segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Luli Radfahrer

O perigoso fascínio dos infográficos



Você já deve ter visto vários deles hoje. Da previsão do tempo à guerra da Síria, toda informação parece ter uma versão gráfica, gerando aquelas imagens em que até o dado mais banal se transforma em um belo cartaz a circular pela rede.
O Pinterest está cheio deles, o Slideshare criou uma área específica para compartilhá-los e novas redes como o Visual.ly se dedicam exclusivamente a esse tipo de informação. Para quem não tem habilidades de ilustrador, serviços automáticos como o Piktochart dão uma força. Se o seu currículo precisa de um banho de loja, Visual CVRe.vu ou Kinzaa dão conta do recado.
A popularidade dos infográficos não causa surpresa. Mesmo que não sejam animações 3D, interativos ou dinâmicos, são certamente mais atrativos, acessíveis e envolventes do que tabelas e textos. Pesquisas mostram que as pessoas tendem a seguir melhor instruções acompanhadas de imagens, o que talvez explique porque as embalagens de produtos japoneses tenham tantos desenhos.
A visão é um dos sentidos mais explorados e desenvolvidos pela cultura contemporânea, e boa parte da atividade cerebral está concentrada na interpretação de imagens. A percepção visual também é mais rápida do que a leitura. Ao contrário de um texto escrito, não se vê pedaços de uma imagem que, aos poucos, compõem um todo. Elementos parecidos são instintivamente agrupados, gerando padrões.
Se bem representada, uma informação visual pode ser compreendida em frações de segundo. O cérebro humano tem uma capacidade de manipular metáforas visuais de forma muito mais versátil do que seria possível fazer com os dados e conceitos que elas representam. Como blocos de montar, é fácil espremê-las, empilhá-las, reorganizá-las e superpô-las até que um padrão surja, levando a novas descobertas.
Há céticos que acham os infográficos um excesso de firulas, acreditando que poderiam ser substituídos por um parágrafo bem escrito. Mas é só levar em conta a Tabela Periódica ou qualquer Atlas do corpo humano para se perceber que um diagrama bem feito pode ajudar a compreender relações bastante complexas.
A Ciência é uma busca por padrões, e poucas linguagens tem a capacidade de mostrá-los tão bem quanto a visual. Uma tomografia ou a imagem proveniente de um radiotelescópio mostram como a informação visual é útil até para profissionais extremamente qualificados e bem treinados. A atividade cerebral não tem todas aquelas cores e as imagens de estrelas distantes estão fora do alcance da visão.
A sedução das histórias visuais pode ser, entretanto, enganadora. Qualquer diagrama é uma interpretação sujeita a distorções. Como o mapa-múndi, por exemplo. Criado por Gerardus Mercator em 1569, ele projeta o globo em um cilindro, transformando paralelos e meridianos em linhas retas e perpendiculares, o que leva a um inevitável "esticamento" do mapa no sentido leste-oeste.
Usado até hoje pelos maiores serviços de mapeamento digitais (Bing Maps,OpenStreetMapGoogle MapsMapQuest e Yahoo Maps, entre outros) esse diagrama exagera regiões próximas aos polos, representando a Groenlândia do tamanho da África, mesmo sendo 14 vezes menor. O mesmo acontece com o Alasca, que fica quase do tamanho do Brasil. Mesmo com essas distorções, a projeção de Mercator é tão conhecida que parece ser a única possível. Comparada com ela, uma representação mais adequada, como a Gall-Peters, parece esticada.
Em Infográficos, o meio é, literalmente, a mensagem. Por isso é muito importante examiná-los. Não é porque algo é bonito que é necessariamente verdadeiro ou relevante. Como em qualquer estatística, é preciso verificar a fonte e a correlação entre os dados, que pode estar escondida ou camuflada por recursos gráficos.
Um mundo com infográficos pode ser tão rico em pensamento metafórico e reconhecimento de padrões como pode ser limitado e sintético, apresentando ideias complexas na forma de gibis. A única forma de garantir a reflexão é desenvolver a consciência de que qualquer conteúdo apresentado não é finito, mas parte de uma história a ser desenvolvida enquanto houver interesse.
Afinal, como sempre disse a Filosofia, o importante não é a resposta, mas a próxima pergunta.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

Ronaldo lemos

Cientista decodifica a linguagem dos bebês


Aconteceu nos EUA na semana passada o encontro dos membros do MIT Media Lab, o laboratório de mídia do Massachusetts Institute of Technology. É um evento anual, em que são apresentadas as pesquisas mais recentes na fronteira entre design, genética, indústria e arte.
Uma das pesquisas mais interessantes foi apresentada por Deb Roy, cientista-chefe do Twitter. Ele instalou 11 câmeras, 14 microfones e uma rede digital dentro da própria casa. O objetivo: monitorar todas as conversas e interações entre ele, sua mulher, assistentes domésticos e o filho, então recém-nascido.
Desse modo, conseguiu entender como, quando e onde o bebê aprendia cada palavra. Por exemplo, a palavra "bola" foi aprendida com 12 meses, enquanto "treinador" só com 20.
As descobertas da pesquisa são ambiciosas. Palavras são aprendidas em função da frequência em que são faladas e da facilidade de pronúncia. Aí vem a parte mais interessante: o contexto também é importante. Se a criança escuta uma palavra quando está interagindo com um objeto, uma pessoa, ou realizando atividade física, isso faz diferença no aprendizado.
A pesquisa tem múltiplos impactos. Quer ampliar o campo semiótico para incluir também o estudo de eventos "não-linguísticos". Tem implicações também para o estudo do consumo de mídia.
O contexto em que uma mídia é consumida faz toda a diferença no seu impacto cognitivo. Se o jornal era antes lido na mesa da sala e agora é lido no ônibus, isso faz toda a diferença. As aplicações futuras terão impacto da pedagogia à publicidade. É mais um passo para decodificar nosso "software" mental. E para ensinar as máquinas a interpretar quem somos.
*
JÁ ERA
Games só como diversão
JÁ É
Jogos que ajudam em seleções de emprego, como o "Balloon Brigade"
JÁ VEM
Jogos para tratar ataques de pânico, como o Flowygame.com
ronaldo lemos
Ronaldo Lemos é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e do Creative Commons no Brasil. É professor de Propriedade Intelectual da Faculdade de Direito da UERJ e pesquisador do MIT Media Lab. Foi professor visitante da Universidade de Princeton. Mestre em direito por Harvard e doutor em direito pela USP, é autor de livros como "Tecnobrega: o Pará Reiventando o Negócio da Música" (Aeroplano) e "Futuros Possíveis" (Ed. Sulina). Escreve às segundas na versão impressa do "Tec".

Daniel Pellizzari

folha de são paulo
Documentos, por favor
Como devedores vão para a cadeia, fui deixando todos morrerem. Meu tio, minha sogra, minha mulher
Novembro terminou tão bem. A guerra com a Kolechia chegou ao fim após seis anos e nossa gloriosa nação de Arstotzka retomou os controles de fronteira em Grestin. No dia do sorteio nacional para inspetor da imigração, quase não acreditamos: fui escolhido. Deixei para trás Mirsk, minha aldeia no interior, e segui com a família para Grestin, onde ganhamos um apartamento estatal. Dezembro estava chegando e em seguida 1983, que prometia ser o melhor ano das nossas vidas: país em paz, emprego estável, cidade grande.
Logo nos primeiros dias comecei a ficar um pouco confuso. Confesso ter imaginado que meu dia a dia seria fácil. Conferir passaportes, aplicar carimbos e mais nada. Que inocência. Não só havia uma grande quantidade de detalhes aos quais atentar, mas as regras mudavam de um dia para o outro. Novos documentos exigidos, novas habilidades a serem aprendidas. Bater impressões digitais, atestar a veracidade de selos, operar o raio-X. Todos os dias, diante da imensa fila, a primeira tarefa era decorar as novas diretrizes.
E a tensão? Qualquer erro depunha contra mim. Primeiro só advertências, que logo se traduziam em perdas financeiras. Para cada engano, um desconto. Se eu não tivesse como falar com quem se aproximava do guichê, seria mais fácil. Lidaria apenas com documentos, permitiria ou negaria a entrada e chamaria o próximo. Mas as pessoas falavam. Contavam histórias. Pediam favores. Imploravam. Viravam gente em vez de papéis. E às vezes eu não resistia e ajudava. Mas ao mesmo tempo ganhava um dinheiro extra prendendo imigrantes por motivos fúteis.
Os sujeitos da tal Ordem de EZIC tentavam me aliciar, mentindo que Arstotzka era uma ditadura e que vivíamos oprimidos. Nunca consegui denunciar nenhum deles, e em seguida começaram os atentados terroristas na fronteira. Ganhei acesso a armas para abater os inimigos da Mãe Pátria. Para me acalmar, pendurei na parede o desenho que meu filho fez para mim com os gizes de cera que ganhou de aniversário.
Porque tínhamos sobrado só nós dois, meu filho e eu. Com os descontos no pagamento, ficou impraticável sustentar aluguel, comida e aquecimento para todos, que adoeceram. Como devedores vão para a cadeia, precisei fazer uma escolha. Fui deixando todos morrerem aos poucos. Meu tio, minha sogra, minha mulher. Todos, menos meu filho. Uma questão de responsabilidade fiscal. Assim pudemos nos mudar para um apartamento melhor. Todo mundo tem direito a isso em nosso país. Basta usar a cabeça.
Mas foi também esse desenho que me colocou aqui na cadeia. O inspetor me deu voz de prisão por ter mantido o desenho na parede mesmo após receber uma advertência. E ele tinha razão, cometi um erro. Fui insubmisso. Agora meu filho está num orfanato. Confio no meu país e no meu regime. Sei que estão sendo bem cuidados. Sei que mereço a punição por não ter seguido as regras. Quando cumprir a pena e sair daqui, me reencontro com meu pequeno e tudo vai ficar bem de novo. Glória à Arstotzka!

