sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Michel Laub

folha de são paulo
O ponto final do cinema
A série é tão espetacular assim que valha o esforço, numa época em que se tem pouco tempo para ler?
É quase unânime que as séries de TV reúnem hoje o que há de mais talentoso no setor audiovisual, ao menos no caso americano. E que mobilizam de forma rara o público de ficção, vide o barulho provocado pelo final de "Breaking Bad".
Não discordo, já que também me impressionei com o que vi de "Mad Men", "The Wire", "Roma" e da própria saga de Walter White. Apenas relativizo o discurso que vê nesses exemplos o fim do cinema como linguagem relevante.
Na história da arte, toda mudança tecnológica/de suporte deixa para trás elementos suficientemente peculiares para terem seu valor reconhecido e cultivado. O teatro foi em tudo substituído por câmeras que registram cenas, menos na intensidade que um palco pode oferecer --a presença física dos atores, a intimidade da sala, a sensação de que aquilo nunca mais se repetirá daquela forma e naquelas circunstâncias.
Dizem que a superioridade atual de "Breaking Bad" e congêneres é temática, porque Hollywood teria perdido a coragem de tratar determinados assuntos com determinados enfoques. Pode ser, mas o mundo não é só Hollywood e a arte narrativa não é feita só de enredo.
Minha impressão é que o cinema sobreviverá menos por atributos técnicos, da textura da imagem em película ao som e tamanho de tela, cujos efeitos já são ou logo serão reproduzíveis em ambiente doméstico, do que por uma certa liberdade que seu formato permite.
Ironicamente, é uma liberdade que começa com uma limitação: o tempo que dura um longa-metragem. Numa série, o que está em jogo é a eficiência. As coisas precisam andar para a frente, jogando iscas para que o espectador mantenha o interesse por várias temporadas ou maratonas de episódios.
Há um investimento alto na trama, o que um filme não precisa ter. O espectador está ali por algo como duas horas, e o diretor pode manejar a disponibilidade fazendo a história ter pontos mortos, contemplativos, durante os quais são digeridas informações e sensações vindas das sequências mais movimentadas.
Pode também fazer desses pontos a essência de sua obra. A duração menor de um filme permite testar a paciência e capacidade de concentração do público. Imaginem algumas das sinopses de títulos da Mostra de São Paulo, em cartaz agora na cidade, aplicadas a uma série que, como "Os Sopranos", durou nove anos.
(Exemplo tirado do site do festival: "Fata Morgana", Áustria, 2012, é sobre dois amantes que "falam devagar, calmamente, procurando as palavras certas para seus demônios interiores", e "tudo se resume à impossibilidade de entender a si próprio, que dirá o outro").
O que parece até charmoso de tão árido, integrando o folclore clássico de piadas com o cinema de arte, é o que faz do longa uma plataforma de experimentação e diversidade. Até em termos comerciais. É mais provável um sujeito do Uzbequistão financiar seu pequeno filme mudo sobre camundongos do que alguém conseguir algo parecido numa série da HBO ou da Sony.
Mesmo em "filmes de enredo", gosto de saber que existe um ponto final próximo. Vi a primeira temporada de "House of Cards", tenho uma ideia razoável de quem é o (bom) personagem de Kevin Spacey e para onde ele vai, mas nada garante que eu esteja certo. Para tirar a prova, precisarei investir dezenas de horas acompanhando cada trama paralela conduzida por cada diretor convidado.
A série é tão espetacular assim que valha o esforço, numa época em que se tem pouco tempo para ler, procrastinar trabalho, xingar os outros na internet? Tão melhor que um filme cujo argumento e condução são semelhantes, como "Ides of March", de George Clooney, e que me exigiu apenas uma caminhada distraída até a Augusta --durante a qual pensei no ser e no nada-- e um pacote de M&M's?
Por precisar dar o ponto final, uma visão de mundo que seguirá repercutindo na memória e imaginação do espectador, o cinema busca conduzir trama, personagens, ambientação e sentidos de forma mais intensa e concentrada. É um desafio que, quando respondido à altura, nos dá a ilusão maravilhosa de conhecer um universo ou uma biografia completa num período tão curto.
Tal concentração se opõe ao caráter folhetinesco das séries de modo análogo ao que a literatura moderna, lançando mão de atributos diversos, usou para se opor ao próprio e anterior caráter folhetinesco. Que era majoritário no século 19 e, outra ironia, começou a morrer quando surgiram os filmes.

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