e a autonomia dos Estados oscilaram ao longo da história republicana. O papel centralizador da União foi exercido de maneira mais notória em dois períodos autoritários, o Estado Novo de Getúlio Vargas e a ditadura militar.
    Para Fernando Rezende, pesquisador da FGV, vive-se hoje no Brasil, pela primeira vez, um momento de centralização com democracia, ainda que o espírito da Constituição tenha sido o de radicalizar a descentralização.
    Segundo seu raciocínio, a mesma crise orçamentária dos anos 90 forçou o governo federal a reforçar suas receitas a fim de cumprir as metas fiscais impostas pelo Fundo Monetário Internacional.
    Para tanto, os tributos escolhidos foram aqueles que não são repartidos com os Estados e municípios, em especial as contribuições destinadas a sustentar a rede de programas de proteção social.
    Enquanto interrompia o espalhamento de receitas, a União passou também a encabeçar a definição de políticas públicas --"uma série de decisões que vão amarrando as mãos dos administradores estaduais e municipais", nas palavras de Rezende.
    O Bolsa Família, por exemplo, tem gestão compartilhada, na teoria, pelas três esferas de governo; todas as regras do programa, no entanto, são definidas em Brasília. Mais recentemente, a presidente Dilma Rousseff tratou de definir como Estados e municípios vão aplicar as receitas do petróleo.
    Para Antonio Lassance, isso não é necessariamente um problema. "A União virou uma excelente máquina de arrecadação", argumenta, "e as regras das políticas públicas são pactuadas [com governadores e prefeitos]".