Fundação de Bill Gates concede US$ 100 mil a três pesquisadores brasileiros

FABIO BRISOLLA
DO RIO
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Um projeto para acelerar a produção de medicamentos para parasitoses ainda comuns no Brasil e na África e dois para facilitar o plantio com técnicas de baixo custo receberão financiamento da fundação do bilionário Bill Gates, da Microsoft.
Cada um dos três pesquisadores brasileiros responsáveis pelos planos vai ganhar um patrocínio de US$ 100 mil (R$ 219 mil) que pode ser estendido a US$ 1 milhão (R$ 2,19 milhões) se a execução da ideia for bem-sucedida.
A indicação deles será anunciada em uma conferência promovida pela Fundação Bill e Melinda Gates, que começa hoje no Rio.
O encontro, realizado pela primeira vez no país, vai até quarta (30) e promete reunir mais de 600 pesquisadores já contemplados com o apoio financeiro dos programas batizados de Grand Challenges (grandes desafios), criados pela organização de Gates.
De 2.700 inscritos, 80 foram selecionados, entre eles o farmacêutico carioca Floriano Paes Silva Júnior, o engenheiro agrônomo paulista Mateus Marrafon e o engenheiro mecânico mineiro Ricardo Capúcio de Resende.
"O projeto vai ajudar na produção de medicamentos para doenças causadas por parasitas, como esquistossomose e filariose", disse Silva Júnior, 35, que trabalha na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio.
Daniel Marenco/Folhapress
O farmacêutico Floriano Paes Silva Júnior, 35, da Fiocruz, que receberá financiamento para pesquisas sobre parasitoses
O farmacêutico Floriano Paes Silva Júnior, 35, da Fiocruz, que receberá financiamento para pesquisas sobre parasitoses
O farmacêutico propôs o desenvolvimento de um software capaz de interpretar imagens de parasitas feitas com microscópio para avaliar quais medicamentos já existentes podem ser úteis para combatê-los. Essa análise automatizada da reação do parasita à substância poderia ajudar até a dizer qual será a dose ideal para matá-lo.
Até agora, essa avaliação se dá por meio da observação e da interpretação, feitas por um pesquisador, das características do causador da doença, o que leva a conclusões nem sempre consistentes. "Hoje o método é manual e subjetivo", disse Silva Júnior.
Mateus Marrafon, 29, pesquisador do Instituto Kairós, desenvolveu protótipos de uma fita biodegradável que envolve as sementes selecionadas para uma determinada plantação. Dentro da fita, que é enterrada no solo, as sementes são distribuídas de acordo com o espaçamento ideal para o crescimento.
"As máquinas agrícolas que distribuem sementes com o espaçamento adequado são caras. A fita é uma opção de baixo custo que vai ajudar o pequeno agricultor", disse Marrafon, que começou a pensar no projeto em 2006, quando estava na faculdade.
"Tentei de todas as formas buscar parceiros para desenvolver meu projeto, mas não consegui. Foi preciso recorrer a uma instituição de fora do Brasil para levar minha ideia adiante."
Ricardo Resende, 47, da Universidade Federal de Viçosa, também pensou em uma ferramenta que ajudasse no plantio. Projetou uma máquina com duas rodas, capaz de criar buracos no solo e, simultaneamente, lançar sementes. Seria a opção artesanal às semeadoras automatizadas usadas em grandes propriedades.
"É como um carrinho de mão que pode ser usado inclusive pelas mulheres, uma ferramenta ideal para a agricultura familiar."
A Fundação Bill e Melinda Gates também firmou parceria com o governo brasileiro. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, deve ir hoje à abertura da conferência para formalizar um acordo entre a Fiocruz e a instituição americana para a produção de um vacina dupla viral contra sarampo e rubéola.
Segundo a fundação, a vacina deverá ser exportada para países africanos.

Entrevista da 2ª Guilherme Estrella

Gestão de reservas de Libra deveria ser exclusiva do Estado, diz 'pai do pré-sal'


