sábado, 16 de novembro de 2013

Marcelo Gleiser

folha de são paulo

Físico paulista conta em livro como a ciência desvendou o que é a matéria

 
MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA



Em julho do ano passado, o mundo da ciência foi sacudido por uma incrível descoberta: uma partícula de matéria, conhecida na mídia como a "partícula de Deus", foi descoberta por cientistas no Centro Europeu de Física Nuclear, ou Cern, em Genebra.
Claro, a menção de caráter teológico a uma descoberta científica amplificaria qualquer achado. Teriam cientistas encontrado Deus?
No caso, Deus tem pouco a ver com a história. O nome vem do livro do prêmio Nobel Leon Lederman "A Partícula Deus". Segundo ele, um conhecido piadista, a ideia era dar o título "A Partícula Desgraçada" (do inglês "The Goddamn Particle"), mas seu editor sugeriu tirar o "desgraçado" (damn) do título.
Como resultado, pessoas de fé se iludiram com a descoberta, achando que finalmente a ciência tinha obtido prova da existência de Deus.
Felizmente, Rogério Rosenfeld, professor do Instituto de Física Teórica da Unesp, trabalhava no Cern na época da descoberta e decidiu escrever um livro explicando-a de forma acessível.
O resultado, "O Cerne da Matéria", é um exemplar notável de divulgação científica, escrito por um brasileiro de renome internacional.
É comum, quando falamos de ciência para o público não especializado, esquecer que, para a maioria das pessoas, os achados científicos, especialmente os da ciência mais afastada do nosso dia a dia, têm um ar de mistério e impenetrabilidade não tão diferente de pronunciamentos religiosos. Escuto com frequência: "Por que devo acreditar no que me diz um cientista?".
A resposta é que, em ciência, descobertas são anunciadas com tremendo cuidado e declaradas corretas apenas após receber o apoio da comunidade. São obtidas por meio de medidas extremamente precisas, verificadas por grupos independentes.
No Grande Colisor de Hádrons (LHC), a gigantesca máquina usada no Cern para estudar os menores componentes da matéria, há dois grupos que medem de forma diferente os mesmos eventos de colisão entre partículas. Com isso, um pode verificar se o seu resultado coincide ou não com o do outro.
No livro, Rosenfeld conta de forma clara e energética a história do Cern, da física de partículas nos séculos 20 e 21, culminando com a descoberta do bóson de Higgs, que nada tem a ver com Deus. Ele é a partícula elementar que faz as outras adquirirem massa.
O autor conta também como essas descobertas são feitas, e porque são motivo de orgulho dos físicos. Mostra como se faz ciência de ponta e porque deve ser feita, mesmo que não leve diretamente a aplicações tecnológicas.
Vale lembrar que a World Wide Web foi criada no Cern, para facilitar a comunicação entre físicos e engenheiros trabalhando nesses experimentos. Muitas das descobertas mais essenciais da ciência não foram antecipadas.
Com lucidez, Rogério discorre sobre a importância da descoberta do Higgs e das outras partículas que o LHC procura, mostrando que o trabalho dos cientistas está só começando. Mostra o que sabemos sobre a composição da matéria e indica quais ideias permanecem especulativas, ao mapear o campo da física das altas energias.
Sabemos que resta muito a aprender, visto que as partículas conhecidas respondem por apenas 5% da matéria que preenche o Cosmo. Os outros 95% permanecem um mistério, algo que o LHC pode ajudar a investigar.
De qualquer forma, é sorte nossa termos cientistas como Rogério Rosenfeld, com a generosidade de dividir conosco um pouco do que sabem. Sua obra é leitura essencial.

O CERNE DA MATÉRIA
AUTOR Rogério Rosenfeld
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 39,50 (208 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo 

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