    Toma cá, dá lá - A máquina de arrecadar e a máquina de gastar

    folha de são paulo
    ESPECIAL REPÚBLICA
    Toma cá, dá lá
    A máquina de arrecadar e a máquina de gastar
    GUSTAVO PATUResumo No dia 15, a República brasileira chega aos 124 anos e experimenta a versão tropical do Estado de bem-estar social. Desigualdade e pobreza diminuem no jovem país, mas a um alto custo: apesar de a carga tributária consumir mais de um terço da renda nacional, o Estado é deficitário, e o crescimento econômico, anêmico.
    "A expansão do gasto público na área das políticas sociais clássicas constitui uma exigência mínima de uma sociedade democrática", sentenciava o histórico programa partidário.
    Não se tratava de um documento do PT, ainda jovem naquele final de 1982. Intitulado "Esperança e Mudança" --antecipando em duas décadas e meia os lemas do americano Barack Obama-- e apresentado como "uma proposta de governo para o Brasil", o texto foi publicado na "Revista do PMDB".
    Inspirado pelas experiências da social-democracia europeia e pela crise da ditadura militar, o partido lançava a pedra fundamental do que viria a ser a principal obra da história recente da República brasileira: a versão tropical do Estado de bem-estar social.
    A explosão da dívida externa havia sepultado o crescimento econômico vendido como milagroso pelos militares, e uma bandeira caía no colo dos adversários do regime: era hora de enfrentar, por meio da ação social do poder público, a escandalosa desigualdade entre ricos e pobres.
    É curioso que, enquanto ganhava impulso no Brasil, o ideário social-democrata se enfraquecia na Europa. Cinco anos antes fora dado à luz o manifesto "A Correta Abordagem da Economia", do Partido Conservador britânico, que consagrava o que se convencionou chamar de neoliberalismo.
    O panfleto apresentava o diagnóstico e a agenda que seriam aplicados por Margaret Thatcher: os excessos do gasto público exigiam impostos extorsivos, inibiam a ambição individual e paralisavam a economia; deveriam ser corrigidos com privatização e livre mercado.
    Depois que o PMDB passou de maior partido de oposição a maior partido governista da redemocratização, ideias neoliberais e social-democratas nativas travaram o maior de muitos duelos na elaboração da Constituição de 1988. As primeiras se abrigavam em um bloco parlamentar heterogêneo apelidado pejorativamente de "Centrão"; as segundas já haviam batizado um partido, o PSDB, dissidência da nave-mãe peemedebista.
    INGOVERNÁVEL "Carta deixa país ingovernável, diz Sarney", foi a manchete da Folha em 27 de julho de 88, com o relato de um pronunciamento dramático do então presidente em cadeia de rádio e TV, no qual se antevia uma "brutal explosão de gastos públicos".
    No começo do mês, o jornal havia noticiado que, com as imposições constitucionais, as despesas da Previdência poderiam saltar para Cz$ 1,6 trilhão --volume de cruzados, moeda da época, equivalente a 4% do Produto Interno Bruto.
    Líder do PSDB no Senado, Fernando Henrique Cardoso respondia que os benefícios aprovados eram "o mínimo". Já presidente da República, tentou inutilmente conter os gastos previdenciários, que hoje rondam a casa de 7% do PIB.
    Entre os direitos estabelecidos na Carta, estava o piso de um salário mínimo para os benefícios, inclusive para trabalhadores rurais que nunca contribuíram; assistência a idosos e deficientes de baixa renda; e acesso universal aos serviços públicos de saúde.
    SUÉCIA "Vamos discutir o tamanho do Estado? É um bom debate", dizia o secretário da Receita Federal. "Na Suécia, a carga [tributária] é de 50%, e o Estado oferece tudo; nos Estados Unidos, a carga é menor, e o cidadão paga tudo; no Brasil, há essa desigualdade de renda."
    O ano era 2007, e Jorge Rachid, um dos principais tecnocratas do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, tentava convencer uma comissão de deputados a prorrogar a CPMF. A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, ou "imposto do cheque", havia sido criada em caráter temporário para financiar a saúde --e àquela altura era destinada também à Previdência e à assistência.
    O argumento se valia do fascínio exercido na classe política nacional pelo modelo do "Estado que oferece tudo", cujo exemplo mais lembrado é o sueco. O país escandinavo é um dos poucos no planeta capazes de fazer parecer modesta a carga brasileira de impostos e contribuições sociais. Se lá os cidadãos entregam metade de sua renda ao governo, aqui a conta fica pouco acima de um terço.
    As receitas e despesas públicas no Brasil são quase incomparáveis, se considerados os parâmetros do mundo emergente.
    Como exemplo, podemos nos limitar ao peso que têm, em diferentes economias, os programas de proteção social --nome dado a mecanismos de inclusão social e de combate à pobreza, como o Bolsa Família (veja quadro).
    Na modelar Suécia, estima-se que os gastos em proteção social consumam 21,5% do PIB. No Brasil, a parcela é de 12,5%. Os EUA, contraexemplo de Rachid, colocam na área 9,2%. E o México gasta só 2,8% do PIB no setor.
    Na história do Brasil republicano, é notável o salto dos gastos públicos dos anos 1990 para cá. A carga não passava de 10% do PIB no início da República; um século depois, estava na casa dos 25%; em pouco mais de uma década dividida entre os governos FHC e Lula, saltou para 35%.
    HIPERINFLAÇÃO Em seus primeiros anos, o Estado de bem-estar tropical foi diluído em uma hiperinflação que corroía o valor dos benefícios, o que permitia ao governo fechar suas contas. Depois que o Plano Real civilizou a alta dos preços, os impostos subiram.
    Temores neoliberais e esperanças social-democratas se confirmaram: a economia não reencontrou o caminho do crescimento acelerado e duradouro, mas a concentração de renda finalmente entrou em trajetória de queda.
    Tensões se acumulam entre os dois polos ideológicos à medida que os movimentos políticos oscilam entre um e outro. Tucanos e petistas, em meio a acusações, elevaram gastos e privatizaram, criaram programas sociais e elevaram os juros para conter a inflação.
    O Bolsa Família é um exemplo de vitória discreta do pensamento liberal que defende ações focadas nos mais miseráveis em vez das políticas sociais clássicas preconizadas no documento do PMDB.
    Uma das responsáveis pelo manifesto, a mais tarde petista Maria da Conceição Tavares, chamou de "débeis mentais" os economistas da Fazenda do primeiro mandato de Lula que defenderam a focalização do gasto social.
    A agenda social do PT, ao chegar ao Planalto, era ambiciosa e incluía a ampliação das políticas universais e da reforma agrária; sua principal marca, porém, acabou sendo a opção mais barata.
    O debate nos meios político e acadêmico em torno dos programas mais decisivos para a redução da pobreza e da desigualdade segue ainda hoje. Dilma Rousseff, com menos dinheiro à disposição que Lula, optou por privilegiar educação e Bolsa Família.
    TOLERÂNCIA Em 2007, aprovada pela Câmara, a CPMF não conseguiu os necessários três quintos do Senado e foi extinta. Para Samuel Pessôa, professor de economia e colunista da Folha, a derrota sinalizou que a tolerância da sociedade ao aumento da carga tributária não é infinita.
    Nos anos seguintes, as despesas públicas e o bem-estar social se mantiveram em alta graças a um já esgotado ciclo de prosperidade mundial que favoreceu o país, escreve Pessôa em "O Contrato Social da Redemocratização e seus Limites", publicado há um ano.
    Em entrevista, Pessôa opinou que o próximo governo pode ser obrigado a lidar com uma repactuação desse contrato, seja com a revisão da política de valorização do salário mínimo, seja com uma nova rodada de alta de impostos.
    A ofensiva do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, pela elevação do IPTU pode funcionar como balão de ensaio para a segunda opção, "se ele não se machucar muito", especula o pesquisador da Fundação Getulio Vargas (RJ).
    Previsões de que o aparato de proteção social levará a um colapso das contas públicas têm sido contestadas por estudiosos como Eduardo Fagnani, da Unicamp.
    "O projeto inspirado nos valores do Estado de bem-estar social foi progressivamente tensionado de 1990 em diante. Abriu-se um novo ciclo de contrarreformas antagônicas à cidadania social recém-conquistada", escreveu em artigo para a revista petista "Teoria e Debate".
    A argumentação seguida por Fagnani identifica os juros pagos aos credores da dívida pública, entre os mais altos do mundo, como a real ameaça à estabilidade fiscal e a origem de interesses contrários à expansão da seguridade.
    O mais novo embate se dá em torno das transformações demográficas do país. Um lado calcula que o envelhecimento da população levará à multiplicação das já generosas despesas com aposentados; o outro atribui à recuperação da economia o papel de produzir a receita necessária.
    Debate econômico à parte, a política da redemocratização ensina que, se pode tornar o país ingovernável, a expansão do gasto social tem sido a garantia da governabilidade --mais ou menos como uma aliança com o PMDB.