 
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
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As reservas de Libra são estratégicas e o Estado deveria ter contratado a Petrobras (que as descobriu) para operá-las em 100%. A opinião é de Guilherme Estrella, 71, considerado o "pai do Pré-Sal" (ele não gosta dessa denominação, pois diz que o mérito é de uma equipe).
Ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobras, o geólogo que mapeou a megareserva faz críticas ao leilão realizado há uma semana e alerta para problemas no interior do consórcio que vai extrair o petróleo (Petrobras, a anglo-holandesa Shell, a francesa Total e duas estatais chinesas).
Daniel Marenco/Folhapress
O ex-diretor da Petrobras, Guilherme Estrella, chamado de 'pai do pré-sal'
O ex-diretor da Petrobras, Guilherme Estrella, chamado de 'pai do pré-sal'
Para ele, as grandes empresas petrolíferas mundiais, inclusive a Petrobras, representam e defendem os interesses de seus países. "Energia é fator crítico da soberania e do desenvolvimento de qualquer país. Há, portanto, um potencial conflito de interesses geopolíticos absolutamente inerente à presença de estrangeiros numa gigantesca reserva petrolífera como é Libra. Se vai eclodir, não sei. Mas que está lá, está.", afirma.
Nessa entrevista, concedida por e-mail, ele fala da descoberta do Pré-Sal, de desafios tecnológicos e expõe suas dúvidas sobre a exploração do xisto nos EUA.
Folha - Por que o sr. foi contrário ao leilão de Libra?
Guilherme Estrella - As minhas críticas concentraram-se no aspecto estratégico para o Brasil. Trata-se de gigantesco volume de petróleo, agora compartilhado com sócios que representam interesses estrangeiros --de potências estrangeiras--, sobre cujo alinhamento com o posicionamento geopolítico de um país emergente da importância do Brasil não temos a menor garantia.
A Petrobras, que mapeou a estrutura de Libra e perfurou o poço descobridor, como empresa controlada pelo Estado brasileiro, deveria ter sido contratada diretamente, como permite o marco do Pré-Sal. Aliás, a inclusão desta alternativa teve como causa a eventualidade de se tratar com reservas cujas dimensões tivessem valor estratégico para o Brasil, e este é inquestionavelmente o caso de Libra.
O leilão foi um erro estratégico? Foi lesivo ao país?
Não afirmo que tenha sido um erro estratégico, tampouco que tenha lesado os interesses do país. O que defendo é que a decisão do governo em fazer o leilão de Libra, em vez de contratar diretamente a Petrobrás, como prevê o marco justamente para situações excepcionais --como é Libra--, deveria ter sido discutida com a sociedade e também com a base de apoio do governo no Congresso Nacional.
Nesta discussão, todos os motivos que suportam a decisão do governo seriam conhecidos e a discussão poderia levar a um consenso ou não, caso em que o governo tomaria sua decisão, conforme lhe garante a lei.
Como isto não aconteceu, com os dados e informações que estão disponíveis, construo minha opinião, que é a mesma de muitos outros cidadãos brasileiros: de que, concretamente, a contratação direta da Petrobrás para desenvolver e produzir Libra seria a melhor estratégia brasileira, diante do papel destinado ao Brasil no cenário geopolítico e energético mundial ao longo, no mínimo, desta primeira metade do século 21.
A Petrobras poderia operar sozinha?
A própria presidente da companhia afirmou que a Petrobras tinha o maior interesse em operar Libra sozinha, mas que só poderia iniciar os trabalhos em 2015. 2015 é amanhã. Não subsiste, portanto, o argumento de que leiloar Libra agora seria para antecipar a produção.Não aflora qualquer razão para que esta não tenha sido a decisão do governo, pelo menos que tenha sido explicada publicamente ao povo brasileiro.
Sobre o percentual mínimo estabelecido no edital para a parte do Estado brasileiro --menos que 42%-- não posso me pronunciar, pois o governo, também aqui, não deu qualquer informação sobre a racionalidade econômica que existiu por trás deste número.
Acusar de xenofobia aqueles que defendem esta opinião é injusto, equivocado e apequenador da dimensão estratégica do assunto em debate. Seria equivalente a acusar este governo de centralizador e arrogante, disposto a exercer um direito político --ainda que legal-- de decidir questões desta magnitude de forma monocrática, sem ouvir, no mínimo, suas bases de apoio organizadas na sociedade. O que, certamente, não é o caso do atual governo, como todos sabemos.
Por que o governo tirou da Petrobras a possibilidade de operar sozinha no Pré-Sal? Só a questão do superávit primário explica esse movimento?
Será que podemos priorizar exigências financeiras momentâneas com aspectos econômicos e políticos da estratégia geopolítica brasileira ao longo deste século 21? Esse é o ponto e acho que deveria ter sido discutido com a sociedade.
A revista alemã "Der Spiegel" disse que o Brasil leiloou um tesouro por uma pechincha. O sr. concorda?
Não conheço a racionalidade econômico-financeira que levou aos 41,65%. Fantástico. Como geólogo não consigo entender como chegaram a esta precisão! Não posso opinar. Como disse, não tenho informações sobre a racionalidade econômica que desaguou neste super preciso percentual de 41,65%. Não é 41,64 nem 41,66, é 41,65 cravados!
O sr. considera inapropriado ter sócios estrangeiros na exploração do Pré-Sal?
Em momento algum sugeri que ter sócios estrangeiros no Pré-Sal é "inapropriado". O que argumento é que, em se tratando de uma imensa riqueza estratégica concentrada (em Libra) de um produto de tal forma fundamental e sensível para o mundo --e principalmente para as nações hegemônicas mundiais dele dependentes-- a sociedade brasileira tem o dever de discutir a conveniência de tê-las como sócios.
Ninguém desconhece que as grandes empresas petrolíferas mundiais, inclusive a Petrobras, representam e defendem os interesses de seus países-sedes, nos países onde atuam. E neste ponto não se diferenciam empresas estatais ou privadas.
O sr. acha que essa decisão sobre libra é danosa à soberania brasileira?
Não acho que a soberania brasileira tenha sido afetada.
Apenas levanto a possibilidade de enfrentarmos dificuldades, no futuro, caso haja qualquer divergência --ou até mesmo conflito-- entre interesses geopolíticos brasileiros e aqueles dos países representados no consórcio de Libra --todos protagonistas importantes no cenário mundial hoje e ao longo deste século 21-- por suas respectivas empresas.
Estas dificuldades --ainda que no campo das possibilidades-- estariam inteiramente evitadas, não ocorreriam de maneira alguma se Libra estivesse sob gestão exclusiva --100% do petróleo produzido-- do Estado brasileiro através da contratação direta da Petrobras para desenvolver e produzir Libra.
Por que Libra é estratégico?
O caráter estratégico das reservas petrolíferas é inquestionável, como todos sabem. Não se invadem e ocupam militarmente países soberanos para apropriação de refinarias. É possível construir uma refinaria em qualquer lugar do planeta, mas as grandes reservas de óleo e gás estão onde as condições geológicas assim o determinaram. O pessoal da Argélia, do Iraque, da Nigéria, da Líbia, do Egito sabe disto na pele.
O Sudão do Sul foi "fundado" por causa disto. As monarquias medievais, absolutistas e repressoras da Península Arábica são mantidas pelo mesmo motivo: assegurar reservas de petróleo e gás natural às grandes potências hegemônicas ocidentais. Não se está a ver fantasmas! Esta é a realidade fática da geopolítica mundial, escancarada e desavergonhadamente exibida nas últimas três décadas por meio de ações políticas e militares por parte dos países centrais ocidentais. Não há como desconhecer esses fatos.
Seu alerta está relacionado aos interesses divergentes entre produtores e consumidores de petróleo presentes no consórcio? Produzir mais rápido e deprimir preços ou produzir de acordo com visão estratégica, sem derrubar preços? O que seria melhor para o Brasil?
A turma de topo da Opep controla o preço, mas não tem soberania, autonomia, independência para sustar o suprimento. Simplesmente porque interesses divergentes entre grandes produtores e grandes consumidores não conflitam por causa do preço do barril, mas pelo compromisso dos produtores em suprir incondicionalmente os volumes exigidos pelas economias hegemônicas representadas pelos grandes consumidores.
Gente que estudou o assunto afirma que o barril de petróleo do Oriente Médio sai a mais de US$ 300 para a UE e para os EUA, na condição "all in" dos custos de manutenção militar do status quo daquela região para barrar, pelas armas, qualquer iniciativa que tenda a mudar o quadro atual.
O Brasil é um país diferenciado. De dimensões continentais, privilegiado em riquezas naturais, único em integridade nacional (uma só língua, cultura diversa, mas coesa etc.). Temos reservado um papel de protagonista geopolítico mundial igualmente diferenciado e socialmente muito positivo neste século 21.
De uma hora para outra, este país aparece como uma potência energética, cujas reservas potenciais, em processo acelerado de comprovação, de petróleo e gás natural impactam o quadro energético mundial. Tudo indica que irão contrabalançar, junto com a costa oeste africana o peso do Oriente Médio, a médio e longo prazos, para suprir EUA e UE.
Isso nos obriga, como país soberano, a nos prepararmos para assumir esse papel _de não mais coadjuvante, mas de protagonismo mundial diante desta muitíssimo sensível realidade. A quarta frota [dos EUA] está aí, ressuscitada não por outro motivo.
Este é o quadro já presente, materializado. E se tornará mais agudo ao longo deste século 21.
Dentro deste contexto, não seria mais conveniente que um imensa acumulação de petróleo, como Libra, ficasse 100% nas mãos do Estado brasileiro, com o poder de gerenciar tudo o que lhe concerne sem qualquer ingerência de interesses estrangeiros, quaisquer que os sejam? Isso é permitido no marco do Pré-Sal, quando abre a possibilidade de contratação direta da Petrobras, cláusula aprovada exatamente para situações, como essa de Libra, absolutamente diferenciadas sob o ponto de vista geopolítico mundial. Ainda mais a 300 quilômetros da costa, nas proximidades dos limites territoriais marítimos nacionais, ainda em processo de aceitação pela ONU.
Quando o sr. fala dos custos reais para os EUA e UE do petróleo saudita, de quanto seria o custo no pré-sal comparativamente?
Os custos totais de produção do pré-sal --que chamamos de CTPP-- estão muito abaixo dos atuais valores internacionais do barril, mas trabalhamos duro e ininterruptamente para reduzí-los. Não só por melhoria contínua nos processos de produção, mas fazendo esforço de desenvolver inovações tecnológicas que visem este objetivo.
O que cada um dos sócios da Petrobras busca nessa associação?
Os sócios se interessam, essencialmente, por assegurar suas respectivas partes em óleo produzido. No caso dos chineses para suprir prioritariamente seu mercado nacional, ávido de energia para sustentar o crescimento extraordinário da economia chinesa ao longo da primeira metade deste século, pelo menos. Shell e Total também, mas são já globalizadas e com mercados muito distribuídos além do europeu.
Sobre esses possíveis conflitos de interesses dentro do consórcio, o sr. diria que o Brasil (e a Petrobras) caíram em uma espécie de armadilha?
A participação da PPSA nos consórcios, com poder de veto, consta do texto do marco justamente para que todo o processo, desde a construção do Acordo de Operação Conjunta até as atividades operacionais propriamente ditas, seja controlado pelo governo brasileiro.
