domingo, 13 de outubro de 2013

Ferreira Gullar

folha de são paulo
Um novo Carnaval
Hoje, ninguém sabe de cor os sambas das escolas, que antigamente eram cantados por todos
Fernando Pamplona revolucionou o Carnaval carioca, mas, antes dele, eu já assistia ao desfile das escolas de samba. É que me casara com uma moça da Tijuca, Thereza Aragão, que amava o Carnaval e a música popular. Ela seria, anos mais tarde, responsável, com suas segundas-feiras de samba, no Teatro Opinião, em Copacabana, por levar o samba de subúrbio para a zona sul do Rio.
Naqueles anos, o desfile era na avenida Presidente Vargas, no trecho próximo à Candelária, e não havia nem passarela nem arquibancada. A gente assistia ao desfile inteiro, em pé, nas calçadas. Depois, o desfile foi transferido para a avenida Rio Branco, o que melhorou para nós que passamos a assisti-lo das janelas da Redação do "Jornal do Brasil", onde eu trabalhava.
Foi quando Pamplona surgiu, emprestando ao Salgueiro uma concepção nova do desfile carnavalesco, não só plasticamente, mas também tematicamente. Aí ele nos ganhou. Thereza, eu, Vianinha e a turma inteira do grupo Opinião nos tornamos frequentadoras do desfile e dos ensaios do Salgueiro.
As alegorias e fantasias das escolas de samba, até então, tinham gosto acadêmico, mesmo porque seus autores eram gente da Escola Nacional de Belas Artes e o pessoal mais conservador, para quem vestir-se de princesa é que era beleza.
Deve-se reconhecer, também, que fantasiar-se de nobre correspondia à aspiração dos sambistas, que viam a nobreza como um sonho inalcançável, a não ser no Carnaval. Fantasiar-se de conde era tornar-se conde por algumas horas.
Pamplona rompeu com isso, não só acabou com as fantasias de príncipes e princesas, como pôs como enredo a história do negro, descendente de escravos. Foi o caso do enredo "Quilombo dos Palmares", que assinalou mais uma vitória do carnavalesco inovador.
Se do ponto de vista do enredo, como se viu, Pamplona rompeu com a tradição, creio que foi no plano visual que seu ímpeto inovador foi mais determinante. Lembro-me do entusiasmo de que fomos tomados ao ver as alas do Salgueiro vestidas com fantasias de grande beleza e despojamento.
Foi a visão moderna das artes plásticas --particularmente a tendência abstrata geométrica-- que inspirou Pamplona e sua equipe. Mais que os adereços e enfeites, o que encantava era a beleza do vermelho e do branco, explorados em sua simpleza e plenitude. E mais o contraste com a pele negra dos passistas e das passistas, revoando no asfalto. Ver aquelas alas desfilando foi uma experiência inesquecível.
E, como tinha que ser, a nova concepção do desfile carnavalesco conquistou outras escolas. Nem todas com a mesma facilidade, especialmente aquelas mais antigas e de mais arraigadas tradições. A Mangueira, por exemplo, resistiu à inovação, até onde pôde e, de qualquer modo, jamais se deixou subverter pela revolução salgueirense.
Mas essa revolução não se limitou ao âmbito das escolas e dos desfiles. Fascinou uma nova geração de artistas e intelectuais da zona sul do Rio, que passaram a frequentar não só os desfiles, como também os ensaios das escolas e até desfilar nelas. Era branco no samba? Era, mas com paixão.
Alguns anos depois, construiu-se a Passarela do Samba, mal apelidada de Sambódromo. As antigas arquibancadas de madeira e tubos de metal eram montadas para o desfile e desmontadas depois. A nova passarela, em concreto armado, é permanente, custou caro e fica grande parte do tempo sem utilidade.
O desfile, por sua vez, sofreu mudanças. Porque as escolas cresceram, foi necessário estabelecer um limite de tempo para cada uma desfilar, o que levou à aceleração do ritmo dos sambas-enredo, que viraram marchas.
Hoje, ninguém sabe de cor os sambas das escolas, que antigamente eram cantados por todos. O som dos alto-falantes estendidos por toda avenida torna inaudível o canto das alas, o que reduz a emoção e a participação do espectador. As escolas passaram a alugar fantasias para estrangeiros desfilarem, gente que não sabe cantar nem dançar o samba da escola.
Depois de tudo isso, Fernando Pamplona, que trazia o Carnaval no sangue, nunca mais foi assistir aos desfiles. Nem eu.

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