      Os "ismos" e o poder - Marcelo Coelho

      folha de são paulo
      ESPECIAL REPÚBLICA
      CRÍTICA
      Os "ismos" e o poder
      Da luta à representação de classes
      MARCELO COELHORESUMO Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp, sintetiza a política brasileira a partir da ideia de "pemedebismo", que designa a fisiologia e a resistência aos movimentos sociais. O conceito poderia ser empregado à recomposição do PT a partir da vitória de Lula, tema do professor de ciência política da USP André Singer.
      NA ABERTURA de "Imobilismo em Movimento - Da Abertura Democrática ao Governo Dilma" [Companhia das Letras, R$ 36, 208 págs.], Marcos Nobre diz que o livro é dedicado "às Revoltas [de Junho de 2013]". Assim mesmo, com maiúsculas: as Revoltas de Junho. Há outras maiúsculas subentendidas no ensaio analítico deste professor de filosofia da Unicamp e ex-colunista da Folha.
      Mereceria maiúsculas, por exemplo, o conceito que fundamenta toda a avaliação de Nobre a respeito do funcionamento político brasileiro. Trata-se do que ele chama de "pemedebismo", algo mais amplo e insidioso do que o mero "peemedebismo", com dois "E".
      Marcos Nobre não faz referência apenas ao conjunto de práticas e discursos do velho PMDB; praticamente todos os partidos se incluem nessa entidade, cujos intuitos e estratagemas justificariam, a rigor, que Nobre empregasse a caixa-alta: o Pemedebismo.
      Estamos diante de "uma cultura política que se estabeleceu nos anos 1980 e que, mesmo se modificando ao longo do tempo, estruturou e blindou o sistema político contra as forças sociais de transformação". Embora o livro de Nobre seja, no geral, muito legível e interessante, vale prestar atenção nessa frase, algo enrolada.
      Uma "cultura política" blinda o "sistema político"? Uma coisa estaria agindo sobre a outra? Qual das duas? Ou seria o "sistema" que cria uma "cultura"?
      Poderíamos entender o "pemedebismo" como um conjunto de fenômenos conhecidos: fisiologia, fraqueza partidária, resistência aos movimentos sociais. Mas quais as causas, as origens, os porquês desse fenômeno? Ou esse fenômeno é causa e origem de tudo?
      Por mais antiquado que possa parecer, não conheço modo melhor para explicar essa "blindagem" do que o recurso a conceitos de inspiração marxista, algo que o livro tende a evitar.
      Se não quisermos dar às classes sociais o papel de agentes, de responsáveis pelo surgimento do "pemedebismo", seria preciso provar que o "pemedebismo" sufocou não apenas as reivindicações da esquerda mas também as do empresariado industrial, do agronegócio, dos banqueiros. Será?
      Mas, quando se afirma que uma "cultura política" fechou o caminho para reivindicações sociais, pressupõe-se que os setores financeiro, agroexportador e industrial, provavelmente nessa ordem, andaram levando a melhor.
      Em vez de apontar para esses setores, o que talvez lhe valesse a crítica de maniqueísmo, Marcos Nobre prefere atribuir ao "Pemedebismo" o papel de personagem principal de seu drama. Do lado oposto, sufocada durante 20 anos, mas renascida com as Revoltas de Junho, estaria a "Voz das Ruas".
      Só que acabamos em outro maniqueísmo, afinal, e um bocado mais vago; ironicamente, o esquema de "Imobilismo em Movimento" lembra a retórica do velho PMDB (o bom, o peemedebista com dois "E") no tempo das lutas "do povo" contra o "regime".
      Tudo corre o risco de parecer reclamação de torcedor: se nosso time perdeu, o resultado não é legítimo. Como, no jogo da democratização, os movimentos sociais foram derrotados, eis um sinal de que o sistema político não é democrático o suficiente.
      Não deixa de ser verdade. Há pouca participação popular, muitos parlamentares se voltam apenas para o enriquecimento pessoal, campanhas custam caríssimo, a manipulação dos marqueteiros substitui qualquer debate.
      Lembro que as próprias classes dominantes estão longe de se sentir satisfeitas com seus políticos; no mínimo, desejariam que estes cobrassem menos pelo serviço. Pode ser que seus interesses não estejam sendo atendidos plenamente; mas isso não quer dizer que não estejam sendo atendidos.
      RECONSTRUÇÃO Estas críticas pontuais ao livro de Marcos Nobre não fazem justiça ao conjunto, que é principalmente uma reconstrução histórica tão aguda quanto apaixonada das principais decisões de governo nos últimos 20 anos no Brasil.
      As teses básicas, e alguns trechos literais, de "Imobilismo em Movimento" são retomadas em "Choque de Democracia" [Breve Companhia, R$ 4,99 ], breve livro eletrônico que Marcos Nobre escreveu em pleno entusiasmo com as manifestações de junho.
      Entusiasmo e apaixonamento são coisas admiravelmente expurgadas de "Os Sentidos do Lulismo - Reforma Gradual e Pacto Conservador" [Companhia das Letras, R$ 29,50, 280 págs.], do cientista político e colunista da Folha André Singer. Ex-porta-voz da Presidência no primeiro mandato de Lula, Singer é capaz de analisar "a frio" a atuação dos petistas no poder.
      A principal tese do livro, demonstrada com estatísticas eleitorais na dose certa, já é bastante conhecida a esta altura.
      Desde a democratização, a política brasileira teve uma característica curiosa: quanto menor a sua renda, mais o eleitor votava nos candidatos de direita. A simpatia pela esquerda, e pelo PT em geral, sempre foi maior nos setores mais instruídos, mais urbanizados e mais ricos da sociedade.
      Uma recomposição, entretanto, ocorreu a partir da vitória de Lula em 2002. As políticas de aumento do salário mínimo, de Bolsa Família e crédito consignado tiveram o condão de "popularizar", pela primeira vez, a base eleitoral do metalúrgico de São Bernardo.
      Ironicamente, isso se deu ao mesmo tempo em que o PT abandonava sua prática mais radical, aceitando compor-se com forças políticas atrasadas e oligárquicas. Não que André Singer use vocabulário tão carregado, mas foi esta a "pemedebização" de Lula e do PT, se quisermos falar como Nobre.
      Com isso, e mais o mensalão, o PT perdeu a classe média, mas ganhou forte apoio no que André Singer --seguindo seu pai, o economista Paul Singer-- chama de "subproletariado". Na frase ufanista de Juarez Guimarães, que o autor cita aprovativamente, o partido de Lula se tornou "mais samba, mais negro, mais nordestino".
      Seria o caso de dizer que saiu daí um maracatu do crioulo doido. O importante, e Singer faz bem em repetir números eloquentes a esse respeito, é que a coisa funcionou, em termos de redistribuição de renda e geração de empregos.
      Foi, entretanto, um "reformismo fraco", como o autor está pronto a admitir, em que as concessões iniciais à ortodoxia financeira foram sucedidas por uma espécie de "pacto produtivista" com as classes empresariais, numa conjuntura também favorecida pela disparada dos preços nos produtos de exportação.
      Todo esse percurso é exposto num tom de firme serenidade, ainda que as concessões à direita feitas pelo lulismo sejam mencionadas com pouco destaque.
      A argumentação de Singer dá mais sinais de fraqueza a partir da metade do livro. Em primeiro lugar, o autor apresenta uma versão um tanto "sacrificial" das atitudes do PT. Foi preciso abandonar convicções face à pressão conservadora e, se isso não fosse feito, haveria o risco de ruptura institucional.
      Uma linha de raciocínio alternativa seria a de perguntar se a partir de experiências concretas em municípios como Diadema, Ribeirão Preto e São José dos Campos, o ideário do PT já não estava pronto para transformar-se em simples carapaça, escondendo acordos corruptos com interesses dominantes locais.
      Como o foco de Singer é o desempenho do partido nas urnas, há o perigo de sua análise mascarar a questão da "representação de classe". Um eleitorado pobre pode ser conquistado graças a campanhas caríssimas. Como assinala o autor, essas campanhas deixam de depender da militância. Passam (e isso o autor assinala menos) a ser financiadas por grupos de outro tipo: bancos, empreiteiras, grandes conglomerados.
      Embora recorra ao modelo da luta de classes, neste sentido o livro faz o trabalho pela metade. Quem um político representa? Seus eleitores ou seus financiadores? O tom mais indignado de Marcos Nobre, e dos manifestantes de junho, faz falta aqui.
      Um acordo entre a Fiesp e centrais sindicais, uma aliança entre Lula e um empresário têxtil como José de Alencar seriam de fato evidências significativas de um pacto entre classes? Qual a representatividade desses personagens? Seria mais notável do que as relações, digamos, entre José Dirceu e o dono da Embratel, Carlos Slim, de quem o ex-ministro é consultor?
      Que seja. Ironicamente, a velha crítica petista ao populismo de Vargas, acusado de mediar os interesses de operários e patrões, é reinterpretada de uma ótica favorável ao petismo --ou de seja lá o que restou dele.
      Para André Singer, algo resta. O "espírito do Sion", como ele denomina o esquerdismo presente na reunião em que o partido foi fundado, sobrevive por exemplo na Fundação Perseu Abramo, instituto teórico do partido. Feita a homenagem, imagino figuras como Antonio Palocci assentindo gravemente com essa avaliação.