Portanto, não há "armadilhas" no modelo de partilha adotado pelo Brasil. O governo brasileiro tem total controle de tudo.
Como seriam essas divisões internas? França e China do lado de consumidores, querendo acelerar a produção? Que mais? Como elas se podem contrapor à Petrobras e ao interesse brasileiro?
A simples presença de interesses estrangeiros --por meio da participação de suas empresas petrolíferas no consórcio de Libra-- pode, em tese, gerar conflitos. Se estivéssemos tratando de um processo industrial de uma commodity comum, periférica, qualquer problema poderia ser facilmente resolvido.
Esse é o ponto central de minha opinião. Energia, especialmente petróleo e gás natural, é fator crítico da soberania e do desenvolvimento econômico, social, científico e tecnológico de qualquer país. Mormente daqueles que são protagonistas hegemônicos da cena mundial e daqueles outros que, por sua magnitude e seu potencial de riquezas naturais, de todos os tipos, como o Brasil, se candidatam para igualmente atuar como protagonistas mundiais e não mais como simples coadjuvantes, periféricos. Só esta realidade, em sua essência geopolítica, já é conflituosa. Lembremo-nos do [Henry] Kissinger, que disse mais ou menos isso : "Os EUA têm que se preocupar é com aquele gigante lá no Sul que, quando se levantar, vai dar um trabalhão danado para ser controlado".
Há, portanto, um potencial conflito de interesses geopolíticos absolutamente inerente à presença de estrangeiros numa gigantesca reserva petrolífera como é Libra. Se vai eclodir, não sei. Mas que está lá, está. Esse é o ponto!
A China quer aprender a operar em águas profundas?
Pode ser que aja interesse na obtenção de conhecimento de engenharia de projeto e operacional para produzir em águas ultraprofundas. É muito importante, mas não é o essencial.
O Brasil não deveria proteger essa tecnologia?
Proteger tecnologia no mundo atual não é o foco das grandes empresas petrolíferas. O esforço maior, concretamente falando, é assegurar a condução das operações --serem operadoras. Porque é na operação, no dia-a-dia, na vivência com as broncas e dificuldades que ocorrem na frente operacional que consiste o real valor do aprendizado contínuo-- de engenharia e pragmático (isto é que é, no final das contas, tecnologia) --que vai permitir a permanente e contínua inovação, advinda de novos conhecimentos e, em decorrência, de novos projetos e novos processos. Operar, principalmente numa ambiência de certa forma nova, onde o conhecimento científico e de engenharia e a competência operacional concentram-se em muito poucas empresas--como no Pré-Sal brasileiro --materializa-se numa inexcedível vantagem competitiva para as empresas petrolíferas. E não foi por outro motivo que a exclusividade da operação pela Petrobras, estabelecida no texto do marco do Pré-Sal, foi --e é!-- tão combatida por aqueles que, de certa forma, refletem os interesses das empresas estrangeiras, contrariados em aspecto essencialmente estratégico sob o ponto de vista da indústria.
No caso específico do Pré-Sal, este trabalho ininterrupto de obtenção/geração de novos conhecimentos e de inovação permanente foca, principalmente em dois pontos centrais: diminuição de custos e contínuo atendimento aos pressupostos da segurança operacional. Quer dizer, no geral, não há qualquer salto tecnológico necessário para produzir o Pré-Sal, como aliás é comprovado pela já significativa produção da Petrobras.
Por que as norte-americanas saltaram fora?
Com meus quase 50 anos "sujando" as mãos de óleo, fico desconcertado quando não consigo construir uma convicção sobre qualquer assunto relacionado ao setor petrolífero, tão rico em suas características, as mais variadas possíveis --políticas, econômicas, científicas, tecnológicas, sociais, militares e outras mais. Pois bem, sinto-me desconcertado com a ausência da Exxon e da Chevron. O que penso são ainda especulações. Por exemplo. Correu há algum tempo, por volta de 2010, 2011, no setor petrolífero mundial, que a Exxon conseguiu do governo angolano mais do que a Petrobras com o novo marco, com respeito à exclusividade das operações.
Obteve um acordo de "preferência" com os angolanos, tendo o direito de decidir se vai ou não operar qualquer descoberta no pré-sal daquele país, independentemente de que empresa que a tenha realizado. Sua ausência no leilão de Libra poderia ter algo a ver com isto? Ou não seria ao contrário, fazer parte da produção no Brasil não poderia ser um grande aprendizado para ajudar no exercício do privilégio de aceitar ou não a operação em certas descobertas em Angola?
Acho que a Chevron está na base do "gato escaldado tem medo de água fria". A pancada que tomaram em Frade [vazamento de 3,7 mil barris de óleo em 2011] repercutiu com extrema dramaticidade na companhia, que é muito séria e competente _sou testemunha pessoal disso. Talvez tenham erroneamente superestimado os riscos operacionais, todos inteiramente mapeados e neutralizados pela Petrobras com a participação, naturalmente, dos parceiros que com ela produzem do Pré-Sal há mais de dois anos. E isto é, a cada dia que passa, mais concreto e consistente.
Alguns ligam a ausência das norte-americanas aos investimentos no xisto. Qual sua visão sobre o xisto? É uma revolução energética?
Coloco "xisto" entre aspas. A tradução de "shale" é folhelho, termo geológico que é até difícil de falar já que encadeia dois fonemas "lh". Folhelho é uma rocha composta por grãos infinitamente pequenos de argila e, por isso, com permeabilidade quase zero. No caso, o gás está nos microporos, entre os grãos de argila e não sai de lá. Para sair tem que quebrar o pacote rochoso de folhelho, fraturar em gigantescas operações de injeção de água, utilizada como fluído de fraturamento.
Este assunto dá um livro. Mas há fatos inquestionáveis.
1. As reservas potenciais são, realmente, muito grandes. 2. Os poços exaurem-se muito rapidamente, não duram meses. 3. Perfuram-se milhares de poços, em áreas rurais e nas cercanias de cidades do meio-oeste americano. Como os poços duram muito pouco, a atividade de perfuração é frenética, descontrolada. Exige infraestrutura de suprimento de grandes dimensões, com grandes impactos sociais nas comunidades antes bucólicas e ultraconservadoras do interior americano. 4. O uso de água é gigantesco; já há casos de esgotamento de lençóis freáticos e falta de água nas cidades. Alguns Estados já proibiram as atividades.
5. O fluído de fraturamento contém produtos químicos altamente agressivos e tem sido comum a poluição de aquíferos potáveis por estes agentes químicos, interrompendo sua utilização para o homem e para a pecuária. 6. As reservas de gás, como sempre acontece, esgotam-se rapidamente e existem, também como sempre, as incertezas geológicas coladas às atividades de exploração e produção. Especialmente quanto às reservas de gás não provadas, como é o caso, os níveis de imprevisibilidade são elevados e surpresas negativas são prováveis de acontecer. É preciso ter cuidado nas extrapolações. 7. Em razão do baixo preço do gás, e do colapso causado pela enorme oferta em pouquíssimo tempo, milhares de sondas já se mobilizam para perfurar para óleo, cujo preço, ainda nos US$ 100 por barril, garante lucros muito mais significativos.
O governo norte-americano, com a prudência necessária, mantém a proibição de exportação de petróleo por empresas que supriam mercados com líquidos que agora foram inteiramente substituídos pelo gás. Micaram com o óleo e apelaram ao governo para que suspendesse a proibição. Sem sucesso.
Resumo da ópera do "shale gas": tem que dar tempo ao tempo.
A presidente nega que tenha havido uma "privatização". Houve? Por quê?
Privatização. Não houve, no sentido estrito do termo. Mas, de qualquer maneira, seria muito menor se a Petrobras fosse contratada diretamente para desenvolver o campo.
A Petrobras precisa de um reajuste logo no combustível para viabilizar os seus investimentos? O que de exato existe nessa discussão sobre preços?
A Presidente da Companhia afirma e reafirma que não haverá a necessidade de reajuste de preços para enfrentar os gastos com o bônus de Libra. Esse assunto de reajuste de combustíveis é hilário.
A Petrobras fez 60 anos. Desde então, a Petrobras é além de uma empresa "do" governo, uma empresa "de" governo de qualquer governo e não poderia ser diferente tal a importância econômica que a empresa exerce no ambiente brasileiro. E isso parece um verdadeiro "tabu". Todo mundo sabe o que acontece na vida real e faz tremendo esforço em afirmar que "não! A diretoria da Petrobras é independente, tem total autonomia para definir os preços dos combustíveis... E a turma da oposição qualquer oposição, a todos os governos fica a acusar incansavelmente o governo de "utilizar a gestão da Petrobrás na condução de sua política econômica".
Também se fala que a Petrobras deveria reduzir a exigência de nacionalização. Isso não seria ruim para o país?
Conteúdo nacional. Aqui você toca num tema decididamente crítico para o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico do Brasil.
Começo com uma história.
Descia eu pela Rua Aperana, aqui no Leblon, onde morava quando exerci a maior parte do período de diretor da Petrobras, quando encontrei um antigo colega de superintendência da companhia, quando eu era o superintendente do Cenpes. Era o engenheiro Carlos Aguiar, então superintendente da Área de Materiais da Petrobrás, homem ligado ao desenvolvimento de fornecedores brasileiros para substituir material importado.
O tempo era o da construção no Brasil das plataformas de produção, extraordinário programa do governo Lula para não só abrir milhares de empregos no país como para ressuscitar a indústria naval brasileira apoiada nos projetos de produção da Petrobras.
O Aguiar me disse uma frase que me acompanhou por todo o longo --9 anos-- tempo em que exerci a diretoria de Exploração e Produção da companhia: "Estrella, vamos construir no Brasil, tudo bem. Mas não podemos deixar que o "conteúdo nacional" seja acéfalo!".
Esta foi uma luta que o grupo de profissionais e gerentes da Petrobras, com o qual tive a honra de trabalhar, empreendeu no sentido de criar condições para que empresas genuinamente brasileiras se incorporassem ao esforço nacional de "construir no Brasil tudo o que puder ser construído no Brasil".
O processo de desenvolvimento tecnológico começa com saber operar as máquinas importadas. Meu pai contava que o Roberto Marinho, na década de 1930, importou rotativas alemãs para modernizar o parque impressor de "O Globo". Instalou as máquinas e chamou o Getúlio [Vargas] para o momento solene de acioná-las pela primeira vez. O Getúlio "pam" empurrou a alavanca e... nada aconteceu. Estabeleceu-se um clima de desconforto com o presidente da República, que foi solicitado a repetir o gesto, objeto das inúmeras lâmpadas de "flash" dos repórteres presentes. "Pam" novamente e... nada novamente. Mui polidamente, Roberto Marinho pediu desculpas e transferiu a solenidade. Após isso, reuniu-se com a equipe técnica de "O Globo" para saber o que ocorrera. Ninguém sabia. Disseram apenas que tinham montado a engenhoca "by the book", como dizem os engenheiros, de acordo com o manual. Não houve jeito. Chamaram um alemão, que veio de Zeppelin, numa milionária viagem de uma semana, pois de navio demoraria três meses. O alemão chegou, olhou, pensou não mais que um minuto e disse algo naquela língua centro-européia bárbara, de fora das longínquas fronteiras do Império Romano, que o intérprete balbuciou : "Uma chave-de-fenda, por favor".
Rapidamente atendido, colocou a chave num pequeno parafuso, girou meia volta e ordenou, segundo o intérprete : "Liguem a rotativa". Um engenheiro brasileiro pegou a alavanca antes inservível e "pam": a rotativa ronronou e começou a trabalhar, sem qualquer problema. Lição: não sabíamos sequer operar uma máquina de primeira geração tecnológica.
