domingo, 20 de outubro de 2013

Para coronel Íbis Pereira,do Rio, livros podem evitar a violência da PM

folha de são paulo
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MARCO ANTÔNIO MARTINS
DO RIO

Diante da correria do quartel central da Polícia Militar do Rio, o coronel Íbis Pereira, 50, desce de um carro particular em trajes civis.
Sua figura de pouco mais de 1,60 m, voz pausada e ar professoral nem parece ser o expoente de uma geração que busca novos rumos para a corporação, envolvida em uma série de denúncias nos últimos três meses -de truculência em manifestações à tortura e morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, 43, na Rocinha.
Crítico do que chama de "Bopelatria", a veneração de jovens pelo Bope, o Batalhão de Operações Especiais famoso após o filme Tropa de Elite (de 2007), o coronel cita filósofos e pensadores modernos para defender que as manifestações têm tudo para transformar não apenas a sociedade, mas também a própria polícia.
"Só o pensamento pode enfrentar essa barbárie. Vivemos um ódio que explode dos dois lados", diz o diretor de ensino da PM. "A polícia precisa aprender a lidar com isso. Acertar mais a mão."
Esta é uma das teses do coronel, para quem o pensamento evita a violência policial. "Pensar dói", diz, apelando a Fernando Pessoa.
O coronel levanta uma série de "poréns" a práticas atuais da polícia.
Não esconde, por exemplo, seu incômodo com o símbolo do Bope, a caveira. Se pudesse, acabaria com a imagem, garante ele.
"É impressionante como uma crítica à violência se tornou um glamour. Uma Bopelatria", analisa Pereira.
O coronel sugere: "Trocaria por algo que representasse a agilidade, a destreza. O símbolo traz a ideia da transcendência. É associado à guerra. Não pode ser da polícia."
LIBERTAÇÃO
Filho de uma dona de casa e de um pai ferroviário, que não chegou a conhecer, o coronel foi criado no bairro de Anchieta, subúrbio na zona norte da capital fluminense.
Influenciado pelas ideias da Teologia da Libertação, diz adorar a "militância cristã". Até hoje, usa um anel de tucumã num dedo da mão direita, adereço comum a católicos praticantes.
O coronel Pereira ingressou na PM em 1983, influenciado pelas ideias do antropólogo Darcy Ribeiro e do então comandante-geral Carlos Nazareth Cerqueira, um dos primeiros oficiais no país a defender uma "polícia próxima ao cidadão".
Formou-se em direito e filosofia. Agora, faz um mestrado em história na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
"A dignidade da pessoa não é valor no Brasil. É apenas retórica, discurso. A pessoa vomita isso, mas não acredita. Os direitos humanos são um conceito em crise", avalia o policial.
As ideias do coronel são compartilhadas por um grupo fiel de cerca de 50 seguidores. Um deles é o também coronel Antônio Carlos Carballo, com quem divide o ideal de que a literatura pode convencer a corporação da polícia dos benefícios de se evitar a violência.
"Isso humaniza todos eles, cria um pensamento", diz, citando os escritores Machado de Assis, Guimarães Rosa e o russo Dostoievski.

Evento com filósofo traz alternativa ao 'pé na porta'



DO RIO
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Discutir a "violência interior" em um evento organizado junto com o jornalista e filósofo Adauto Novaes e a FLUPP (Festa Literária das UPPs) foi a forma encontrada pelo coronel Íbis Pereira para levar aos futuros policiais uma alternativa de pensamento contrário à cultura do "pé na porta" ainda amplamente vigente no país.
"É muito difícil mudar essa cultura. A nossa PM não é muito atrativa, ainda é formada por jovens de classe média baixa. Precisamos ter gente que não se deixa contaminar pela violência", diz.
Rony Maltz/Folhapress
PMs assistem palestra do filósofo francês Frédéric Gros, na Academia Dom João VI, na zona oeste do Rio de Janeiro
PMs assistem palestra do filósofo francês Frédéric Gros, na Academia Dom João VI, na zona oeste do Rio de Janeiro
Folha assistiu a duas das 12 aulas ministradas aos soldados e futuros oficiais. Numa, o filósofo francês Frédéric Gros reconheceu, a uma plateia de 450 jovens: "É sempre assustador estar diante de jovens com uma função tão difícil. Falar em violência policial é sempre insuportável", afirma.
Gros lembrou em 1 h 30 de conversa que as raízes internas da violência passam pela desconfiança, pelo medo, pela paixão e pela glória.
Na plateia, os jovens querem saber como agir, por exemplo, diante das manifestações. Íbis entra no debate. Diz que a grande dificuldade, nesse caso, é que ela é praticada por dois lados -policiais e mascarados.
"Se fosse só a violência policial era fácil de resolver: acabava-se com a polícia. Mas é muito mais complexo que isso. Precisamos buscar estratégias, não apenas o Batalhão de Choque", afirma.
A iniciativa de juntar policiais e filósofos em um mesmo ambiente não foi fácil, mas acabou elogiada.
"A aceitação é difícil, ainda mais com uma garotada que sonha em ser o capitão Nascimento", diz o filósofo e jornalista Adauto Novaes.
"Tomara que a prática se repita e assim criarmos uma cultura na corporação", diz o historiador Julio Ludemir.
O secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, é um dos entusiastas da linha do coronel Pereira. "O coronel Pereira e o Antônio Carlos Carballo são excelentes cabeças. São vários como eles numa corporação de 50 mil pessoas. Esse é o problema: uma coisa combinada no gabinete, às vezes, não chega às ruas", reconhece.
Hoje diretor de ensino da PM, o coronel Íbis chegou a coordenar a Escola de Formação de PMs. Em 22 meses, fez da biblioteca da escola uma referência na zona oeste do Rio. "Ninguém entende mais do lado sombrio da alma humana que Dostoievski. O policial precisa saber disso para se entender", afirma.

