terça-feira, 26 de novembro de 2013

Mudanças climáticas ameaçam produção de alimentos

folha de são paulo

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JUSTIN GILLIS
DO 'NEW YORK TIMES'
The New York TimesPara ter uma visão do que a mudança climática poderá causar ao suprimento alimentar no mundo, considere o que aconteceu na Europa em 2003, depois que uma onda de calor cortou a produção de algumas colheitas em até 30% e fez os preços dispararem.
Vários pesquisadores concluíram que a onda de calor europeia se tornou mais provável devido à mudança climática causada pelos seres humanos. Os cientistas ainda discutem sobre um período de calor e seca em 2012 nos EUA que reduziu a safra de milho. Sejam quais forem suas origens, ondas de calor como essas nos dão uma prova do que pode nos aguardar no futuro com o aquecimento global.
Entre os que estão ficando nervosos, há pessoas que passam a vida pensando de onde virá nossa comida. "Os impactos negativos da mudança climática global sobre a agricultura só deverão piorar", disse um relatório feito no início deste ano por pesquisadores da Escola de Economia de Londres e um grupo de pensadores de Washington, a Fundação para a Tecnologia da Informação e Inovação.
O relatório citou a necessidade de "colheitas e sistemas de produção agrícola mais resistentes do que os que possuímos hoje no mundo".
Esse talvez seja o maior temor isolado em relação ao aquecimento global: que a mudança climática possa desestabilizar de tal modo o sistema alimentar do mundo que haja o aumento da fome ou até a penúria em massa.
O esboço de um relatório vazado da comissão do clima da ONU, conhecida como Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática, sugeriu que as preocupações do grupo aumentaram e que esse relatório, marcado para lançamento em março em Yokohama, Japão, provavelmente incluirá uma firme advertência sobre os riscos ao abastecimento alimentar.
O tom é notadamente diferente do de um relatório do mesmo grupo de 2007, que discutia alguns riscos, mas via o aquecimento global como algo que provavelmente beneficiaria a agricultura em importantes regiões de plantio.
Desde então, novas pesquisas contiveram essas suposições.
Um grupo de cientistas desenvolveu maneiras mais sofisticadas de analisar a relação entre a agricultura e o clima. Seu trabalho sugere que o aumento do calor em algumas áreas de plantação já está causando uma redução da produção, e cresce a possibilidade de efeitos muito mais sérios conforme o aquecimento global continua.
Os cientistas há muito tempo esperavam que o efeito do calor e da água sobre as colheitas pudesse ser compensado pelo o que gera o aquecimento global: o aumento acentuado de dióxido de carbono no ar. Esse gás é o principal suprimento alimentar para as plantas, e um grande corpo de evidências sugeria que o aumento atual de CO2 poderia incentivar a produção das colheitas.
Mas muitas dessas evidências vieram de testes em ambientes artificiais como estufas. Cientistas mais jovens, que insistiram em testar as colheitas em condições naturais, mais parecidas com o mundo real, descobriram que o aumento da produção, embora real, não era tão grande quanto se esperava e talvez não fosse suficiente para compensar os outros estresses do aquecimento global.
O maior temor alimentar deste século ocorreu em 2007 e 2008. Vários anos de produção agrícola ineficiente, causados em parte por extremas condições climáticas, chocaram-se com a demanda crescente. Os preços dos principais cereais mais que duplicaram, países inteiros fecharam a porta das exportações alimentícias, houve pânico de compras em muitos mercados e tumultos em mais de 30 países.
A boa notícia é que a agricultura tem uma tremenda capacidade de se adaptar a novas condições, incluindo um clima mais quente. As colheitas podem ser plantadas mais cedo e novas variedades mais resistentes ao estresse climático podem ser desenvolvidas.
Mas especialistas dizem que a pesquisa necessária para fazer tudo isso acontecer está recebendo pouco estímulo. "Sucessos do passado na agricultura deram uma falsa sensação de segurança a muitos dos que estão em cargos de decisão", disse L. Val Giddings, membro adjunto do grupo de pensadores de Washington e coautor de seu relatório. "Faz muito tempo desde que algum deles realmente sentiu fome."

