terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Mirian Goldenberg

folha de são paulo

Homens bobos e mulheres chatas?

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O sociólogo francês Claude Fischler afirmou que, de acordo com suas pesquisas em diferentes países, as pessoas gostam e não gostam das mesmas coisas. Em geral, as pessoas não gostam de trabalhar. Mas gostam, e muito, de fazer sexo, de comer e de brincar.
Portanto, em função desses gostos, o pior momento do dia é aquele em que acordam cedo e têm que ir para o trabalho. E os momentos mais prazerosos e felizes são quando estão fazendo amor, comendo ou brincando.
Nas minhas pesquisas, chama muita atenção a diferença entre os gêneros com relação ao humor e à brincadeira.
Os homens dizem que brincam mais do que as mulheres. Além disso, enquanto eles dizem que já se divertem o suficiente, mais da metade das mulheres confessou que gostaria de rir e de brincar muito mais.
Mais interessante ainda foi o olhar de cada gênero sobre o humor e as risadas. Os homens não apontaram nenhum defeito em quem ri muito. Já as mulheres foram categóricas: quem dá muitas risadas pode ser visto como bobo, superficial, infantil, idiota, inconveniente e inoportuno.
Para muitas mulheres, aqueles que nunca riem ou riem de forma controlada demonstram seriedade, comprometimento, concentração, sobriedade e impõem respeito.
E por que, afinal, as mulheres são tão sérias e quase não brincam?
A explicação dada pelas próprias mulheres é que brincar muito pode ser malvisto pela sociedade. Pode pegar mal profissionalmente. Elas temem parecer vulgares, superficiais e irresponsáveis.
Como disse um jornalista de 32 anos: "Os homens gostam de dar risada, tomando cerveja e falando bobagens com os amigos. As mulheres adoram uma DR: discutir a relação. Já os homens preferem outro tipo de DR: dar risada".
Escrevi um artigo científico sobre a importância da brincadeira e do humor na cultura brasileira com o meu querido amigo Bernardo Jablonski, psicólogo social que faleceu em 2011.
Ele lembrou uma frase do humorista Claudio Torres Gonzaga que reflete os resultados das minhas pesquisas: "As diferenças entre homens e mulheres podem ser resumidas numa única frase: os homens são bobos e as mulheres são chatas. O resto é decorrência". Será?
mirian goldenberg
Mirian Goldenberg é antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade" (Ed. Record). Escreve às terças, a cada 15 dias na versão impressa de "Equilíbrio".

Vladimir Safatle

folha de são paulo

O mais caro do mundo

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Ao que parece, chegou a hora de saudar o Brasil como o novo país "do mais caro do mundo". Foram necessárias décadas para alcançar tamanha conquista e, ao que parece, desta vez ela veio para ficar. Afinal, anos de trabalho árduo permitiram aos brasileiros ter o prazer de pagar o dobro no mesmo carro que outros mortais compram sem tanto sacrifício.
Atualmente, ser brasileiro é ter a satisfação de levar para casa o console Xbox mais caro do mundo. É poder humilhar os estrangeiros ao dizer o preço que pagamos em passagens aéreas, escolas, aluguéis e imóveis arrebentados em lugares com fios elétricos na frente da janela.
Para chegar a este estágio, foi necessário não apenas um conjunto substantivo de equívocos econômicos. Foi preciso muita cegueira ideológica para engolir a ladainha de que nosso troféu de "o mais caro do mundo" foi conquistado exclusivamente através dos impostos mais elevados e dos altos custos trabalhistas.
Não, meus amigos. Só em um mundo (como esse em que alguns liberais vivem) sem países como França, Alemanha ou Suécia o Brasil teria os impostos mais altos. Se nos compararmos aos EUA, veremos que a contribuição fiscal per capita de um brasileiro (US$ 4.000) é bem menor do que a de um norte-americano (US$ 13.550).
Na verdade, depois que se inventa o inimigo, é mais fácil esconder o verdadeiro responsável. Nosso troféu de "o mais caro do mundo" deve ser dedicado a esses batalhadores silenciosos do desastre econômico, a esses companheiros de todos os governos brasileiros: o oligopólio e a desigualdade.
A desigualdade econômica, esta todo mundo conhece. Ela fingiu por um momento que estava se deixando controlar, mas deu não mais que uma unha para permanecer com todos os gordos dedos. Sempre se combateu desigualdade com revolução fiscal que taxasse os ricos, punisse radicalmente a evasão fiscal e limitasse os grandes salários. Mas, no país "do mais caro do mundo", o tema é tabu. Assim, uma classe de milionários pode empurrar alegremente os preços para cima porque não tem problema algum em pagar pelo mesmo o seu dobro, desde que as lojas ofereçam manobrista VIP e água com gás na saída do estacionamento.
Já a nova onda de oligopólios é uma das grandes contribuições da engenharia econômica do lulismo: os únicos governos de esquerda da galáxia que contribuíram massivamente para a cartelização de todos os setores-chaves da economia. Com uma política de auxiliar a formação de oligopólios via empréstimos do BNDES, o governo conseguiu fazer uma economia para poucos empresários amigos. Nela, não há concorrência. Assim, os preços descobriram que, no Brasil, o céu é o limite.
vladimir safatle
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da versão impressa.