O final do ciclo é saber projetar as máquinas que operam no sistema industrial em que se atua. No meio, está a etapa da construção dessas máquinas. Se ainda não construímos no Brasil, temos que fazê-lo. Mas --isso é indispensável-- gerenciar o processo de modo que, no mais curto prazo de tempo, adquiramos a competência em engenharia, nas empresas e na academia brasileiras para projetar máquinas ainda mais avançadas, inovações em relação ao que hoje se considera o limite da tecnologia. Se esta etapa não acontecer, muito pouco foi conseguido em termos de autonomia de decisão quanto à escolha e aplicação da tecnologia que melhor nos servirá para resolvermos nossos próprios problemas.
Continuaremos a ser o "chão de fábrica" _muitíssimo importante, mas não suficiente para um Brasil efetivamente soberano e autônomo no concerto mundial das nações desenvolvidas. A verdadeira inteligência, a competência técnico-científica continuará a vir de fora. Não precisamos chamar o "alemão" para botar a máquina em funcionamento ou até repará-la em caso de pane. Mas se quisermos substituí-la por uma mais moderna, será o "alemão" quem a projetará e nos venderá o projeto se assim o governo de seu país autorizar a empresa da máquina a fazê-lo.
A traduzir este desafio, temos a definição do século 21 como o século da "economia do conhecimento" e a imagem de desenvolvimento tecnológico: " É como subir uma escada rolante pela faixa de descida : se parar, desce".
Esse foi o recado do Aguiar. Tenho a plena consciência de que a equipe em que trabalhei fez o possível para avançarmos neste sentido. É importante que se registre a grande ajuda que tivemos do BNDES, da Finep, da Coppe no trabalho que desenvolvemos na Exploração e Produção e na Petrobrás como um todo. Criamos exigências contratuais para que as empresas estrangeiras que se instalassem no Brasil para construir máquinas e equipamentos, até então importados, a serem utilizados pela Petrobras, montassem equipes de engenharia de projetos na filial brasileira, para não ficarem na dependência de seus centros de tecnologia no exterior.
Para as empresas genuinamente brasileiras, trabalhamos para criar condições de financiamento e de assistência técnico-científica para que, não só adquirissem condições de competitividade, como consolidassem suas respectivas competências para a inovação e melhoria contínuas de seus processos produtivos, de modo a atender especificamente as exigências e necessidades das atividades operacionais da Petrobras.
Chegamos a iniciar um trabalho de tentar quebrar oligopólios tecnológicos mundiais para fabricar itens de tecnologias "sensíveis"--como turbinas-- no Brasil.
Ainda com respeito à construção das plataformas no Brasil, fomos sempre muito criticados pelo fato de o custo brasileiro ser maior do que os de Cingapura, do Golfo Arábico e da China. E têm que ser. Sou pessoalmente testemunha das diferenças qualitativas entre as condições de trabalho oferecidas, por lei, aos trabalhadores. Não há comparação. Aqui no Brasil praticamos uma relação capital X trabalho muito mais avançada, muito mais ética e justa que em muitos lugares no exterior, onde é comum se construir em condições absolutamente inaceitáveis para o trabalhador brasileiro.
Se há exigência, muito saudável, de competitividade, vamos enfrentá-las. Mas em condições de igualdade de patamar na qualidade das relações capital X trabalho. E não competir com mão de obra quase escrava.
O que o sr. achou da criação da empresa que vai administrar o Pré-Sal?
A PPSA entra como uma parte imprescindível nos consórcios para contribuir na definição dos Acordos de Operações Conjuntas (sigla "JOA" em inglês), que é o documento básico que vai orientar as operações do consórcio e aprovar e auditar tecnicamente os custos destas operações para efeito de definir o que se chama de "óleo custo", parcela de que os consórcios serão reembolsados.
Como fica a Petrobras depois desse leilão?
A Petrobras se desempenhará em patamares de excelência de sua função de operadora da cumulação de Libra. Foram as equipes de exploracionistas da Petrobras que mapearam a estrutura da gigantesca acumulação. Foi a Petrobras que construiu o primeiro poço descobridor de Libra. É a Petrobrás que detém, no mundo, as mais extensas competência e experiência para operar em águas ultraprofundas. É a Petrobrás, dentre todas as empresas petrolíferas mundiais que tratam do assunto, que possui o mais avançado conhecimento geocientífico das rochas-reservatórios do pré-sal (aspecto tecnicamente crítico e economicamente decisivo para o desenvolvimento da acumulação).
Enfim, como é reconhecido por todo o setor petrolífero mundial, é a empresa que detém as melhores condições para ser a operadora de Libra e do restante das acumulações que ainda serão descobertas na chamada "picanha azul" --designação que, pessoalmente, não gostei, mas isso é "ranzinzice" de minha parte.
O que é a "picanha azul"?
O mapa de contorno da área em que os exploracionistas da Petrobras circunscreveram a provável ocorrência dos reservatórios produtores do pré-sal, que vai de Vitória (ES) até Florianópolis (SC), no mar territorial brasileiro, tem grosseiramente o formato de uma picanha, peça de carne bovina por nós tão apreciada.
Coloriram o interior deste perímetro com a cor azul.
Daí surgiu o nome de "picanha azul". Não foi escolha minha. Considero de gosto discutível esta analogia. Mas "pegou", já estava consagrado e assim ficou.
A presidente traiu seu compromisso de campanha ao leiloar Libra, conforme muitos têm afirmado?
Não acho que a presidente Dilma esteja descumprindo seus compromissos de campanha. Os grandes e mais importantes itens sociais e econômicos das políticas inauguradas pelo presidente Lula em 2003, a ter como principais beneficiários as camadas mais carentes do povo brasileiro, têm sido perseguidos, com sucesso pelo governo Dilma e as pesquisas de opinião estão ai para não me desmentir.
Como petista, o sr. está frustrado?
Não estou frustrado como petista. Tenho consciência, vejo isto no dia-a-dia da vida dos brasileiros, de que os governos do Partido dos Trabalhadores desde 2003 transformaram o Brasil, tiraram da pobreza e da miséria dezenas de milhões de irmãos nossos e mudaram diametralmente a lógica de governar o país, tendo o povo como objeto central das ações de governo. E ninguém pode negar isto.
Isto não quer dizer que, como cidadão, tenha que concordar e defender todas as medidas e decisões que o governo do partido ao qual sou filiado venha a tomar.
Por que o sr. é tido como o "pai do Pré-Sal"?
Foi coisa da imprensa. Eu sempre rejeitei esta "alcunha", que na verdade, para os que conhecem a atividade exploratória, é mesmo depreciativo, na medida em que exploração de petróleo e gás natural é trabalho de equipe, não tem essa de "eu descobri".
A descoberta do pré-sal brasileiro resulta da competência das equipes de exploracionistas da Petrobras. São geólogos, geofísicos e outros profissionais que, desde a fundação da companhia e por ela intensamente treinados, tanto internamente quanto nas melhores universidades brasileiras e no exterior, trabalham na interpretação geológica das bacias sedimentares brasileiras.
Explorar petróleo e gás natural é, essencialmente, uma atividade de pesquisa científica que envolve custos altíssimos, mas que, tendo sucesso, garante um retorno ainda mais significativo.
Mas houve também um fator de política energética, igualmente importante.
Em 2003, por determinação do governo Lula, a Petrobras retomou os esforços para avançar pesadamente nas atividades de exploração e produção, de certa forma contidas no governo anterior, quando o monopólio foi quebrado. A companhia concentrava estas atividades na Bacia de Campos, grande produtora, já que outras bacias deveriam ser objeto de leilões de concessão.
A Petrobras detinha blocos em outras bacias, alguns na vizinha e gigantesca Bacia de Santos, de onde se produzia menos de 1 milhão de m3 de gás por dia no Campo de Merluza, antigo dos contratos de risco, descoberto pela Shell e operado pela Petrobras.
Atendendo à determinação do governo de expandir nossas atividades, deslocamos sondas da Bacia de Campos para a de Santos e as descobertas se sucederam: Mexilhão (descoberta importantíssima de gás natural na medida que enfrentávamos a dependência da importação da Bolívia) e os campos de óleo de Uruguá e Tambaú. Estas descobertas exibiram logo a grande potencialidade da Bacia de Santos, até então não materializada. Mas que existia, teoricamente, nas interpretações dos exploracionistas da companhia. Continuaram os investimentos exploratórios e, em 2006, descobrimos o pré-sal.
Resumo da ópera. Não há essa de "pai do pré-sal", tampouco de pai de descoberta alguma nas atividades exploratórias de qualquer empresa petrolífera, resultante sempre do trabalho e da competência desta que costumo chamar de "estranha e complicada tribo dos geólogos".
Aproveito para reforçar minha opinião sobre a decisão de leiloar Libra e não contratar diretamente a Petrobrás.
São fatos: a) Local: Bagdá, Iraque; b) Data: segundo semestre de 1977; c) Ocorrência: o gerente-geral e o gerente de exploração da Braspetro Iraque são convocados à sede da INOC (companhia estatal iraquiana de petróleo). Somos recebidos pelo diretor da INOC responsável pelos contratos de Exploração e Produção que o Iraque tinha com a Petrobras e com a Elf francesa.
O homem nos comunica, com certa solenidade: "O governo do Iraque determinou que lhes fosse comunicado que o contrato que temos com a Petrobras deverá ser cancelado. As negociações sobre isto devem iniciar-se tão logo quanto possível. Os senhores devem comunicar imediatamente essa decisão do governo do Iraque aos seus superiores no Brasil e solicitar que um representante do mais alto escalão de sua empresa, com poderes de negociar em nome dela, compareça a Bagdá para que se iniciem os trabalhos".
Estupefatos, perguntamos a razão desta decisão, já que cumpríamos integralmente o contrato, sempre com as melhores relações com a INOC e com o governo iraquiano.
E o homem nos respondeu : "Senhores, a Petrobras descobriu um campo gigantesco (Majnoon), com dezenas de bilhões de barris de reserva, e que vai produzir mais de 1 milhão de barris por dia, a metade que o Iraque produz hoje. No momento, o Brasil e a Petrobras têm interesses estratégicos no setor petrolífero internacional que não conflitam com os interesses nacionais da república do Iraque. Mas isto é 'no momento'. O cenário internacional, principalmente o da energia, se transforma constantemente. Não há como assegurar que no futuro, mesmo não tão distante, os interesses de Iraque e Brasil não venham a se distanciar. Em vista disso, e o governo de meu país adianta que é com certo desconforto, pelo que nos desculpamos, considera que a manutenção desse contrato fere a estratégia nacional quanto à gestão de seus recursos petrolíferos. Por isso devemos nos sentar à mesa para negociar a extinção do contrato e garantir à Petrobras e ao Brasil que seus investimentos sejam devidamente ressarcidos, sem qualquer prejuízo para vocês".
Anos depois, por causa inclusive de Majnoon, o Iraque foi invadido e ocupado por tropas estrangeiras. Perdeu sua soberania como nação e atravessa décadas de terrorismo total com o genocídio que todos conhecemos.
Claro que não podemos comparar o Brasil com o Iraque, e aqui não vai qualquer desmerecimento àquele país e ao seu povo, do qual conheço alguma coisa. Mas estes fatos são uma inegável lição que temos sempre que levar em consideração.