Biografias sobre trilhos - Rubens Figueiredo

Folha de São Paulo
Biografias sobre trilhos
Paralelismos e desencontros em "Anna Kariênina"
RUBENS FIGUEIREDO
RESUMO A presença dos trens no romance de Tolstói (1828-1910) aponta para uma trama subjacente à obra, a das pretensões modernizadoras da Rússia. Mas a imagem ferroviária reflete também o princípio ordenador da trama, em que pares de personagens e situações se desdobram sem se encontrarem, como as paralelas dos trilhos.
O leitor dificilmente deixará de notar o peso da presença dos trens em "Anna Kariênina".
É numa estação ferroviária, por exemplo, que Anna conhece Vrónski, seu futuro amante. Na ocasião, para horror da protagonista, um homem morre esmagado por um trem --ela própria, como se sabe, se suicidará jogando-se sob as rodas de um vagão. As últimas cenas do romance também se passam numa estação, quando Vrónski parte para a guerra como voluntário. Seu intuito é antes morrer do que alcançar um triunfo militar. E o trem é o veículo para obter o que deseja.
Na mesma passagem, primeiro na estação e depois dentro de um vagão, os personagens põem à prova suas visões a respeito da guerra. São inúmeras, no romance, escrito entre 1873 e 1877, as situações em que o trem é fator da ação --elemento presente ou objeto de alusões em conversas, pensamentos ou sonhos.
As ferrovias eram novidade na Rússia. Exprimiam um dos esforços mais salientes para modernizar uma sociedade que se via como atrasada, tolhida por traços pré-capitalistas. As vias férreas eram encaradas não só como um instrumento com fins práticos óbvios num país de território vastíssimo mas também como um símbolo do empenho para equiparar a Rússia aos países ricos.
Por isso é importante ressaltar que Liévin --um dos personagens mais importantes do livro-- manifesta críticas às estradas de ferro.
Sua atitude é ridicularizada por amigos, que mal lhe permitem expor suas objeções e nem mesmo querem ouvi-lo. Nesse aspecto, veem em Liévin um excêntrico ou um provinciano retrógrado. E Tolstói se vale do personagem para apresentar muitas de suas dúvidas e questionamentos em relação ao que a Rússia pretendia fazer de si mesma e ao projeto de integrar o país ao capitalismo.
MAU AGOURO É inevitável lembrar que o próprio Tolstói viria a morrer justamente numa estação de trem. Mas nem é preciso chegar a tanto. Sem sair das páginas do romance, constatamos que a ferrovia está associada ao destino infeliz ou trágico de personagens importantes do livro. Contra esse fundo, o conforto dos vagões de luxo e a comodidade dos deslocamentos rápidos, a despeito da sua imagem orgulhosa de progresso, contêm uma nota de mau agouro.
Se o trem concentra um dos principais temas subjacentes ao romance --a polêmica em torno do projeto modernizador da Rússia--, de outro lado oferece a figura visual constante de dois trilhos paralelos. Isso vem ao caso, pois as linhas paralelas representam um dos princípios mais importantes na estruturação do livro, a constante formal que baliza a ação e ajuda o livro a manter coesas as numerosas e variadas linhas do enredo.
O título nos rascunhos era "Dois Casais", ou "Dois Casamentos". Essa dupla de pares justapostos reforça a imagem das linhas paralelas e traz à mente a imagem dos trilhos. Assim, o casamento integra-se ao tema de fundo do livro e confere uma forma concreta ao mais importante princípio estruturador do romance: o paralelismo.
Do que se diz aqui, alguém que não leu "Anna Kariênina" poderia pensar que se trata de um romance esquemático, escrito com régua e esquadro. Não é nada disso, nem de longe. Não que o forte da prosa de Tolstói seja a sutileza ou a discrição. Não é. Seu ímpeto procura o concreto. Um dos principais méritos do livro, sua abrangência, deve muito ao fato engenhoso de não se prender a um centro.
A distribuição da ação em linhas paralelas, em geral formadas por casais, escapa do perigo de adquirir uma feição mecânica porque tais linhas têm rumos em grande parte independentes. Não seguem uma direção única, estável; seu destino é tortuoso, incerto.
O crítico russo Viktor Chklóvski (1893-1984) estudou os procedimentos estilísticos de Tolstói e sublinhou o paralelismo. Chklóvski cunhou o conceito de construção escalonada, procedimento que se apresenta quando a narrativa desdobra um objeto mediante reflexos e justaposições. Essa é a base do paralelismo em "Anna Kariênina".
Senão vejamos: a constante presença da ferrovia contém um reflexo das linhas paralelas em que se distribuem os casais e os personagens. De maneira mais específica: o acidente ocorrido na chegada de Anna a São Petersburgo no início do livro contém um reflexo da sua própria morte sob as rodas de um trem, no final. E ainda: a frustrada tentativa de suicídio de Vrónski, o amante de Anna, surgirá como um reflexo antecipado do suicídio de Anna. E mais ainda: o livro abre com a crise conjugal por que passa o irmão de Anna. Ela chega à capital para preservar o casamento ameaçado. E consegue. Mas essa crise, vista em retrospecto, surge como um reflexo da crise conjugal da própria Anna, que se desenvolverá nas partes seguintes.
As duas crises conjugais refletem-se. A segunda, a de Anna, se apresenta mais grave do que a primeira, a do irmão: ela se consuma na separação do casal oficial, ao contrário da primeira crise, resolvida com uma conciliação formal. A mesma gradação do mais fraco para o mais forte se verifica nas duas tentativas de suicídio: a primeira --a de Vrónski-- se mostra mais fraca, contornável; a segunda --de Anna-- tem desfecho fatal.
Olhando bem, até nesse quadro de dois pares e de duas ações que se refletem vemos formar-se outro paralelo: o da gradação a que ambos os pares obedecem. O primeiro tem efeito mais fraco; o segundo é conclusivo. O primeiro poderia ser visto como um agouro, um mau sinal. Talvez uma variedade mágica do paralelismo.
Mas voltemos às duas crises conjugais. Elas se refletem, embora tomem rumos distintos. A despeito do motivo comum (o adultério), são independentes, exceto na sua disposição no espaço do romance, pois aí as duas crises conjugais estão presas uma à outra. Ou seja, só a construção do livro cria uma associação entre tais fatos. Os acontecimentos em si mesmos não supõem tal associação.
Outro efeito desses reflexos de ações cronologicamente distantes é o enfraquecimento da noção do tempo linear. Pois, se um objeto ou um fato se reflete em outro, do passado ou do futuro, ambos estão presentes simultaneamente no pensamento: o tempo perde sua força de sequência, de concatenação, e adquire outra forma --a da duração.
DESDOBRAMENTO A técnica do desdobramento do material romanesco permite que Tolstói expanda o romance até alcançar as dimensões incomuns que apresenta, sem perder a coesão.
Não se trata apenas de desdobrar a crise conjugal do irmão de Anna na crise conjugal da própria Anna, como já vimos. Também não se trata apenas de desdobrar o eixo principal da narração em dois casamentos: o de Liévin e Kitty e o de Anna e Vrónski. O próprio casamento de Anna se desdobra em dois: o de Anna com Kariênin e de Anna com Vrónski. E mais ainda: Tolstói dá um passo além e conduz o processo de desdobramento até o âmago da personalidade de Anna.
Refiro-me à passagem em que Anna começa a ser vencida pela indecisão e pela ambivalência da sua situação, na qual tinha um marido e também tinha um amante, sem nada esconder de ambos e sem poder desfazer-se nem de um nem de outro. Diz o texto de Tolstói:
"Anna não só estava pesarosa, como também começava a sentir um pavor diante de um novo estado de espírito, que nunca experimentara. Sentia que em sua alma tudo começava a duplicar-se, como às vezes se duplicam os objetos para os olhos cansados. Às vezes, não sabia o que temia e o que desejava. Não sabia se temia ou se desejava o que existira antes ou o que iria existir, nem sabia exatamente o que desejava."
Logo adiante, o texto diz: Anna "sentiu que sua alma começava a duplicar-se". Quer escrever uma carta para o marido e outra carta para Vrónski. Planeja abandonar o marido, mas quer levar o filho. Tolhida pelas alternativas, Anna se divide entre elas. E esse processo de divisões e subdivisões sucessivas contém um reflexo do processo de duplicação, de desdobramento, que ocorre em paralelo. Pois, na passagem citada, a consciência dividida de Anna engendra um mundo duplicado. Passo a passo, o romance se expande e multiplica as linhas do seu enredo e as projeta em dobro sempre adiante.
Digno de nota é o caso dos filhos de Anna. São dois: um menino, que ela tem com o marido; e uma menina, que tem com o amante. Anna se apega cada vez mais ao menino, o filho do marido, cujas feições se refletem no rosto da criança. No correr do romance, vê-se separada à força do filho e passa a procurá-lo com um ímpeto que toma o aspecto dos anseios de uma mulher apaixonada. De outro lado, Anna repudia a filha que tem com Vrónski. Parece ver na menina uma espécie de usurpadora que pretende tomar a posição do filho.
Esse desdobramento dos filhos e o paralelo formado pelos sentimentos vão se refletir no marido de Anna. Pois o marido, Kariênin, mesmo sabendo que não é o pai da criança, trata a menina com zelo paternal e, sem seu cuidado, talvez a criança nem sobrevivesse aos primeiros dias após o parto. Kariênin jamais se mostrou assim com o próprio filho.
