domingo, 3 de novembro de 2013

Vinicius Torres Freire

folha de são paulo

Dilma e a malhação de Eike

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É fácil esculhambar o governo. Tão fácil quanto implicar com Dilma Rousseff. Motivos não faltam, do seu método antissintático de discursar às suas ideias econômicas. Desovar o cadáver empresarial de Eike Batista na cozinha da presidente, porém, parece mais difícil.
Essa é uma das ficções mais ou menos sórdidas que a gente ouve a propósito da ruína espalhafatosa das empresas de Batista. Muitos "ricos & famosos" que bajulavam o empresário agora chutam o seu corpo estendido no chão.
A história ao mesmo tempo mais divertida e mais revoltante é a de que a bolha de Batista foi inflada pelo governo e que o empresário "enganou o mercado". Enganou o Pimco? O BlackRock? Ah, coitado desse pessoalzinho, que senta sobre os maiores potes de dinheiro da galáxia.
Sim, quando Batista ainda parecia um tipo belo e faceiro, Dilma Rousseff dizia mimos dele, tais como "nosso padrão, nossa expectativa e orgulho do Brasil quando se trata de um empresário do setor privado", "um tipo especial de empreendedor, que delimita o seu sonho de forma ambiciosa" (sim, rir, rir, rir). A presidente pegava então, abril de 2012, uma carona tardia na adulação de Batista.
O problema sério mesmo, dizem, porém, seria o BNDES, que ajudou a erguer a pirâmide de Batista. Francamente. O BNDES dá mãozinha e mãozona para 90% das cem maiores empresas do Brasil; para 78% das mil maiores. Faz coisa pior. Por exemplo, barateou o capital de fusão & aquisição das empresas quebradas na bandalheira dos derivativos cambiais de 2008, por exemplo.
Não se viu o comentarismo econômico e turma chutando a cabeça dos empresários desses casos.
"Ah, o BNDES emprestou dinheiro para negócio que não deu certo, de risco." Rir, rir, rir. O dia em que o BNDES souber de todos os negócios que darão certo, é melhor fechar o mercado e nomear o banco como gestor perpétuo da perfeita alocação de capital.
"Ah, mas o BNDES é público." Ok. Fechem o banco, então, mas para todo mundo. E proíbam-se quaisquer garantias públicas a negócios privados, "empréstimos de última instância" etc.
Para ser sarcástico, mas não muito, privatizem-se de resto todos os grupos industriais brasileiros, beneficiários de décadas de subsídio (desde os anos 1940, vá lá), os bens dos herdeiros do café, cujo preço desde o começo do século 20 foi bancado por subsídio estatal.
Não pode é ficar com conversinha, indignação seletiva e "escolha dos amigos campeões" no mercado e no empresariado.
De resto, por falar em "risco", o bancão estatal não é criticado por ajudar negócios já por demais estabelecidos? Enfim, a propósito de avaliação de risco, note-se que no mesmo barco do BNDES estavam o BTG, o Itaú e o pessoal animado que comprou US$ 3,6 bilhões de títulos do "senhor X".
"Eike enganou o mercado." Poderia ser, em caso de fraude de balanço ou informações técnicas (embora fosse difícil Batista enganar os mamutes com quem negociava).
Mas não é disso que se trata.
Se o pessoal mercadista que ora samba sobre o caixão do Império X acha mesmo que seja culpa de um Eike "enganar" tantos, por tanto tempo, no topo da finança mundial, talvez seja melhor a gente esquecer essa coisa de mercado, certo?
vinicius torres freire
Vinicius Torres Freire está na Folha desde 1991. Foi Secretário de Redação, editor de 'Dinheiro', 'Opinião', 'Ciência', 'Educação' e correspondente em Paris. Em sua coluna, aborda temas políticos e econômicos. Escreve às terças, quintas e domingos, no caderno 'Mercado'.

Homofobia, até quando? - Moisés Guimarães

O GLOBO - 03/11
À época, os jovens que os atacaram justificaram sua ação dizendo tê-los confundido com um casal gay. A barbárie está para toda a gente

Recentemente aconteceu uma morte que chocou a cidade de Palmas, Tocantins. Um professor de português de 56 anos foi morto a pedradas na saída da escola onde trabalhava. A barbárie de sua morte teve motivação: o professor assumiu ser gay. Infelizmente, o crime ainda não foi esclarecido. Neste contexto, a demora na apresentação dos culpados acena para um problema ainda maior: o fracasso do poder público em garantir o pleno exercício dos direitos humanos no Brasil. A história da morte desse professor que era pai de três filhas nos faz pensar se o brasileiro está sabendo lidar com as questões ligadas à livre manifestação de afetos, também estas, um direito humano. Não é de hoje que o MEC vem tentando apresentar material didático que possa contemplar as carências de abordagem sobre o tema. Os parâmetros curriculares mencionam a necessidade de trabalhar a diversidade sexual nas unidades escolares como tema transversal, mas falta ainda capacitação adequada ao corpo docente.
Alguém ainda se lembra do pai que teve a orelha decepada num rodeio em São Paulo só porque estava abraçado ao seu filho? À época, os jovens que os atacaram justificaram sua ação dizendo tê-los confundido com um casal gay. A barbárie está para toda a gente e por todos os lados! Quem será a próxima vítima?
Vivemos em tempos nos quais a capacidade humana de racionalizar e reagir se mostra condicionada a uma matriz que nos estagna e corrompe. Num contexto onde a revolução digital proporciona ao homem avanços significativos, assistirmos ainda e de forma recorrente casos de homofobia e, muitos deles, sem que a vítima possa se defender; é um retrocesso.
O que falta para que o poder legislativo compreenda a emergência de atuar no combate às mortes por crime de ódio? Os jovens ou adultos que cometeram esse ato de crueldade com o professor tocantinense continuarão no anonimato e serão incentivados por nossa indiferença. Já é hora de o Brasil acordar!
Vergonhoso para um país como o nosso ter em sua gente alguém que julga ser legítimo decidir e executar a morte daqueles que se declaram gays. Já não basta a chacota diária que sofrem todos os efeminados? Faz décadas que Chico Buarque compôs “Geni e o Zepelim” e a pedra lançada contra Geni, destituída de sua força poética, ainda sustenta os que valem pela homofobia e por tantas outras ações preconceituosas. Enquanto negarmos direitos às mulheres, aos negros, aos portadores de necessidades especiais, reconhecer a diversidade sexual como uma questão legítima e humana será uma premissa sempre relegada a segundo plano. Enrijecemos muito nosso olhar e nossa sensibilidade com essa pseudotolerância. O comandante do Zepelim que o diga!
Espero ainda viver num país em que nossas escolas possam ter professores capazes de se assumirem sexualmente sem correrem o risco de serem apedrejados. Que nossas autoridades possam assegurar os direitos de todos, garantindo sua cidadania e dignidade.