Falhas de memória - Oswaldo Mendes

FOLHA DE SÃO PAULO
É estranho supor que Samuel Wainer tenha assumido um jornal sabendo que ele era, ainda que "supostamente", ligado às tenebrosas milícias
Para se desculpar de apressadamente suspeitar do biógrafo de Roberto Carlos, a quem acusou de citar uma entrevista que ele não teria dado, mas deu, em 1992, Chico Buarque garante que nunca falou em 1970 ao jornal "Última Hora" (de São Paulo) que, segundo acusa, era "supostamente ligado a esquadrões da morte". No mesmo pedido de desculpas, Chico diz que deu entrevista anos depois, em 1977, para a "Última Hora' do Samuel Wainer".
Ao amenizar o fato de discordar do amigo quanto a censurar ou não as biografias, o professor José Miguel Wisnik escreveu em "O Globo" que Chico "tem razão no que diz sobre o Última Hora' (fui colunista em 1975 e sei bem que o jornal de 1974 era radicalmente diferente do de 1970)".
Se o compositor e o professor tivessem o rigor dos historiadores, de biógrafos responsáveis e de jornalistas sérios, não confiariam tanto na memória, que pode ser maliciosa e leviana, e checariam fatos, datas, nomes e circunstâncias antes de ligar o ventilador e jogar farinha na biografia dos outros.
Pois eu estava na "Última Hora" (UH) em 1970 --fui registrado em outubro do ano anterior. Em 1974, passei a editor, quando Samuel Wainer assumiu a direção e abriu o jornal a jovens colunistas, entre eles, é verdade, o professor José Miguel.
Chico ignora, e o professor que "sabe bem" não o informa, que Samuel não era mais dono da UH, cuja sucursal de São Paulo ele vendera a Octavio Frias de Oliveira, do Grupo Folha, logo depois do golpe de 1964. Ao voltar do exílio em 1974, Frias, em um gesto de civilidade, ofereceu-lhe a direção do jornal.
Por conta da minha ligação com o então chamado meio artístico, Samuel me elegeu para acompanhá-lo na sua reaproximação com a vida paulistana. Por meses, depois do fechamento, saíamos pelos teatros, shows, eventos e restaurantes badalados de então. Sedutor, Samuel logo ficou amigo de todo mundo.
Mas como o professor José Miguel diz "saber bem" a diferença entre a UH de 1970 e a de 1974, gostaria que ele nos ministrasse uma aula e nos tirasse da ignorância. Para ajudá-lo, lembro que foi na redação da UH que aconteceram as reuniões que transformaram em 1971 a Associação Paulista de Críticos de Teatro em Associação Paulista de Críticos de Arte. À frente estava João Apolinário, poeta português que se exilara no Brasil fugindo da ditadura de Salazar. Ele achava que os jornalistas críticos de arte deveriam se juntar aos artistas na luta contra a censura em uma entidade forte.
Lembro ainda o professor que, na mesma época, um dos colunistas da UH era Plínio Marcos, que já não encontrava emprego em lugar nenhum e cujas peças de teatro estavam proibidas pela ditadura.
Não é estranho que um jornal dos esquadrões da morte acolhesse alguém como Plínio? Mais estranho ainda que o professor (e o compositor) imagine que Samuel tenha assumido um jornal sabendo que ele era, ainda que "supostamente", ligado às tenebrosas milícias.
Enfim, em respeito à memória de Plínio, Apolinário e Samuel, e em respeito aos sobreviventes, esperamos que o professor nos ilumine e diga hoje o que não sabíamos na época. Éramos todos imbecis desinformados ("inocentes úteis" como se dizia)? Por que o professor e o seu amigo compositor não nos alertaram? Não aleguem falha de memória, pois ela não desculpa a leviandade de apontar o dedo a esmo sobre a biografia alheia.