Portanto ele também se duplica: no caso da filha de Vrónski, ele deixa de ser o homem preso às convenções. Chega a tratar com grande consideração o amante da esposa. Desse modo como que atravessa as linhas paralelas que compõem o nosso quadro.
DINAMISMO Nessa situação, tão nitidamente calcada em linhas duplas que se dividem e se desdobram, pode-se ver que o paralelismo em "Anna Kariênina" não se traduz em antíteses, em oposições simétricas, nitidamente contrastantes. Há um dinamismo capaz de dar aos termos de cada um desses paralelos uma boa margem de autonomia, de vida própria.
O reflexo, processo em que os termos de cada par se espelham, confere coesão ao conjunto. O dinamismo que os movimenta evita que essa coesão se prenda a simetrias. Quero dizer, os termos que formam os pares e os paralelos não têm o mesmo peso.
O movimento de linhas paralelas tem um duplo aspecto. Supõe necessariamente uma semelhança, uma vez que as linhas se acham sempre lado a lado: cada uma sempre se refere à outra. Mas também supõe que as linhas nunca estão juntas. Sempre refletidas uma na outra, prendem-se, na verdade, em função de um desencontro.
Assim todos os casais importantes em "Anna Kariênina" se mantêm ligados em função de um constante desencontro. O que distingue os vários casais é seu sucesso ou seu fracasso em manter tal desencontro sob controle.
No caso de Kitty e Liévin --a família supostamente feliz--, esse esforço de estabilidade no desencontro chega ao fim do romance com sinais de um êxito precário. No caso de Anna e seu novo casamento, nunca sancionado socialmente, o desencontro sai do controle. Torna-se insustentável e conduz à destruição a parte mais frágil: a mulher. Nesse aspecto, a construção com base no paralelismo, da forma elaborada por Tolstói --um paralelismo assimétrico--, contém marcas de um mundo social intrinsecamente desigual e opressivo.
Merece lembrança outro paralelo, não mencionado explicitamente no romance, mas postulado em sua concepção geral: o desencontro que prende a Rússia aos países ricos da Europa. Em várias situações de "Anna Kariênina", a vida da elite russa apresenta reflexos desse modelo distante. Basta lembrar a frequência com que se fala francês, inglês e alemão entre as personagens e com que se mencionam obras e conquistas científicas e políticas daqueles países.
Aqui também, a exemplo do que ocorre com os vários casais do livro, os dois termos do par não se encontram. Correm em paralelo, com pesos desiguais. A Rússia e o modelo capitalista estão presos um ao outro em um desencontro constante. Se isso, por sua vez, pode ser visto como um reflexo antecipado --como sinal ou mau agouro-- de outro paralelo do qual somos parte hoje, é uma questão que vale a pena se fazer, quando lemos "Anna Kariênina".
Vida de Tolstói é tema de dois novos livros
As duas biografias se complementam: a de Bartlett busca aproximar o leitor do contexto de Tolstói. Já a de Bassínski centra o foco nos derradeiros dias do escritor
IRINEU FRANCO PERPETUO
Um dos maiores escritores russos de todos os tempos foi também um pensador com influência sobre algumas figuras-chave da história do século 20, como Mahatma Gandhi. Chegam agora ao Brasil duas biografias lançadas no exterior em 2010, por ocasião do centenário de falecimento de Tolstói (1828-1910).
O próprio contraste entre os festejos da efeméride no Ocidente e o silêncio oficial na Rússia mostram o quanto o escritor ainda é incômodo em sua terra natal. "Uma das razões para isso é que, nos últimos 30 anos de vida, ele adotou ideais de vegetarianismo, pacifismo e não violência que não combinam muito com a Rússia de hoje, com sua cultura machista", disse à Folha a britânica Rosamund Bartlett, autora de "Tolstói, a Biografia"[trad. Renato Marques, Globo, R$ 69,90, 640 págs.].
"Ele é tão inconveniente hoje quanto cem anos atrás", afirmou, em 2010, o russo Pável Bassínski, autor de "Tolstói: a Fuga do Paraíso" [trad. Klara Guriánova, Leya, R$ 59,90, 480 págs.].
O autor de "Anna Kariênina" não foi mencionado em pronunciamentos de Putin ou Medvedev, não houve eventos do Ministério da Cultura nem os programas especiais de TV que são de praxe nessas ocasiões. E, apesar dos apelos generalizados, a Igreja Ortodoxa Russa recusou-se a aproveitar a ocasião para "reabilitar" Tolstói, excomungado em 1901.
Uma situação no mínimo paradoxal para um país no qual a literatura desfruta de status análogo ao da música popular no Brasil: o de item definidor da cultura nacional e de afirmação de sua identidade perante o planeta.
Embora o escritor-ícone da Rússia --seu Shakespeare, seu Camões-- seja Púchkin, ele é mais apreciado no país do que fora dele. A penetração da literatura russa no Ocidente é um fenômeno francês da década de 1880, que teve como carros-chefe Dostoiévski e Tolstói, ainda hoje os escritores russos mais valorizados no exterior.
A difusão de Tolstói no Brasil é antiga e, depois da virada do milênio, proliferaram traduções de suas obras-primas feitas diretamente do russo --com destaque para as de Rubens Figueiredo, que se ocupou de seus grandes romances, como "Anna Kariênina", "Guerra e Paz" e "Ressurreição".
As biografias recém-lançadas funcionam de modo complementar. Bartlett tem uma abordagem abrangente, procurando aproximar o leitor ocidental do contexto de Tolstói. Já Bassínski centra o foco no mesmo período abordado pelo filme "A Última Estação" (2009), de Michael Hoffman: os derradeiros dias do escritor.
Partindo de uma pesquisa sobre os ancestrais de Tolstói, o livro da britânica é daqueles a manter à mão. Índice remissivo, cronologia, árvore genealógica, mapa e caderno de imagens formam um aparato de apoio que, na edição brasileira, é enriquecido pelo meticuloso levantamento, feito por Denise Bottmann, da bibliografia do escritor no Brasil, desde o final do século 19 até hoje, indicando quais obras foram vertidas diretamente do russo e quais não.
Especialmente valoroso é o epílogo, chamado "Patriarca dos Bolcheviques", em que Bartlett narra o conturbado destino dos adeptos do escritor e de suas obras depois da Revolução de 1917.
CRISE MÍSTICA O que aproxima Bartlett e Bassínski é um evidente fascínio pelo Tolstói pós-literatura. Por volta de 1877, ele passa por uma "crise mística", da qual emerge professando uma espécie peculiar de cristianismo ascético e hostil à igreja estabelecida. Nos anos subsequentes, vai abrir mão de bens e direitos autorais, repudiar as obras-primas às quais devia sua reputação e adquirir uma aura de santo que transcenderia largamente as fronteiras da Rússia.
Bartlett esmiúça o empenho de Tolstói no campo que talvez pudéssemos chamar de "educação popular" e descreve detalhadamente um dos momentos decisivos para a consolidação de sua autoridade moral: a grande fome da década de 1890, na província de Riazan, em que a ajuda do escritor aos camponeses contrastava dramaticamente com a imobilidade do governo dos czares e a indiferença dos latifundiários.
Embora não os explore a fundo, a autora traça paralelos entre a vida pessoal de Tolstói e seus grandes romances. Nesse aspecto, Bassínski é mais radical: ele parece depreender que qualquer interessado na vida do escritor já conhece "Anna Kariênina" e "Guerra e Paz", passando ao largo dessas obras. Seu objetivo é investigar os dez últimos dias da vida do escritor.
Na noite de 27 para 28 de outubro de 1910, aos 82 anos, Tolstói evadiu-se de sua propriedade rural, em Iásnaia Poliana --uma fuga que só terminaria em 7 de novembro do mesmo ano, com sua morte, na estação ferroviária de Astápovo. Bassínski dedica um capítulo para cada dia da jornada, traçando sua biografia em retrospectiva.
O casal Tolstói mantinha diários que, por determinação do marido, eram lidos por ambos os cônjuges --e, portanto, às vezes mais ricos em recados de parte a parte do que em confissões (quando ele resolveu ter privacidade, começou um outro diário, escondido de sua mulher, Sófia Andrêievna).
Membros da família, amigos e agregados também anotavam suas rotinas, e Bassínski se enreda nesse cipoal de telegramas, cartas e recordações para tentar entender a crise que levou o escritor a fugir.
São abordados com especial detalhamento os sete testamentos de Tolstói, bem como o embate por sua "herança espiritual" entre Andrêievna, e Vladímir Tchertkov, amigo e seguidor que se dedicou a copiar, preservar e divulgar seu legado (sua edição das obras completas do autor continua a ser a principal referência na área).
Embora se baseie exclusivamente em evidências documentais, o autor está longe de ser um narrador distanciado. Assim, ao descrever Tchertkov, afirma: "Não respeitá-lo é impossível. Mas simpatizar com ele é difícil". As chantagens e ameaças de suicídio de Sófia Andrêievna e a deterioração de sua saúde mental também merecem narrativa minuciosa, porém com um toque de simpatia pela mulher "que conviveu quase 50 anos com o homem mais complicado do século 19 e dele teve 13 filhos".
Best-seller na Rússia, onde foi laureada com o prêmio Grande Livro, a obra deixa-se ler como literatura --mas não chega a se aprofundar em questões literárias.
Somadas, as biografias de Bartlett e Bassínski passam de mil páginas "" o tamanho de um romance de Tolstói. Porém quem quiser entender "Anna Kariênina" ou "Guerra e Paz" vai ter que procurar informações em outro lugar.