Homem cordial assombra biografias - HELOISA STARLING e LILIA MORITZ SCHWARCZ

folha de são paulo
Medos privados em lugares públicos
Homem cordial assombra biografias
HELOISA STARLINGLILIA MORITZ SCHWARCZ
RESUMO "Raízes do Brasil", publicado por Sérgio Buarque de Holanda há quase 80 anos, diagnosticou na cordialidade a rede de relações privadas que comanda a cena pública do país. O homem cordial, símbolo da fluidez entre as duas esferas, reaparece no debate sobre as biografias ao reivindicar para seus desejos o amparo da lei.
No Brasil, a vida privada ocupa ainda hoje o papel de nossa principal referência. A interpretação mais frequente desse fenômeno aposta na ideia de que a ancoragem no privado é sinal de maturidade democrática. O suposto é que essa expansão democrática se sustenta em direitos e, uma vez que os direitos são respeitados, não há motivo para maior preocupação.
Tal abordagem converge com o fortalecimento da ideia do indivíduo como personagem de si mesmo e tem sido recorrente para explicar tanto a importância que atribuímos a certa escrita autorreferencial quanto para sustentar o argumento de que só quem viu, sentiu e experimentou pode registrar a verdade dos fatos vividos.
Visto pela perspectiva do mundo privado, cada um de nós seria, ao mesmo tempo, autor e editor de uma escrita de si: apenas o indivíduo --e sua memória-- seria capaz de ordenar, rearranjar e significar o trajeto de uma vida no suporte de um texto e disso criar uma narrativa; e apenas ele, que conhece a autenticidade de suas ações e emoções, estaria autorizado a expressá-las para si e para os demais.
Contudo entre as quatro paredes da vida privada se perde muito. Refugiados na intimidade, os indivíduos desfrutam o privilégio de ter seu pequeno mundo só para si; mas falta-lhes uma forma específica de convivência que se define pela presença do outro e pela possibilidade de ser confrontado com suas opiniões. E porque lhes falta, acima de tudo, a liberdade do falar uns com os outros e uns contra os outros, uma única versão acaba por servir como padrão de verdade, seja para medir a própria vida, seja para pensar a sociedade ou narrar a história do país.
Foi preciso um jovem modernista, indeciso entre a crítica literária e a historiografia, escrevendo sob o impacto das transformações da Era Vargas, para argumentar que, no Brasil, a complexa rede de relações pessoais e privadas comanda a sociabilidade dos brasileiros na cena pública. Mais do que isso: esse comando não traduz a potencialidade de uma esfera privada bem definida; ao contrário, torna evidente que, entre nós, público e privado nunca existiram plenamente; ou melhor, variam em função da situação, do contexto, do status e até do momento.
Em fins de 1930, esse jovem modernista, Sérgio Buarque de Holanda, então com 28 anos, voltou ao Brasil, depois de uma temporada na Alemanha enviando reportagens para "O Jornal".
Em Berlim, Sérgio acompanhou a agitação política da República de Weimar e o crescimento do partido nacional-socialista, assistiu sem nenhuma regularidade a aulas de história na universidade, traduziu legendas de filmes para ganhar uns trocados --entre eles "O Anjo Azul", de Sternberg, com Marlene Dietrich-- e caiu na farra. Não se sabe bem como, ainda arrumou tempo para escrever: trouxe, na mala, o esboço de um ensaio intitulado "Teoria da América", com cerca de 400 páginas manuscritas.
O ensaio sobreviveu, mas alterado pelo impacto da modernização do país nos anos 30, trocou de enfoque e foi publicado como livro, em 1936. "Raízes do Brasil", o livro, nasceu cercado de mal-entendidos e de muita polêmica e se transformou numa obra decisiva de interpretação histórica e de análise sobre os dilemas irresolutos da formação social brasileira.
CORDIALIDADE Quase 80 anos depois, "Raízes do Brasil" ainda oferece um instrumental crítico para entender o país. O livro diagnostica na cordialidade o traço definidor da nossa cultura e, no seu agente mais famoso --o homem cordial--, um risco para a construção da vida democrática.
Dominado pelo coração, mobilizado pelo fundo emotivo de seus afetos, o homem cordial é uma anomalia política por sua particular compreensão do mundo público, contaminada, desde o início, pela compulsão que ele sente de estender seus direitos individuais sobre esse mundo, fazendo dele um mero apêndice, o prolongamento de seus interesses particulares e de suas relações pessoais.
Habituado a transpor quase naturalmente a lógica do mundo privado à cena pública, o homem cordial é um personagem inquietante: ele só consegue viver em uma "pólis" caricata, que se coloca a serviço da proteção narcísica dos cidadãos e se mantém desperta por conta do imediatismo emocional de seus membros.
"Raízes do Brasil" traz um alerta contra o apego aos "valores da personalidade" cultivados pelo homem cordial e contra a maneira como esses valores incidem sobre as diversas instâncias do Estado, dos partidos políticos, das instituições do mundo público.
Essa insistência na manutenção de práticas próprias ao privado sobre o que é comum a todos quem sabe signifique dar continuidade a certa forma de sociabilidade da escravidão que sobreviveu alterada no clientelismo rural e resistiu à urbanização, quando a classificação hierárquica manteve-se sustentada por fortes laços pessoais. Seria a cordialidade, talvez, a singularidade da nossa colonização ibérica, marcada por vínculos pessoais, que tornam fluidas delimitações e diferenças entre esferas públicas e privadas de atuação.
Essa fluidez impede ao homem cordial adquirir a necessária condição de abstração para sustentar a ideia de que a democracia não é só um regime político mas uma forma de sociedade, cujo princípio normativo está na noção de que pessoas obrigadas a obedecer às leis devem ter igual direito, a despeito das diferenças entre elas.
A mesma fluidez o impede de aceitar o catálogo republicano das liberdades irredutíveis e o leva a relativizar as diferenças que separam sua cena privada e o mundo público, para assegurar seus interesses particulares, solicitar privilégios e prover a censura.
BIOGRAFIAS Com tudo isso, Sérgio Buarque talvez se espantasse com a maneira como o homem cordial reapareceu na agenda do dia, disposto a marcar o debate sobre o tema das biografias e a reivindicar para suas demandas e desejos individuais o amparo da lei.
Naturalmente, seus pontos de vista são emanados diretamente do mundo privado: o papel de vítima assumido pelo homem cordial no debate não deixa de ser uma escolha vantajosa. A perpetuação desse papel mantém os termos imaginários de uma injustiça cometida entre indivíduos; já o desejo de compensação, sobretudo monetária, não busca a transformação das condições que produziram o prejuízo, mas a garantia de que ele possa beneficiar-se dessas condições, sempre como vítima.
Com um ponto de vista vindo da privacidade, o homem cordial defende ser mais seguro para todos aceitar a premissa de que existe uma oposição entre o mundo público e a vida privada e que essa oposição equivale à diferença entre o que deve ser conhecido e o que deve ser ocultado. A premissa é mais do que duvidosa.
As duas esferas --o espaço íntimo, o mundo comum-- somente podem subsistir sob a forma de coexistência. Mais do que isso: a definição do público e do privado é, na verdade, o desenho de uma fronteira dentro da qual se abrigam, conectam e se desenrolam dimensões diferentes de nossas vidas. Privado e público só se definem um em relação ao outro.
Não é difícil perceber, dentro dessa fronteira, os modos como se flexiona o privado. Historiadoras que somos, vamos a um exemplo retirado da nossa história.
Um rei sabidamente, e até hoje, não tem escapatória: sabe que é sempre, e desde que nasce, figura pública. Seu casamento é um contrato de Estado; sua morte é sempre anunciada por uma nova vida; os filhos são antes de mais nada herdeiros; e seus diários íntimos não passam de peças públicas.
Pedro 2º, por exemplo, ciente de sua condição, guardou para si o que queria preservar e permitiu a exposição, e até utilizou-se dela, quando devia e queria. Ele era visto por todos, todos falavam dele e nem sempre falavam bem. A sátira da época fez de Pedro 2º objeto permanente: suas pernas finas, sua voz estridente, aguda demais para sua altura, maior do que a da média dos brasileiros, tudo foi motivo para chacota de cartunistas como Angelo Agostini.
E o que dizer do chargista Raphael Bordallo Pinheiro? O português, pouco após a espinhosa promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, publicou uma brochura em que ridicularizava a mania de movimento do imperador (que não parava de viajar) e debochava da lei polêmica: "No Razilb, seu rei é tão bom que libertou os filhos na barriga (mas não as mães, que por certo não ficaram nada satisfeitas)".
Não se trata de apresentar um personagem excepcional; d. Pedro apenas sabia que algumas pessoas --como os monarcas, os artistas, os cientistas, as celebridades, os políticos-- têm um pacto com o público. Só é rei quem não perde a realeza; sejam reis monarcas, reis do futebol, reis momos do Carnaval e reis da canção.
Uma biografia é a evidência mais elementar da profunda conexão entre as esferas pública e privada --somente quando estão articuladas essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre.
Escrever sobre uma vida implica interrogar o que os episódios de um destino pessoal têm a dizer sobre as coisas públicas, sobre o mundo e o tempo em que vivemos. E a tarefa de julgar, dizia Hannah Arendt, não é prerrogativa do biógrafo nem do biografado: é privilégio dos outros. Na composição da biografia cabem os grandes tipos, os homens públicos, as celebridades; cabem igualmente personagens miúdos, quase anônimos. Em todos os casos, porém, não cabe tarefa fácil: é muito difícil reconstituir o tempo que inspirou o gesto.
É preciso calçar os sapatos do morto, na definição preciosa de Evaldo Cabral, para penetrar num tempo que não é o seu, abrir portas que não lhe pertencem, sentir com sentimentos de outras pessoas e tentar compreender a trajetória de uma vida no tempo que lhe foi dado viver; as intervenções que protagonizou no mundo público de sua época com os recursos de que dispunha; a disposição de viver segundo as exigências desse tempo, e não de acordo com as exigências do nosso tempo.
O historiador anda sempre às voltas com a linha difusa entre resgatar a experiência dos que viveram os fatos, reconhecer nessa experiência seu caráter quebradiço e inconcluso, interpelar seu sentido. Por isso, a biografia é um gênero da historiografia e é essencial para compreendermos os brasileiros que fomos e os que deveríamos ou poderíamos ser. Essa história é pública e ao público pertence.