Robôs ganham feições humanas

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JOHN MARKOFF
DO 'NEW YORK TIMES'
The New York TimesNuma manhã recente, Natanel Dukan entrou na sede da fábrica francesa de robôs Aldebaran, em Paris, e observou um dos robôs humanoides da empresa, o NAO, sentado numa cadeira.
Dukan, engenheiro eletricista, não resistiu. Beijou a bochecha do robô. Em resposta, o NAO inclinou a cabeça, tocou o rosto dele e soltou um "smac" audível.
David Walter Banks/The New York Times
O robô francês NAO, feito pela Aldebaran Robotics, sentado durante conferência sobre robótica no Instituto de Tecnologia da Georgia, nos EUA
O robô francês NAO, feito pela Aldebaran Robotics, sentado durante conferência sobre robótica no Instituto de Tecnologia da Georgia, nos EUA
Mandar beijos é certamente uma utilidade bem francesa para uma máquina, mas o gesto íntimo do robô de meio metro de altura --que custa US$ 16 mil e está atualmente sendo usado em laboratórios acadêmicos e em campeonatos de futebol robótico-- também reflete uma mudança significativa.
Até recentemente, a maioria dos robôs ficava cuidadosamente separada dos humanos. Eles têm sido muito usados em fábricas para realizar tarefas repetitivas que exigem velocidade, precisão e força. Essa geração de robôs é perigosa e foi confinada para a proteção dos operários.
Agora, os robôs estão começando a imitar os humanos --e a se parecer com eles. Estão também começando a realizar tarefas humanas.
"Hoje essa é a onda na robótica", disse Charlie Kemp, professor-associado de engenharia biomédica no Instituto de Tecnologia da Geórgia (ou Georgia Tech), em Atlanta.
"As coisas não são as mesmas quando você está interagindo com pessoas. É aí que queremos que os robôs estejam e é onde vemos que há enormes oportunidades para os robôs. Há exigências muito diferentes das que levaram ao clássico robô industrial."
Muitos dos robôs da nova geração são operados à distância. Porém, cada vez mais, eles realizam tarefas independentemente do controle humano direto.
David Walter Banks/The New York Times
O RoboThespian, fabricado pela Engineered Arts Limited para interagir com humanos em ambientes públicos
O RoboThespian, fabricado pela Engineered Arts Limited para interagir com humanos em ambientes públicos
É o caso de Romeo, robô humanoide de 1,5 metro, que em breve será lançado pela Aldebaran. Criado com uma ajuda equivalente a US$ 13,8 milhões do governo francês, o robô está sendo programado para cuidar de idosos e ajudar em tarefas domésticas.
A ideia de que os robôs sejam parceiros dos humanos, em vez de seus substitutos ou empregados, está motivando pesquisas em universidades e laboratórios industriais.
Os projetistas dos robôs acreditam que suas criações vão se transformar em terapeutas, cuidadores, guias e seguranças e que no futuro virão a realizar praticamente qualquer forma de trabalho humano (mas ainda não surgiram robôs capazes de pensar por conta própria).
A chave para esse avanço é a nova forma dos robôs. Sua aparência humana vai além de satisfazer fantasias de ficção científica.
Os especialistas dizem estar escolhendo a forma humana tanto por razões sociais quanto técnicas. Robôs que operam em ambientes fechados, em particular, devem ser capazes de se deslocar em um mundo cheio de manoplas, alavancas, portas e interruptores, todos concebidos para humanos.
Os desenvolvedores também observam que os humanos têm afinidade com sua própria forma, o que facilita as transições e torna a colaboração mais neutra. Criar robôs de forma humanoide também simplifica o treinamento e as parcerias no local de trabalho, aumentando o potencial para novas aplicações, como cuidar de pessoas.
David Walter Banks/The New York Times
Componente de robô feito pela empresa Schunk, que projeta robôs capazes de usar instrumentos como maçanetas e botões de elevador desenhados para seres humanos
Componente de robô feito pela empresa Schunk, que projeta robôs capazes de usar instrumentos como maçanetas e botões de elevador desenhados para seres humanos
Na Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, na Pensilvânia, Manuela Veloso, professora de ciência da computação, desenvolveu uma série de robôs --os CoBots-- para realizar tarefas como distribuir correspondência, orientar visitantes com hora marcada e trazer café.
Ela chama isso de "autonomia simbiótica", já que os robôs também dependem dos humanos. Eles chegam a pedir orientações se ficarem perdidos.
Rápidas melhorias na visão por computador, no poder de processamento e armazenamento e no barateamento dos sensores, além de novos algoritmos que permitem que os robôs se desloquem em ambientes atulhados, estão possibilitando esses novos usos e, de quebra, alterando a natureza da robótica.
Nos chãos de fábrica mundo afora, uma nova geração de robôs está sendo fabricada por empresas como a Rethink Robotics, de Boston, que produz um robô humanoide para tarefas automatizadas simples, e a Universal Robots, de Odense, na Dinamarca, que fabrica um sistema duplo de braço robótico projetado para aplicações mais tradicionais.
A Rethink Robotics recentemente divulgou um vídeo do seu robô, o Baxter, preparando um café. A empresa disse que o robô humanoide, com mãos em forma de pinça e tela de computador no lugar do rosto, foi treinado em algumas horas para realizar diversas tarefas pré-programadas associadas à preparação do café.
No laboratório de Kemp na Healthcare Robotics, na Georgia Tech, um robô de 1,5 metro, chamado Cody, capaz de sentir forças sobre os seus braços e dotado de uma base que o faz se movimentar graciosamente, está sendo usado como parceiro de dança para dançarinos humanos experientes e para pacientes de fisioterapia.
"É uma forma de usar os robôs para exercícios divertidos e interativos na reabilitação", disse ele.

Gordura emagrece?

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Óleos prometem reduzir a fome, mas faltam provas sobre os benefícios


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JULIANA VINES
DE SÃO PAULO

O cardápio da moda para emagrecer inclui colheradas de gordura --o que parece estranho, já que uma colher de sopa de óleo de coco, linhaça ou cártamo, populares em sites de dieta, tem cerca de 120 calorias, o mesmo que um bombom recheado.
Mas, segundo os fabricantes, apesar do alto valor calórico, essas gorduras vegetais aceleram o metabolismo e aumentam a saciedade, ajudando na perda de peso.
As promessas são vendidas a preços salgados: 260 ml de óleo de semente de chia, rico em ômega 3, custam R$ 59,90 na rede Mundo Verde (preço sugerido).
O sucesso das gorduras para emagrecer começou com o óleo de coco, que explodiu no verão de 2012. De lá para cá a lista só cresceu (veja ao lado).
Ainda está longe, porém, de haver um consenso sobre os benefícios dos produtos.
Adriano Vizoni/Folhapress
Da esq. para a dir., óleo de cártamo, cápsulas de chia, óleo e cápsulas de abacate e óleo de linhaça
Da esq. para a dir., óleo de cártamo, cápsulas de chia, óleo e cápsulas de abacate e óleo de linhaça
"A literatura científica sobre o óleo de coco é ampla", defende Natana Martins, nutricionista do Herbarium, marca de fitoterápicos e suplementos. Segundo ela, o efeito emagrecedor é atribuído à propriedade termogênica da gordura do coco (que aumenta a queima de calorias no corpo).
Mas, para o nutrólogo Edson Credidio, pesquisador da Unicamp, essa ação ainda não foi comprovada. "As pesquisas encontraram tanto benefícios como malefícios no alimento e não foram capazes de explicar o mecanismo envolvido", diz.
A nutricionista Annie Belo, pesquisadora do Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio, orienta um estudo sobre óleo de coco com 130 voluntários. A pesquisa será apresentada em março, mas já há uma prévia dos resultados.
"O óleo teve efeito adjuvante na redução da circunferência da cintura", diz. Ela ressalta que os participantes seguiram uma dieta acompanhada por nutricionista, porque o óleo de coco, sozinho, engorda. "Não há milagre."
À espera do efeito milagroso descrito em blogs, a assessora jurídica Sheilla Lovato, 27, tentou emagrecer só com óleo de coco, primeiro em colherada, depois em cápsulas.
"Deu muito errado. Passei mal", conta. Ela tomou 500 gramas de óleo em um mês. "Tentei de todo jeito: puro, na salada... Não funcionou. Tive diarreia e ânsia. Se emagreci foi de tanto passar mal."
Tomar o óleo pode mesmo causar diarreia, principalmente em grandes quantidades, diz a nutricionista e bioquímica Lucyanna Kalluf.
Ela recomenda no máximo duas colheres de chá ao dia, aliadas a uma alimentação saudável. "Óleo de coco é uma gordura saturada --pode aumentar o colesterol."
ÔMEGAS
Mais novos no arsenal das dietas, os óleos de chia, cártamo (planta da família do crisântemo), abacate e linhaça são boas fontes de ômega 3, 6 e 9, gorduras mais saudáveis que as saturadas e que ajudam na manutenção da saúde cardiovascular.
editoria de arte/editoria de arte
Mas não emagrecem, de acordo com a nutricionista Ana Maria Lottenberg, do Laboratório de Lípides do Hospital das Clínicas de SP. "É uma falácia. Quem emagrece tomando óleo é porque faz outras mudanças alimentares em conjunto", diz.
A estudante Nicole Olive, 19, toma três cápsulas de óleo de cártamo por dia há quatro meses e perdeu três quilos. "Dá resultado, sim", diz. Mas, além de tomar o óleo, Nicole cortou refrigerante e frituras e caminha quase todo dia. "Acho que as cápsulas ajudam a controlar a fome."
O óleo de cártamo é fonte de ômega 6, ácido graxo essencial que também é encontrado no óleo de soja, canola e milho. "Não precisamos consumir ômega 6 do cártamo, que é caríssimo. É melhor variar entre outros óleos mais baratos", diz Lottenberg.
O ômega 9 do abacate é o mesmo do azeite, e o ômega 3 do óleo de chia e de linhaça é encontrado nesses alimentos na forma de semente. "Não faz sentido comprar o óleo, mas as sementes de linhaça e chia, sim, porque têm fibras e aumentam a sensação de saciedade", diz ela.
Para a nutricionista Alessandra Rodrigues, o brasileiro já consome muita gordura. "Tomar um suplemento via oral ultrapassaria as recomendações diárias." E não importa se a gordura é boa ou ruim: "Em excesso, vai engordar e fazer mal".

