quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Pasquale Cipro Neto

folha de são paulo
'Amigos em comum'
E de onde vem o hábito de dizer "Estava um tanto quanto nervoso" ou "um tanto quanto alterado"?
Há algum tempo, escrevi uma coluna para atender a um pedido de ninguém menos do que Mestre Ziraldo, que me sugeriu que abordasse um caso de concordância verbal que causou um certo "impasse" entre ele e alguém de uma editora.
Na semana passada, mais uma vez tive a subida honra de receber um telefonema do grande Ziraldo. Depois de trocarmos duas palavras sobre o que ocorreu na Feira de Frankfurt e sobre a internação dele na Alemanha, chegamos ao busílis: Ziraldo me falou da expressão "Somos amigos em comum", que em algum canto da internet aparece como correta. "Isso está errado, não?", perguntou-me ele, já sugerindo o caso como tema de uma coluna.
A mestres como Ziraldo obedece-se sem pestanejar. Vamos lá, pois. Como atestam os nossos bons dicionários, a expressão "em comum" significa "conjuntamente por dois ou mais, sem ser de nenhum deles apenas" ("Houaiss"); "de maneira conjunta ou coletiva" ("Aulete").
Como se vê, é perfeitamente possível dizer que Ziraldo e eu temos amigos em comum, isto é, Ziraldo tem um ou mais amigos que são meus amigos também, mas não se diz que Ziraldo e eu somos amigos em comum. A frase deve parar em "amigos": "Ziraldo e eu somos amigos".
A esta altura, talvez alguém queira saber de onde vem o uso da forma inadequada ("Somos amigos em comum"). Poder-se-ia pensar no processo de contaminação. Explico: em língua, é muito comum o falante se guiar por um processo mais comum do que outro e acabar usando o minoritário como usa o majoritário. Um exemplo concreto: a segunda pessoa do singular ("tu") de oito nos nove tempos verbais simples termina em "s". Tomemos como exemplo as formas do verbo "beijar": "tu beijas, tu beijavas, tu beijaras, tu beijarás, tu beijarias, que tu beijes, se tu beijasses, quando/se tu beijares". A única que não termina em "s" é a do pretérito perfeito ("tu beijaste").
Pois bem. O que fazem os falantes quando, por alguma razão, querem empregar uma dessas formas, pouco usuais hoje em dia? Guiam-se pela terminação mais comum, ou seja, lascam um "s", inexistente, e aí surgem formas como "tu te fostes de mim" (como diz Fafá de Belém em uma canção), "abismo que cavastes com teus pés" (como diz Cazuza em "O Mundo é Um Moinho", de Cartola), "tu me abandonastes" etc.
Nada de "s" nessas formas, que se referem à segunda pessoa do singular ("tu"). Essas formas existem, mas são da segunda do plural ("vós"): "vós fostes", "vós cavastes", "vós me abandonastes" etc.
Voltando à forma "Somos amigos em comum" (inadequada), é provável que o falante se deixe levar pela construção "em comum", que, quando adequada, tem uso mais frequente, em formas como "Temos amigos em comum", "Possuímos negócios em comum", "A decisão foi tomada em comum" etc.
Caso semelhante ocorre com a expressão "um tanto", que, quando significa "um pouco", quase sempre recebe a companhia (indevida) da palavra "quanto". É comum ouvirmos ou lermos formas como "Ele estava um tanto quanto nervoso naquele dia" ou "Ela ficou um tanto quanto alterada com a má notícia". Jogue fora o "quanto": "Ele estava um tanto nervoso naquele dia" ou "Ela ficou um tanto alterada com a má notícia".
E de onde vem o hábito de dizer "um tanto quanto nervoso" ou "um tanto quanto alterada"? Provavelmente do uso (muito comum) da expressão comparativa "tanto quanto": "Gosto de música tanto quanto de literatura"; "Dorme tanto quanto um urso"; "Sei disso tanto quanto você". É isso.

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