Mil vezes obrigado, Lou Reed - Fabio Massari

folha de são paulo
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Mil vezes obrigado, Lou Reed
Rio de Janeiro, 1996
FABIO MASSARIÉ bem possível que, de muitas entrevistas difíceis que tive, a que tentei fazer com Lou Reed seja a pior e a mais famosa.
Nesse momento de absoluta tristeza (alguém tinha pensado que um cara como Lou Reed podia simplesmente morrer?), quando a parte da nossa vida trilhada por sua música passa acelerada diante dos nossos olhos marejados de blues, me parece oportuno, diria inescapável, revisitar esse encontro e, de algum jeito, promover uma espécie de acerto de contas.
Não me entenda mal, leitor: essa entrevista televisiva (para a MTV Brasil) com o músico nova-iorquino, que aconteceu em setembro de 1996, às vésperas de suas primeiras apresentações no Brasil (The Hooky Wooky Tour), não deu mesmo bom resultado jornalístico.
Imagino que nem o mais hábil dos editores teria sido capaz de salvar o material e se virar com a dinâmica trincada, com a eloquência quase sombria da nossa conversa. E é bom que tenha sido assim: o clima instável, as dificuldades específicas desse encontro acabam por validá-lo: não queria que tivesse sido de outro jeito.
Tudo ia bem no começo. Depois das rápidas formalidades de apresentação, nos instalamos no set armado à beira da piscina do hotel Sheraton, no Rio de Janeiro. Tudo testado e pronto para a ação.
Como eu tinha acabado de assistir a uma bela apresentação no festival suíço Paleo, em boa parte da área próxima ao palco reservada aos fotógrafos, arrisquei de cara umas considerações impressionistas sobre sua relação com o público, sobre a cumplicidade que ele conseguia estabelecer nessas ocasiões grandiosas. Pareceu agradar. Apesar da sisudez, pensei que tudo estava tranquilo e que teríamos uma boa conversa.
Mas aí veio a ruptura. Percebi na hora o vacilo que alterou inelutavelmente o andamento dos trabalhos: a pergunta sobre as biografias, ou melhor, a pergunta com referência pontual a uma biografia e ainda uma certa insistência no assunto das biografias e a ele, Lou Reed, como biografado. Mea culpa, mea velvetiana culpa!
Não tinha mais volta. Foi mínima a alteração em sua linguagem corporal: intensificou-se apenas o movimento sinistro de alisar o curativo que exibia sobre as veias do braço esquerdo. Mas o olhar"¦ O que era intenso e mirava bem no alvo dos meus olhos desde o início transformou-se num objeto perfurocortante e me atravessou como uma flecha. Ou, mais de acordo, como uma espada de samurai.
Fui em frente, deixando claro que acusara o golpe, reconhecia, e até falamos mais um tempinho: Zappa, guitarras, o legado. Mas realmente já era. Senhor do tempo, Lou Reed devolveu a cada duas perguntas um monossílabo --técnica para lá de pragmática de enxugamento das atividades, basicamente porque, para o entrevistador, cada segundo passa a valer por uma eternidade e meia e, nessas horas, o que você mais quer é que tudo acabe logo.
Encerramos com um forte aperto de mão e nos despedimos.
Passados alguns minutos, enquanto eu e a equipe nos preparávamos para bater em retirada, vi Lou caminhar em minha direção.
Com um leve cutucão no ombro e algo parecido com um sorriso, puxou conversa. Foi logo explicando, por linhas nada tortas, o motivo do mau humor: detestava biografias. Ironicamente, ele me fez perceber que eu devia saber da sua insatisfação pesada e declarada. Eu sabia e sei, Lou. Só pode ter sido o tal do "imponderável" das entrevistas que resolveu se meter no meu caminho.
Proseamos por mais alguns instantes e, antes de ir embora, Lou viu, entre as minhas coisas desarrumadas, um CD do maravilhoso "Berlin". O disco estava ali para o caso de surgir um clima bom para um autógrafo. Ele então pegou o CD, disse que era um de seus prediletos e escreveu uma dedicatória. Comentei algo sobre as criancinhas chorando no álbum, e ele sorriu antes de partir. Na capa, escreveu "thanks!". Eu respondo: mil vezes obrigado, Lou Reed.
P.S.: Em defesa da empreitada televisiva, registro que colocamos a entrevista no ar quase em estado bruto --a sabedoria minimalista do mestre e o sofrimento do entrevistador, sem maquiagem.

    O autodidata que rasgava livros ruins - SILVIA BITTENCOURT

    folha de são paulo
    DIÁRIO DE BERLIM
    O MAPA DA CULTURA
    Adeus a um crítico furioso
    O autodidata que rasgava livros ruins
    SILVIA BITTENCOURTA ALEMANHA perdeu Marcel Reich-Ranicki, 93, o seu maior crítico literário. Ele foi chefe do caderno cultural do jornal "Frankfurter Allgemeine Zeitung" (FAZ), estrela do programa televisivo "Das Literarische Quartett" (quarteto literário) e editor do cânone da literatura alemã.
    Reich-Ranicki popularizou a crítica de livros na Alemanha com seu jeito claro e direto de falar e escrever. Seus textos eram oásis dentro do empolado jornal alemão. Dizia que a função da crítica era animar o público para a literatura.
    Judeu nascido na Polônia, passou sua juventude em Berlim, onde logo descobriu sua paixão pela literatura alemã. Frente à perseguição nazista, porém, foi obrigado a deixar a cidade em 1938. Passou cinco anos no gueto de Varsóvia --experiência narrada na autobiografia "Mein Leben" (minha vida, de 1999), que vendeu mais de 1 milhão de exemplares.
    Costumava lembrar que nunca fizera um curso universitário. Proibido pelos nazistas de estudar, foi um autodidata. Suas críticas eram afiadas e temidas. Entrou em conflito até mesmo com monstros sagrados da literatura alemã, como Martin Walser e Günter Grass.
    Famosa é a capa da revista "Spiegel", de agosto de 1995, na qual uma fotomontagem mostra um Reich-Ranicki colérico, rasgando ao meio o livro de Grass "Um Campo Vasto" (publicado no Brasil pela Record). Chamou-o na ocasião de "prosa sem valor, monótona e ilegível".
    JUBILEU
    A editora Steidl está comemorando os 50 anos de "Anos de Cão", de Günter Grass, Nobel em 1999. O livro faz parte da sua chamada "Trilogia de Danzig", que também reúne "O Tambor", publicado originalmente em 1959, e "Gato e Rato" (1961).
    "Anos de Cão" conta a história do século 20 a partir da perspectiva de três narradores. O "leitmotiv" é um cachorro, Pluto, o pastor alemão de Hitler. E o palco é Danzig, a cidade natal de Grass (hoje Gdansk, na Polônia).
    Grass diz considerar esta obra "mais rica" do ponto de vista estilístico e literário do que o romance "O Tambor", que acabou se tornando mais famoso por causa do filme de Volker Schlöndorff, premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1980.
    Além de lançar uma edição comemorativa de "Anos de Cão", encadernada em tecido e trazendo 130 gravuras feitas pelo próprio autor, a Steidl também está preparando uma exposição para o final de novembro, em Lübeck, cidade atual de Grass. Ali está localizada a Günter-Grass-Haus (www.grass-haus.de), um museu com seus desenhos, esculturas e os originais de sua obra literária.
    PRÊMIO
    A escritora húngaro-alemã Térezia Mora, de Berlim, acaba de ganhar o mais importante prêmio literário da Alemanha, o da Bolsa do Comércio de Livros. Sua obra "Das Ungeheuer" (O Monstro) foi considerada o melhor romance do ano.
    Parte do livro lembra um "road movie". Traz a história de Darius Kopp, que depois de meses trancafiado num apartamento sai à procura de um lugar para jogar as cinzas da mulher, Flora, que se suicidou.
    A narrativa tem uma forma original. Uma linha horizontal corre ao longo do romance de quase 700 páginas: acima da linha, um narrador conta a busca feita por Darius Kopp e como ele descobre o diário de Flora; embaixo estão as anotações de Flora, apontando para a depressão que devorava a mulher.
    GOETHE
    Um livro de 750 páginas está na lista de best-sellers na Alemanha: a biografia "Goethe "" Kunstwerk des Lebens" ( a vida como obra de arte), de Rüdiger Safranski.
    O título já indica que essa biografia se centra menos nos livros e mais na vida intensa de Goethe (1749-1832), autor de "Fausto" e "Os Sofrimentos do Jovem Werther", entre muitas outras obras: a infância em Frankfurt, os estudos em Leipzig e Estrasburgo, a ida para Weimar, a temporada na Itália.
    "Ele não foi apenas um grande escritor mas também um mestre da vida", diz Safranski, que vem apresentando sua obra pelo país.
    Queridinho das mulheres, Goethe vivia apaixonado. Circulava entre políticos, artistas e cientistas. Até Napoleão Bonaparte recebeu-o para um café da manhã, em outubro de 1808.
    Safranski é um dos maiores biógrafos da Alemanha. Também retratou Schopenhauer, Nietzsche, E.T.A. Hoffmann e Schiller.