        Calcinha 'antiestupro' causa polêmica nos Estados Unidos

        folha de são paulo
        JOANA CUNHA
        DE NOVA YORK
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        O projeto de um novo produto desenvolvido com a pretensão de impedir estupros levantou, nas últimas semanas, milhares de dólares em doações e gerou polêmica entre feministas nos EUA.
        Trata-se de uma calcinha. O protótipo da peça, feita de um tecido altamente resistente, cuja trama não pode ser rompida por lâminas e tesouras, inclui uma espécie de cadeado acoplado à cintura.
        A roupa íntima dispensa chaves, mas só pode ser retirada do corpo pela própria usuária, por meio de um segredo que precisa ser memorizado. Se a dona esquecê-lo, pode ficar em apuros quando precisar ir ao banheiro.
        A linha inclui itens de vestuário esportivo e modelos com design que lembra calcinhas comuns. A ideia é dificultar o crime e dar mais tempo para a chegada de socorro.
        Chamado de AR Wear (as iniciais são para 'antiestupro' em inglês), o protótipo foi apresentado no Indiegogo, site que lista negócios empreendedores em busca de financiamento coletivo.
        Já levantou mais de US$ 40 mil (R$ 92 mil) e dezenas de críticas de feministas na mídia local.
        Segundo os idealizadores, os recursos serão investidos em produção e tecnologia. Os primeiros modelos devem ficar prontos em julho.
        O texto de apresentação do projeto diz que a peça transmite ao estuprador a "mensagem clara de que a mulher não está consentindo". Mas esse conceito desagradou a feministas, que afirmam que os fundadores da ideia "sugerem que a mulher é parcialmente responsável, por não recusar o ato com clareza".
        "Estupradores sabem o que não é consentido. O homem não é burro a ponto de não entender quando a mulher não quer", afirmou a feminista Louise Pennington em artigo no "Huffington Post".
        A AR Wear responde que não pretende atribuir à mulher a responsabilidade de evitar o crime. "O único responsável pelo estupro é o estuprador. O produto só oferece mais uma ferramenta de defesa."
        O item é recomendado em situações como festas, em que a mulher pode se tornar vulnerável por embriaguez, e viagens a países desconhecidos.
        Evitando emitir sugestões sobre como a vítima deve proceder se o agressor estiver armado, a AR Wear diz estar ciente de que sua ideia não será capaz de atingir uma solução universal para o problema.
        Divulgação
        Modelos vestem calcinha 'antiestupro', feito de malha resistente a tesouras
        Modelos vestem calcinha 'antiestupro', feito de malha resistente a tesouras