Suzana Herculano-Houzel

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Videogames para a atenção
A melhor coisa que pode acontecer para melhorar a capacidade de atenção do cérebro é exigir dela
Muita gente fala mal da tecnologia e levanta até a possibilidade de o deficit de atenção de tantas crianças e jovens adultos ser causado pelo uso dos aparelhos modernos, que permitem (ou exigem) que a atenção seja dividida entre várias tarefas ao mesmo tempo. Eu discordo e, continuando minha campanha em prol da tecnologia (e contra, isso sim, seu mau uso), digo o porquê: a melhor coisa que pode acontecer para melhorar a capacidade de atenção do cérebro é justamente exigir dela.
A neurociência aprendeu isso com uma das invenções tecnológicas mais execradas nos círculos pseudocientíficos: o videogame. Primeiro, descobriu-se que ficar horas a fio na frente do monitor não faz mal algum à visão. Pelo contrário, a acuidade visual até melhora em alguns jogadores.
Segundo, jogadores de videogames de ação, como Grand Theft Auto, Medal of Honor ou Call of Duty, têm uma capacidade maior do que não jogadores de não se deixar distrair por objetos fora do foco de atenção, ao mesmo tempo em que conseguem detectar objetos interessantes na periferia do campo de visão. Ou seja: têm maior capacidade de atenção.
Há que ser cético, contudo, e lembrar que talvez seja justamente uma maior capacidade prévia de atenção de alguns jovens que faça com que eles se dediquem muito mais do que os outros aos videogames de ação --atividade que seria naturalmente mais fácil para eles, nesse caso. Mas é fácil tirar a dúvida: basta treinar jovens não jogadores e medir sua capacidade de atenção antes e depois da prática.
Resultado: tanto moças quanto rapazes que passam a jogar Medal of Honor diariamente, por exemplo, demonstram melhora na coordenação visuomotora, na capacidade de detectar objetos e na atenção, com apenas dez dias de treino. Jogar o bem-comportado Tetris, em comparação, não adianta nada. A atenção melhora... quando se presta atenção --assim como a memória melhora quanto mais recorremos a ela.
É claro que jogar videogames pode trazer problemas. Assim como beber água em excesso faz mal (sabia?), jogar demais pode ser nocivo, principalmente para jovens e crianças com predisposição a comportamento impulsivo --e, antes de mais nada, por tomar o tempo em que eles poderiam estar aprendendo outras coisas. Mas, de novo, o problema não é da tecnologia: é do mau uso que fazemos dela.

Rosely Sayão

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Criança-papagaio
Tudo o que o garoto dizia nada mais era do que a repetição de frases saídas da boca de adultos
Testemunhei uma conversa entre uma conhecida, que é mãe de um garoto de dez anos, e seu filho, que tem, segundo ela mesma, problemas na escola. Não, ele não se recusa a aprender o que lhe é ensinado, não faz drama com as lições de casa e tem obtido boas notas segundo a avaliação escolar realizada.
Está certo que ele reclama da obrigatoriedade de frequentar a escola todo santo dia e de ter de usar a "perua escolar", porque a mãe trabalha nos horários em que ele vai e volta da escola. Mas, fora esses dois motivos de suas frequentes reclamações, a escola, para ele, não é uma pequena tragédia como parece ser para algumas crianças.
Já os colegas com quem convive... Eles são o seu pesadelo. Segundo o próprio garoto, ele vive sendo provocado o tempo todo com apelidos que considera pejorativos, com caretas, gestos e outras dezenas de pequenas atitudes de seus pares que o fazem perder a linha.
Ele reage quase sempre com agressividade --bate nos colegas. Por isso, a mãe vive sendo chamada à escola e o menino vive isolado.
Essa jovem mãe contou que já deixou o filho de castigo --tirou dele coisas das quais ele gosta muito por vários dias-- e que já falou para ele que o que ele tem feito é errado, mas o fato continua a se repetir.
"O que devo fazer, onde estou errando?", perguntou ela.
Sugeri que ela conversasse com o filho em busca dos pontos de vista dele. Sim: uma criança dessa idade já tem noção do que faz de certo e de errado e tem, muitas vezes, explicações surpreendentes para seu próprio comportamento. A mãe me pediu que eu estivesse presente nessa conversa, que aconteceu na casa deles, quando eu os visitava.
Quando a mãe lhe perguntou o que havia acontecido no dia anterior na escola, ele de pronto respondeu que havia feito uma coisa muito errada. "Se você sabe que é errada, por que fez?", perguntou a mãe. "Não sei" --foi a resposta que ela teve de volta. E assim seguiu a tentativa de diálogo entre os dois, com a mãe se mostrando satisfeita com as respostas que obtinha do filho.
Eu não consegui ouvir o que o garoto, de verdade, tinha a dizer a respeito de fatos que envolviam a sua vida. Tudo o que ele dizia nada mais era do que a repetição de frases e de ideias saídas da boca de adultos.
O garoto, tão vivaz, nesses momentos se transformava em um "garoto-papagaio", porque descobrira que era exatamente isso que os adultos --pais e profissionais da escola-- esperavam dele.
Temos demonstrado tanto desinteresse pela conversa com os mais novos que eles aprenderam a não perder seu precioso tempo com nossas tolas e moralistas perguntas e com os questionários que fazemos a eles. Eles dizem logo o que queremos ouvir para que possam se livrar dessas entediantes conversas.
Mas, caso algum adulto demonstre interesse verdadeiro em ouvir o que eles pensam sobre os problemas que enfrentam, eles são capazes de dizer, mesmo que indiretamente, o que os atrapalha e porque não conseguem encontrar novas soluções para as situações difíceis que vivem.
Enquanto tivermos, antecipadamente, a resposta certa a ser dada por uma criança quando conversamos com ela, criaremos "crianças-papagaio", que respondem o que queremos sem ao menos saber ao certo o que de fato significa.
Precisamos aprender a conversar com crianças, não é verdade?