      Cachorro também é ser humano - Gregory Berns

      folha de são paulo
      As emoções caninas postas em exame
      GREGORY BERNSTRADUÇÃO CLARA ALLAINRESUMO Exames de ressonância magnética atestam semelhanças entre cães e humanos quanto ao funcionamento do caudado, região cerebral que reconhece o prazer. A constatação de emoções parecidas leva pesquisador a defender que animais têm uma "humanidade" limitada e que deveríamos rever o tratamento dado a eles.
      Há dois anos meus colegas e eu treinamos cães para ficarem num aparelho de ressonância magnética --totalmente despertos e sem estarem amarrados ou presos de nenhuma forma. Nossa meta é determinar como funcionam os cérebros dos cães e, o que é ainda mais importante, o que eles pensam de nós, humanos.
      Agora, depois de treinar e fazer exames de ressonância magnética em uma dúzia de cães, minha única conclusão inescapável é esta: os cães também são pessoas.
      Como os cães não falam, os cientistas deduzem seus pensamentos a partir de observações comportamentais. É arriscado. Não é possível perguntar a um cão por que ele faz alguma coisa. E não é possível lhe perguntar como se sente.
      A possibilidade de trazer à tona emoções animais assusta muitos cientistas. Afinal, a utilização de animais em pesquisas é um grande negócio. Era fácil evitar as perguntas difíceis sobre as percepções sensoriais e as emoções dos animais, porque essas perguntas não tinham resposta possível.
      Até agora.
      Com o exame direto dos cérebros dos animais, passando ao largo das limitações do behaviorismo, a ressonância magnética nos revela o estado interno dos cães. O exame é realizado em espaços confinados e ruidosos. As pessoas não gostam do procedimento, durante o qual é preciso ficar totalmente imóvel.
      A prática veterinária convencional reza que é preciso anestesiar animais para que não se movam enquanto passam pela ressonância. Mas não é possível estudar a função cerebral de um animal anestesiado --ao menos não quanto a elementos interessantes como percepção ou emoção.
      Desde o início, tratamos os cães como pessoas. O dono de cada cão assinava um termo de consentimento baseado no modelo usado para procedimentos em crianças. Ressaltávamos que a participação era voluntária e que o cão tinha o direito de abandonar o estudo.
      Usamos apenas métodos de treinamento positivos. Nada de sedação ou cintos. Se o cachorro não quisesse ficar no aparelho de ressonância, podia sair, como qualquer voluntário humano.
      Minha cadela Callie foi a primeira. Resgatada de um abrigo de animais, Callie era uma cadela magra, mista de terrier, uma raça conhecida como "feist" --independente, corajosa-- nos Apalaches, a região do leste dos EUA de onde ela vem.
      Fiel às suas origens, Callie preferia caçar esquilos e coelhos no quintal a ficar aconchegada no meu colo. Sua curiosidade natural provavelmente foi o motivo para ela ter ido parar num abrigo, mas também o que fazia fácil treiná-la.
      Com a ajuda de meu amigo Mark Spivak, treinador de cães, comecei a ensinar Callie a entrar num simulador de aparelho de ressonância magnética que construí na sala de minha casa. Callie aprendeu a subir degraus e a entrar num tubo, a colocar sua cabeça sobre um apoio de queixo e a ficar totalmente imóvel por períodos de até 30 segundos. Também precisou aprender a usar protetores de orelhas para resguardar sua audição dos ruídos de 95 decibéis feitos pelo aparelho.
      Após meses de treinamento, algumas tentativas e erros no aparelho de ressonância real, fomos recompensados com os primeiros mapas de atividade cerebral.
      Nos primeiros ensaios, medimos sua resposta cerebral a dois sinais feitos com as mãos no aparelho. Nos ensaios posteriores, ainda não publicados, determinamos que regiões do cérebro dela distinguem cheiros de cães e humanos conhecidos e desconhecidos.
      Em pouco tempo a comunidade ficou sabendo de nosso esforço para determinar o que os cachorros pensam. Em um ano tínhamos reunido uma equipe de uma dúzia de cães preparados para fazer ressonância magnética.
      SEMELHANÇA Estamos apenas começando a responder às perguntas básicas sobre o cérebro canino, mas não podemos ignorar a semelhança notável entre cães e humanos na estrutura e no funcionamento de uma região cerebral chave: o núcleo caudado.
      Rico em receptores de dopamina, o caudado se localiza entre o tronco encefálico e o córtex. Nos humanos, desempenha papel crucial na antecipação de coisas que nos dão prazer, como comida, amor e dinheiro.
      Mas será que podemos virar essa associação de trás para diante e deduzir o que uma pessoa está pensando pela simples medição da atividade do caudado?
      Devido à enorme complexidade das interligações entre as diferentes partes do cérebro, geralmente não é possível associar uma função cognitiva ou emoção isolada a uma única região cerebral.
      É possível, porém, que o caudado represente uma exceção. Partes específicas do caudado se destacam porque, diante de um grande número de coisas que dão prazer aos humanos, elas se ativam de forma consistente. A ativação do caudado, sob as circunstâncias apropriadas, é capaz de prever nossas preferências de comida, música e até mesmo beleza.
      No caso dos cães, descobrimos que a atividade no caudado aumentava em resposta a sinais das mãos que indicavam comida. O caudado também se ativava diante do cheiro de humanos conhecidos.
      Em ensaios preliminares, ele se ativava diante do retorno do dono que tivesse momentaneamente saído das vistas do animal. Essas descobertas provam que os cachorros nos amam?
      Não exatamente, mas muitas das mesmas coisas que ativam o caudado humano, coisas associadas a emoções positivas, também ativam o caudado canino. Os neurocientistas chamam a isso homologia funcional, e pode constituir um indicativo de emoções caninas.
      A capacidade de sentir emoções positivas, como amor e apego, significaria que os cães possuem um nível de percepção sensorial comparável ao de uma criança.
      Por muito tempo, cães foram tratados como propriedade humana. Embora leis estaduais e a Lei do Bem-Estar Animal, de 1966, tenham exigido que se destine um tratamento melhor aos bichos, elas consolidaram a visão de que os animais são coisas --objetos dos quais se poderia dispor, desde que tomado o cuidado razoável para minimizar seu sofrimento.
      Mas agora, ao usar a ressonância magnética para afastar as limitações do behaviorismo, não podemos mais fazer vista grossa para as evidências. Os cães, e provavelmente muitos outros animais também (especialmente os primatas com parentesco mais estreito conosco), parecem ter emoções, exatamente como nós temos. Isso significa que precisamos rever o tratamento que damos a eles.
      HUMANIDADE Uma opção é reconhecer uma espécie de "humanidade" limitada dos animais que demonstram evidências neurobiológicas de emoções positivas. Muitos grupos de resgate já usam esse rótulo de "guardião" para descrever os humanos que cuidam de animais, vinculando o humano a seu protegido por meio da responsabilidade implícita de cuidar dele.
      Aquele que deixe de atuar como bom guardião corre o risco de ter seu cão encaminhado para outro protetor. Mas não existem leis que tratem animais como pupilos ou protegidos, de modo que os diferentes grupos de resgate que operam segundo o modelo da guarda carecem de bases legais para proteger os interesses dos animais.
      Se déssemos mais um passo adiante e concedêssemos aos cães os direitos que acompanham a condição humana, eles ganhariam proteção adicional contra a exploração.
      A criação de cães sob condições desumanas para finalidade de lucro rápido, o uso de cães em laboratórios e as corridas de cães seriam proibidos, pois violariam os direitos básicos de autodeterminação de uma pessoa.
      Creio que a sociedade ainda está a muitos anos de distância de considerar cães como pessoas. Contudo decisões recentes da Suprema Corte levaram em conta descobertas da ciência neurológica que abrem essa possibilidade.
      Em dois casos, o tribunal decidiu que infratores menores de idade não poderiam ser sentenciados à prisão perpétua sem a possibilidade de liberdade condicional. Em suas decisões, a corte citou evidências obtidas em exames de imagem cerebral a fim de atestar que o cérebro humano não está maduro na adolescência.
      Embora esses exemplos não guardem relação com a percepção sensorial dos cães, os juízes abriram a porta para o recurso à neurociência nos tribunais. Quem sabe um dia vejamos um caso judicial em que os direitos de um cão sejam defendidos com base em exames de imagem cerebral.