        Promotoria investiga contas ilegais de fiscais no exterior

        MÁFIA DO ISS
        Folha de são paulo
        Ministério Público suspeita que dois auditores recebiam propina nos EUA
        Luis Alexandre Cardoso de Magalhães e Amilcar José Cançado Lemos são suspeitos de cobrar propina para reduzir ISS
        MARIO CESAR CARVALHODE SÃO PAULODois dos fiscais da Prefeitura de São Paulo investigados sob suspeita de receber propina para reduzir o valor do ISS (Imposto sobre Serviços) de imóveis novos têm contas ilegais nos Estados Unidos, segundo indícios reunidos pelo Ministério Público e pela Controladoria Geral do Município.
        Os donos das contas são Luis Alexandre Cardoso de Magalhães e Amilcar José Cançado Lemos.
        Os dois são apontados como os "playboys" da suposta quadrilha: Luis andava de Porsche e Amilcar é fanático por Harley Davidson.
        Luis Alexandre é fiscal da secretaria das Finanças, foi preso no último dia 30, junto com outros três servidores, e liberado após fazer um acordo pelo qual vai colaborar com as investigações em troca de redução de pena.
        Amilcar foi apontado por Luis Alexandre como o chefe inicial da máfia do ISS.
        As contas são ilegais porque não constam da declaração de renda dos dois.
        Na operação de busca e apreensão feita na casa de Luis Alexandre, a Promotoria encontrou papéis do Israel Discount Bank e dois cartões de visitas de pessoas que parecem ser os contatos dele com a instituição financeira.
        Pelo cartão, Luis se relacionava com executivos da agência, localizada na Quinta Avenida, em Nova York.
        Os investigadores da máfia do ISS também têm informações de que Luis Alexandre e Amilcar repassavam dinheiro um para o outro por meio dessas contas nos EUA. Os dois eram sócios em uma série de imóveis em São Paulo.
        Uma das suspeitas é que as contas tenham sido usadas para receber propina de incorporadores sem deixar rastros no Brasil. Empresários podem ter feito pagamentos para a dupla a partir de contas que mantêm no exterior.
        Outra hipótese é a remessa por meio de doleiros.
        HISTÓRICO
        O Israel Discount Bank tem um histórico de envolvimento com lavagem de dinheiro --operação que visa dar uma aparência legal a recursos obtidos de forma ilícita.
        Foi o banco usado por doleiros brasileiros para mandar US$ 2,2 bilhões para os EUA no início da década. Foi também o banco pelo qual Duda Mendonça recebeu US$ 132 mil em 2003 da campanha de Lula à Presidência, segundo as provas da Polícia Federal sobre o mensalão.
        O IDB, como é conhecido, já pagou cerca de US$ 40 milhões em acordos nos EUA por não adotar mecanismos contra a lavagem.

          No Facebook, fiscal investigado se diz contrário a indulto para presidiários

          folha de são paulo
          FOCO - MÁFIA DO ISS
          Amilcar José Cançado Lemos postou mensagem poucos dias antes de saber que era investigado
          DE SÃO PAULOAmilcar José Cançado Lemos acha que os presos não podem comemorar o Natal em família, como acontece no Brasil. No último dia 20 de outubro, antes de saber que estava sob investigação da Controladoria Geral do Município, ele postou a seguinte mensagem em sua página no Facebook:
          "Sou contra o indulto de Natal. Quem também é, compartilha", diz o texto sobre um desenho que mostra uma série de presos em fuga da cadeia, todos gargalhando, ao lado de uma imagem da Justiça desnorteada.
          Amilcar não chegou a ser preso, mas faz parte do grupo de fiscais suspeitos de cobrar propinas de incorporadores para reduzir o valor do ISS de imóveis recém construídos, essencial para obtenção do "Habite-se", autorização para o local ser ocupado.
          Quatro deles, acusados de acumular um patrimônio de R$ 80 milhões, foram presos no último dia 30 e depois liberados. A casa de Amilcar foi alvo de uma operação de busca e apreensão na última quarta-feira.
          PAIXÃO POR MOTOS
          A mensagem na rede social sobre os presos é um ponto fora da curva nos relatos de Amilcar. A maior parte das mensagens e fotos que ele coloca no Facebook é sobre as motos Harley Davidson.
          Ele é tão fanático pela motocicleta que foi à celebração dos 110 anos da marca, em Milwaukee (no meio-oeste dos Estados Unidos), no final de agosto deste ano.
          Lá, fez uma foto em que aparece sorrindo ao lado de um gigante cartaz com o número 110, sobre a mensagem "110 Years of Freedom" (110 anos de Liberdade).
          A página no Facebook de Amilcar mostra que ele fez uma travessia nos EUA com um grupo de amigos, entre agosto e setembro, sempre parando em bares de motoqueiros e se hospedando em hotéis que trazem o logotipo da Harley Davidson no nome.
          Saíram de Milwaukee, perto da fronteira com o Canadá, e acabaram na Flórida, no sul, onde ficaram hospedados no Casa Marina -Waldorf Astoria Resort.
          Também fizeram uma parada em Las Vegas para celebrar o aniversário de casamento da filha.
            OUTRO LADO
            Advogado diz ser impedido de comentar
            Luis Alexandre Cardoso de Magalhães fez acordo de delação premiada; Amilcar José Cançado Lemos não foi encontrado
            DE SÃO PAULO
            O advogado do fiscal Luis Alexandre Cardoso de Magalhães, Mario Ricca, afirma que não pode comentar qualquer questão sobre uma eventual conta nos Estados Unidos de seu cliente por causa do acordo de delação premiada que Magalhães assinou na última semana com o Ministério Público.
            Pelo acordo firmado com a Promotoria, Magalhães pode ter uma redução de pena de até um terço de uma eventual condenação.
            Isso poderia acontecer se as informações que fornecer aos promotores ajudarem a desvendar o suposto esquema montado em torno da Secretaria das Finanças para reduzir impostos de incorporadores em troca de suborno.
            SEM RESPOSTA
            A reportagem da Folha procurou Amilcar José Cançado Lemos por meio de uma advogada que aparece em outro processo que ele move, mas não obteve resposta.
            A reportagem também enviou perguntas ao auditor fiscal por meio de sua sua página no Facebook.
            Uma das perguntavas mencionava a conta bancária nos Estados Unidos. Amilcar não respondeu a nenhum dos questionamentos.
            A reportagem enviou um pedido de informação ao Israel Discount Bank, por meio do site da instituição. Também não obteve resposta até a conclusão desta edição.