    Psicanalista Contardo Calligaris lança coletânea de suas colunas

    folha de são paulo

    Psicanalista Contardo Calligaris lança coletânea de suas colunas


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    IARA BIDERMAN
    DE SÃO PAULO

    Na introdução do livro "Todos os Reis Estão Nus" (Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha), a ser lançado amanhã em São Paulo, o psicanalista Contardo Calligaris, 65, escreve que o jeito de ser do indivíduo moderno não é algo revelável por um desnudamento repentino, mas sim por um despir contínuo de camadas de roupas e máscaras.
    O jeito de ele mesmo se revelar segue esse caminho: seja na sua obra de ficção, nas colunas que escreve semanalmente para a Folha (118 delas estão no livro) ou em entrevistas, o italiano radicado no Brasil faz pequenos stripteases que desnudam uma ideia ou algo de sua vida para mostrar, ao final, só o avesso de uma peça de roupa ou outra forma de usar a máscara.
    ADVERSATIVO
    Ele gosta disso. "Quero escrever alguma coisa que ninguém tinha pensado antes, não quero expressar uma opinião. A minha forma gramatical preferida é o adversativo [que exprime oposição]. As coisas são complexas, sempre há um 'mas'."
    Zanone Fraissat/Folhapress
    O psicanalista Contardo Calligaris em seu consultório no Jardim Paulista, em São Paulo
    O psicanalista Contardo Calligaris em seu consultório no Jardim Paulista, em São Paulo
    O striptease é calculado. Em 15 anos como colunista, Contardo diz ter desenvolvido sistemas. O que mais lhe agrada é juntar um fato social ou cultural recente com algo de sua própria vida e com uma pesquisa científica.
    Calculadamente, também, ele às vezes é vago. "É uma opção, em certos assuntos não quero me pronunciar se sou contra ou a favor."
    Pode ser chamado de "em cima do muro" ("Já disseram que eu sou"), mas ele prefere se definir como um "defensor das causas perdidas".
    Uma causa que assumiu foi abandonar a linguagem obscura que, segundo ele, é comum nos meios acadêmicos.
    "Quando pego alguns textos psicanalíticos da época em que me formei, acho ilegíveis. Eu era um chato."
    Nascido em Milão em 1948, Contardo entrou para o meio acadêmico no final da década de 1960, depois de uma adolescência "easy rider" que incluiu fugas da casa dos pais, viagens a Londres e uma temporada em Nova York no auge do movimento hippie.
    Em maio de 1968, foi a Paris para participar das revoltas estudantis e, no final daquele ano, mudou-se para a Suíça, onde começou a estudar letras e filosofia, na Universidade de Genebra.
    influências
    Foi lá que entrou em contato com a obra do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), a grande influência para que iniciasse sua formação em psicanálise.
    Em 1975, foi aceito como membro da Escola Freudiana de Paris, cidade onde morou até 1989, ensinando na Universidade Paris 8 e tendo aulas com os filósofos Roland Barthes (1915-1980) e Michel Foucault (1926-1984), além de acompanhar os seminários ministrados por Lacan.
    A mudança para o Brasil foi uma sucessão de acasos, de um convite para uma turnê de palestras ao casamento com uma brasileira.
    Casamentos também são um tipo de especialidade de Contardo. Ele já passou por oito. A atual mulher é a atriz Mônica Torres, com quem está casado há três anos.
    "As pessoas supõem que eu tenho um certo conhecimento nesse campo [de relacionamentos afetivos] por causa do que eu escrevo e digo. Não que eu conte realmente minha vida, mas sabem que eu vivi diferentes amores, fracassos e sucessos", afirma.
    Ele não acha ruim revelar essa camada de sua vida privada. "Eu não gostaria de escolher um terapeuta que não tivesse um certo leque de experiência nas questões fundamentais do ser humano."
    Segundo Contardo, Freud dizia que há duas coisas que realmente interessam às pessoas: sexo/amor e trabalho.
    "Seriam os dois campos de afirmação subjetiva. Parece empobrecedor, a gente gostaria de ter uma bateria maior de interesses, mas Freud não está tão longe da verdade."
    Na bateria de interesses de Contardo, além dos afetos e da psicanálise, entram as viagens, a sociologia, a literatura e o cinema.
    Tudo isso foi reunido nos enredos de seus dois livros de ficção, "O Conto do Amor" (2008) e "A Mulher de Vermelho e Branco" (2011), ambos lançados pela Companhia das Letras.
    As obras contam histórias vividas pelo psicanalista Carlo Antonini, assumido "alter ego" de Contardo.
    Essa "persona" do psicanalista estará em 2014 na TV. Carlo Antonini será o protagonista da série "Psi", da HBO, escrita por Contardo e pelo roteirista Thiago Dottori.
    CULTURA POP
    Mesmo nadando no caldo da cultura de massas --além da ficção e da TV, suas colunas no jornal costumam trazer referências aos últimos best-sellers ou a campeões de bilheteria--, Contardo hesita em vestir a roupa de psicanalista pop que é.
    "Eu não estou usando banalidades para tornar a psicanálise mais popular ou palatável. O que eu faço é me apoiar em outras disciplinas, como a psicologia social e experimental."
    Certamente, Contardo não é um ortodoxo. Entre outras coisas, adota, quando acha necessário, técnicas da psicoterapia cognitivo-comportamental --o que, para muitas correntes da psicanálise, é quase um anátema.
    "Além de eu ter também uma formação cognitivista, não só não demonizo essas técnicas como prescrevo, se for o caso. Aliás, tem muitos filmes e livros de ficção que eu praticamente prescrevo para casais."
    Isso também é ser pop. "Tudo bem. Mas ser pop não muda muito a minha vida, graças a Deus. Não tenho uma presença na televisão que faça com que eu tenha que me esconder quando vou ao cinema por causa dos paparazzi."
    LANÇAMENTO DO LIVRO
    "Todos os Reis Estão Nus" (Três Estrelas, R$ 49,90, 280 págs.)
    QUANDO amanhã, às 18h30
    ONDE Livraria Cultura - Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073, térreo, tel. 0/xx/11/3170-4033)
    *
    RAIO-X
    CONTARDO CALLIGARIS
    NASCIMENTO
    1948, em Milão
    FORMAÇÃO
    Letras, filosofia, psicanálise, sociologia
    CARREIRA
    Psicanalista clínico em São Paulo, em Nova York e em Paris; professor de psicanálise (Vincennes), estudos culturais (New School de Nova York) e antropologia (Berkeley); escritor e colunista da Folha