        Os mitos da caverna - Alexandre Rodriques

        folha de são paulo
        Os mitos da caverna
        Uma espiadinha na reclusão de Salinger & Co.
        ALEXANDRE RODRIGUES
        RESUMO A reclusão tem sido um estilo de vida abraçado ao longo do tempo por grandes escritores, do japonês Saigyo Hoshi, no século 12, ao brasileiro Rubem Fonseca. Biografia de J.D. Salinger e novo romance de Thomas Pynchon lançam luz na vida e obra dos escritores, dois dos mais folclóricos eremitas do mundo das letras.
        Recluso mesmo era Saigyo Hoshi (1118-90). Patriarca da literatura reclusa, movimento que prosperou no Japão medieval, o soldado que largou a farda aos 22 anos e foi escrever poemas no campo acreditava que o escritor devia viver em isolamento para refletir sobre as restrições da vida normal nas cidades e sobre a natureza.
        De maneira menos radical, a tradição sobreviveu como a opção de alguns gigantes da literatura depois da fama. A poeta americana Emily Dickinson (1830-86) passou seus últimos 20 anos em casa. O francês Marcel Proust (1871-1922) não só ficou 13 anos isolado, tempo em que escreveu "Em Busca do Tempo Perdido", como nos últimos três nem sequer saiu do quarto.
        Entre os brasileiros, Dalton Trevisan, Raduan Nassar e Rubem Fonseca --este prestes a pôr na praça seu 28º título, "Amálgama", pela Nova Fronteira-- vivem quase no anonimato. Mas é provavelmente na percepção da obra de dois norte-americanos que a imagem eremítica mais colou. Ao falar de J. D. Salinger (1919-2010) e Thomas Pynchon, parece quase impossível dispensar o aposto "recluso" e suas variantes.
        Os lançamentos de "Salinger" [Simon & Schuster, 720 págs., R$ 87], biografia do autor de "O Apanhador no Campo de Centeio", e "Bleeding Edge" [Penguin, 478 págs., R$ 88,10], novo romance de Pynchon, deixam em evidência os dois ermitões. Salinger viveu 55 anos isolado do mundo. Pynchon vai além: há 60 anos não é fotografado e por mais de uma década duvidou-se até de sua existência.
        Não é surpresa que o isolamento seja o fio condutor de "Salinger", biografia assinada pelo escritor David Shields e pelo roteirista Shane Salerno, diretor do documentário de mesmo nome que estreou nos EUA em setembro. Filme --que deve virar cinebiografia com atores-- e livro --a sair no Brasil em janeiro, pela Intrínseca-- se completam num conjunto multimídia que vem irritando fãs do autor pelo foco em sua vida pessoal.
        Nascido em 1919, filho de um judeu e de uma católica convertida ao judaísmo, criado na classe média de Nova York, Jerome David era mais um autor jovem e promissor quando os japoneses atacaram a base de Pearl Harbor, em 1941.
        Decidiu se alistar no Exército e acabou na linha de frente do desembarque das tropas aliadas na Normandia no Dia D, 6 de junho de 1944. Tomou parte de outras batalhas importantes e presenciou a libertação do campo de concentração de Dachau, na Alemanha. Terminou o conflito internado em um hospital psiquiátrico com transtorno de estresse pós-traumático.
        Seus contos, até então algo frívolos, passaram a refletir o vazio dos jovens que chegaram pós-Guerra. Publicada pela revista "New Yorker" em 1948, a história "Um Dia Ideal para os Peixes-Banana", cujo personagem principal, Seymour Glass, era um traumatizado de guerra, fez com que o escritor fosse visto como a voz de sua geração.
        Seu único romance, "O Apanhador no Campo de Centeio", o transformaria de autor "cult" em celebridade. Lançado em 1951, o livro, um libelo contra o sistema protagonizado pelo adolescente rebelde Holden Caulfield, já vendeu mais de 65 milhões de cópias e influenciou multidões: de escritores como Tom Wolfe, que dá depoimento no filme e no livro, a figuras como Mark Chapman, o assassino de John Lennon, preso na cena do crime com um exemplar do romance.
        PASSATEMPO O Brasil não ficou incólume à rebeldia de Holden. Fãs do livro, três jovens resolveram traduzi-lo como passatempo. A versão foi publicada em 1965 pela Editora do Autor, de Fernando Sabino, Rubem Braga e Walter Acosta, este ainda hoje à frente da casa.
        Por pouco, o livro não foi batizado "A Sentinela do Abismo". "Eu e meus cotradutores (Alvaro Alencar e Antonio Rocha) achamos que não ia funcionar no Brasil a tradução literal de The Catcher in the Rye'", recorda Jorio Dauster. Da agente de Salinger, porém, chegou a ordem: nada de mexer no título.
        "Como nessa época já era impossível ter contato direto com o eremita de New Hampshire, fomos obrigados a ceder. Anos mais tarde, descobri os desatinos que tinham sido cometidos com o título --por exemplo, Uma Agulha no Palheiro', em Portugal, e El Cazador Oculto', na Espanha-- e dei toda razão ao Salinger", diz.
        Mas, se a história de Holden Caulfield cativava leitores e fez do escritor um homem rico, a invasão de sua vida pessoal logo começou a perturbá-lo. Salinger ainda lançaria três livros, mas em 1955 deixou Nova York, iniciando seu exílio na pequena cidade de Cornish. A partir de 1965, quando publicou na "New Yorker" o conto "Hapworth 16, 1924", fez-se seu silêncio.
        Shields e Salerno garantem ter as respostas para o que aconteceu.
        Mas boa parte das alegadas revelações não é propriamente novidade. Biografias como "Em Busca de J. D. Salinger", do inglês Ian Hamilton (processado pelo escritor), e os livros de Margaret Salinger, sua filha, e da romancista Joyce Maynard, sua ex-paquera, já diziam que ele se dedicara à filosofia religiosa vedanta, só comia alimentos crus e vivia amargurado pelas lembranças da guerra.
        O que "Salinger" conta de novo é que, ao contrário das lendas, ele não era propriamente um malucão solitário. Frequentava cafés, se relacionava com os vizinhos, ia ao cinema, tinha amigos. E escrevia. Uma "revelação" importante, ainda a confirmar, é de que ele teria deixado cinco livros prontos, a serem publicados entre 2015 e 2020.
        Em termos literários, pouco há a acrescentar. A preferência é por informações que beiram a fofoca, com espaço até para uma especulação sobre o fato de que o escritor teria apenas um testículo.
        Houve críticas e os autores responderam. "Meu objetivo não é derrubar Salinger, mas mostrar as fontes (de inspiração) horríveis da arte e os custos sem fim de uma guerra sem fim", defendeu-se Shane Salerno, em um artigo para a "Esquire". "Ele não era um deus. Era só um homem. Esse é o ponto."
        PSEUDÔNIMO Como Salinger, Thomas Pynchon evita a imprensa. Sabe-se que nasceu em 1937, serviu a Marinha e estudou na Universidade de Cornell. Suas poucas fotos conhecidas, mostrando um garoto dentuço, foram feitas há décadas. Por muito tempo não se sabia onde vivia e cogitou-se até que Thomas Pynchon seria um pseudônimo adotado por J. D. Salinger.
        Hoje sabe-se que ele mora em Nova York e é casado com a própria agente, Melanie Jackson, com quem tem um filho. À falta de detalhes pessoais, os livros têm sido a chave para sua visão do mundo.
        Sua obra pode ser dividida entre romances curtos com trama mais ou menos definida e protagonistas claros, caso de "V.", "Vineland" e "Vício Inerente", e os caudalosos e experimentais, cheios de camadas, como os catataus "O Arco-íris da Gravidade" e "Contra o Dia".
        "V." (1963), seu primeiro romance, trazia elementos que se tornariam sua marca: ironia, humor negro, sociedades secretas, enciclopedismo, citações obscuras e personagens de nomes esquisitos. Dez anos depois, com "O Arco-Íris da Gravidade", primeiro grande romance moderno sobre a paranoia, Pynchon foi reconhecido como um mestre.
        Apesar de ele ser considerado hermético, seus leitores respondem com adoração. Os mais dedicados criaram na internet um banco de dados(pynchonwiki.com).
        "Pynchon é um dos grandes nomes da ficção norte-americana do final do século 20", opina Paulo Henriques Britto, um de seus tradutores no Brasil. "A maneira como ele incorpora elementos da baixa cultura e os combina com uma técnica sofisticada permanece única."
        "Bleeding Edge", nono livro do autor, atualiza temas caros a ele, tendo ao fundo o mais importante evento do século até agora: o 11 de Setembro. A protagonista do romance, Maxine Tarnow, uma examinadora de fraudes, descobre, ao investigar o empresário de tecnologia Gabriel Ice, que o atentado às Torres Gêmeas não tem a ver com fundamentalismo, mas com uma conspiração envolvendo geeks, hackers e a máfia russa.
        As tramas paralelas típicas de Pynchon estão de volta. Seu temor quanto aos poderes da tecnologia também --aqui dirigido contra a internet. Lançado nos EUA em setembro e sem previsão de publicação no Brasil, "Bleeding Edge" tem sido saudado como um dos melhores livros do autor e foi indicado ao National Book Award.
        "O recluso tende a ser cada vez mais uma figura de exceção com a incorporação da literatura no circuito das celebridades, com os festivais literários e demais nexos com o mundo do entretenimento massivo", opina Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A internet, porém, embaralhou o conceito de recolhimento: "O autor pode viver num isolamento físico e manter-se conectado".
        Nos últimos anos, Pynchon tem se tornado mais visível.
        Rompeu o silêncio em 2006 com uma carta de apoio ao inglês Ian McEwan, acusado de plágio no romance "Reparação". Chegou a fazer duas "aparições" na série de TV "Os Simpsons", ambas com um saco de papel na cabeça, gravou sua voz num filmete para promover "Vício Inerente" --que ganhará no ano que vem versão cinematográfica por Paul Thomas Anderson-- e até deu uma breve declaração à CNN (não levada ao ar, mas lida por um narrador). Nela, ironizou: "Recluso' é um código usado por jornalistas que significa: Não gosta de falar com repórteres'".
        Uma peça publicitária feita pela editora para "Bleeding Edge" debocha da sua lenda. Nela, um jovem de óculos escuros vaga por Nova York vestindo uma camiseta com os dizeres: "Olá, eu sou Tom Pynchon".