            Nos embalos da máfia do ISS

            folha de são paulo
            MÁFIA DO ISS
            Fiscais suspeitos de desviar impostos apreciavam vida regada a champanhe, vinhos caros, charutos e garotas de programa em endereços badalados
            ROBERTO DE OLIVEIRADE SÃO PAULOImponente prédio de estrutura de vidro, pé-direito duplo e mezanino, a Casa Mathilde destoa dos vizinhos na praça Antônio Prado, no centro paulistano. Seus 1.200 m2 vivem apinhados de engravatados do poder público. Era ali, segundo servidores, o "point" frequentado pela "intelligentzia dos reis do ISS".
            A tradicional doçaria portuguesa está a 70 passos, sem desviar dos andarilhos e moradores de rua que trafegam por lá, de uma das entradas do edifício Martinelli, onde funciona a Secretaria de Habitação, entre outras, e a duas quadras da sede da prefeitura e da Secretaria de Finanças, epicentro do escândalo.
            Entre um "mocaccino" (R$ 8) e um "travesseiro de Sintra" (R$ 5), só há um assunto na boca de Mathilde: a máfia do ISS, grupo de auditores e fiscais que fraudava o recolhimento do Imposto sobre Serviços, segundo investigações da Controladoria- Geral do Município e do Ministério Público.
            Em meio à trovoada de denúncias, a discrição anda pautando as conversinhas no café, mas funcionários se lembram muito bem de uma "loira bonitona, corpão", que carregava um celular vestido com uma capa de oncinha.
            Era Vanessa Alcântara, 27, a ex de Luís Alexandre Cardoso de Magalhães, 41, fiscal que, envolvido no esquema, aceitou o benefício da delação premiada.
            Na doçaria, segundo servidores, a loira não costumava ser flagrada desfilando ao lado de Magalhães, mas, depois de deixar a Promotoria, na última segunda, ela ganhou os holofotes em todo o país. Na ocasião, ela vestia uma blusa estampada com imagens de tigres e, é claro, de oncinhas.
            Sob a condição de anonimato, outros funcionários públicos municipais descreveram Magalhães como "garanhão" e "pityboy quarentão".
            Ele e os outros suspeitos de integrar a máfia do ISS circulavam por aquelas bandas da rua São Bento, conforme atestam funcionários, ostentando "ar de superioridade", como se nada temessem.
            O ex de Vanessa adora charutos --cubanos, bem entendido. Era cliente assíduo da Cigar & Book, loja discreta que, quase espremida entre prédios da Vila Nova Conceição, na zona sul, também vende vinhos e presentes.
            Para entrar lá, é preciso tocar a campainha e aguardar o vendedor abrir a porta. A área reservada aos charutos fica no fundo, à esquerda.
            Acondicionados em caixas de madeira com 25 unidades, os cubanos confeccionados pela Habanos S.A., da marca Cohiba, estão entre os favoritos do auditor. Preço? R$ 1.100.
            Em um dos cartões-postais da gastronomia, o restaurante Figueira Rubaiyat, o casal gostava de se sentar no amplo salão principal, debaixo da centenária figueira.
            O presunto ibérico pata negra Bellota era obrigatório na abertura dos banquetes, seguido pelo "queen beef", prato preparado com carne da fazenda própria do restaurante. A entrada saía por R$ 109, e o principal, por R$ 248.
            Para acompanhar, Charmes-Chambertin Grand Cru 10, vinho francês de R$ 833.
            Outro funcionário lembra que o "sarado do Porsche" tomou ao menos uma vez o vinho magnum Vega Sicilia Unico. O "clássico dos clássicos" espanhóis sai pela "bagatela" de R$ 4.977, "dinheiro de pinga" para quem tem uma fortuna avaliada em R$ 18 milhões, segundo a controladoria.
            "A gente não está aqui para pedir cartão de visita. Só de crédito ou de débito. Mas ele sempre pagava com dinheiro vivo", conta o garçom.
            O foco do desvio na arrecadação eram prédios residenciais e comerciais, com custo de construção superior a R$ 50 milhões, segundo as investigações. A Promotoria estima que as fraudes tenham causado prejuízo R$ 500 milhões em ISS não recolhido.
            LAGOSTA E STRIPTEASE
            Os fiscais também costumavam ir, em Pinheiros, ao Bomboa, clube frequentado por garotas de programa que cobra R$ 230 a entrada.
            O valor pode ser usado para consumir bebida ou comida ali, onde uma caixinha de água de coco sai por R$ 30.
            O que eles apreciavam mesmo, porém, era o uísque Johnnie Walker Blue Label e o champanhe Dom Pérignon (cada garrafa custa R$ 2.100).
            As meninas não sabem de coisa alguma, nunca viram nada e nem sequer usam o nome verdadeiro. "Fernanda" é o "nome de guerra" de uma morena de 1,75 m, lábios carnudos e vestido tão grudado ao corpo que parecia confundir-se com a sua pele.
            Ela diz que os fiscais pagavam R$ 200 pelo "striptease", que rolava ali mesmo, sobre a mesa. Tudo em "cash".
            Qualquer uma das cerca de 200 meninas que ali trabalham cobra R$ 30 por um simples selinho. Beijo de verdade? Sobe para R$ 50. Já o programa de 60 minutos oscila entre R$ 400 e R$ 700.
            Com a namorada atual, a personal Nágila Coelho, 38, Magalhães escolhia lugares em um dos três pisos do restaurante cearense Coco Bambu, no Itaim.
            "Já eu gostava de coisas mais sofisticadas", alfineta Vanessa, a ex-companheira. "Como a Enoteca Fasano, em Campos [do Jordão]."
            Magalhães e Nágila "esbanjavam", segundo uma frequentadora da casa. Ela conta que eles pediam a chamada "rede do pescador", um prato com lagosta, camarão, mexilhões, peixe e lula gratinados com arroz de açafrão, top do menu, por R$ 239,90.
            Na hora de pegar o Porsche, avaliado em R$ 400 mil e hoje apreendido por determinação da Justiça, Magalhães incorporava o "mão de vaca". Chegou a recusar-se a dar gorjeta, como lembra um manobrista que pede anonimato e recebe salário líquido inferior a R$ 1.000.