    Mônica Bergamo

    folha de são paulo

    Gerente de loja de luxo da Dior em SP é acusada de assédio moral por vendedoras

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    Uma das gerentes da Christian Dior no shopping Cidade Jardim foi acusada de assédio moral pelas vendedoras da loja. Na manhã de ontem, um responsável pela área de recursos humanos da grife de luxo participou de audiência no Sindicato dos Comerciários de São Paulo, quando assumiu, em ata, o compromisso de tomar providências.
    LUXO NA MIRA
    Segundo relatório de uma equipe do sindicato que visitou a loja no início do mês, teria sido comprovada a denúncia de xingamentos, ofensas e humilhações por parte da gerente. "A empresa diz estar tomando providências, e agora vamos monitorar a situação", afirma Josimar Andrade, diretor de relações sindicais do Sindicato dos Comerciários. A assessoria da Dior diz que a posição da empresa é a que consta da ata da reunião.
    LUXO NA MIRA 2
    A gerente deverá passar por treinamento ou ser afastada, recomenda o sindicato. Caso a situação perdure, o próximo encaminhamento é notificar o Ministério Público do Trabalho. Uma outra denúncia de atraso no pagamento não foi comprovada na visita do sindicato à loja.
    FIM DE TEMPORADA
    Deborah Secco, Danielle Winits e Murilo Benício, com o filho Pietro, estiveram nos camarotes do autódromo de Interlagos para assistir ao Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1, anteontem em São Paulo. Hélio Magalhães, presidente do Citi Brasil, e os empresários Rubens Ometto, da Cosan, e Flávio Rocha, da Riachuelo, também foram ao evento. Rossana Fittipaldi levou o filho Emo para ver a última corrida do ano.

    Grande Prêmio do Brasil de F1

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    Greg Salibian/Folhapress
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    As atrizes Deborah Secco e Danielle Winits, estiveram nos camarotes do autódromo de Interlagos para assistir ao Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1, no domingo (24), em São Paulo
    CAUSA PRÓPRIA
    Ativistas e entidades de defesa dos direitos LGBT entregaram carta ontem ao Senado em que manifestam "profunda indignação" com o adiamento da votação da proposta de criminalização da homofobia. O psicólogo João Nery, tido como o primeiro transexual masculino operado do Brasil, o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e o Instituto Brasileiro de Direito de Família estão entre os que endossam o texto e pedem a aprovação do projeto de lei.
    NO CARTÓRIO
    O número de protestos por falta de pagamento do condomínio quase dobrou em SP. Segundo pesquisa da Lello, empresa de administração imobiliária, entre janeiro e outubro deste ano, 914 inadimplentes foram protestados e inscritos em serviços de proteção ao crédito. No ano passado, o número era de 535 casos entre os contratos da administradora.
    SÓ DÁ ELA
    Mônica, a criação de Mauricio de Sousa que está espalhada por 50 lugares de São Paulo na forma de estátua, adere a uma nova causa. A imagem dela será usada na divulgação do Dia Nacional de Combate à Fome Oculta --que é a deficiência de determinados nutrientes. A personagem vai incentivar a alimentação saudável entre as crianças.
    PROIBIDO É MELHOR
    Pedro Herz, dono da Livraria Cultura, lida com a polêmica questão das biografias de forma bem-humorada e com tino comercial: só venderá as não autorizadas nas lojas da rede. "As que todo mundo quer esconder são as mais interessantes de ler."
    ANTES DA LARGADA...
    Um dos anfitriões do camarote da Shell em Interlagos, Rubens Ometto (foto ao lado), presidente do conselho de administração da Cosan, apresentou o neto a Danielle Winits. "Ela é a má da novela", explicava. Tímido, o garoto não quis posar para foto ao lado da atriz, que faz o papel de Amarylis, em "Amor à Vida". O empresário conta que é noveleiro. "Quando não dá tempo de assistir, peço para gravar."
    *...E DEPOIS DA FUSÃO *
    Após a fusão da Cosan, maior produtora de etanol no mundo, com a Shell na joint venture Raízen, Ometto diz que tem sobrado mais tempo para pensar. "E também estamos mais eficientes", completa.
    TALENTOS MÚLTIPLOS
    O ator Hugh Laurie, o doutor House, da série homônima, virá ao Brasil pela primeira vez em março do ano que vem. Também pianista e cantor de jazz, ele fará shows em seis capitais: São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília e Curitiba.
    VELOCIDADE MÁXIMA
    Paolo Dal Pino, presidente da Pirelli para América Latina, recebeu convidados na festa Let's Dance, realizada pela marca no Grand Metrópole, no centro, às véspera do GP de F-1. O empresário André Almada e ex-jogador de vôlei Maurício Lima com a mulher, Roberta, estiveram na casa noturna.