Mais que bom senso

folha de são paulo
SÉRGIO RANGEL
RIO DE JANEIRO - Você está cansando do ritmo de trabalho nos últimos anos. Pede bom senso e solicita uma reunião. Pressionado pelo apoio de seus colegas, seu líder o recebe, promete lhe tratar melhor no próximo ano e marca um novo encontro alguns dias depois.
Para a nova data, o comandante enche a sala com uma série de representantes oficiais do setor. Um deles foi financiado durante anos por verba repassada mensalmente pelo anfitrião. Você participaria de uma reunião dessas?
É isso que vai acontecer hoje na sede da CBF, no Rio, no encontro marcado pelo presidente José Maria Marin com os integrantes do Bom Senso F.C., grupo formado por mais de mil jogadores das Séries A e B do Brasileiro. Os atletas pedem uma redução na maratona de jogos no próximo ano e um período mais adequado para a pré-temporada, entre outras reivindicações.
Nesta tarde, Marin vai se sentar bem próximo do representante do Sindicato do Futebol, que deverá ser Mustafá Contursi, atual mandatário da entidade que reúne os clubes e as federações estaduais.
O sindicato cresceu com a ajuda financeira do "mensalinho" da CBF, nome dado pelos cartolas aos repasses feitos pela confederação às federações e a aliados (cerca de R$ 60 mil atualmente). Além do apoio da CBF, o sindicato tem como tesoureiro um diretor de Marin, Reinaldo Carneiro Bastos.
Há dois anos, a entidade ganhou o noticiário depois de receber R$ 6,2 milhões do Ministério do Esporte para fazer o cadastramento de torcidas organizadas. Detalhe: o serviço não foi realizado.
Calouros nos bastidores do poder, os jogadores vão precisar hoje mais do que bom senso para ter sucesso na reunião, onde os personagens vestem ternos, o campo é de carpete e não há torcedores.

O partido da violência - Vinicius Mota

Folha de SÃO PAULO - Depois de quatro décadas, a violência voltou a ser reivindicada como meio válido de fazer política no Brasil. Um neoanarquismo difuso e mal letrado encontra na estampa importada "black bloc" um meio de expressar a sua fúria.
O ataque contra policiais passa a ser estimulado. O espancamento do coronel da PM paulista Reynaldo Simões Rossi, nesta sexta, não foi ato fortuito nem isolado.
Os "black blocs" são poucos, decerto. Condenam os seus métodos 95 de cada 100 paulistanos. Essa recidiva da brutalidade política, porém, não nasce do nada.
Nutre-se de um pensamento de esquerda --bem situado na academia e no Estado-- que há décadas demoniza a polícia, em especial a militar. Para essa elite influente, quase 30 anos de democracia não bastaram para retirar de toda repressão policial a mácula preliminar do autoritarismo.
O Partido da Violência se vale também da passividade do poder público diante de violações em nome de causas sociais. Que fundada indignação motive os abusos é algo que o sociólogo pode interpretar. Ao promotor, ao juiz e ao governante cabe restaurar a ordem e punir os violadores.
Outro substrato para a brotação de grupos violentos são as frequentes demonstrações de intolerância de pensamento. Aconteceu na Bahia, neste sábado, quando 30 militantes impediram, na base da intimidação, debates com intelectuais que não partilham de suas ideias.
Protomilícias se espalham pelo país. Grupelhos bloqueiam vias importantes das cidades, invadem e depredam reitorias universitárias e impedem as aulas. Minorias que mal cabem numa van dão-se o direito de prejudicar a grande maioria.
O grupo "black bloc" é apenas o último rebento dessa linhagem de tiranias privadas. Como seus símiles, é tributário do desgaste metodicamente provocado nas instituições repressivas do Estado e no valor civilizatório da lei.

    Retomada do crédito

    Retomada do crédito
    Após merecidas críticas, governo sinaliza intenção de rever política de empréstimos de bancos públicos; BNDES indica nova orientação
    É bem-vinda a aparente disposição do governo para rever sua política de expansão de crédito dos bancos públicos a taxas de juros subsidiadas. A prática vem recebendo merecidas críticas de especialistas brasileiros já há algum tempo e, mais recentemente, também das agências internacionais de classificação de riscos e do FMI.
    Nos últimos anos, o governo alocou mais de R$ 400 bilhões para bancos oficiais, especialmente para o BNDES, para a Caixa Econômica Federal e para o Banco do Brasil.
    Dessa forma, as instituições puderam expandir muito mais depressa que o usual suas carteiras de financiamento e, com isso, ganhar participação no mercado.
    Originalmente utilizada como instrumento de combate à crise, a intervenção passou a servir a múltiplos objetivos --forçar a redução de juros dos bancos privados, atender a programas subsidiados, como o Minha Casa Melhor (pela Caixa), e financiar empresas eleitas pelo governo (via BNDES), entre outros.
    Agora, em entrevista ao jornal "Valor Econômico", o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, sugeriu que os aportes do governo vão cessar --só no banco que dirige foram R$ 300 bilhões.
    Disse ainda que o BNDES, com nova orientação, se concentrará mais em apoiar a infraestrutura, a indústria e a inovação tecnológica, com recursos próprios. Trabalhará também para dinamizar o financiamento privado de longo prazo, um objetivo não alcançado.
    Por fim, manterá a capilaridade do banco no atendimento de pequenas e médias empresas, ainda que com juros menos favoráveis. São todas iniciativas sensatas.
    Falta-lhe equilíbrio, entretanto, ao avaliar as ações passadas. Segundo Coutinho, o enorme aumento da carteira de crédito é defensável, em resumo, porque impulsiona investimentos geradores de emprego e renda --como se houvesse somente vantagens.
    Não é bem assim. Para começar, parte do dinheiro foi usada em fusões e aquisições, o que não necessariamente amplia a capacidade de produção. Além disso, o aumento na carteira de empréstimos significa mais risco para o banco, já que não se pode tomar como premissa que os investimentos serão todos bem-sucedidos.
    Como as operações foram bancadas por dívida pública --que cresceu 9,5% do PIB desde 2008--, se as decisões se mostrarem equivocadas, haverá prejuízos para o erário.
    Eis por que bancos devem reter níveis prudentes de capital e usar a própria geração de lucros para expandir o crédito. Será bom para o país se o BNDES, assim como os outros, de fato voltar a essa prática.

