folha de são paulo
NELSON DE SÁDE SÃO PAULO
"A outra música que te mando é um chorinho de Francis Hime com letra minha. Fiz pra você. A gravação é precária, Francis e eu às 4h da manhã, alegres demais. Por incrível que pareça, passou na censura. Fiz umas mutretas na letra, eles não entenderam nada e aprovaram. Quando sair o disco, vão ficar puto dentro das calças."
Era Chico Buarque, em trecho de uma carta para Augusto Boal (1931-2009), no exílio em Portugal. "Meu Caro Amigo", que saiu em disco em 1976, junto com "Mulheres de Atenas", parceria de Chico e Boal também citada na carta, se transformaria em hino contra a ditadura militar:
"Meu caro amigo, me perdoe, por favor/ Se não lhe faço uma visita/ Mas como agora apareceu portador/ Mando notícias nessa fita/ Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll/ Uns dias chove, noutros dias bate sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta".
Augusto Boal
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O dramaturgo carioca Augusto Boal (1931-2009), fundador do Teatro do Oprimido
Boal relatou depois que ouviu a fita ao lado da mulher, Cecília, e de Paulo Freire, Darcy Ribeiro "e outros amigos exilados". A carta faz parte do acervo do diretor e teórico de teatro, que no momento está sendo catalogado e pode resultar na edição dos inéditos pela Cosac Naify.
DITADURA, 50
A editora está dando início a uma coleção de Boal com "Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas", a sua principal obra teórica. No ano que vem, para o 50º aniversário da ditadura, em abril, sairá "Hamlet e o Filho do Padeiro", livro de memórias, esgotado há uma década.
Milton Ohata, coordenador editorial, diz que a Cosac está avaliando a publicação de inéditos e que ele próprio já foi até o acervo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na ilha do Fundão. "Está em processamento, separando por gênero, correspondência etc. Tem bastante coisa. Por enquanto ainda não dá porque é um mundo, precisa selecionar o material."
Mas a ideia é, "em todas as edições e reedições, colocar material inédito". No caso de "Jogos para Atores e Não Atores", que será relançado no segundo semestre de 2014, deve ser um texto "transcrito pelo Boal de uma aula que ele deu, na temporada que passou na Royal Shakespeare Company, explicando o Teatro do Oprimido aos atores".
A psicanalista Cecília Boal, viúva do diretor e fundadora do Instituto Augusto Boal, diz que "ainda não se falou disso", mas confirma que "no futuro a gente pode publicar inéditos que estão no acervo". Destaca as cartas trocadas com Carlos Porto, "teórico do teatro que ajudou muito o Boal em Portugal", e com o crítico Sábato Magaldi.
GUARNIERI, LULA
"O professor Eduardo Coelho, encarregado do acervo, me disse que encontrou até uma carta da [bailarina e diretora alemã] Pina Bausch", conta Cecília.
Professor da Faculdade de Letras da UFRJ, é um especialista que antes chefiou o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa.
"O acervo tem muitos textos de caráter mais teórico inéditos", diz Coelho. "Tem muitas crônicas de Boal que nunca foram recolhidas. E existem algumas peças que ele escreveu. Além das correspondências, que estão todas inéditas, do período na Argentina, em Paris. Tem carta do [dramaturgo Gianfrancesco] Guarnieri, do Lula, do [poeta] Ferreira Gullar."
Dos textos teóricos inéditos, ressalta aqueles em que, já nos anos 1980, Boal "trata o teatro no contexto de uma cultura maior, como formador de um processo de conscientização política". Foi um período de muitas palestras dele pela América Latina e de sua experiência como vereador pelo PT, no Rio.
É dessa época uma outra obra prevista para reedição, "Teatro Legislativo", que poderá sair num único volume ao lado de "Teatro como Arte Marcial".
A Cosac Naify programa ainda reeditar as suas peças _a partir dos dois volumes do "Teatro de Augusto Boal" que saíram em 1986 pela Hucitec, também já esgotados.
TEATRO DO OPRIMIDO
AUTOR Augusto Boal
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 39,90 (224 págs.)