        Quartos da minha vida - Marcel Proust

        folha de são paulo
        IMAGINAÇÃO
        Quartos da minha vida
        A reviravolta total nos mundos fora de órbita
        MARCEL PROUSTTRADUÇÃO MARIO SERGIO CONTIPor um longo tempo, deitei cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que não tinha tempo de me dizer: "Adormeço." E, uma meia hora depois, o pensamento de que era tempo de procurar dormir me despertava; queria pousar o volume que acreditava ainda ter nas mãos e assoprar a luz; não cessara de fazer reflexões dormindo sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões haviam tomado um rumo um tanto particular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia durante alguns segundos ao meu despertar; ela não chocava a minha razão, mas pesava como escamas sobre meus olhos e os impedia de perceber que a vela não estava mais acesa. Depois ela começava a me parecer ininteligível, como os pensamentos de uma existência anterior depois da metempsicose; o assunto do livro se destacava de mim, eu estava livre para me deter nele ou não; logo recobrava a visão e ficava atônito de estar imerso numa obscuridade, suave e repousante para os meus olhos, mas talvez ainda mais para o meu espírito, ao qual ela aparecia como uma coisa sem causa, incompreensível, como uma coisa verdadeiramente obscura. Eu me perguntava que horas poderiam ser; escutava o silvo dos trens que, marcando as distâncias como o canto mais ou menos afastado de um pássaro na floresta, me descrevia a extensão do campo deserto onde o viajante se apressa em direção à próxima estação; e o pequeno caminho que percorre ficará gravado na sua lembrança pela excitação que ele deve aos lugares novos, aos atos inabituais, às conversas recentes e às despedidas sob a lâmpada estrangeira que ainda o seguem no silêncio da noite, e à doçura próxima do regresso.
        Encostava suavemente minhas faces nas belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como as faces da nossa infância. Riscava um fósforo para olhar meu relógio. Logo meia-noite. É quando o doente que fora obrigado a partir em viagem e a dormir num hotel desconhecido, despertado por uma crise, se alegra ao perceber sob a porta um raio do dia. Que felicidade, já é de manhã! Num instante os criados estarão de pé, poderá tocar a campainha, virão lhe prestar socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá coragem para sofrer. Agora mesmo achou que ouvia passos; os passos se aproximam e depois se afastam. E o raio do dia que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado partiu e será preciso passar a noite toda a sofrer sem remédio.
        Readormecia, e às vezes só despertava por breves instantes, o tempo de escutar os estalos orgânicos das madeiras, de abrir os olhos para fixar o caleidoscópio da obscuridade e, graças a um brilho momentâneo de consciência, de experimentar o sono no qual estavam mergulhados os móveis, o quarto, o todo do qual eu era apenas uma pequena parte e a cuja insensibilidade voltava rapidamente a me agregar. Ou então, dormindo, havia regressado sem esforço a uma época para sempre passada de minha vida primitiva e reencontrado alguns dos meus terrores infantis, como o de que meu tio-avô me puxasse pelos cachos de cabelo, e que se dissipara no dia -- data para mim de uma nova era -- em que os tinham cortado. Havia esquecido esse acontecimento durante o meu sono, e reencontrava a sua lembrança assim que conseguia acordar para escapar às mãos de meu tio-avô, mas por precaução envolvia completamente a cabeça com meu travesseiro antes de retornar ao mundo dos sonhos.
        Às vezes, como Eva nasceu de uma costela de Adão, uma mulher nascia durante o meu sonho de uma falsa posição de minha coxa. Formada pelo prazer que eu estava a ponto de experimentar, imaginava que era ela quem o oferecia. Meu corpo, que sentia no dela o meu próprio calor, tentava juntar-se a ela, e eu acordava. O restante dos humanos me parecia bem distante diante dessa mulher que eu havia abandonado há apenas alguns momentos; minha face ainda estava quente do seu beijo, meu corpo dolorido pelo peso do seu. Se, como acontecia algumas vezes, ela tinha os traços de uma mulher que conhecera na vida, iria me dedicar inteiramente a esse objetivo: reencontrá-la, como aqueles que partem em viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam que se pode experimentar numa realidade o encanto do sonho. Pouco a pouco a lembrança dela se esvanecia, eu esquecia a moça, filha de meu sonho.
        Um homem que dorme mantém em círculo ao seu redor o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ele os consulta por instinto ao acordar e neles lê num segundo o ponto da terra que ocupa, o tempo que correu até despertar; mas a sua ordem pode se embaralhar, se romper. Se de madrugada, após uma insônia, o sono o surpreende durante a leitura numa postura demasiado diferente da que dorme habitualmente, basta o seu braço erguido para deter e fazer o sol recuar, e no primeiro minuto do seu despertar ele não saberá mais as horas, achará que acaba de se deitar. Se adormecer numa posição ainda mais insólita e inabitual, por exemplo numa poltrona depois de jantar, então a reviravolta será total nos mundos fora de órbita, a poltrona mágica o fará viajar a toda velocidade no tempo e no espaço, e no momento de abrir as pálpebras achará que está deitado alguns meses antes, noutra região. Mas bastava que, em minha própria cama, meu sono fosse profundo e descontraísse inteiramente o meu espírito para que este perdesse o mapa do lugar onde havia dormido e, quando eu acordava no meio da noite, como ignorasse onde me encontrava, nem sequer soubesse num primeiro instante quem eu era; tinha apenas, na sua simplicidade original, o sentido da existência tal como ele pode fremir no fundo de um animal; estava mais despido que o homem das cavernas; mas então a lembrança -- não ainda do lugar onde estava, mas de alguns onde morara e poderia estar -- vinha a mim como um socorro do alto para me retirar do vácuo de onde não poderia sair sozinho; em um segundo passava por séculos de civilização, e a imagem confusamente entrevista de lâmpadas a querosene, e depois de colarinhos de gola rebatida, recompunha pouco a pouco os traços originais do meu eu.
        Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor nos seja imposta pela nossa certeza de que são mesmo elas, e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento diante delas. O fato é que, quando acordava assim, com meu espírito se agitando para tentar saber, sem conseguir, onde estava eu, tudo girava em torno de mim no escuro, as coisas, as regiões, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mexer, procurava, segundo a forma do seu cansaço, discernir a posição dos seus membros para daí deduzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e nomear a moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de seus ombros, lhe apresentava sucessivamente vários dos quartos onde havia dormido, enquanto ao seu redor as paredes imóveis, mudando de lugar segundo a forma do cômodo imaginado, turbilhonavam nas trevas. E antes mesmo que o meu pensamento, que hesitava na soleira dos tempos e das formas, tivesse aproximado as circunstâncias e identificado o cômodo, ele --meu corpo-- recordava para cada quarto o tipo de cama, o lugar das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso junto com o que pensara ao adormecer e que reencontrava ao acordar. O lado anquilosado de meu corpo, procurando adivinhar sua orientação, imaginava-se, por exemplo, estirado ao longo da parede numa grande cama de dossel, e eu logo me dizia: "Ora, acabei dormindo antes que mamãe tenha vindo me dar boa-noite"; eu estava no campo, na casa do meu avô, morto havia muitos anos, e meu corpo, o lado sobre o qual eu repousava, fiéis guardiães de um passado que meu espírito não deveria jamais esquecer, me recordavam a chama da luminária de cristal da Boêmia, em forma de urna, suspendida no teto por pequenas correntes, a lareira de mármore de Siena no meu quarto de dormir em Combray, na casa de meus avós, em dias distantes que naquele momento eu imaginava atuais, sem deles formar uma imagem exata, e voltaria a ver melhor dali a pouco, quando de fato tivesse acordado.
        Depois renascia a lembrança de uma nova atitude; a parede fugia noutra direção: eu estava no meu quarto na casa de Madame de Saint-Loup, no campo; meu Deus! são pelo menos dez horas, devem ter terminado de jantar! Devo ter prolongado demais a sesta que faço todos os finais de tarde ao voltar de meu passeio com Madame de Saint-Loup, antes de vestir minha casaca. Pois muitos anos se passaram desde Combray, quando, nos nossos regressos mais atrasados, eram os reflexos vermelhos do poente que eu via nos vitrais de minha janela. É outro tipo de vida que se leva em Tansonville, na casa de Madame de Saint-Loup, outro tipo de prazer que encontro ao sair apenas à noite, percorrendo ao luar esses caminhos onde antigamente brincava ao sol; e o quarto onde terei adormecido em vez de me vestir para o jantar, de longe o vejo ao regressarmos, atravessado pelo fogo da lâmpada, único farol na noite.
        Essas evocações rodopiantes e confusas nunca duravam que alguns segundos; muitas vezes, minha breve incerteza do lugar onde me encontrava não distinguia melhor umas das outras as diversas suposições da qual ela era feita, assim como não isolamos, vendo um cavalo correr, as posições sucessivas que nos mostra o cinescópio. Mas eu tinha revisto ora um, ora outro, os quartos que havia habitado na minha vida, e acabava por me recordar de todos eles nos longos devaneios que se seguiam ao meu despertar; quartos de inverno onde, quando se está deitado, aconchega-se a cabeça num ninho que se tece com as coisas mais disparatadas: um canto do travesseiro, a parte de cima do cobertor, uma ponta de xale, a beira da cama e um número do "Débats Roses", que acabamos por cimentar com a técnica dos pássaros, calcando-as indefinidamente; onde num tempo glacial o prazer que se saboreia é o de se sentir separado do exterior (como a andorinha do mar cujo ninho fica ao fundo de um subterrâneo no calor da terra), e onde, com o fogo mantido a noite toda na lareira, se dorme num grande manto de ar quente e esfumaçado, atravessado pelos lampejos de brasas que se reavivam, espécie de alcova impalpável, de caverna cálida escavada no seio do próprio quarto, zona ardente e móvel nos seus contornos térmicos, arejada por sopros que nos refrescam o rosto e provêm dos cantos, de partes vizinhas à janela ou afastadas do fogo, e que esfriaram -- de verão onde se gosta de se estar unido à noite morna, onde o luar apoiado nos postigos entreabertos joga até o pé da cama sua escada encantada, onde se dorme quase ao ar livre como o pássaro embalado pela brisa na ponta de um raio de luz -- às vezes o quarto estilo Luís XVI, tão alegre que nem na primeira noite nele me sentira muito infeliz, e onde as pequenas colunas que sustentavam levemente o teto se afastavam com tanta graça para mostrar e reservar o lugar da cama; às vezes, ao contrário, era um quarto pequeno e de pé-direito tão alto, escavado em forma de uma pirâmide da altura de dois andares e parcialmente revestido de mogno, onde desde o primeiro segundo eu ficara moralmente intoxicado pelo cheiro desconhecido do patchuli, convencido da hostilidade das cortinas roxas e da insolente indiferença do pêndulo tagarelando alto como se eu não estivesse ali -- onde um estranho e impiedoso espelho de pés quadrangulares, barrando obliquamente um dos cantos do cômodo, escavava à força na suave plenitude de meu campo visual de costume um lugar imprevisto; onde meu pensamento, esforçando-se durante horas por se deslocar, por se expandir para o alto, a fim de tomar exatamente a forma do quarto e preencher até em cima o seu gigantesco funil, passava noites bem duras enquanto estava estendido na minha cama, os olhos erguidos, o ouvido ansioso, as narinas desobedientes, o coração palpitante: até que o hábito tivesse mudado a cor das cortinas, calado o pêndulo, ensinado a piedade ao espelho oblíquo e cruel, dissimulado ou expulso totalmente o cheiro de patchuli, e diminuído sensivelmente a altura aparente do teto. O hábito! criada hábil mas vagarosa, que começa por deixar nosso espírito sofrer durante semanas numa instalação provisória; mas o qual, apesar de tudo, é bem feliz de encontrar, pois sem o hábito, e reduzido a seus próprios meios, nosso espírito seria impotente para tornar um aposento habitável.