José Simão

folha de são paulo
Ueba! Papuda Padrão Fifa!
E sabe qual o novo apelido dos tucanos? Tucanóquio! Tucano, quando fala, o bico cresce! Rarará!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piada Pronta: "Vencedora da Miss Transexual Latinoamérica é argentina da cidade de PIRPINTOS", rarará!
E atenção! Manifestantes petistas vão a Brasília para uma nova exigência, petistas gritam: "PAPUDA PADRÃO FIFA! Queremos Papuda Padrão Fifa!" Rarará!
E a manchete do "Piauí Herald": "Inspirado por Dirceu, Delúbio será revendedor da Avon". O Delúbio vai revender Avon na Papuda! Ops, na Barbuda! Vai vender hidratante de barba!
Já imaginou ele tocando a campainha das celas: "Tin tón! Avon chama". Rarará!
E mais: diz que o Luiz Carlos Barreto vai fazer um filme no lobby do hotel do Dirceu: "Deu a Louca na Camareira". Com Zé de Abreu, Paulo Betti e Angelina Jolie! A Angelina é mensaleira! Rarará!
E o helipóptero? O helipóptero da família do senador Zezé Perrella? Esparrella! Sabe como é o barulho do helipóptero do senador Espórrella? "Pó Pó Pó Pó!"
E diz que o MP de Minas vai processar o helipóptero por carregar meia tonelada de cocaína sozinho. Proprietários e pilotos foram enganados! É um transformer! Um fusca do Itamar que virou helipóptero, que vai virar abóbora! O helipóptero vai virar abóbora!
E a charge do Aroeira com o piloto do helipóptero falando mineirês: "Pó pousar? Pó pousar?". "Pó pousar o pó, pô!". Rarará!
E condenação mesmo é ficar solto, com um salário mínimo por mês, tomando metrô na praça da Sé às seis da tarde e, quando chega em casa, encontra a sogra de chinelo e calcanhar rachado! Isso é que é uma Papuda Padrão Fifa!
E sabe qual o novo apelido dos tucanos? Tucanóquio! Tucano, quando fala, o bico cresce! Rarará!
E a popularidade do Haddad? O Haddad foi aumentar o IPTU e a casa caiu! Rarará!
É mole? É mole, mas sobe!
O Brasil é Lúdico! Olha esse cartaz num poste aqui em São Paulo: "Evite solidão! Consertamos o seu PlayStation".
E essa placa em Pindaçu, na Bahia: "Caldo de cana! A 200 metros atrás!". Rarará. E esse restaurante em Sorocaba: "Aqui Se Come". Ué, e se fosse uma sorveteria seria: "Aqui Se Chupa?" Rarará!
Hoje, só amanhã!
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    O que esperar do futuro?
    SÃO PAULO - À primeira vista, o povo enlouqueceu. Segundo o Datafolha, 59% dos brasileiros acham que a inflação vai aumentar e 43% apostam na alta do desemprego. Não obstante, 56% creem que sua situação econômica pessoal vai melhorar. Como conciliar essas asserções aparentemente contraditórias?
    Meu palpite é o de que a explicação está não na economia, mas na psicologia, mais especificamente nas tinturas com as quais encaramos o futuro. Apesar da exuberância de temperamentos humanos, há entre nós uma tendência para o otimismo local e o pessimismo global.
    No plano pessoal, nutrimos a mais generosa das predisposições. É o que os psicólogos chamam de viés da superioridade ilusória ou efeito lago Wobegon, "um lugar onde todas as mulheres são fortes, todos os homens, bonitos, e todas as crianças estão acima da média".
    Temos uma confiança pouco razoável em nós mesmos e nossas capacidades. Isso se traduz em paradoxos estatísticos como o fato de 87% dos alunos de MBA de Stanford julgarem sua performance acadêmica acima da mediana da escola ou 93% dos americanos acreditarem que são motoristas mais hábeis que a média. Num estudo, pacientes de câncer se revelaram mais otimistas com seu futuro do que os controles saudáveis.
    Nas atividades em que nossa performance afeta o resultado, é útil nutrir autoconfiança. Se eu imaginar que consigo realizar uma tarefa, tenho mais chance de sucesso do que se achar que fracassarei logo de cara.
    Na esfera global, isto é, em relação a coisas sobre as quais não temos nenhum controle, a lógica se inverte. Aqui, leva vantagem quem se prepara para o pior, ou seja, o pessimista. Se seu catastrofismo não se confirma, ele fez papel de bobo, mas, se a cautela extra era motivada, ela pode ter-lhe garantido a descendência.
    Alguns séculos de civilização e aulas de matemática não bastaram para mudar essa visão de mundo.