              Antonio Prata

              folha de são paulo
              Abaixo, a ironia
              Volto ao tema para que não haja riscos de reforçar ideias que tentei ridicularizar
              Domingo passado, escrevi aqui uma crônica em que satirizava o discurso mais raivoso da direita brasileira. Muita gente não entendeu: alguns se chocaram pensando que eu de fato acreditava que o problema do país era a suposta supremacia de negros, homossexuais, feministas, índios e o "poderosíssimo lobby dos antropólogos"; outros me chocaram, cumprimentando-me pela coragem (!) de apontar os verdadeiros culpados por nosso atraso. Volto ao tema para que não haja risco algum de eu estar reforçando as ideias nefastas que tentei ridicularizar.
              Uma sátira é uma caricatura. Escolhemos certos traços de uma obra e produzimos outra, exagerando tais características. Narizes aparecem desproporcionalmente grandes, orelhas podem ser maiores que a cabeça, um bigode talvez chegue até o chão. É como se puséssemos uma lupa nos defeitos do original, a fim de expô-los.
              Na crônica de domingo, achei que havia carregado o bastante nas tintas retrógradas para que a sátira ficasse evidente. Descrevi um quadro que, pensava eu, só poderia ser pintado por um paranoico delirante. No país bisonho do meu texto, José Maria Marin e o pastor Marco Feliciano eram de esquerda, os brancos estavam escanteados por negros, que ocupavam a direção das empresas, as mesas do Fasano e os assentos de primeira classe dos aviões. O Brasil (segundo maior exportador de soja do mundo) não era, na crônica, uma potência agrícola, por culpa das reservas indígenas. No fim, me levantava contra "as bichas" e "o crioléu". O texto não estava suficientemente descolado da realidade para que todos percebessem a impossibilidade de ser literal?
              Talvez, infelizmente, não: fui menos grosseiro, violento e delirante na sátira do que muitos têm sido a sério. Poucos dias antes da crônica ser publicada, um vereador afirmou em discurso que os mendigos deveriam virar "ração pra peixe". Com esse pano de fundo, ser "apenas" racista, machista, homo e demofóbico pode não soar absurdo. Quem se chocou achou o personagem equivocado, mas plausível. Quem me cumprimentou achou minha "análise" perfeitamente coerente. Ora, só dá para concordar com o texto se você acreditar que as cotas criaram uma elite negra e oprimiram os brancos, acabando com a "meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral", se achar que os 20 anos de ditadura foram "20 anos de paz" e que é legítimo e bem-vindo levantar-se contra "as bichas" e "o crioléu".
              Em "Hanna e Suas Irmãs", do Woody Allen, Lee, uma das irmãs, é casada com um intelectual rabugento chamado Frederick. Lá pelas tantas, o personagem assiste a um documentário sobre Auschwitz, em que o narrador indaga "como isso foi possível?". Frederick bufa e resmunga: "A pergunta não é essa! Do jeito que as pessoas são, a pergunta é: como não acontece mais vezes?". Esta semana, diante dos e-mails elogiosos que recebi, a fala me voltou algumas vezes à memória: "Como não acontece mais vezes?". Vontade é o que não falta, por aí --e, infelizmente, não estou sendo irônico.