          Há cem anos, nascia a catedral de Proust - MARIO SERGIO CONTI

          folha de são paulo
          A pedra fundamental
          Há cem anos, nascia a catedral de Proust
          MARIO SERGIO CONTIRESUMO A série Primeiríssima Mão, em que a "Ilustríssima" adianta trechos de lançamentos vindouros, traz o início do primeiro tomo de "À Procura do Tempo Perdido". "Do Lado de Swann", cujo centenário se completa no dia 14, ganha nova tradução para o português, a sair pela Penguin/Companhia das Letras em 2014.
          No próximo dia 14, será o centenário da chegada às livrarias parisienses de "Do Lado de Swann", o primeiro dos sete tomos de "À Procura do Tempo Perdido", de Marcel Proust. Multidões não sairão às ruas para, mascaradas com o bigodinho do romancista, fazer vigília no Ritz, onde ele pedia um frango inteiro, cerveja e inúmeras xícaras de café quando escrevia o seu livro.
          Apenas alguns, em Londres, no Cairo, em Tóquio ou numa padaria nas Perdizes, brindarão à memória do grande artista. Foi ele quem aclarou as intermitências do coração, a mecânica dupla da memória, a força paralisante do hábito, a engrenagem da sociedade cujo fluido é medo e engano, a matéria dúctil do tempo que se perde e é dado aos seus leitores reencontrar.
          Datado? Sem dúvida; vive-se na história. Mas, enquanto a enferrujada geringonça burguesa continuar a ranger e a moer mulheres e homens aos milhões, lá estará "À Procura do Tempo Perdido". Para compreender o que se nos passa nos dias de solidão de amor, o romance entre Swann e Odette.
          Para analisar a política ao redor, a reação dos distintos ao caso Dreyfus. Para entrever o que de bom pode vir depois do ciclo do capital, uma sonata no salão da Duquesa de Guermantes. Com conhaque barato num copo ordinário: tim-tim, Marcel!
          Quatro editores se recusaram a publicar "Do Lado de Swann". Havia motivos mundanos para tanto. Proust era tido como diletante. Não tinha profissão, nunca trabalhara, vivia em festas, herdara o equivalente a dezenas de milhões de reais com a morte dos pais. Publicara a suas custas um livro ilustrado, crônicas de jantares de grã-finos e traduções do caótico John Ruskin.
          RITMO VEGETAL Houve também razões literárias. Ninguém entendeu o livro, a combinação de análise e narração, o desenvolvimento em ritmo vegetal, as mudanças cubistas de assunto de um capítulo para o outro, os hiatos abissais no enredo. Mas Proust sabia o que estava escrevendo. Quer dizer, tinha uma noção incerta do que fazia: imaginava que escrevia um romance em dois livros. Depois viraram três, foram para cinco e acabaram em sete.
          O mais famoso dos vetos à publicação foi o de André Gide. Proust sempre se queixou de que a "Nouvelle Revue Française", onde o autor de "O Imoralista" era editor, nem abrira o pacote com o original datilografado de "Swann". Mas Gide leu, sim, trechos do livro e estranhou sobremaneira algumas imagens proustianas, como as "vértebras" que apareciam na testa de uma personagem, a tia Léonie.
          Proust acabou pagando para que uma nova editora, a de Bernard Grasset, o publicasse. Lentamente, o livro seguiu seu curso, o de amealhar espanto e admiração até se tornar uma obra-prima do modernismo. Gide veio a ler "Swann" inteiro. Escreveu então uma carta a Proust dizendo que a sua recusa inicial fora um dos maiores erros que cometera na vida. O rascunho da carta será leiloado no próximo dia 26, e a Sotheby's avalia que ele será arrematado por 150 mil euros.
          O trecho traduzido a seguir é o comecinho de "Do Lado de Swann".
          Nele, o narrador descreve o lusco-fusco entre insônia e sono, entre sono e sonho, entre sonho e realidade. Ao mesmo tempo, vai relembrando diversos dos quartos onde dormiu ao longo dos anos. O passado e o presente se condensam naquilo que ele escreve: "Um homem que dorme mantém em círculo ao seu redor o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos".
          Proust comparou "Tempo Perdido" a uma catedral e a uma sinfonia. É útil ter essas metáforas em mente ao iniciar a sua leitura. A estranheza que se experimenta não advém da dificuldade do estilo do escritor, perfeitamente compreensível. É que a leitura da abertura do romance corresponde a ver uma catedral bem de perto. Ou a ouvir apenas os primeiros acordes da protofonia de uma peça musical majestosa.
          Só com o recuo em relação à igreja, só com o desenvolvimento da sinfonia --para que se possa contemplá-las na sua inteireza, do começo ao fim-- é possível captar a inteligência do romance em plenitude. O espaço e o tempo precisam agir para que Proust viva.

            Avião movido a energia solar impulsiona criação de tecnologias limpas

            folha de são paulo
            RICARDO BONALUME NETO
            DE SÃO PAULO
            Ouvir o texto

            Completando neste mês uma década, o projeto de construção de um avião movido a energia solar já deu resultados importantes.
            O primeiro protótipo da aeronave Solar Impulse cruzou os Estados Unidos de costa a costa neste ano. O segundo protótipo deverá estar pronto no começo no ano que vem e disponível para dar uma volta ao mundo em 2015.
            Os aviões já contribuíram para o aperfeiçoamento de diversas tecnologias inovadoras na área de energia "limpa" e renovável, independente de combustíveis fósseis.
            Ironicamente, eles estão longe de serem uma antevisão do futuro da aviação comercial. São bons "demonstradores de tecnologias", mas uma aeronave para um ou dois tripulantes com peso máximo de até duas toneladas está bem distante de substituir um avião de passageiros como um Boeing ou Airbus, com mais de 500 toneladas e capazes de levar centenas de passageiros.
            Alex Argozino/Editoria de Arte/Folhapress
            "Queremos demonstrar a importância da sustentabilidade e da inovação. Vai demorar muito até podermos ver aviões 'limpos'. Um Boeing 707 dos anos 1950 é muito similar a um Airbus de agora", diz um dos fundadores do projeto Solar Impulse, o engenheiro e piloto suíço André Borschberg, que visitou recentemente São Paulo.
            Ele veio ao Brasil a convite da empresa Solvay, multinacional suíça que é uma das patrocinadoras do projeto. A empresa está presente no projeto com 11 produtos específicos em 20 aplicações --e em quase 6.000 peças do avião.
            Por exemplo, as células solares no topo das asas que geram a energia para as aeronaves precisam ser encapsuladas para proteção contra umidade; uma substância especial foi criada para isso.
            E, para ser leve, o avião tem de usar o mínimo de metais, substituídos por fibras de carbono e plástico ultraleves mas resistentes. Alguns desses materiais têm metade da densidade do alumínio.
            A iniciativa do projeto foi do explorador suíço Bertrand Piccard, o outro piloto principal. Piccard percorreu o mundo em balão sem escalas em 1999 e sua família tem "pedigree" exploratório. Seu avô, Auguste Piccard (1884-1962), foi um pioneiro no uso de balões para grandes altitudes e de batiscafos para explorar o fundo do mar.
            "Nossa equipe, nossas soluções não saíram da indústria aeronáutica. Temos bons engenheiros que vieram da Fórmula 1. O pessoal da aviação dizia que era impossível", diz Borschberg, ex-piloto de caça da Força Aérea Suíça.
            "Não pretendemos revolucionar a aviação, mas usar essas tecnologias no dia a dia."
            EM CASA, NO CELULAR
            O projeto possibilitou, por exemplo, aumentar a eficiência e reduzir o peso das células solares e baterias elétricas. Essas tecnologias melhoram o desempenho de painéis solares para uso residencial e de baterias de computadores e telefones celulares.
            A energia solar ainda é uma tecnologia na infância. Segundo a Solvay, um painel solar de 1 m2 gera em média 40 watts. Um litro de combustível tradicional contém 250 vezes mais energia.
            Isso significa que, para fazer voar um avião de 1,6 tonelada (incluindo o peso do piloto), é preciso ter 200 metros quadrados de células solares, pois 40 watts proveem energia para 8 kg da aeronave.
            "O ano que vem será para testes do voo de volta ao mundo com escalas em 2015. Um voo sem escalas só será possível em uma nova geração destes aviões", diz o piloto.
            DESCONFORTO
            Os voos demandam muito dos pilotos. São dezenas de horas a bordo, mudando muito pouco de posição. É preciso ter técnicas especiais que lembram uma forma de "auto-hipnose" para poder ter tempo para dormir.
            A comida é liofilizada, não há como cozinhar. E a temperatura pode variar de 35° C a -15 ° C, o que exige uma vestimenta especial.
            Os pilotos usam uma roupa de baixo feita de fibras têxteis de poliamida que seu fabricante chama de "inteligentes". Trata-se da marca Emana, desenvolvida no Brasil pela Rhodia, do grupo Solvay.
            O material absorve radiação infravermelha ("calor") do corpo e a devolve como outro tipo de onda, que facilita a regulagem térmica do corpo dos pilotos e minimiza os efeitos do esforço muscular.
            "A Emana foi desenvolvida no Brasil, ganhou prêmios de inovação e está sendo exportada para vários países", diz Thomas Canova, responsável pelo Centro de Pesquisas e Inovação do grupo Solvay na América Latina.