    As perversões de Lulu e Bolinha - Claudia Collucci

    folha de são paulo

    As perversões de Lulu e Bolinha

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    Enquanto a OMS (Organização Mundial da Saúde) planeja retirar as perversões sexuais (como do sadomasoquismo e o travestismo fetichista ) do rol de transtornos mentais, outro tipo de perversidade ganha terreno no campo da sexualidade.
    Refiro-me a essa absurda exposição da intimidade de mulheres e homens na internet seja por meio dos aplicativos Lulu e Tubby (nome inglês do personagem Bolinha) seja pela divulgação de vídeos íntimos, já relacionados a dois casos de suicídios de adolescentes.
    Lulu, para os poucos que ainda não sabem, é um app em que mulheres avaliam anonimamente o desempenho sexual de homens. Já o Tubby, a revanche masculina, chega aos smartphones amanhã com o slogan "sua vez de descobrir se ela é boa de cama". Lixo, é o que eu acho de ambos.
    Na psicologia, o fenômeno já tem nome: pornografia de vingança, uma reedição da violência de gênero. O assunto é muito sério e deveria estar sendo amplamente discutido em casa, nas escolas e nas diversas mídias.
    Como bem lembrou recentemente a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do programa de estudos em sexualidade da USP, desde que o mundo é mundo, a rejeição leva a atos de vingança. Mas, com a tecnologia digital, a internet e as redes sociais, a vingança pode tomar proporções gigantescas. E se tornar devastadora, como vimos nesses dois casos das meninas que se mataram.
    Ainda que os mais jovens vivam hoje a sexualidade de forma mais livre, muitos, especialmente os adolescentes, ainda estão aprendendo a se relacionar. Muitas vezes se expõem a brincadeiras que podem acabar mal. Depois, não sabem lidar com sentimentos gerados por essa exposição pública da sexualidade. A menina se sente humilhada, como se isso comprometesse sua vida inteira.
    Algumas iniciativas já começam a surgir com o intuito de barrar isso. No Congresso, tramita um projeto de lei criado pelo deputado federal Romário (PSB-RJ) que prevê penas de um a três anos contra o responsável pela divulgação de vídeos ou fotos íntimas.
    O projeto tramita em conjunto com outros que falam sobre a proteção contra condutas ofensivas contra a mulher na internet ou em outros meios de propagação da informação.
    Ontem, o Ministério Público do Distrito Federal instaurou inquérito civil público para apurar danos morais causados pelo aplicativo Lulu, capaz de "ofender direitos da personalidade de milhões de usuários do sexo masculino".
    Saudade daquela época em que Luluzinha era só a menina heroína de cachinhos, que usava boina e vestido vermelhos, e o Bolinha, o gorducho líder do clubinho onde menina não entrava...
    cláudia collucci
    Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de "Experimentos e Experimentações". Escreve às quartas, no site.