Um evento de vanguarda - Aracy Amaral

folha de são paulo
Em fins de 1972 já se podia perceber que muitos artistas plásticos faziam experimentações com novos meios: audiovisuais, super-8, 16 mm e som, e não apenas trabalhos conceituais ou com pintura, desenho, gravura, performance.
Considerei que seria uma boa ideia reunir esses artistas num evento para que pudessem apresentar seus trabalhos. Comecei relacionando aqueles que já conhecia em São Paulo e, por correspondência com Hélio Oiticica (que estava em Nova York) e Antonio Dias (em Milão), procurei saber quais outros criadores estavam trabalhando nessas especulações.
Assim surgiram, além deles, artistas como Raymundo Colares, então em Trento, Iole de Freitas, Anna Maria Maiolino e Cildo Meireles.
Em São Paulo, Marcello Nitsche já manejava o super-8, além de Gabriel Borba Filho, Donato Ferrari, Fridman. Mario Cravo Neto, na Bahia, também participaria.
Devi muito a Marcio Sampaio, crítico de Belo Horizonte, para trazer ao evento alguns mineiros. Mauricio Andrés nos brindou com o sensual "Lama". Já o goiano Paulo Fogaça nos surpreendeu com o "Bicho Morto".
Era tempo de regime militar, e eram perceptíveis as alusões políticas disfarçadas alegoricamente: no corpo, na poesia, as improvisações criadas por cada um tinham um sabor que hoje, por certo, chamarão a atenção das novas gerações.
Consegui então o patrocínio do Banco Novo Mundo e a participação da Fotóptica, para a parte de equipamentos. E onde realizar o evento? Desejava um espaço neutro, nem museu nem galeria.
Procurei Abrão Berman, que tinha, na rua Estados Unidos, quase esquina da Melo Alves, um centro de formação para os que se iniciavam com o super-8, o Grife (Grupo de Realizadores Independentes de Filmes Experimentais). Ele acolheu de imediato a ideia, que se realizou em junho de 1973.
Acervo Pessoal
Capa do catálogo da ExpoProjeção 73
Capa do catálogo da ExpoProjeção 73
ExpoProjeção73 foi um nome híbrido, proposital, para o evento. Posso dizer que foi um sucesso. Pude realizar, graças ao patrocínio, um catálogo bilíngue que teve o logotipo e o desenho gráfico de Claudio Tozzi e Julio Abe Wakahara, com impressão gráfica a cargo do editor Massao Ohno.
Resultou em programação diária de sete dias. Havia fila para entrar na Grife, tal a afluência ao evento.
O crítico Romero Brest, da Argentina, escreveu sobre a exposição na revista "Vision" e chamou a atenção de Jorge Glusberg, diretor do Centro de Arte y Comunicación de Buenos Aires, que apresentou uma síntese do evento em dezembro de 73.
Em época sem internet e sem assistentes, o trabalho de contatar artistas, datilografar cartas, preparar conteúdo do catálogo e solicitar patrocínio foi feito na garra. As cartas levavam cerca de uma semana para os Estados Unidos e de oito a dez dias para a Europa.
Às vezes havia um contratempo. Uma carta para Oiticica seguiu para Milão, e a destinada a Dias, para Nova York. Mas eles trocaram a correspondência e nada de grave ocorreu! E assim seguiu célere o preparo da exposição.
Hoje, para celebrarmos os 40 anos do evento no Sesc Pinheiros, os audiovisuais foram remasterizados.
O esforço agora foi tentar localizar os trabalhos, muitos extraviados, e os autores, um a um, em trabalho paciente. A ideia de comemorar os 40 anos do evento foi do produtor de vídeo Roberto Moreira S. Cruz, que apresentará uma síntese de vídeos no Brasil, de 1974 até hoje. E a Cinemateca participou na recuperação e/ou limpeza dos super-8.
E que tal expor arquivos do evento de 1973, registro de como se organizou há 40 anos um evento de vanguarda?
Nota: A ExpoProjeção 1973/2013 será realizada no Sesc Pinheiros entre quarta (23/10) e 12/1. A entrada é franca.
ARACY AMARAL, 83, é curadora e crítica.

Memórias do subsolo inglês - Bernardo Mello Franco

folha de são paulo
DIÁRIO DE LONDRES
o mapa da cultura
Metrô fantasma em alta e recado do além de Diana
BERNARDO MELLO FRANCOOs subterrâneos de Londres escondem mais do que terra, tubos, fios e vestígios da ocupação romana no século 1º d.C. A cidade também caminha sobre uma rede fantasma de metrô, com quase quatro dezenas de estações abandonadas ao longo do tempo. Algumas delas ainda preservam o prédio original no nível da rua, com a típica fachada de cerâmica vermelha do período eduardiano.
Uma das mais intactas é a de Aldwych, no centro. Foi inaugurada em 1907, quando os passageiros circulavam de cartola e pincenê. Pertenceu a um rabicho desativado da linha Piccadilly e serviu de esconderijo para obras de arte durante os bombardeios alemães da Segunda Guerra. Meio século depois, em 1994, foi aposentada devido à baixa demanda de tráfego.
Desde que fechou as portas, a estação virou cenário para filmes como "V de Vingança" (2005) e "Desejo e Reparação" (2007). A partir do próximo dia 7, vai virar atração turística: seus túneis poderão ser percorridos em visitas organizadas pelo Museu do Transporte de Londres.
Os passeios fazem parte da comemoração dos 150 anos do metrô londrino, o mais antigo do mundo. Quem não estiver na capital britânica, mas quiser conhecer seu submundo pode assistir ao documentário "The Secret Station" (www.youtube.com/watch?v=6xSzU0oM4mM).
LIQUIDAÇÃO
As estações abandonadas do "tube" também entraram na mira da especulação imobiliária, um assunto tão frequente em Londres como o preço dos aluguéis no Rio de Janeiro. A bola da vez é Brompton Road, riscada do mapa da linha Piccadilly em 1934.
A velha estação fica numa das áreas mais valorizadas da capital britânica, entre South Kensington e Knightsbridge. Também preserva a fachada original e, do lado de dentro, os azulejos coloridos do arquiteto Leslie Green.
O imóvel pertence ao Ministério da Defesa e foi um dos bunkers do sistema de artilharia antiaérea durante a "blitzkrieg". O leilão terá lance mínimo de £ 20 milhões, cerca de R$ 70 milhões.
Ali perto, em Mayfair, a antiga parada Down Street ainda não desperta o mesmo interesse. Usada como bunker por Winston Churchill, hoje dá lugar a um mercadinho simples, que vende sorvetes e enlatados.
FIASCO REAL
Fazia tempo que um filme não era tão malhado nessas ilhas. Lançado com uma ampla campanha de propaganda, "Diana" despencou nas bilheterias e virou o fiasco do ano no Reino Unido. Em um mês, conseguiu se tornar mais impopular que a rival da princesa na vida real, Camilla Parker-Bowles.
Não é que a cinebiografia tome as dores do palácio e transforme a Lady Di (1961-97) em vilã. O que afugentou o público foi retratá-la como uma solteirona banal em seus dois últimos anos --uma espécie de Bridget Jones com título da realeza, na definição do "Daily Telegraph".
O constrangimento começou antes da estreia, quando a atriz Naomi Watts sugeriu ter recebido o aval da princesa, diretamente do além, para interpretá-la. O diálogo sobrenatural caberia no tosco roteiro do filme, em que Di vive um romance de folhetim com um médico paquistanês.
"A triste verdade é que, 16 anos depois, Diana sofreu mais uma morte terrível", fuzilou Peter Bradshaw, do "Guardian". Recentemente, o diretor do filme, Oliver Hirschbiegel, se disse arrasado com as críticas negativas. Nas ruas de Londres, Watts continua a sorrir vestida de Diana em anúncios nos ônibus de dois andares.
LICENÇA PARA MATAR
"Não é só sexo casual. Parece, na minha opinião, que ele deseja um relacionamento de verdade." O autor da frase é William Boyd, o novo escritor da série 007. "Ele" é James Bond, o agente secreto a serviço de Sua Majestade.
A revelação assustou aspirantes a bondgirl no lançamento do romance "Solo". Para tranquilizar as leitoras, Boyd deixou claro que o espião conserva outros "maus hábitos", como a bebida e o cigarro.
O livro começa com um café da manhã solitário no hotel Dorchester, com vista para o Hyde Park. Para imitar o ex-mulherengo, é preciso encarar quatro ovos mexidos e apimentados, meia dúzia de fatias de bacon tostado e um café forte.