    Festa da Pirelli

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    Bruno Poletti/Folhapress
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    Paolo Dal Pino, presidente da Pirelli para América Latina, recebeu convidados na festa Let's Dance, realizada pela marca no Grand Metrópole, no centro, às vésperas do GP de Fórmula 1
    CURTO-CIRCUITO
    Angelika Winkler organiza almoço para Luiza Brunet e Melissa Fernandes, embaixadoras da grife italiana MaxMara, no Skye.
    Heitor Dhalia dirige a próxima campanha da Vivo.
    O cenógrafo Marcelo Bacchin comemora 15 anos de carreira com festa na Casa Fasano, hoje, às 19h.
    Ademir Perín recebe hoje organizadores do Festival do Cinema Italiano e o cineasta Vittorio Taviani em jantar na Jardineira Grill.
    O Alana lança hoje a campanha Prioridade Absoluta, em defesa dos direitos da infância, no auditório do instituto, em Pinheiros.
    com ELIANE TRINDADE (interina), JOELMIR TAVARES, ANA KREPP e MARCELA PAES
    mônica bergamo
    Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

    José Simão

    folha de são paulo
    Ueba! Gols do ROUBRASILEIRÃO!
    Papuda News: diz que o Zé Dirceu tem mania de limpeza. Isso tem mesmo. Os cofres que o digam!
    Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! O Vasco é uma piada pronta! "Caminhão desgovernado derruba muro do Vasco". Só piora: sem título, sem água e agora sem muro! Outra piada pronta: "Estádio do Vasco é cenário para o filme A Esperança É a Última que Morre'". Verdade! Com a Dani Calabresa!
    E sabe a semelhança entre o Vasco e a Perimetral? Ambos vão cair com Dinamite! Rarará!
    E sabe qual a semelhança entre o Félix e o São Paulo? Ambos apanharam em casa!
    E sabe como se chama aquela partida Vasco x Cruzeiro? ROUBRASILEIRÃO! O Brasileirão virou Roubrasileirão. E o site FuteboldaDepressao definiu assim a partida Flamengo x Corinthians: o jogo em que os juízes ficam sem saber pra que lado roubar! Rarará! Flamengo x Corinthians! Urubu x Gambá! O jogo devia ser no lixão. Da Mãe Lucinda! Rarará!
    Guerra! O Batbarbosa nomeou um novo juiz pra executar a pena dos mensaleiros: um filho de tucano cujo pai trabalhou pro Arruda do Mensalão do DEM! Então ficamos assim: descendente do Mensalão do DEM executa penas do mensalão do PT, que exige julgamento do mensalão do PSDB! É muito mensalão! Como diz o chargista Fausto: Imensalão! O País do Imensalão! Rarará!
    E atenção! Papuda News: diz que o Zé Dirceu tem mania de limpeza. Ah, isso tem mesmo! Limpa tudo. Os cofres que o digam! Rarará!
    E diz que o Genoino é hipertenso e o Dirceu é hiperchato! E um leitor mandou perguntar se o Genoino só tem aquela camisa rosa!
    E o Joaquim Barbosa com aquela capa preta tá parecendo o Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros! Rarará! Aquele personagem do filme de Glauber Rocha: "Deus e o Diabo na Terra do Sol".
    É mole? É mole, mas sobe!
    O Brasil é Lúdico! Olha a placa no restaurante Imaculada, centro do Rio: "Eike Batista nunca esteve aqui". Rarará!
    Acho que vou botar essa placa na porta daqui de casa: Eike Batista nunca esteve aqui! Rarará!
    E essa placa no mercado Ver-o-Peso em Belém: "A partí de agora tá proibido nesse local: Vale Tudo (brigas), palavrões, dormir drogado, roubar e mentir. A direção agradece". E se todos obedecerem, o povo brasileiro agradece. Rarará.
    Hoje, só amanhã!
    Nóis sofre, mas nóis goza!
    Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