            Marcelo Leite

            folha de são paulo
            Macacos nos mordam
            Nossos cães são mansos, fiéis e sempre dispostos a bajular, em vez de morder, porque assim os criamos
            Qualquer pessoa que tenha encarado macacos --de saguis a gorilas-- terá sentido algum constrangimento, ainda que passageiro. Seu olhar tem algo de incomodamente humano, do qual nos desviamos tão rápido quanto possível, devolvendo-os à condição segura de animais.
            Esses primatas, de seu lado, são muito ruins em escamotear a própria humanidade --embrionária, por certo, mas perceptível. Por isso evitamos seus olhos, como quem finge não reconhecer um parente pobre na outra calçada.
            Deve ser essa a motivação por trás do resultado mais intrigante da pesquisa Datafolha sobre o uso de animais em pesquisa: que os símios tenham sido relegados a um humilhante segundo lugar na escala de repulsa, com meros 59% dos paulistanos a rejeitar seu uso em pesquisa, contra 66% no caso dos cães (azar dos ratos, com 29% de fãs).
            Hélio Schwartsman já assinalou, com a clareza habitual, que não há uma filosofia coerente por trás das convicções dos militantes que invadiram o Instituto Royal, em São Roque (SP), e da maioria paulistana que os apoia. Mesmo admitindo que os entrevistados pelo Datafolha tenham respondido mais com o coração do que com o cérebro, persiste a questão: por que deixar os coitados dos macacos atrás dos cães?
            Primatas são a minoria entre cobaias, menos de 1%, mas nem por isso o número é desprezível. Estima-se que, só nos EUA, entre 70 mil e 75 mil primatas não humanos vivam em cativeiro para servir à ciência, como veículos de pesquisas ou reprodutores. A maioria (93%) são cinomolgos (Macaca fascicularis), da Indonésia, mas sobra também para resos, chimpanzés e saguis.
            No Brasil é mais difícil localizar esses dados. Quem for até a página do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal) no portal do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em busca de informações sobre o número de animais usados topará com o paternalismo e o autoritarismo usuais no país: "Estes dados poderão ser disponibilizados desde que o interessado apresente justificativa plausível para sua utilização".
            É a política baseada no princípio segundo o qual o que os olhos não veem, o coração não sente. Combatê-la é um dos raros méritos do "dog bloc" que resgata animais de raça no escuro, com a complacência de policiais e políticos tucanos.
            Esses radicais de condomínio são movidos pelo narcisismo. Idolatram os cães, e em menor número os gatos, porque eles são o único elo --idealizado e pervertido-- que mantêm com o mundo natural. Animais domesticados, no pior sentido: despidos de toda animalidade que não seja decorativa e customizados para comprazer aos humanos.
            A seleção artificial promovida ao longo dos séculos por criadores privilegiou características como a neotenia, ou seja, a retenção, na fase adulta, de traços e comportamentos do animal jovem.
            Nossos cães são mansos, fiéis e sempre dispostos a nos bajular, em vez de morder, porque assim os desejamos: seres encarcerados na infância, dependente e indolente, em que gostaríamos de nos refugiar.
            Mais que sentimentos, é por sentimentalismo que repudiamos experimentos com cães. De um ponto de vista mais próximo dos macacos, tão imprescindíveis quanto cães para pesquisas vitais aos humanos, encararíamos talvez essa questão como adultos responsáveis.

              Preenchimento de frases do Google sobre o que mulheres devem fazer inspira campanha

              folha de são paulo

               
              FERNANDA MENA
              DE SÃO PAULO
              Tão útil e revelador quanto irritante, o recurso de preenchimento automático do maior site de buscas do mundo costuma sugerir ao usuário uma lista dos termos mais procurados associados às letras ou palavras digitadas no campo de pesquisa.
              Ao digitar "women shouldn't" (mulheres não devem, em inglês) no Google, o publicitário Christopher Hunt levou um susto.
              A ferramenta de autocompletar do site sugeriu frases como "mulheres não devem ter direitos", ou "trabalhar" ou ainda "votar".
              "Quando fizemos estas pesquisas, ficamos chocados com o resultado negativo das buscas mais populares do site e decidimos que tínhamos de fazer algo a respeito", disse Hunt, diretor de arte da agência de publicidade Ogilvy & Mather, em Dubai, nos Emirados Árabes.
              Essa e outras três pesquisas genuínas feitas no Google (com os termos "mulheres não podem" e "mulheres devem", sempre em inglês) serviram como base para a nova campanha do braço da Organização das Nações Unidas para a igualdade de gênero, a ONU Mulher. Hunt gerencia a equipe de criação.
              Os anúncios -no início apenas digitais- evidenciam o sexismo e o preconceito contra mulher em voga ainda hoje, 34 anos após a promulgação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979.
              Divulgação
              CHOQUE DE REALIDADE
              Entre os principais resultados, estão frases como "mulheres não podem falar na igreja" e "mulheres precisam ser disciplinadas".
              "Para nós, foi um choque de realidade", admite Nannette Braun, chefe de cam-
              panha da ONU Mulher nos
              Estados Unidos.
              "Não imaginávamos que, ainda hoje, haveria um sentimento público tão estereotipado em relação a 50% da população mundial", diz.
              Segundo Braun, os anúncios se tornaram um viral nas redes sociais, o que levou o debate da discriminação contra a mulher a uma audiência global. No Instagram e no Twitter, é possível acompanhar a discussão por meio da "hashtag" #womenshould.
              "Depois de décadas de campanhas e debates sobre os direitos das mulheres, é perturbador perceber, a partir do resultado dessas pesquisas, que ainda temos um longo caminho a percorrer", conclui ela.
              SEXISMO LOCAL
              Em português, a pesquisa dessas frases não enseja nenhuma sugestão do Google baseada nas buscas mais populares realizadas no Brasil.
              A sugestão emerge apenas quando o termo pesquisado é "mulherada". Seus complementos? "Bonita", "de moto" e "tá na lancha".
              "Mulherada de moto" leva a links de garotas dançando funk em festivais de motociclistas pelo Brasil.
              "Mulherada tá na lancha" é título de canção de arrocha (ritmo baiano derivado do brega e do sertanejo), cujo refrão de duplo sentido -"toma na boquinha"- acompanha versos como "a mulherada tá bebendo igual os hómi".
              "O sexismo se expressa de muitas maneiras, de acordo com cada país e cada cultura", avalia Braun. "O resultado da pesquisa no Brasil me parece apenas mais uma de suas expressões", diz.
              A busca usando as mesmas frases, mas com a palavra "homem" como sujeito, traz resultados que vão desde "homem não pode ser bonzinho" e "não pode chorar" até "homem não pode se deitar com outro homem".
              O preconceito e a intolerância que esse senso comum -representado pelos termos mais pesquisados no site- revela, não poupa nem seu hospedeiro: ao digitar "Google" no campo de busca da página, a primeira sugestão que surge é "é um lixo".

              Henrique Meirelles

              folha de são paulo

              Menos Estado, mais inclusão

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              A questão da participação do Estado na economia brasileira causa grandes emoções e forte polarização ideológica.
              O argumento mais usado para justificar o continuado aumento da participação estatal na economia é a grande desigualdade no país e a necessidade de o Estado atuar como distribuidor de renda e promotor de igualdade.
              É um argumento que merece análise séria.
              O governo Lula é exemplo sempre citado de aumento bem-sucedido de intervenção estatal na eliminação da desigualdade. Existiu, de fato, ampla inclusão social no período, propiciada por dois grandes fatores --o Bolsa Família e a geração de emprego. Nenhum deles dependeu necessariamente do aumento do Estado.
              O Bolsa Família representa só cerca de 0,5% do PIB numa arrecadação total acima de 35%. Ele pode ser facilmente financiado com parcela pequena da arrecadação maior de impostos oriunda do crescimento econômico, sem elevar a participação estatal na economia. Já a grande geração de emprego se deveu principalmente à estabilização econômica, baseada no controle da inflação e dos gastos públicos.
              A hiperinflação e as crises periódicas eram resultado direto do descontrole financeiro do Estado e de gastos excessivos, financiados em boa parte por expansão monetária.
              A Lei de Responsabilidade Fiscal e a implantação do sistema de metas de inflação, superavits primários e câmbio flutuante, na década de 1990, modernizaram a estrutura institucional. Na década seguinte, o governo Lula promoveu a histórica estabilização da economia.
              A forte contenção de gastos instituída já nos seus primeiros anos, aliada a uma política monetária austera em todo o período, com inflação controlada, redução de dívida pública e acumulação de reservas, foram fundamentais para a estabilização. A confiança e o horizonte de planejamento das famílias e das empresas aumentaram, puxando crédito, investimentos e produção, que resultaram na criação impressionante de empregos.
              Foi essa geração de empregos a maior promotora da redução da desigualdade, com integração de dezenas de milhões de pessoas à classe média e encolhimento da classe E. Já o aumento do Estado, com redução das taxas de crescimento, gera menos empregos e também menos recursos excedentes aos programas sociais.
              Portanto, temos que nos libertar da confusão recorrente entre uma administração pública que promove redução da desigualdade e inclusão social de uma administração estatizante que diminui a capacidade produtiva da economia e compromete esses benefícios, como mostra a experiência mundial.
              Divulgação
              Henrique Meirelles é presidente do Conselho da J&F (holding brasileira que controla empresas como JBS, Flora e Eldorado) e chairman do Lazard Americas. Ele foi presidente do Banco Central do Brasil de 2003 a 2010 e, antes disso, presidente global do FleetBoston e do BankBoston.