    EUA e Brasil na ciberguerra global - RICHARD D. MAHONEY

    folha de são paulo
    Meu melhor inimigo
    EUA e Brasil na ciberguerra global
    RICHARD D. MAHONEYTRADUÇÃO CLARA ALLAIN
    RESUMO A descoberta de que a presidente Dilma Rousseff e a Petrobras foram alvos de espionagem de agência americana azedou a relação entre o Brasil e os EUA: apesar do duro protesto brasileiro feito na ONU, Barack Obama não se desculpou em público e provavelmente não o fará. O texto abaixo cita quatro sinais de uma emergente guerra cibernética.
    Durante a visita oficial que fez a Washington em abril de 1962, o presidente brasileiro João Goulart perguntou ao americano John F. Kennedy o que a Agência Central de Inteligência (CIA) estava fazendo no Brasil. Ele recebeu de Kennedy o tipo de resposta que o presidente Barack Obama deve ter dado à presidente brasileira atual, Dilma Rousseff, na conversa de 20 minutos que tiveram no último 16 de setembro: "Você vai ter que confiar em mim".
    Um ano depois da visita de Jango, que incluiu um desfile triunfal em Nova York, a Casa Branca de Kennedy estava conspirando para afastá-lo do poder.
    Quando as evidências das simpatias comunistas de Goulart se mostraram um tanto quanto fracas --o endinheirado latifundiário gaúcho usava uma medalha de Nossa Senhora no pescoço--, o fato de ele ter desprezado dois militares brasileiros seniores apoiados pelos EUA para promover no lugar deles dois oficiais "ultranacionalistas" foi visto como suficientemente grave para levar o sucessor de Kennedy, Lyndon B. Johnson, a dar o sinal verde.
    Mas, em março de 1964, a aprovação do presidente dos EUA ao golpe não passava de formalidade, porque --então como agora-- o dinamismo de agir, de operacionalizar, está embutido na atividade americana de inteligência.
    "Com os relacionamentos profundos que tínhamos na comunidade militar e na de inteligência do Brasil, não precisávamos realmente fazer muita coisa", relataria mais tarde a este autor o embaixador americano no Brasil naqueles anos, Lincoln Gordon. Os planos secretos de Washington de desembarcar "marines" em São Paulo e lançar ataques aéreos a partir da Argentina em apoio aos golpistas acabaram sendo desnecessários.
    Nos anos seguintes, a colaboração entre Brasil e Estados Unidos, que cresceu a partir do golpe, seria frutífera para ajudar a CIA a derrubar um governo atrás de outro no Cone Sul.
    Quando os militares chilenos tomaram o poder em seu país, em setembro de 1973, oficiais de inteligência americanos fizeram uma ponte aérea para levar interrogadores brasileiros treinados nos EUA para o estádio nacional de Santiago, convertido em imenso centro de detenção.
    Com esses interrogadores chegou um instrumento especial de tortura conhecido por lá como "parrilla", um catre metálico ligado a um aparelho elétrico. Os interrogados eram eletrocutados com a "picana eléctrica" e queimados nas "parrillas".
    Agentes de segurança nacional dos Estados Unidos, presentes em abundância no Brasil hoje em dia, lhe dirão que os maus velhos tempos ficaram no passado.
    Eles provavelmente têm razão. As democracias latino-americanas, antes cambaleantes, hoje são muito mais fortes e mais profundamente enraizadas do que eram nos anos 1960 e 1970, em grande medida porque muitos dos líderes latino-americanos são como Dilma, que aprendeu da maneira mais difícil a ser resistente e vigilante durante a ditadura militar.
    Mesmo assim, é preciso indagar por que, após 20 anos de relações crescentemente amistosas entre os Estados Unidos e o Brasil, anos nos quais se viu uma explosão do comércio, de investimentos e formação de "joint ventures" no setor energético, sendo o Brasil hoje um ator internacional de grande importância, o presidente americano não pediu desculpas públicas ao país e à presidente, simplesmente, renovando o convite a Dilma para a visita de Estado que seria a única recebida por Obama no ano.
    Mas o fato é que ele não o fez e provavelmente não o fará, e vale a pena tentar entender a razão disso. A presidente Dilma, e nós outros que nos preocupamos com o Brasil e os Estados Unidos, poderíamos tomar nota de alguns sinais emergentes neste caminho sombrio.
    1. "Plus ça change..."
    Supostamente o homem mais poderoso do mundo, o presidente dos EUA é, na realidade, um dos líderes mais confinados, expostos e frustrados do mundo.
    Ele é criticado e obstruído em todas as áreas, a exceção de uma: no imenso e impenetrável labirinto da segurança nacional americana, ele preside sobre uma panóplia de artes das trevas --espionagem, guerra e execuções extrajudiciais.
    Como Kennedy e até seu fartamente criticado predecessor, George W. Bush, Obama dispõe de meios para salvar vidas ou causar mortes, para mudar regimes e para gerir orçamentos de segurança nacional que, juntos, ultrapassam de longe todos os gastos empenhados por Brasília em um ano inteiro.
    Dilma, que afirma querer saber "tudo" sobre a espionagem praticada pelos EUA no Brasil, terá que somar-se ao Congresso americano, à imprensa e ao povo americanos, que também gostariam de saber o que está acontecendo. Ninguém ficará sabendo no futuro próximo.
    2. Nova soberana
    O lugar, que um dia coube à CIA, de rainha das agências de inteligência de Washington --entre as quais há uma disputa perpétua--, foi tomado pela Agência Nacional de Segurança (NSA), convertida em colosso global graças à sua missão de garimpagem e interceptação eletrônica de dados.
    Antes dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2011, a NSA fornecia cerca de 60% do conteúdo do supersecreto "Briefing Diário do Presidente", que Obama e os principais funcionários da administração leem todas as manhãs para se pautarem ao longo do dia.
    Hoje, a porcentagem provida pela NSA é muito mais alta. A agência também é uma colaboradora crucial na determinação dos alvos dos ataques de drones contra terroristas --algo que, não obstante duas catástrofes militares no Iraque e Afeganistão, é motivo de orgulho técnico para a administração Obama. Conclusão: para Obama, a NSA é o que a CIA era para Kennedy: sua rainha secreta.
    3. Regras de Washington
    Obama deve ter ficado surpreso ao ver que seu telefonema a Dilma não surtiu o efeito desejado.
    Normalmente os amigos e aliados de Washington aceitam a equação de dois pesos, duas medidas praticada por Washington no que tange os erros de comportamento internacionais: nós podemos cometê-los, vocês não podem.
    Isso é o que se conhece como a excepcionalidade americana, uma combinação de letalidade ilimitada e ilimitado complexo de vítima, e a síndrome que ele provoca é algo de que os EUA não precisam e que não beneficia o mundo.
    Em favor de Obama, há que recordar que o presidente questionou o estado permanente de guerra: "Precisamos definir a natureza e o escopo desta luta [a guerra ao terror], caso contrário ela nos definirá", ele disse no último 23 de maio, na Universidade Nacional de Defesa. Ela nos está definindo, senhor presidente.
    4. O verdadeiro inimigo
    Assim como os brasileiros, os americanos talvez se perguntem por que razão, com a Guerra Fria ganha e a guerra ao terror contida, ainda é necessário invadir todos os espaços conhecidos de comunicação, sejam eles de indivíduos ou de nações, a fim de capturar informações.
    Interceptar comunicações entre Dilma e o presidente do México pode parecer algo amalucado, mas, segundo Richard A. Clarke, uma das autoridades em segurança nacional mais respeitadas dos Estados Unidos, representa apenas um pequeno vislumbre do que é a ciberguerra global.
    Embora esteja muito atrás da China e Rússia quanto às possibilidades de defesa da pátria contra um ataque coordenado, Washington está muito à frente desses países no que diz respeito a suas capacidades de ataque.
    Uma dessas capacidades é a "botnet" --uma rede, cujo posicionamento é secreto, de computadores invadidos, que por sua vez atacam outros sistemas, apagando ou reescrevendo seus softwares. Uma vez em operação, uma "botnet" pode derrubar ou levar ao colapso equipamentos de infraestrutura civil como hospitais, barragens ou redes de transportes aéreos, além de serviços de comunicação e aparato militar.
    Ninguém sabe se a NSA plantou "botnets" no Brasil, mas, em seu discurso recente na Assembleia Geral da ONU, Dilma conseguiu chamar a atenção do mundo para uma prática perigosa --o hacking de Estado contra Estado.
    O Brasil, porém, se mostraria realmente inovador se seu governo conclamasse à criação de um Tratado de Limitação de Ciberguerra (Cyber War Limitation Treaty, ou CWLT), algo defendido por especialistas como Clarke.
    Um tratado desse tipo estabelece a proibição de todas as formas de hacking de um Estado contra outro, delimita padrões internacionais de responsabilidade nacional e protocolos de inspeção, e, com o tempo, pode fazer o que fez o Tratado de Não Proliferação Nuclear: isolar os Estados irresponsáveis. Claro que isso não deixaria de fora o maior deles.

