quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O assunto é o Plano Diretor de São Paulo - Philip Yang e João Whitaker

folha de são paulo
PHILIP YANG
O ASSUNTO É O PLANO DIRETOR DE SÃO PAULO
Três poderes e uma cidade
Empreendimentos "exclusivos", cercados por muros, tendência do mercado imobiliário, precisam dar lugar a projetos "inclusivos"
Em qualquer sociedade democrática moderna, o processo de urbanização resulta da interação de três poderes: o político, o econômico e o social. Uma intervenção urbana, quando realizada unilateralmente por apenas um dos poderes, terá menos condições de viabilidade, resiliência e legitimidade do que os projetos devidamente costurados pelos três.
É o equilíbrio dessas forças que determina o sucesso e a sustentabilidade do "fazer cidade". Não será diferente em São Paulo: o tripé de forças será vital para a transformação urbana de que precisamos.
O poder econômico, representado pelas grandes construtoras e incorporadoras e pelo mercado de capitais, dará contribuição fundamental se fomentar empreendimentos que promovam tecidos urbanos de uso misto com vastos espaços públicos, que combinem moradia digna, trabalho, comércio e serviços --espaços mais densos e menos dependentes do uso de carros.
Empreendimentos "exclusivos", cercados por muros, tendência do mercado imobiliário, precisam dar lugar a projetos "inclusivos", pois a geração de bens coletivos --parques, bulevares, calçadas-- exponenciará a geração do valor econômico de suas construções.
O poder social, fortemente empoderado pelas mídias sociais e movimentos de rua, será tanto mais legítimo e construtivo quanto mais for capaz de consolidar agendas positivas e transformar sua voz em vetor de aprofundamento da democracia.
Plataformas deverão ser constituídas de forma que as decisões sobre temas em diferentes escalas --de comunidades e bairros, passando por grupos de interesse, até o plano municipal e metropolitano-- possam contar com a participação popular.
O poder político, por meio do novo Plano Diretor Estratégico (PDE), tem hoje a prerrogativa de instituir um marco regulatório que poderá corrigir as grandes assimetrias que marcam a (des)organização espacial da cidade: a falta de moradia em zonas em que é grande a oferta de emprego, o subaproveitamento do solo nos entornos dos grandes eixos viários e infraestruturais, a escassez de espaços públicos de qualidade, a carência de zonas de uso misto e de renda mista, a baixa permeabilidade e arborização.
A minuta do PDE e o seu debate na Câmara Municipal poderão ensejar a grande convergência entre os três poderes de que São Paulo precisa. Há méritos e inconsistências na proposta, e o texto ainda requer ajustes. Esse processo poderá constituir um pacto em torno dos objetivos que nos levará à reinvenção da cidade, ou a uma "colcha de retalhos" produzida por interesses particularistas que agravará os problemas urbanos.
Entre as cidades globais, São Paulo é a que detém o maior estoque de terrenos ociosos ou subutilizados, situados em áreas centrais. Essa condição fundiário-urbana única representa uma chance histórica de promovermos um novo ordenamento espacial para a cidade.
O grande pacto de que necessitamos é o que permitirá que avanços concretos como o Casa Paulista, o Arco Tietê, o Parque Tecnológico do Jaguaré e outros projetos de grande escala sejam possíveis: um pacto entre forças sociais, econômicas e políticas e um alinhamento entre União, Estado e município que impulsionem a economia criativa, a atração dos melhores cérebros e a implantação aqui dos empreendimentos mais inovadores, para que a cidade se posicione estrategicamente na terceira revolução industrial em curso no mundo.
As cidades projetam no território aquilo que somos como sociedade. Resta-nos encontrar nossa melhor forma de expressão coletiva para a construção da cidade que queremos.

JOÃO WHITAKER
O ASSUNTO É O PLANO DIRETOR DE SÃO PAULO
A utilidade do Plano Diretor
Seria necessário priorizar a questão da segregação, prevendo nos corredores adensados estoques de terras públicas para fins sociais
Na proposta de Plano Diretor que se discute em São Paulo, focou-se o desequilíbrio entre os lugares de trabalho e de residência e a exagerada centralização econômica no eixo sudoeste. Concentrando ali a infraestrutura e as atividades econômicas, a cidade perpetrou um desequilíbrio estrutural, fazendo com que os que lá trabalham tenham que enfrentar demorados deslocamentos.
Quanto mais pobre a pessoa, mais longa e penosa a viagem. Como as políticas públicas sempre priorizaram o automóvel, que corresponde a apenas 30% das viagens diárias, a pendularidade dos deslocamentos associada à falta de uma rede de transporte de massa acabaram por colapsar a cidade.
Além disso, um planejamento urbano pouco efetivo e a ausência de regulação da atividade construtiva fizeram com que a cidade crescesse aleatoriamente, no ritmo das oportunidades imobiliárias. Chegou-se ao ponto em que o licenciamento de novos prédios foi simplesmente entregue à corrupção. Com isso, pululam shoppings centers inúteis, desfigura-se o pouco que resta dos bairros assobradados, destroem-se as áreas ambientalmente frágeis e inflama-se uma bolha de valorização.
A proposta do plano é concentrar os lançamentos construtivos apenas ao longo dos corredores expressos de ônibus, que devem multiplicar-se e passar a estruturar os deslocamentos na cidade. A oferta de prédios nesses eixos permitiria ter mais gente próxima ao transporte público, aumentando a mobilidade.
Se a lógica faz sentido, há obstáculos a superar. O principal é que o problema identificado não é o mais grave. O que realmente perverte a cidade é a própria lógica da urbanização, que no ato mesmo em que se produz, segrega os mais pobres para o mais longe possível, em um apartheid urbano. A implosão da cidade, pelo tensionamento econômico e social decorrente, já começou.
Adensar ao longo dos corredores permitindo um alto coeficiente construtivo, sem estoques limitadores, vai gerar forte verticalização nesses eixos, porém sem nenhuma garantia de que, com o aumento de prédios, seja dado lugar também aos mais pobres. Limitar o tamanho dos apartamentos, em um contexto de hipervalorização imobiliária, apenas aumentará o preço do metro quadrado. O que teremos será uma cidade um pouco mais racional e fluida, porém ainda uma cidade só para as classes média e alta.
O Plano Diretor proposto é tímido ao enfrentar a lógica do apartheid. Os instrumentos do Estatuto da Cidade continuam sendo empurrados para regulamentação posterior. Ele não rompe paradigmas, pois para isso seria necessário colocar a questão da segregação como prioridade absoluta, prevendo nos corredores adensados estoques de terras públicas para fins sociais.
Estamos no equilíbrio tênue entre romper o modelo da exclusão e construir cidades mais humanas ou deslizar de vez para a barbárie urbana, se é que já não o fizemos. Planos Diretores servem muito pouco, pois no Brasil podem ficar engavetados por anos sem maiores consequências, como ocorreu em São Paulo. Está nas mãos dos nossos vereadores a oportunidade de tornar o de São Paulo algo verdadeiramente útil, capaz de acabar com a cidade do apartheid, e mostrando ao Brasil o caminho para evitar a tragédia urbana que aflora.

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