      João Pereira Coutinho

      folha de são paulo
      O crime de Maquiavel
      Existem muitas situações de trevas em que, em nome do bem comum, o Príncipe tem de cometer males
      Maquiavel: O nome é todo um programa. E "maquiavélico" é adjetivo que dispensa apresentações.
      Quando acusamos alguém de maquiavelismo, não precisamos acrescentar mais nada. O sujeito é imoral, hipócrita, mentiroso, potencialmente violento. Uma mistura de Charles Manson com Hannibal Lecter, digamos. Estaremos a ser injustos com o florentino?
      Estamos, sim, responde Michael Ignatieff. Ponto prévio: Ignatieff, um excelente filósofo, andou uns tempos perdido (ou será iludido?) na política canadense. Liderou o Partido Liberal. Disputou eleições. Perdeu. Como normalmente acontece com os filósofos que flertam com a política e são desiludidos por ela, regressou agora aos livros.
      Em boa hora: na revista "The Atlantic", Ignatieff celebra os 500 anos de "O Príncipe" (escrito em 1513) e oferece uma das mais preciosas explicações para o desconforto que Maquiavel sempre provocou nas gerações posteriores.
      Uma empreitada dessas já tinha sido iniciada por Isaiah Berlin no clássico "The Originality of Machiavelli", que Ignatieff obviamente conhece como biógrafo "oficial" de Berlin.
      No ensaio, Berlin começava por listar as múltiplas interpretações que foram sendo urdidas sobre a obra e o autor ("um manual para gangsters", disse Leo Strauss; "um humanista angustiado", disse Benedetto Croce; "um homem de gênio", disse Hegel).
      E depois, como é usual nos ensaios mais "escolásticos" de Berlin, o próprio acrescentava a sua interpretação a respeito: o que perturba em Maquiavel não é a defesa da dissimulação ou da violência. Ele não foi o primeiro. Não será o último.
      O problema é que Maquiavel mostrou a incompatibilidade absoluta entre duas moralidades distintas na conduta de um político: a moralidade pagã e a moralidade cristã.
      Eis a "originalidade" de Maquiavel: quem deseja ser um bom cristão, cultivando as virtudes típicas do cristianismo (perdão, benevolência, compaixão etc.), o melhor que tem a fazer é afastar-se da política. Essas virtudes são boas em si mesmas (Maquiavel nunca negou isso, ao contrário do que se imagina). Mas elas são boas na vida privada dos indivíduos, não na defesa da comunidade.
      Em política, são as virtudes pagãs (força, disciplina, magnanimidade etc.) que garantem a sobrevivência do Estado.
      Ignatieff aceita o essencial dessa explicação. Mas acrescenta um ponto decisivo que está ausente do ensaio de Berlin e que me parece o mais importante: Maquiavel perturba-nos tanto, 500 anos depois, porque existe em nós a intolerável suspeita de que ele pode ter razão.
      Vivemos em sociedade. Desfrutamos de um mínimo de ordem. Queremos ser poupados ao crime e à violência de forma a perseguir os nossos interesses ou ambições.
      Mas, ao mesmo tempo, recusamos sequer a hipótese de que muitos dos nossos "ganhos civilizacionais" possam ser mantidos por políticos que "sujam as mãos" e não têm insônias com isso.
      Cuidado: não falo de políticos que "sujam as mãos" em proveito próprio. Essa hipótese seria intolerável para um patriota como Maquiavel. Falo de qualquer líder, em qualquer democracia, que muitas vezes usa a dissimulação, a mentira ou a brutalidade para que as insônias não nos perturbem a nós.
      Ignatieff dá um exemplo, apenas um entre mil: o momento em que Barack Obama invadiu o Paquistão para capturar e matar Bin Laden. O que diriam os Evangelhos dessa operação? E o que dizemos nós, ao saber que o mundo tem um terrorista a menos --o mais temível e procurado deles?
      Maquiavel, falando para a Florença do seu tempo, falou também para as Florenças de todos os tempos. E limitou-se a mostrar o "backstage" do nosso teatro cotidiano. No palco, tudo é luz e fantasia. Atrás do palco, existem muitas vezes situações de trevas em que, em nome do bem comum, o Príncipe tem de cometer males inevitáveis.
      No fundo, talvez o problema de "O Príncipe" não esteja no texto propriamente dito, mas no efeito que ele teve sobre a imagem virtuosa que gostamos de cultivar sobre nós próprios.
      Alguém dizia que os seres humanos nunca suportaram demasiada realidade. O crime de Maquiavel, 500 anos depois, foi ter insultado a nossa vaidade com esse excesso de realidade.

      Vladimir Safatle

      folha de são paulo
      Ritmos tortos
      Os eleitores petistas podem não ter razão em tentar canonizar seus antigos líderes envolvidos em escândalos de corrupção, mas têm razão em se indignar com a maneira seletiva, própria à Justiça do Brasil, de tratar os partidos brasileiros. Não é preciso ser petista para reconhecer que algo de estranho acontece quando o partido-alvo não é o PT.
      Por exemplo, uma mutação peculiar ocorre com o ímpeto investigativo e punitivo do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), sr. Joaquim Barbosa, quando o dito escândalo do mensalão passa à sua segunda fase, aquela na qual se conta a incrível história de sua origem nas campanhas tucanas mineiras e que, segundo o próprio deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB-MG), teria também ajudado a encher os cofres da campanha de reeleição do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em 1998.
      Tomado por certa paralisia e horror, é como se nosso presidente do Supremo não pudesse tocar no processo, deixando-o adormecer durante meses, anos, até que os porões do Palácio da Justiça lacrem tudo com o devido silêncio do esquecimento redentor.
      Algo semelhante ocorre com um dos mais impressionantes escândalos de corrupção do Brasil recente, o que envolve o metrô paulistano. O mesmo metrô que se expande na velocidade de um carro subindo a rodovia dos Imigrantes em dia de volta de feriado com chuva.
      Empresas multinacionais julgadas em tribunais suíços e franceses, pedidos de informação vindos da Justiça suíça e inacreditavelmente "esquecidos" por procuradores brasileiros, denúncias feitas por funcionários das empresas envolvidas citando nominalmente toda a cúpula dos tucanos bandeirantes que vão à imprensa apenas para encenar sua indignação por seus anos de dedicação franciscana à política serem jogados no lixo: nada, mas absolutamente nada disso foi capaz de abrir uma reles CPI.
      Uma série de denúncias sobre assalto ao bem público durante quase duas décadas, tão bem fundamentadas que tiveram a força de abrir inquéritos em países europeus, não foi capaz de justificar uma reles CPI na província de São Paulo.
      Ao menos nesse ponto, os eleitores do PT têm razão em não levar a Justiça brasileira a sério. Se o escândalo do metrô fosse com seu partido, meus amigos, vocês poderiam esperar um comportamento bastante distinto da Justiça e de certos setores caninos da imprensa nacional.
      Agora, o próximo passo será um assessor de imprensa tucano mandar uma carta ao Painel do Leitor, neste jornal, tentado fazer, como sempre, o velho jogo da desqualificação "ad hominem". Assim caminha o ritmo torto da indignação brasileira.