    Rosely Sayão

    folha de são paulo

    Avós, filhos e netos

    DE SÃO PAULO
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    Qual o papel dos avós no mundo atual? Essa tem sido uma questão muito visitada por pais com filhos pequenos ou nem tanto, e também por seus próprios pais, ou seja, os avós das crianças e dos adolescentes.
    Há muitas reclamações do lado dos adultos --recíprocas, por sinal -- e talvez elas sejam um dos principais motivos que tem levado muita gente a pensar no assunto. Vamos levantar algumas questões nesse tema tão antigo e, ao mesmo tempo, tão novo.
    Por que seria esse um tema novo? Porque desde que a família começou a mudar e a ganhar diversos desenhos e novas dinâmicas, desde que perdemos as referências sociais rígidas, mas que eram consideradas seguras, sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, desde que os papéis de pai e de mãe passaram a mudar, os avós entraram em crise.
    Tradicionalmente, avós são velhos, e um grupo de avós de hoje não quer ser reconhecido como tal. Velhos são os bisavós, cada vez mais frequentes na vida familiar devido ao aumento da longevidade e, eles sim, com direito a ter cabelos brancos e agenda livre.
    Assim, há um grupo de avós que pouco tempo tem para os netos porque estão muito envolvidos com a própria vida. Há, inclusive, avós que tem filhos quase da mesma idade que seus netos. Esse é um fenômeno bem novo, não é?
    Há também um grupo de avós que gostariam de se envolver com seus netos, mas que têm poucas chances de atuar à sua maneira com as crianças porque seus filhos não querem muitas interferências na maneira de tratar seus --SEUS-- filhos. Quando eles precisam da presença dos avós com a criança, deixam orientações expressas sobre como agir em todas as situações. E sobre como não agir também.
    Uma questão frequente desse grupo de pais é: como ensinar meu filho a não fazer determinada coisa em casa se os avós, na casa deles, permitem? Muitos têm se desvencilhado dessas situações simplesmente diminuindo as visitas aos avós. Como se as crianças não soubessem diferenciar os contextos que frequentam e as pessoas com quem convivem!
    E há, também, um grupo de avós que acredita ocupar o lugar de seus filhos em relação aos netos: ficam com eles boa parte do tempo, cuidam, educam etc., porque seus filhos pouco tempo têm por causa do envolvimento extremo com a vida profissional.
    Certamente há ainda outros grupos de avós aqui não mencionados, mas uma coisa é certa para todos eles: ser avó ou avô no mundo contemporâneo supõe a diversidade de papel, o que implica em criação e inovação, o que é muito bom.
    Entretanto, mesmo com toda essa variedade de avós, todos devem --e podem-- afetar a vida de seus netos. Aliás, qual o sentido de ser avó se não for para isso?
    A experiência de vida, a maturidade mesmo que com aparência juvenil, a paciência, a complacência, a generosidade, a tranquilidade, os valores e a sabedoria dos avós podem afetar positivamente os seus netos.
    E tudo isso vai se expressar ora no momento de negar algo com firmeza carinhosa, ora no momento de relevar um comportamento teimoso, ora quando dá vontade de mimar o neto e na hora de narrar a história da família, de sua cultura, de suas tradições. Avós podem ser ótimos contadores de histórias da família, do conhecimento e da humanidade.
    Avós e netos têm o direito a tudo isso, não é verdade?
    rosely sayão
    Rosely Sayão, psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Escreve às terças na versão impressa de "Cotidiano".