      Campos a todo vapor

      folha de são paulo
      Inspirado, sem dúvida, em sua recente aliada Marina Silva, o governador Eduardo Campos (PSB-PE) lança a proposta de transformar a ilha de Fernando de Noronha no primeiro território carbono zero do Brasil.
      O plano é simpático, mas o político pernambucano poderia atentar igualmente para o quanto vem contribuindo para emissões de carbono nos constantes deslocamentos que realiza com fins eleitorais.
      Desde que anunciou sua aliança com a ex-senadora, Campos tem ocupado mais da metade de sua agenda com eventos destinados a nada mais que nutrir sua candidatura presidencial em 2014.
      A inspiração parece vir de outras fontes que as do ambientalismo e das supostas intenções de renovar a política preconizadas por Marina --que, seguindo roteiro próprio, oscila entre criticar a imprensa pela curiosidade a respeito de uma eventual candidatura sua e dizer, à mesma imprensa, que tem "toda a disposição" para ser presidente.
      Campos não tem sido tão ambíguo. Repete, na verdade, o que tem feito a presidente Dilma Rousseff, garimpando ocasiões para subir em palanques.
      Pelo menos o site oficial da Presidência da República informa o motivo das viagens de Dilma pelo país. Não é o caso do governo de Pernambuco, que sonega a informação de que, em vez de comparecer a reuniões administrativas em seu gabinete, Campos viajou a São Paulo no dia 10 de outubro para almoçar com aliados.
      O presidente do PSB não deveria ter razões para envergonhar-se de ter recebido o título de cidadão piauiense. Mas a cerimônia em Teresina, prestigiada pelo governador Wilson Martins, do mesmo partido, não tem registro nos anais palacianos. Ao menos nada se disse na agenda de Campos.
      Já o "Diário Oficial" de Pernambuco não demonstra o mesmo pudor. Campos apareceu em 47 das 58 capas do jornal, só de janeiro a março deste ano.
      Os dados se referem a período em que a campanha era menos evidente. Como o lema de seu governo é "o futuro a gente faz agora", não se pode atribuir a Campos o defeito da falta de descortino.
      Seja como for, a promoção pessoal com recursos públicos continua no diário. A edição de sexta-feira, 25 de outubro, traz uma foto do governador na capa.
      A notícia é que o seu governo irá injetar, em 25 dias, mais de R$ 2 bilhões na economia do Estado. Trata-se, na verdade, de adiantamentos salariais, e não de investimentos. Seria o caso de dizer que o anunciado não é bem o que parece. Mas, em termos de abuso de poder, é bem o que parece mesmo.

        'Se for preciso dizer que é arte, eu digo', afirma Herchcovitch

        Com mudanças em estrutura e curadoria, SPFW busca sobrevivência em meio à crise


         
        PEDRO DINIZ
        COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
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        "Deslocamentos" é o tema da edição de inverno 2014 da São Paulo Fashion Week, que começa hoje. Também poderia ser o título da novela sobre a crise da moda nacional, que já dura três temporadas.
        O socorro é perseguido em várias frentes. Agora, têm espaço na passarela nomes que nunca antes se encaixaram no estereótipo da inovação buscada pelo evento.

        Outra novidade anunciada é que a curadoria da maior semana de moda da América Latina passa a ser feita em sociedade com uma publicação comercial: a revista "Vogue".
        "É uma parceria normal, que acontece em vários países, como nos EUA", afirma Paulo Borges, fundador da São Paulo Fashion Week.
        Essa associação com a editora Globo/Condé Nast causou desconforto entre editores de moda de outras revistas. Já os estilistas gostaram.
        "Qualquer ajuda é bem-vinda. Se é para incentivar os criadores que passam por dificuldades, ótimo", analisa Samuel Cirnansck.
        "A moda não está em crise. Apenas alguns processos é que estão", afirmou Borges. Durante sua entrevista, acontecia um protesto do setor têxtil em frente a uma feira de tecidos chineses, em São Paulo, contra o sucateamento da indústria.
        A SPFW, que acontece até sexta (veja desfiles de hoje em quadro nesta página) no parque Villa-Lobos, terá, pela primeira vez, venda de roupas em tempo real.
        O designer João Pimenta é um dos que farão parte da primeira ação no Brasil da plataforma de moda do e-commerce eBay. Suas roupas, assim como as da grife Amapô, serão postas à venda por meio de um aplicativo de celular enquanto são apresentadas na passarela do evento.

        S.O.S moda

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        Divulgação
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        Croqui da estilista Patricia Motta
        SAPATOS E CRIANÇAS
        Também pela primeira vez em 17 anos de vida, a semana de moda paulista incluirá desfile de marca de sapatos.
        A Melissa, uma das patrocinadoras, desfilará seus calçados de plástico acompanhados de looks criados por seis jovens marcas --entre elas, a Apartamento 03.
        O desfile acontecerá numa estrutura paralela à principal -montada no parque, com três salas e área total de 15 mil metros quadrados.
        Os acessórios, no caso, são as roupas. "Não vamos vendê-las, nosso foco é o sapato. O desfile é uma plataforma de comunicação com a cliente", diz o CEO da grife no Brasil, Paulo Pedó.
        Outra etiqueta que faz participação estratégica é a Lilica Ripilica, marca que até então só desfilava em eventos de shopping centers.
        A grife infantil, com foco na classe B, fará desfile descrito na programação do evento como "especial", antes da apresentação de João Pimenta, na quinta.
        O desfile da marca servirá de teste para uma semana de moda infantil que deve ser lançada em outubro de 2014 pela empresa Luminosidade, de Paulo Borges.
        O investimento feito pela Lilica Ripilica na semana de moda foi de R$ 1 milhão, segundo o grupo Marisol, que controla a marca. "Somos seguidores de moda; não vamos apresentar criações, e sim uma junção dos estereótipos que acompanham a moda infantil, lúdica e fantasiosa", diz o presidente do grupo, Giuliano Donini.
        O executivo diz que não há mais como definir a SPFW como um evento de luxo. "Grifes internacionais tomaram o lugar do luxo no Brasil."
        Quem também promete algo "especial" é Fause Haten, estilista à frente da marca FH.
        Um dos maiores críticos do formato tradicional de desfile, ele fará uma "performance-surpresa" fora do parque Villa-Lobos, em rua que será revelada uma hora antes do seu "desfile de guerrilha".
        "O formato está desgastado. Desfile servia para vender roupa, mas agora é para vender marca e gerar mídia espontânea", diz Haten.
        Leonardo Soares/Folhapress
        O estilista Fause Haten no espaço de sua exposição "A Fábrica do Dr. F", em cartaz até amanhã na Faap
        O estilista Fause Haten no espaço de sua exposição "A Fábrica do Dr. F", em cartaz até amanhã na Faap

        Sem Rouanet, Herchcovitch faz desfile no Municipal



        PEDRO DINIZ
        COLABORAÇÃO PARA A FOLHA de São Paulo
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        Um dos três estilistas, ao lado de Ronaldo Fraga e Pedro Lourenço, envolvidos na polêmica sobre aprovação de subsídio público para desfies via renúncia fiscal, Alexandre Herchcovitch apresenta seu inverno 2014 amanhã, sob a cúpula do Theatro Municipal, durante a SPFW.
        Defensor da ideia de que moda não é arte, ele diz à Folha que acha importante suas coleções terem disfarce conceitual, mesmo se são "100% comerciais", e que a partir de 2014 suas apresentações serão abertas ao público.
        Leonardo Soares/Folhapress
        Alexandre Herchcovitch no Theatro Municipal
        Alexandre Herchcovitch no Theatro Municipal
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        Folha - O que achou do debate sobre incentivo fiscal à moda?
        Alexandre Herchcovitch - Raso. Acho que ninguém entendeu que moda é cultura e que não há diferença entre uma exposição de pinturas e uma de roupas. Ambos têm fins comerciais. Também não foi dito que as coleções irão para museus. Isso forma uma cultura de moda no Brasil.
        Sente-se pressionado em mostrar que é "conceitual" para conseguir a Rouanet?
        Não. Se não pensar em negócio sou mandado embora da InBrands [que detém sua marca]. Acho importante que as coleções sejam disfarçadas de conceituais, porque elas são 100% comerciais. Moldo o trabalho que aplico na roupa a partir do valor final.
        Então moda não é arte?
        Não, mas se precisar dizer que é arte eu digo [risos]. É importante o incentivo porque as pessoas vão poder ver um desfile e se emocionar.
        Conseguiu o patrocínio?
        Estava focado no projeto do meu livro de 20 anos de carreira [que sai em 2014, pela Cosac Naify]. Consegui R$ 240 mil via Rouanet para ele. A partir do próximo mês vou atrás das empresas com que tenho contratos de licenciamento [para o desfile]. Não vai ser complicado.
        Como vê marcas como Lilica Ripilica e Melissa na SPFW?
        Acho ótimo. Por mim, haveria cem desfiles. Quanto mais marcas, mais os estilistas se esforçam para fazer algo melhor. São marcas fortes como essas que patrocinam as outras tantas das quais o evento não cobra.