terça-feira, 29 de outubro de 2013

João Pereira Coutinho

Folha de São Paulo
Homens e animais, revisitados
Dissecar animais em praça pública, como aconteceu no passado, seria impensável nos dias de hoje. Ainda bem
Recebi centenas de e-mails na semana passada por causa de um texto sobre os "direitos dos animais" ("Homens e animais", 22/10). Escuso de esclarecer que a maioria não foi simpática.
Com verdadeiro espírito humanista, muitos dos defensores dos animais desejaram-me doenças que eu, um hipocondríaco confesso, nem sabia que existiam. Sem falar das inevitáveis ameaças de morte, sempre antecedidas de tortura (lenta).
Agradeço a gentileza e espero ansiosamente pelo dia em que o mundo será governado pelo espírito tolerante dessa gente. Para os restantes leitores, que insistiram em seis perguntas recorrentes (e civilizadas), aqui vão respostas civilizadas:
1 - Se é possível fazer pesquisa sem animais, como justificar o uso dos bichos?
Infelizmente, não é possível fazer todo o tipo de pesquisas sem usar animais. Verdade que a ciência evoluiu imenso e a pesquisa "in vitro" (usando células em laboratório, algumas das quais humanas) e "in silico" (com computadores) tem ocupado as pesquisas "in vivo". Mas, para certas patologias, e sobretudo para se obterem respostas precisas a farmacologias várias, é necessário o uso de organismos vivos com certo grau de complexidade (o que exclui, por exemplo, moscas ou lesmas). Não usar animais implicaria, em muitos casos, usar seres humanos --ou, em alternativa, frear o progresso científico.
2 - Os animais dos laboratórios são tratados cruelmente.
Uma absoluta falácia. Os animais domésticos são, muitas vezes, tratados cruelmente. Animais de laboratório são, como o nome indica, seres vivos criados em ambiente controlado (temperatura, som, conforto, comida etc.) de forma a infligir o menor sofrimento possível. É claro que algumas experiências implicam dor ou desconforto. Mas o uso de animais em laboratório está submetido a legislação rigorosa, na qual os "limites de severidade" são cada vez mais apertados.
Dissecar animais em praça pública, como aconteceu no passado para conhecer o sistema circulatório (um feito que fez a medicina avançar vários séculos), seria impensável nos dias de hoje. E ainda bem.
3 - É legítimo usar animais para testar cremes e batons?
Não é legítimo e deve ser severamente punido. Na Europa, já é desde março deste ano. Mas a discussão do artigo lidava com pesquisa médica, não estética. Confundir ambas revela ignorância ou má-fé.
4 - Todos os ativistas dos "direitos dos animais" estão errados?
Pelo contrário: a ciência deve muito aos ativistas razoáveis dos "direitos dos animais", que contribuíram para que a ciência "humanizasse" o seu trato com os bichos.
Os defensores razoáveis dos "direitos dos animais" legaram à ciência o desafio dos "três R's": "to reduce" (reduzir, sempre que possível, o número de animais em laboratório); "to replace" (substituir, sempre que possível, o uso de animais por outra alternativa --estudo de células ou simulação computacional, por exemplo); e "to refine" (refinar, sempre que possível, a forma como a pesquisa é feita --uso de anestésicos e analgésicos quando o desconforto é previsto; criação de um ambiente confortável e estimulante para os animais etc.). O diálogo entre cientistas e "eticistas" deve por isso continuar.
5 - Você não gosta de animais e por isso defende o uso deles pela ciência?
Não pretendo tornar a discussão pessoal. Mas gosto de animais, tenho animais e até já escrevi sobre todas as lições "filosóficas" que aprendi com o meu gato.
6 - Todas as vidas são sagradas e nenhum animal deve ser sacrificado para nosso benefício.
Quem parte dessa premissa encerra o debate mesmo antes dele começar. Infelizmente, não tenho essas certezas --e, como onívoro, é evidente que continuo a usar os animais como fonte principal de alimentação. Sobre a "sacralidade" da vida, confesso uma certa paralisia agônica com certos cálculos utilitaristas mesmo em relação à vida humana (para mim, a mais importante).
Se, por hipótese, fosse possível salvar 10 milhões de pessoas gravemente doentes pelo sacrifício em laboratório de dez indivíduos, valeria a pena matar esses dez inocentes?
Instintivamente, direi que não e ficarei feliz com as minhas vaidades deontológicas. Pensando friamente, não sei se diria não --e que Deus, ou o sr. Kant, me perdoe. Porém, se a vida de 10 milhões de pessoas dependesse da vida do meu gato, não haveria hesitação alguma.

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