    João Pereira Coutinho

    folha de são paulo
    Herodes, esse incompreendido
    Para uma criança em sofrimento, apresentar-lhe a morte como alternativa é um gesto de obscenidade
    O jornalista Paulo Francis, que adorava crianças malcomportadas, costumava dizer que Herodes tinha sido um incompreendido. Pena que Francis não esteja entre nós para contemplar o que se passa na Bélgica. O espírito de Herodes está vivo por aquelas bandas e o país está a um passo de legalizar a eutanásia para crianças.
    Verdade que a Bélgica sempre foi bastante "liberal" (peço desculpa pelo uso abusivo do termo) nessas matérias. Segundo os manuais da especialidade, a eutanásia (ativa ou passiva) existe para terminar com o sofrimento intolerável (e incurável) de um doente.
    O médico pode matar o paciente (eutanásia ativa), ou, em alternativa, pode suspender certos tratamentos que terão o mesmo fim (eutanásia passiva).
    Seja como for, havia pelo menos um entendimento mínimo de que a eutanásia era um expediente extremo, só aplicável a situações extremas.
    Acontece que a Bélgica foi alargando os casos de "situações extremas". Sim, um doente terminal com câncer cumpre os requisitos para uma injeção letal. Mas o que dizer de uma pessoa em profundo sofrimento psicológico ou acometida por uma deficiência irreversível como a cegueira?
    Se o argumento da autonomia é o mais importante nas questões de vida ou morte, não devemos respeitar também a autonomia de alguém que não deseja mais viver porque habitar as trevas --psicológicas, sensoriais-- não é destino que se deseje para ninguém?
    Foi assim que a Bélgica começou a praticar estas formas de eutanásia "à la carte" muito para além dos casos clássicos de sofrimento irreversível. O passo seguinte --eutanásia para crianças-- era apenas uma questão de tempo.
    Posição pessoal: sou favorável a que os médicos façam tudo para minorar a dor (mesmo que esses cuidados paliativos tenham como "duplo efeito" a morte a prazo do paciente --por exemplo, com injeções crescentes de morfina).
    E, além disso, admito situações de eutanásia passiva em que se retiram meios artificiais que apenas adiam artificialmente o fim de qualquer existência. Entre esses meios artificiais não estão, logicamente, o oxigênio, a água e a alimentação. Matar um ser humano por asfixia, sede ou fome não faz parte da minha cartilha.
    Mas também não faz parte da minha cartilha os argumentos autônomos e utilitaristas que normalmente são avançados para defender a eutanásia ativa.
    Sobre os argumentos utilitaristas --há certos meios (matar o paciente) que são legítimos para se atingir certos fins (evitar o sofrimento do paciente)--, convém não levarmos demasiado longe esse raciocínio de "meios e fins". Caso contrário, também podemos defender, sem nenhuma contradição, que existem certos meios (matar quem defende matar pacientes) para se atingirem certos fins (salvar a vida dos pacientes).
    Sobre os argumentos de autonomia individual, a questão não está em saber se a autonomia é um valor fundamental. Claro que é. A questão está antes em saber até que ponto alguém em sofrimento considerável continua a ser o melhor juiz em causa própria. Sobretudo quando existem alternativas terapêuticas para diminuir esse sofrimento.
    E, claro, a questão agrava-se quando falamos de crianças. Na lei belga que o Parlamento se prepara para aprovar, a eutanásia poderá ser ministrada a crianças gravemente doentes desde que elas o desejem; desde que os pais o permitam; e desde que um especialista sancione essa escolha.
    Cada uma dessas premissas já é um problema por si só. Não vou discutir o que significa para uma civilização alegadamente avançada conceder aos pais (e aos médicos) o direito de matar os filhos. O cenário comenta-se a si próprio.
    Fico-me pelos filhos: respeitar a vontade de uma criança que deseja morrer não é apenas um problema legal, que lida com o fato de ela não ter atingido ainda a maioridade. É sobretudo uma forma de desistência moral: para uma criança em sofrimento, apresentar-lhe a morte como alternativa é um gesto de obscenidade que deveria envergonhar uma sociedade de adultos.
    "Herodes, esse incompreendido", dizia Paulo Francis, com perversa ironia. Mal ele imaginava que, na segunda década do século 21, Herodes deixaria de ser uma ironia.