domingo, 17 de novembro de 2013

Manuel da Costa Pinto [revista são paulo]

folha de são paulo

Novo álbum resgata espírito original de Asterix como metáfora da Resistência francesa

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O novo álbum de Asterix é duplamente histórico. É a primeira vez que uma HQ da série não é escrita e desenhada pelos criadores do pequeno gaulês e de seu inseparável companheiro Obelix. Além disso, "Asterix Entre os Pictos" reconduz as aventuras a seu espírito original.
Comecemos por aí. Poucos leitores mirins percebem que a aldeia litorânea idealizada pelo roteirista Goscinny e imortalizada pelo traço de Uderzo é uma metáfora da França à época da ocupação nazista.
Mas a página inicial, que se repete em todos os álbuns, com o mapa da Gália (território da atual França à época da expansão de Roma), não deixa dúvidas. Um pequeno quadro informa: "Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor". Eis a chave de leitura: numa França que estendeu o tapete vermelho para as tropas de Hitler, uns minguados resistentes infernizam a vida do inimigo.
Reprodução
Imagem do livro "Asterix entre os Pictos", desenhado por Didier Conrad
Imagem do livro "Asterix entre os Pictos", desenhado por Didier Conrad
Com a morte de Goscinny em 1977, porém, Uderzo acumulou a função de roteirista e acabou desfigurando a série. Começou com "O Grande Fosso", paródia de "Romeu e Julieta" distante da tradicional sátira ao chauvinismo francês, culminou em "O Dia em que o Céu Caiu", com a constrangedora inserção de extraterráqueos calcados em mangás japoneses.
Tapetes voadores ("As 1.001 Horas de Asterix") e "gadgets" típicos de 007 ("A Odisseia de Asterix") quebraram o caráter naturalista da aventura --cujo único elemento mágico era a poção do druida Panoramix, que dava força sobre-humana aos gauleses e que na verdade era um placebo, uma metáfora da vontade --conforme se vira em "Asterix entre os Bretões".
Agora, Jean-Yves Ferri e Didier Conrad (respectivamente, roteirista e desenhista da nova aventura) restauram a ideia de que os irredutíveis gauleses são expressão de uma Europa profunda dividida em tribalismos.
Em "Asterix entre os Pictos", os heróis ajudam um escocês, que chega à praia da aldeia envolto numa redoma de gelo, a voltar a sua terra natal --onde se digladiam diferentes grupos (cada qual com a pele tingida de uma cor, derivando daí o epíteto latino de "pictos", "homens pintados").
Por trás das rivalidades pessoais, estão os oportunismos daqueles que se alinham ao invasor --numa história com direito a monstro do lago Ness e ao tradicional banquete final regado a uísque escocês, enquanto um patético recenseador romano tenta entender os movimentos dessa turma ingovernável, que resiste aos imperialismos que volta e meia assolam o Velho Continente.
LIVRO
ASTERIX ENTRE OS PICTOS ***
AUTORES: Jean-Yves Ferri e Didier Conrad
TRADUÇÃO: Gilson Dimenstein Koatz
EDITORA: Record (48 págs., R$ 28)
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LIVRO
ASTERIX E O ESCUDO ARVERNO ****
Asterix e Obelix escoltam o chefe Abracurcix à região de Auvergne, que foi cenário da derrota dos gauleses diante de Roma e, ironicamente, sediou o governo colaboracionista de Vichy na Segunda Guerra.
AUTORES: René Goscinny e Albert Uderzo
TRADUÇÃO: Cláudio Varga
EDITORA: Record (48 págs., R$ 30)
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FILME
A TRISTEZA E A PIEDADE ****
Documentário de 1969 sobre a Resistência e, sobretudo, o colaboracionismo durante a ocupação nazista da França --eterna mancha na autoestima do país.
DIREÇÃO: Marcel Ophüls
DISTRIBUIDORA: Videofilmes (locação)
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LIVRO
ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA
Alfredo Bosi (Editora 34, 480 págs., R$ 65)
Reúne ensaios, entrevistas e "intervenções" (aulas, conferências) do professor de literatura e um dos críticos mais importantes da história do país. Sob a diversidade temática (poesia brasileira e pensamento político; Machado de Assis e Graciliano Ramos; Vico e Leopardi) revela-se, mais do que a erudição, a amarração rigorosa de questões estéticas e ideológicas.
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DISCO
BACH TRANSCRIBED
Alessio Bax (Signum, importado)
É comum que peças escritas para cravo por Bach sejam interpretadas ao piano (instrumento posterior à época do compositor alemão). As transcrições interpretadas pelo italiano Bax, porém, vão além desse repertório e incluem arranjos de autores como Busoni e Saint-Saëns para obras com outras formações originais --resultando num Bach noturno e romântico.
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FILME
O MOINHO E A CRUZ ***
Lech Majewski (Lume, R$ 37,90)
Nesta produção polonesa (falada em inglês), o pintor Bruegel (Rutger Hauer) concebe a tela "Procissão para o Calvário" durante a ocupação espanhola dos Países Baixos. E, se a tela funde passado e presente, a Paixão de Cristo e o cotidiano camponês do século 16, o cenário do filme é o quadro, mimetizado com fotografia deslumbrante, mas torna esquemática uma narrativa quase toda visual, que espelha a tensão entre Reforma e Contra-Reforma.
Divulgação
Hauer como Bruegel em "O Moinho e a Cruz"
Hauer como Bruegel em "O Moinho e a Cruz"
Manuel da Costa Pinto
Manuel da Costa Pinto é jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Colunista da revista "sãopaulo" e editor do "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", é também editor do programa "Entrelinhas", da TV Cultura. Escreve aos domingos.

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