    Gravidade, o filme - Marcelo Gleiser

    folha de são paulo
    Nesta semana assisti ao filme "Gravidade", com George Clooney e Sandra Bullock como astronautas em uma missão na órbita da Terra. A direção, magistral diga-se de passagem, é do mexicano Alfonso Cuarón, que dirigiu filmes de "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban" a "E Sua Mãe Também".
    Dos muitos ângulos em que o filme pode ser analisado, o que escolho hoje é o da sobrevivência da vida no Universo. Fala-se muito, especialmente alguns cientistas, que o Universo é propício à vida, que talvez até o sentido de sua existência é nos ter criado. Claro, este tipo de raciocínio é cripto-religioso, no sentido que dá ao Universo a intenção de criar algo, no caso, a gente.
    Este tipo de posição é extremamente problemático. Como determinar tal coisa, ou seja, como provar que o Universo tem como propósito criar a vida? Me parece impossível. Fora isso, como vemos no filme, saindo da atmosfera a situação fica muito difícil; a sobrevivência no espaço é impossível, conforme afirma o texto de abertura.
    Se a Terra fosse uma maçã, a atmosfera teria a espessura de sua casca, menor ainda. Esta fina camada, com menos de 50 quilômetros de espessura, é que garante nossa sobrevivência aqui. Se o filme tem uma mensagem direta e clara, é que o Universo é extremamente hostil à vida.
    Sem estragar para quem ainda não viu, sobreviver no espaço pode parecer fácil quando tudo dá certo e os sistemas de transporte e de pressurização e oxigenação funcionam. Mas quando algo dá errado, a experiência, que é de profunda beleza e plena de significado espiritual, rapidamente torna-se num pesadelo aterrorizante.
    O espaço não é nosso amigo. Se conseguimos sobreviver fora da Terra é graças à nossa inventividade e determinação.
    O filme mostra isso de forma clara, respeitando exemplarmente as leis da física. (Aliás, a lei da conservação do momento linear tem um papel essencial no enredo.) Mostra, também, a enormidade do espaço, o terror de nos perdermos em seus confins, caso nossos "cordões umbilicais" sejam cortados.
    Existe uma ligação óbvia entre nós e a Terra, que é uma afirmação da nossa dependência do nosso planeta-casa. Fica claro que, para sobreviver, precisamos da Terra; mas que a Terra está muito bem sem a gente. É bom lembrar disso, que estamos aqui há pouco mais de 200 mil anos, enquanto que a Terra já existe há 4,6 bilhões de anos e a vida aqui há uns 3,5 bilhões, pelo menos.
    Apesar da ansiedade da narrativa, vejo "Gravidade" como uma celebração da vida, da sua fragilidade, da importância de termos todo o cuidado para não destruí-la. É característica essencial da nossa espécie o desejo de explorar, de ir além do conhecido. O espaço e as profundezas dos oceanos e da Terra são nossas fronteiras atuais.
    No filme, a missão dos astronautas era consertar o telescópio espacial Hubble, para ampliar sua visão. Esta é uma metáfora perfeita da condição humana, pois sempre queremos ver além daquilo que enxergamos, sempre queremos estender nossa visão da realidade.
    Pôr um telescópio no espaço e ir até ele para consertá-lo --o que foi feito de verdade, sem que a missão tenha falhado-- é algo que devemos comemorar como um dos grandes feitos da nossa história coletiva. Apesar da nossa fragilidade como espécie, nossa fragilidade nos permite estender nossa presença e nossa visão aos confins do cosmo.
    Marcelo Gleiser
    Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".

    Marcelo Leite

    folha de são paulo
    Mamar, abraçar, beijar
    A biologia anda empenhada em elucidar o que se chama de natureza humana --ou será natureza mamífera?
    É BEM robusta a correlação entre maus-tratos ou abandono na infância e adultos que se tornam ansiosos ou antissociais. Quem conviveu com jovens adotados tardiamente sabe bem do que se trata.
    Essa associação parece algo bem básico na chamada natureza humana. Seria bobagem, contudo, sair procurando genes para esse traço comportamental, pois obviamente está em jogo um impacto do ambiente (criação) sobre as predisposições com que o indivíduo vem ao mundo.
    Os primatologistas Frans de Waal e Zanna Clay estranharam a ausência de estudos sobre essa correlação em macacos. Se estamos diante de algo tão fundamental, é provável que tenha raízes ancestrais e possa ser observado também em nossos parentes mais próximos.
    Waal e Clay se concentraram nos bonobos (Pan paniscus), aqueles chimpanzés miúdos que têm a fama de ser mais amorosos que seus primos corpulentos (Pan troglodytes). Em artigo na revista "PNAS" da semana passada, eles contam o que viram num santuário primata da República Democrática do Congo.
    Órfãos bonobos, em geral resgatados após a morte das mães por caçadores, recebem ali cuidados individuais de mulheres tratadoras. Os adotados se revelaram menos propensos a consolar outros jovens que sofressem reveses (como apanhar numa briga) na sua frente.
    Já os bonobos criados pelas próprias mães agem de maneira diferente. Quase sempre estão prontos a abraçar, acariciar e beijar os colegas que se acham na pior.
    A carga emocional de experiências precoces de vida deixa marcas indeléveis também nos macacos. Mesmo quem considera duvidosos os paralelos entre primatas e humanos pode ver aí que Sigmund Freud parece ter topado com um continente que lhe foi impossível mapear, por falta dos meios adequados.
    Que marcas seriam essas? Meras representações mentais ("complexos") não se qualificam como explicações científicas satisfatórias, pela dificuldade de testá-las. Como a cavalaria da genética não pode ser chamada em socorro, há pesquisadores empenhados em convocar uma sua parente, a epigenética.
    Esse ramo da biologia molecular estuda não os genes, mas um sistema de marcações que se sobrepõe às longas fitas enroladas dos cromossomos. Certas moléculas se acoplam a trechos específicos do DNA compactado e dificultam seu desenrolamento, pela célula, para uso da informação neles contida. O gene está ali, mas também não está.
    A hipótese é que as marcações adquiridas sejam o veículo para o ambiente influir na produção de certos hormônios ou neurotransmissores, por exemplo. Informações determinantes transmitidas entre gerações, mas não por meio de genes.
    Isso começou a ser estudado não com primatas, mas com roedores. Em 2004, Michael Meaney e Moshe Szyf, da Universidade McGill (Canadá), mostraram como os filhotes de ratas que os lambiam muito se tornavam adultos menos estressados e tinham mais receptores glucocorticoides, importantes na modulação de hormônios do estresse.
    Não importa se você é primata ou roedor. Se quiser ter filhos de bem com a vida, beije-os e abrace-os muito, em especial quando bebês.
    Óbvio, não? Bem, a ciência biológica anda mesmo empenhada em elucidar o que o senso comum chama de natureza humana --ou será melhor dizer natureza mamífera?

      Paula Cesarino Costa

      folha de são paulo
      O poço do Visconde
      RIO DE JANEIRO - "Que é digressão, Visconde?", pergunta Pedrinho.
      "É sair do assunto principal, como nós saímos...", ensina o Visconde de Sabugosa no terceiro capítulo de "O Poço do Visconde", clássico prenunciador de Monteiro Lobato, ao justificar por que falava de ar e pressão atmosférica quando explicava o que é petróleo.
      As discussões sobre o primeiro leilão de um poço do pré-sal --razão de preocupação da presidente Dilma Rousseff, de ansiedade do mercado e de sofrimento para nacionalistas e sindicalistas-- parecem às vezes menos instrutivas do que a conversa do Sabugosa com as crianças do sítio do Pica-Pau Amarelo.
      Polemista e crítico severo do atraso do país, o escritor fez do livro infantil, lançado em 1937, parte de sua campanha pela exploração do petróleo.
      É leitura dominical ideal para a véspera do leilão do campo de Libra, na bacia de Santos, que tem reservas estimadas entre 8 e 12 bilhões de barris.
      Muito antes da abertura do primeiro poço de petróleo no Brasil, o Visconde explicava que os brasileiros "bobamente" não exploravam petróleo por causa da ação e do interesse de companhias estrangei- ras "espertalhonas".
      Lobato teve empresa que buscava extrair petróleo. Faliu. Crítico da política de exploração de Getúlio Vargas, sofreu a censura do seu livro "O Escândalo do Petróleo", em que denunciava a venda de segredos do subsolo a empresas estrangeiras. Foi preso.
      "No dia em que o Brasil passar de comprador a vendedor de petróleo, então deixaremos de ver essa coisa tristíssima de hoje --milhões de brasileiros descalços, analfabetos, andrajosos-- na miséria. O Brasil tem todos os elementos para tornar-se um país riquíssimo --mas riquíssimo de verdade, e não, como hoje, apenas rico de possibilidades'-- ou de garganta'", sentenciou o Visconde.
      O "país do futuro" continua rico em "possibilidades". Agora é o pré-sal.