                O assunto é A Ciência e os Animais

                folha de são paulo
                SILVIA ORTIZ E JOÃO ANTONIO HENRIQUES
                O ASSUNTO É A CIÊNCIA E OS ANIMAIS
                A ciência em perigo
                É duro ouvir pessoas sem conhecimento científico opinando e, com base nisso, sermos acusados de maus-tratos que nunca existiram
                As últimas três semanas legaram uma grave lição ao país: a de que a pesquisa científica está sujeita aos humores de grupos que, caso entendam que assim devem agir, invadem e depredam laboratórios sob os olhares complacentes do poder público.
                Não é possível enxergar de outra maneira a cadeia de eventos que levou ao encerramento das atividades do Instituto Royal em São Roque, única instituição brasileira preparada para desenvolver uma atividade-chave para a sociedade, a pesquisa de segurança de medicamentos.
                É o caso clássico em que a vítima se torna réu. Por outro lado, seu agressor, apoiado em acusações vazias, posa de herói. É como se acusassem você, leitor, de maus-tratos com seus animais domésticos, invadissem e depredassem sua casa e os levassem embora, sem nenhuma prova concreta ou amparo legal. Como você se sentiria a respeito?
                Todos os responsáveis na esfera pública --do prefeito de São Roque (SP) ao ministro da Ciência e Tecnologia, passando pelo coordenador do Conselho Nacional de Experimentação Animal-- atestaram a lisura e a correção do Royal, bem como a importância do nosso trabalho. Todas as sociedades científicas relevantes manifestaram seu apoio.
                Enquanto isso, assistimos a um desfile de políticos e futuros candidatos em busca de fama, sem se preocupar com a verdade. Também pudemos observar autoridades que têm a obrigação de proteger a sociedade assistirem placidamente à atuação criminosa de um grupo de indivíduos, sem esboçar reação.
                Se pensarmos friamente, podemos encontrar as raízes desse mal em nossos próprios corações. Quem aceita passivamente que vândalos agridam um coronel da polícia, por exemplo, também não vê nada de errado em uma ação como a que foi perpetrada contra o Royal. O distanciamento acaba gerando aceitação. Novamente, cabe uma pergunta ao leitor: e se isso ocorresse na empresa em que você trabalha?
                Nossa equipe era formada por 85 profissionais que investiram anos em estudo e pesquisa. São biólogos, biomédicos e médicos veterinários cuja capacidade é resultado de seus esforços pessoais.
                Para todos nós, é muito duro ouvir pessoas sem um mínimo de conhecimento científico e capacidade técnica opinando sobre pesquisas e teses de mestrado que um leigo não conseguiria entender completamente e, com base nisso, sermos acusados de maus-tratos que nunca existiram.
                Além disso, precisamos conviver com nossos dados pessoais sendo divulgados na internet, além de ameaças, públicas e anônimas, à nossa integridade física.
                Ainda pior do que isso, porém, é saber que todos esses 85 profissionais estão agora na rua e que não haverá nenhum grupo de "ativistas" para defender suas famílias.
                A dúvida que ronda a comunidade científica é sobre aonde isso vai parar. Recentemente, um reconhecido instituto brasileiro iniciou testes em macacos para uma vacina anti-HIV, que pode salvar milhões de vidas ao redor do mundo. Haverá uma invasão à entidade?
                Em algum momento, um novo laboratório deverá ser criado ou certificado para dar conta da pesquisa de segurança de medicamentos no Brasil --e certamente utilizará animais. É possível fazer isso sem riscos?
                São dúvidas incômodas que demonstram o completo absurdo da situação. A única certeza por enquanto é que hoje, no Brasil, é preciso ter coragem para ser cientista.
                Aberto, o Royal era alvo de invasões e palco de interesses políticos. Fechado, é um dos muitos sinais aparentes de que algo, definitivamente, não vai bem neste país.
                FÁBIO OLIVEIRA, DANIEL LOURENÇO E CARLOS NACONECY
                O ASSUNTO É A CIÊNCIA E OS ANIMAIS
                A ética animal
                Alfaces realmente não choram. Humanos e porcos, sim. Tirar uma cenoura da terra e sangrar uma galinha não são a mesma coisa
                Eventualmente, quando lemos um artigo, podemos ficar em dúvida se o autor realmente acredita naquilo que escreveu ou se é despreocupadamente panfletário. No segundo caso, podemos concluir que consiste em pilhéria, afronta desrespeitosa que causa polêmica, mas não pela razão devida.
                Em "A ética das baratas" ("Ilustrada, 16/9), o senhor Luiz Felipe Pondé se refere à corrente filosófica denominada ética animal como "seita verde", "mania adolescente".
                Qualificou aqueles que a defendem como "pragas", "ridículos", "adoradores de barata", "hippies velhos que fazem bijuteria vagabunda em praças vazias" e "pessoas com problemas psicológicos". Nunca tínhamos lido nada assim. Objeções sim, claro, mas nada nesses termos.
                Segundo Pondé, Peter Singer, da Universidade Princeton, Tom Regan, da Universidade da Carolina do Norte, Laurence Tribe, de Harvard, Cass Sunstein, da Universidade de Chicago, Andrew Linzey, de Oxford, além de tantos outros, inclusive dos autores deste arrazoado, são "ridículos", "hippies velhos", "pragas"...
                Singer, ao contrário do afirmado por Pondé, nunca sustentou, sem qualquer mais, que "bicho é gente". O que Singer afirma é que pelo menos alguns animais são suficientemente semelhantes a nós a ponto de merecer uma consideração moral também semelhante, adotando o critério da senciência ou consciência, com ênfase na capacidade de sofrer.
                Pondé, que não leu e/ou entendeu Singer, faz, então, uma leitura da natureza para dizer que ela "mata sem pena fracos pobres e oprimidos". O que isso tem que ver? Concluímos que devemos agir assim com animais e seres humanos? Embora a natureza não possa ser reduzida a isso, qual moralidade se pode extrair de fatos naturais?
                Ora, milhões de seres humanos são fracos, pobres e oprimidos. Os juízos de valor sobre a correção ou o erro de determinadas condutas são pertinentes somente aos agentes morais. Por isso, carece de qualquer sentido avaliar eticamente a conduta do leão de atacar a zebra. Essa interdição, porém, não nos impede de analisar a nossa conduta diante de outros humanos e animais.
                Pondé pergunta: "Como assim não se deve matar nenhuma forma de vida'?" Quem proclama isso, senhor Pondé? Certamente não é a ética animal. Nem a ética da vida. O que se afirma é que não se deve matar sempre que se possa evitar isso. O que significa que não é irrelevante matar uma barata ou que se está autorizado a matar uma vaca para satisfazer o paladar.
                A ciência nos informa que alfaces não sofrem --este é um estado atrelado a fisiologia que elas não têm. Alfaces realmente não choram, senhor Pondé. Humanos e porcos, sim. Tirar uma cenoura da terra e sangrar uma galinha não são a mesma coisa. Podar um galho de árvore ou cortar a pata de um cão também não. É o senso comum mais elementar.
                Ridicularizar é recurso para desqualificar: como muitas vezes feito, desprestigia a serenidade da argumentação acadêmica para angariar os risos da plateia por meio de artifícios sofistas. Todavia, como alertou santo Agostinho, uma coisa é rir de um problema, outra é resolvê-lo. E nós, senhor Pondé, não estamos sorrindo.

                Helio Schwartsman

                folha de são paulo
                Normal ou patológico?
                SÃO PAULO - Vai ganhando corpo a corrente dos profissionais de saúde mental que, como o americano Dale Archer, denuncia a patologização de comportamentos normais. Pressões da indústria de drogas seriam um dos motivos para essa verdadeira epidemia de diagnósticos.
                É fato que o aumento das doenças mentais ocorre num ritmo suspeito e que isso interessa aos laboratórios. Penso, porém, que ao menos parte do fenômeno está relacionado a uma questão de filosofia da medicina que é pouco explicitada. Quando se torna legítimo atuar? Na visão mais clássica, o médico só pode intervir para restaurar a saúde. A prescrição de drogas para qualquer outro fim que não curar uma doença bem definida seria antiética.
                A questão é que, sem muito alarde, esse paradigma está mudando. Hoje, as pessoas procuram médicos não só para recuperar a saúde mas também para melhorar sua performance numa área ou apenas para sentir-se melhor. Não vejo muito como condenar em termos morais essa ampliação do escopo da medicina. É evidente, porém, que ela cobra seu preço. A patologização de estilos de ser que poucas décadas atrás seriam classificados como meras variações de personalidade é parte da fatura.
                Paradoxalmente, a supermedicalização convive com seu reverso, que é o subdiagnóstico, já que parcela significativa da população brasileira não tem acesso ao sistema de saúde e fica sem tratamento. E, se queremos atender a todos, que me perdoem os psicoterapeutas, não há caminho que não o dos remédios.
                Imaginemos, num cálculo conservador, que 10% da população sofre de algum transtorno e poderia beneficiar-se de tratamento. Se fôssemos ministrar duas horas de terapia por semana a 20 milhões de pacientes, precisaríamos de um exército de 1,1 milhão de profissionais executando jornadas fordistas (sem intervalo) de 35 horas semanais. É muita areia para o caminhãozinho do SUS.