quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A história não autorizada de Guimarães Rosa - Raquel Cozer

folha de são paulo
Filme exibido na Mostra de SP sem permissão das herdeiras mostra a atuação do autor como diplomata na Segunda Guerra
RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHAUm João Guimarães Rosa (1908-1967) que ajudou a salvar judeus na Alemanha e foi investigado pelos nazistas na Segunda Guerra, antes de se firmar como escritor, é o centro de "Outro Sertão", longa exibido hoje na Mostra de Cinema de São Paulo.
A faceta menos conhecida do autor de "Grande Sertão: Veredas" (1956) vem à tona com o documentário de estreia de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela. O filme, premiado no Festival de Cinema de Brasília, ilustra um viés menos lembrado no debate sobre a autorização para biografias: o de casos envolvendo obras cinematográficas.
A pesquisa para o filme começou em 2003, com o aval das filhas de Rosa. Em 2011, esse braço da família pediu, dizem as diretoras, R$ 60 mil para autorizar a veiculação.
"Fizemos contraproposta de R$ 30 mil ou R$ 40 mil. Fomos então informadas de que queriam R$ 300 mil e, depois, que não queriam mais a veiculação", diz Jacobsen.
Antes da exibição em Brasília, a dupla pediu às herdeiras uma reavaliação da decisão. Receberam um telegrama do advogado informando que as filhas não autorizavam a veiculação por questões de "foro íntimo". As herdeiras negam ter sido contatadas nessa ocasião.
A outra parte da família, representada pelo advogado Eduardo Tess Filho, neto da segunda mulher de Guimarães Rosa, apoiou o projeto.
O filme teve patrocínio da Petrobras e dos bancos BNDES e BDMG, totalizando cerca de R$ 1 milhão. "Considerando os dez anos de trabalho, tivemos um honorário básico de diretor", diz Vilela.
Sem notificação judicial, a dupla manteve as exibições. "Não podemos pôr em circuito comercial sem autorização, mas podemos exibir em festivais", diz Adriana. Depois da Mostra, o filme deve ser apresentado em evento da USP e na Feira do Livro de Porto Alegre, em novembro.
CADERNETAS
A base do documentário são duas cadernetas com anotações de Guimarães Rosa no período em que foi cônsul-adjunto em Hamburgo, na Alemanha, de 1938 a 1942.
Uma cópia delas está na Universidade Federal de Minas Gerais. Foi com a autorização das filhas do autor, dez anos atrás, que as diretoras tiveram acesso ao texto.
Inéditas em livro, as cadernetas estão no centro de uma disputa familiar. Em Hamburgo, o autor se apaixonou por Aracy Moebius de Carvalho (1908-2011), que trabalhava com ele no consulado e se tornaria sua segunda mulher.
Segundo o neto Eduardo Tess Filho, as referências a Aracy nas cadernetas incomodam as filhas do primeiro casamento do escritor.
"Ele ficou menos de dez anos com Lygia e quase 30 com Aracy, mas elas querem apagar isso da história", diz.
O filme tem ainda como fontes cartas, crônicas e documentos inéditos. Quase não aborda a vida pessoal do escritor, embora Aracy não pudesse ficar de fora, já que trabalhou com o então diplomata para conseguir vistos para judeus no Brasil.
Um dos achados da pesquisa foi um dossiê da polícia nazista, a Gestapo, que revela que o escritor foi espionado por alguém próximo.
Segundo um relatório, de 6 de julho de 1940, Guimarães Rosa fez desenhos na margem de um jornal representando a cabeça do Führer e uma forca. Teria comentado que aquela era a forca onde Hitler seria pendurado.
As autoridades alemãs pediram ao embaixador brasileiro em Berlim, Cyro de Freitas Vale, que repreendesse Guimarães Rosa. No diário do dia posterior a esse relatório, o escritor diz: "Vou a Berlim".
Outro documento é uma entrevista à TV alemã, de 1962, nunca veiculada, em que o autor cita a origem germânica de seu sobrenome.
As diretoras querem publicar o material excedente em site. Esperam, antes de outras iniciativas, o aval das herdeiras ou mudanças na lei, em discussão no Congresso e no Supremo Tribunal Federal.

OUTRO LADO
Herdeiras dizem que advogado vai procurar diretoras
DA COLUNISTA DA FOLHAAs filhas de Guimarães Rosa negaram à Folha terem sido contatadas por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, diretoras de "Outro Sertão", antes da primeira exibição do filme, no Festival de Cinema de Brasília, em setembro.
"Conheci essas moças anos atrás, em Berlim, quando fui fazer uma conferência sobre meu pai. Elas disseram que iam me mostrar [o material]. Depois, não tive mais contato", disse Vilma Guimarães Rosa, 82, autora das memórias "Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu Pai" (Nova Fronteira).
Agnes, 80, disse que viu o filme "há muito tempo". "Do que vi, eu gostei." Disse, no entanto, que seu advogado "entrará em contato com elas. Porque não foi autorizado."
Sobre detalhes das conversas com as diretoras, elas pediram à Folha que entrasse em contato com o advogado Roberto Halbouti. Por e-mail, ele se dispôs a falar com a reportagem, mas, em viagem a Londres, não foi localizado até a conclusão desta edição.
Vilma diz não ter restrição à publicação dos diários, restrição essa que estaria ligadas a menções a Aracy, a segunda mulher de seu pai. "É fofoca", disse, e acrescentou: "Eu pretendo publicar [as cadernetas] um dia. Não tenho interesse em prender as coisas de papai".
Ela disse ainda ser pelo "meio termo" no debate sobre autorização de biografias. "Se quiser fazer biografia, vá à família, converse, faça algo bonito, divulgue se valer ser divulgado. Sou contra intromissão na intimidade."

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