        Helio Schwartsman

        folha de são paulo
        Finalidade sem fim
        SÃO PAULO - Sempre instigante, Contardo Calligaris aproveitou a publicação de um estudo sugestivo de que ler ficção pode melhorar nossa capacidade de empatia para decretar que não devemos confiar em quem não esteja sempre com um romancezinho à cabeceira. Como Contardo, prefiro gente que lê a quem não o faz, mas hesito em erigir a literatura em critério de probidade.
        O trabalho é muito interessante. Os autores submeteram voluntários a diferentes tipos de texto (literários, populares e de não ficção) e, logo em seguida, compararam a performance de cada grupo em testes que avaliam a habilidade para deduzir estados cognitivos e emocionais de terceiros, a famosa Teoria da Mente. Quem leu trechos de romances de qualidade se saiu melhor do que quem ficou com "best-sellers" e textos não ficcionais.
        O problema com esse estudo é que ele suscita mais questões do que responde. Não indica, por exemplo, se esses efeitos são cumulativos ou duradouros. E, se forem apenas transitórios, como parece mais provável, desaparecendo ao cabo de dias ou horas, será que ainda conservam valor intrínseco? Nesse caso, a melhora da empatia seria só o resultado inconsciente de um estímulo manipulado pelos pesquisadores. Isso se parece mais com lavagem cerebral do que o exercício de uma virtude.
        Cabe lembrar, como já ensinava Kant, que um homem pode fazer a coisa certa movido ou por constrangimentos externos ou por reconhecer a racionalidade por trás de uma norma ou regra. Só na segunda hipótese ele age de forma moral e livre.
        Aqui, numa reviravolta à la Conan Doyle, a defesa da literatura como instrumento para cultivar pessoas melhores paradoxalmente esvazia o valor moral dos gestos empáticos executados por influência de livros.
        Suponho que, nesse caso, seja mais prudente continuar fiel a Kant sustentando que, no plano filosófico, a literatura e a arte permaneçam como uma "finalidade sem fim".

          Na arapuca chavista

          EDITORIAIS folha de são paulo
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          Na arapuca chavista
          Quando governou a Venezuela de forma interina por mais de cem dias, Nicolás Maduro mostrou-se um presidente fraco. Analistas condescendentes imaginavam que a sombra de seu mentor e padrinho político, Hugo Chávez, o impedisse de arriscar passos próprios.
          Não era o caso. Maduro já está há seis meses na Presidência efetiva da Venezuela, e os problemas se acumulam --administrar o país parece um trabalho além de sua capacidade. A inflação anual beira 50%; o PIB crescerá cerca de 1%; o desabastecimento de alimentos aumenta; a insegurança campeia.
          Vencedor de uma disputa apertada em 14 de abril, Maduro beneficiou-se eleitoralmente da comoção pela morte de Chávez (1954-2013) e, agora, aferra-se à cartilha populista deixada pelo antecessor.
          Repetindo o que Chávez fez quatro vezes no poder, tenta aprovar uma lei habilitante para governar por decreto, durante um ano, na economia e na luta anticorrupção.
          Não há sinais, porém, de que Maduro pretenda promover mudanças profundas e necessárias na economia venezuelana. O câmbio, por exemplo, permanecerá controlado, apesar de o dólar ser vendido no mercado paralelo a um preço seis vezes maior do que a taxa oficial.
          O aprendiz de caudilho tampouco mexerá no preço da gasolina, a mais barata do mundo --um litro custa R$ 0,03. Mantém-se o populismo, mesmo que signifique não enfrentar o deficit no Orçamento, já de 8,5% do PIB no ano passado.
          Enquanto isso, itens básicos, como leite e carne, escasseiam nas prateleiras, já que são pouco produzidos no país e têm a importação dificultada pela falta de dólares.
          O descontrole geral anima criminosos organizados, que se sentem à vontade para ampliar remessas de cocaína ao exterior. No mês passado, a polícia da França encontrou 1,3 tonelada da droga num avião comercial que partiu de Caracas --foi a maior apreensão do tipo na história francesa.
          Ante fatos negativos, Maduro recorre a outra fórmula chavista: criou o Centro Estratégico de Segurança e Proteção da Pátria. Dirigido por um general e responsável por monitorar "atividade inimiga interna e externa", decide quais dados do governo são secretos ou não. Além disso, qualquer entidade é obrigada a entregar informações solicitadas pelo órgão.
          Num país em que a imprensa sofre restrições amiúde, fica ainda mais difícil avaliar o real apoio que o presidente encontra na população. As eleições municipais de dezembro, sem dúvida pouco livres, serão, de todo modo, um termômetro inicial do mandato de Maduro.