        Painel - Vera Magalhães

        folha de são paulo
        Na boca do caixa
        Ricardo Lewandowski, relator no STF do processo sobre a correção das cadernetas de poupança pelos planos econômicos dos anos 80 e 90, quer proferir seu voto na sessão de amanhã. O ministro tem dito que não aceitará pressão do Banco Central e de bancos privados para adiar a decisão. Colegas acham que Lewandowski decidirá a favor dos poupadores. Ministros com a mesma tendência dizem que o cálculo do BC de risco de retração de crédito de R$ 1 trilhão é "terrorista".
        -
        Oficial O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, fará sustentação oral no plenário da corte contra o pagamento da correção. "Temos de superar esses passivos", diz. O governo prevê grande impacto no crédito caso o STF dê ganho aos poupadores.
        Menos dois Luiz Fux e Luís Roberto Barroso podem se declarar impedidos de julgar a ação. A corte está bem dividida sobre a questão.
        Muda tudo Dilma Rousseff resolveu intervir para tirar o Conselhão, instância de diálogo entre o governo e o empresariado, das atribuições da Secretaria de Assuntos Estratégicos e passá-lo para a Casa Civil. Empresários ameaçavam boicotar as reuniões do grupo porque não concordam com a linha de condução de Marcelo Néri.
        Linha direta Um empresário com bom trânsito político conta que, sob condução do titular da SAE, o grupo não enxergava "entusiasmo" do governo com as reuniões do conselho. Ele acredita que Gleisi Hoffmann terá maior capacidade de interlocução com a presidente.
        Vespeiro Dilma resolveu fazer a mudança para sinalizar ao empresariado que está atenta às críticas. Um boicote às reuniões agora agravaria a percepção do mercado de que falta diálogo do governo com o setor produtivo.
        Reação 1 O senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) anuncia hoje em plenário que vai interpelar extra e judicialmente o ex-diretor da Siemens Everton Rheinheimer.
        Reação 2 O tucano também pedirá ao ministro José Eduardo Cardozo (Justiça) esclarecimentos sobre em que se baseia a denúncia de suposto envolvimento dele com o empresário Arthur Teixeira.
        Em casa Roberto Freire deve se encontrar no fim de semana com Eduardo Campos (PSB) em Pernambuco para discutir o apoio do PPS à candidatura presidencial do governador e iniciar conversas sobre acordos estaduais.
        Mapa Em pauta, a aliança do PSB com Geraldo Alckmin (PSDB), defendida por Freire, a união das oposições no Rio e o apoio socialista a Eliziane Gama (PPS) no Maranhão, onde a sigla tende a ir com Flávio Dino (PC do B).
        Paz e amor O PPS também levará a Campos o pedido de "boa convivência" com a candidatura de Aécio Neves (PSDB), rival do governador na disputa pelo Planalto.
        Separação PT e PSD decidiram que, a princípio, caminharão separados na eleição para o governo de Santa Catarina. Dilma, portanto, terá dois palanques no Estado: o do governador Raimundo Colombo (PSD) e o do PT.
        Sintonia Após conversa com Fernando Haddad na semana passada, dirigentes do PR retomaram negociação com o PT para as eleições de 2014 no Estado. O último entrave para apoiar Alexandre Padilha (Saúde) era a relação conflituosa com o prefeito.
        Nos boxes Haddad deixou o autódromo de Interlagos antes do fim do GP Brasil, no domingo, sem entregar o prêmio a Sebastian Vettel, como é a tradição. A aliados, confidenciou temer ser alvo de vaias da torcida.
        TIROTEIO
        "Diante de denúncia pesada de corrupção, o PSDB tenta inverter a apuração e constranger Cade, Polícia Federal e o Ministério da Justiça."
        DO DEPUTADO PAULO TEIXEIRA (PT-SP), sobre PSDB criticar o ministro da Justiça, a PF e o Cade por acusação de pagamento de propina a tucanos.
        CONTRAPONTO
        Pressão da torcida
        O PPS-RJ realizou seu Congresso no último fim de semana, em que tirou uma moção de apoio à candidatura presidencial de Aécio Neves, com a presença do tucano.
        O presidente regional da sigla, deputado estadual Comte Bittencourt, causou alvoroço ao anunciar:
        --Vamos ouvir nosso presidente Roberto Jefferson! --disse, confundindo o deputado federal Roberto Freire com o delator do mensalão.
        Diante das gargalhadas da plateia, um constrangido Bittencourt explicou:
        --Isso é que dá tanto botafoguense em volta da gente!

          Janio de Freitas

          folha de são paulo
          O partido das brechas
          Documento do PT para seu congresso faz afirmações que indicam uma falta de realismo incompreensível
          O PT parece estar vendo com mais nitidez a si mesmo do que às circunstâncias a que estamos todos sujeitos no Brasil. Se o documento básico para as discussões do congresso partidário, em dezembro, reconhece a estagnação do PT, também faz afirmações que indicam uma falta de realismo incompreensível.
          Na opinião talvez mais forte em suas apreciações do Judiciário, por exemplo, a análise acusa-o de ser, ou de estar, "permeado por interesses privados". Qual dos poderes no Brasil não está "permeado por interesses privados"? Ou qual dos governos brasileiros recusou-se a tal condição?
          Sem perder maior tempo com citação a evidências, basta citar, a propósito, as telecomunicações privatizadas no governo Fernando Henrique e elevadas no governo Lula à posição, no mundo, de mais exploradoras dos consumidores. Assim mantidas, aliás, no governo Dilma, com a continuação também do péssimo serviço. Sem problemas por isso. O mesmo para a internet. E como as telecomunicações a permearem o governo e o Congresso, também o sistema bancário, a indústria automobilística, a indústria farmacêutica, os planos de saúde, as empreiteiras de obras públicas, e por aí ao infinito.
          O PT não sabe mais que o Brasil adota o regime capitalista ou esqueceu que, assim sendo, os poderes institucionais estão a serviço da natureza do regime. Mas tal perda da percepção ou da memória favorece, no caso, o entendimento do que se passa com esse partido. O PT não sabe mais que se fez por se propor a aproveitar umas e abrir outras brechas, com ideias e conquistas batalhadas, no regime destinado a "permear-se por interesses privados".
          O atual PT se autoexplica na sua desmemória.
          ALIADOS
          A pauta de julgamentos do Supremo para amanhã prevê a retomada de um caso simbólico. É o da reposição, ou não, das perdas sofridas pelos milhões que acreditaram nas garantias oficiais das cadernetas de poupança, e de repente se viram surripiados por dois planos econômicos no governo Sarney e mais dois no governo Collor. Neste último, um deles foi o sequestro de poupanças e depósitos em conta corrente, que deixou um rastro de desgraças pessoais e empresariais. Mas, por ser Brasil, não levou nenhum dos seus autores para a cadeia.
          O Banco Central e o Ministério da Fazenda são aliados dos bancos, contra as ações de ressarcimento movidas por 400 mil dos poupadores usurpados. O governo se alia aos planos que o PT e Lula chamaram de assalto à poupança do trabalhador e dos donos de pequenos negócios.
          BOA COISA
          Vale a pena apoiar o Bom Senso F.C. É muito bonito esse movimento que os jogadores de futebol fazem com criatividade, por melhorias na direção do seu esporte profissional e, logo será assim, na ética bastante escassa em sua prática. Sentarem-se todos em campo por alguns segundos, iniciarem o jogo como em câmera lenta: atitudes tão passivas e tão expressivas.
          É mais um movimento que nasce e se desenvolve à margem de partidos políticos e de pretensas representações oficiais. E, tudo indica, inatingível pela ação desarticuladora do "black bloc".