          Antonio Risério

          O sertão e muito mais
          FOLHA DE SÃO PAULO
          Luiz Gonzaga e as fronteiras do Nordeste
          ANTONIO RISÉRIORESUMO Mais do que o praiano Dorival Caymmi, o músico de Exu (1912-89) exportou a cultura do Nordeste para os núcleos urbanos do Sul e do Sudeste. Elemento agregador para os migrantes, Gonzaga ganha, em dezembro, um museu que busca refletir a dialética entre tradição e tecnologia que ele próprio imprimiu a sua música.
          Costumo dizer que Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi eram sociologicamente previsíveis. Não que fossem necessariamente acontecer, como efeitos de alguma lei inflexível que regesse as coisas do mundo. Mas porque os ambientes ecológicos e sociais eram propícios à aparição de um e do outro.
          Caymmi nasceu num recôncavo negro-mestiço impressionantemente aquático, pleno de orixás. Um espaço de praias, rios, jangadas, saveiros, marcado pela poesia e pela música do samba de roda e dos terreiros do candomblé.
          Não foi apenas por acaso que nasceu na Bahia, dona da maior fatia do litoral brasileiro, um poeta como ele --o raro e claro cantor das canções praieiras, cultivando um samba diverso do samba já estilizado do Rio de Janeiro. Gonzaga, por sua vez, nasceu entre jagunços e vaqueiros, na região da pecuária e da cultura do couro, marcada por longos períodos de seca.
          Era esperável que as circunstâncias socioecológicas se gravassem ou se imprimissem um dia, funda e profundamente, nas criações poético-musicais de ambos (no caso de Gonzaga, incluindo seus principais parceiros, Humberto Teixeira e Zé Dantas). E de fato elas se encarnaram. Não é por outro motivo que devemos tratar Caymmi como uma expressão estética concentrada da cultura tradicional litorânea da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. E Luiz Gonzaga como uma expressão estética concentrada do amplo e rico contexto em que se configurou a cultura nordestina --vale dizer, sertaneja.
          PAISAGEM Em "Os Sertões" (1902), Euclydes da Cunha contrapôs a lonjura sertaneja à extensão praieira. E o que ele vê no sertão é a paisagem atormentada. O "martírio da terra", que se deixa ler "no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos".
          No interior desse martírio da terra é que ele vai situar o martírio humano, "reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida". O ser humano em questão é, obviamente, o sertanejo, "rocha viva da nacionalidade". É o Nordeste das "figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco". Nordeste das ossadas esbranquiçadas. Dos "sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés". Das "paisagens duras doendo nos olhos".
          Um é o Nordeste barroco-canavieiro, místico-erótico, com suas praias e seus orixás. Outro é o Nordeste do gado e do couro, seco-ascético-milenarista, com procissões que se arrastam pedindo chuva.
          O rei do baião pertence ao Nordeste messiânico da caatinga abrasada, do sol sinistro e do chão malcriado. "O sertão é ele", declarou Câmara Cascudo, à lembrança dos ritmos e das paisagens dos sertões pernambucanos.
          É por isso que foi ele --e não Dorival Caymmi-- a estrela das migrações nordestinas. Luiz Gonzaga se projetou no contexto dessa migração massiva, e desempenhou aí o papel de referencial de cultura, influenciando na coesão psicossocial do migrante e, graças ao sucesso que alcançou no sul, no processo de integração do "baiano" à nova realidade sudestina.
          Circulando no eixo das cidades mais modernas do Brasil, tocando nas emissoras de rádio e gravando discos, entrou com o Brasil sertanejo país adentro. Ali onde milhares e milhares de camponeses passavam, de repente, à condição de urbanitas.
          A história da cidade, no Brasil, foi marcada por isso. Por este deslocamento massivo da "Communitas" à "Gesellschaft", da comunidade à sociedade. Mais do que de uma transição brusca, trata-se de um corte profundo e radical.
          O sujeito caía na roda-viva de um novo universo geográfico, climático, social e cultural. E jamais se dá sem dificuldade este salto em direção a uma outra ordem, em que passavam a vigorar direitos e modos associativos definitivamente dessemelhantes aos que as pessoas conheciam em seus lugares de origem.
          Entrava em jogo, em São Paulo e em outras partes do país, e num horizonte de crise, toda uma teia de valores, padrões de comportamentos, estruturas de crenças, relações de trabalho etc. E tudo se desdobrando num meio muitas vezes hostil, em cujo âmbito se multiplicavam, por falar nisso, as "piadas de baiano".
          FORÇA Gonzaga desempenhou o papel nada insignificante, social e culturalmente, de força antidesagregadora. Atuando na dimensão dos signos --e em plano de massas--, ele trazia consigo um universo familiar aos nordestinos, com suas representações conhecidas e seus referenciais nítidos.
          Desse modo, evitou que se esgarçasse ou se rompesse, na migração, o tecido original da cultura sertaneja nordestina. E ainda contribuiu para a sua afirmação nos bairros que hoje compõem o cinturão mais colorido e mais vivo da periferia da maior cidade que os brasileiros construíram.
          Luiz Gonzaga viu que era possível reconstruir uma unidade na dimensão da cultura. E isto a partir de uma adequação não subordinada do subsistema cultural sertanejo às realidades em movimento numa nova esfera metropolitana.
          Luiz Gonzaga foi o primeiro produto industrial que o Nordeste exportou. E se impôs. Conheceu herdeiros e futuros herdeiros. No final da década de 1950, podia olhar para trás e se congratular pela espetacular vitória cultural de seu projeto nordestino.
          Depois disso, veio o declínio, no horizonte da cultura de massa de um país que se atualizava e procurava se afirmar no mundo como nação moderna. Era o Brasil sob o signo de Brasília.
          No campo especificamente musical, o rock and roll, a bossa nova e, em seguida, a jovem guarda ocuparam o centro da cena. Com o tempo, porém, Gonzaga renasceria para o país, na voz da novíssima geração da década de 1960. E o baião continuou dando frutos, e os frutos do baião são muitos, encarnando a cultura tradicional como a encarnação do novo.
          Vale dizer, Luiz Gonzaga não se presentifica, no Brasil, como exótico ou folclórico. Ele não apenas retrata uma tradição. Ele a reinventa. Recria a cultura nordestina para inserir suas formas e conteúdos na sociedade urbano-industrial que então se configurava no país. E isto a partir de uma estratégia estética claramente definida.
          CAIS Daí se extrai a base, a forma-função arquitetônica e tecnológica do novo espaço que nasce em Recife para celebrar o sertão e Gonzaga, o Cais do Sertão, que se compõe entre o "vernacular" e o "high-tech". O rei do baião usou a tecnologia de ponta de sua época. Para homenageá-lo, acionaremos a tecnologia de ponta da nossa.
          Mas sem tecnolatria. Bem vistas as coisas, um novo museu pode ser "high" ou "low-tech" --porque tecnologia alguma é capaz de fazer sozinha um museu. O que tem de estar no cerne e acima de tudo são o conceito e os conteúdos. Se não for assim, o que se vai ter, no máximo, sob a denominação de museu, não passará, na verdade, de um papel de parede tecnológico, de pura (ou impura) maquiagem, sem qualquer densidade ou intensidade cultural.
          O Cais do Sertão terá um caráter simultaneamente histórico-antropológico, estético e "high-tech", referenciado no horizonte coetâneo da vida sociotécnica brasileira, com todas as suas implicações culturais. Sempre campo de uma dialética entre a tecnologia e tradição. A obra gonzaguiana chamava irresistivelmente nessa direção.
          Afinal, Gonzaga foi a própria encarnação do diálogo criativo entre a tradição e a invenção, entre o velho e o novo. Ele recriou formas musicais arcaicas num produto inédito. Trouxe a cultura tradicional nordestina para a sociedade e a cultura de massas. Nunca hesitou diante de nenhuma nova situação técnica. Atuou sem inibição nos "mass media", gravou discos, lidou com a publicidade e o marketing político (já desde a campanha presidencial de José Américo, em 1937), compôs jingles.
          Ou seja: ele mesmo representa e significa essa dialética entre a invenção técnica e a criação popular tradicional. Um sujeito inteiramente à vontade tanto num estúdio de gravação, entre mesas de som, quanto no ambiente colorido das feiras nordestinas.
          Natural que o Cais do Sertão tenha ido por esse caminho. Isso estava claro desde a formulação inicial do projeto, quando dizíamos, parafraseando Walter Benjamin, que Gonzaga foi a refundação da "poemúsica sertaneja" na época de sua reprodutibilidade técnica, num Brasil que começava a se modernizar, tomando o rumo urbano-industrial.
          No Cais do Sertão o mundo de Luiz Gonzaga se revela. Ali onde as raízes deixam de estar na terra, para se projetarem no ar. Ele é um sertanejo --mas o mundo é o sertão e muito mais.

            José Simão

            folha de são paulo
            Biografia! A Vida É um Buraco!
            E a biografia do Malafaia: 'Minha Mala é Feia!'. Ou: 'Malafaia é Nosso Pastor e Nada nos Sobrará!'
            Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E um amigo de Londrina foi ao supermercado e a caixa: "Encontrou tudo que queria?". "Encontrei até o que não queria". "O que?". "A minha ex-mulher!".
            Telerreportagem da Band na avenida Paulista: "A senhora sabe onde fica o Ponto G?". "Não, eu não sou daqui, sou de Belo Horizonte."
            Pensamento da semana: duas coisas que nunca deram certo --humor a favor e biografia autorizada! Biografia da Lassie pode? Pode! Contanto que não chamem ela de cachorra. Rarará!
            Diz que biografia não autorizada de político pode. Então vou lançar a biografia do Maluf: "Minha Vida é uma Esfiha Aberta" ou "Minha Vida Foi uma Roubada". Rarará.
            E o Maluf escreveu mesmo uma biografia chamada: "Ele!". Aí os advogados de defesa sugeriram mudar para "Não Foi Ele!".
            E vou lançar a biografia do Sarney: "Moribundo de Fogo". E vender pro cinema: "Duro de Matar 5". Rarará.
            E vou lançar uma biografia do Edir Macedo: "EDÍRZIMO". Edírzimo Macedo! E a biografia do Kid Bengala: "O Gigante Acordou". E a biografia do Malafaia: "Minha Mala é Feia!". Ou: "Malafaia é o Nosso Pastor e Nada nos Sobrará!". Virei black biógrafo!
            E daqui a pouco vai ter manifestação de biógrafos. Na Cinelândia! Black biógrafos!
            E saiu a nova versão do hit do Roberto Carlos: "Quem é que censura toda hora/ Qualquer livro da Jovem Guarda/ Esse cara sou eu". E como é que um cara que escreveu "Emoções", um gênio, fica com essa perrenga mal resolvida?
            E acho que os artistas estão confundindo biografia com revista de fofoca.
            E a manchete do Sensacionalista: "Supremo admite que as biografias de Fiuk e Geisy Arruda não deveriam ser autorizadas". Aí, sim!
            E a biografia do Frota é problema da Anvisa, Vigilância Sanitária! Rarará!
            E eu gosto de biografia chapa quente: sexo, sangue e Doritos com Coca-Cola! E eu vou lançar a minha autobiografia não autorizada chamada "A Vida é um Buraco". Você nasce por um buraco, come por um buraco, transa por um buraco e quando morre: vai pro buraco! Rarará! Viva o buraco!
            Nóis sofre, mas nóis goza.
            Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

              Antonio Prata

              folha de são paulo

              Veni, vidi, perdidi

              Enquanto perdurarem meus dias sobre a terra, trarei no peito a cicatriz do Massacre de Frankfurt; batalha inglória em que 11 galhardos e desentrosados escritores brasileiros foram trucidados pelo azeitado escrete de escribas alemães. Mesmo no silêncio da alcova, recostado nos braços da madrugada, buscando na breve morte do sono o consolo para as tormentas da vigília, visitar-me-ão em pesadelo os três atacantes teutões que, por 90 minutos, esbaforido, tentei marcar -o altão, o gigante e o Golias-, embalde.
              Quem sabe, até, ao fechar os olhos, no apito derradeiro de meu tempo regulamentar, verei as três bestas loiras galopando, bufando, passando por mim como se eu fosse um campônio ignaro ou um cone de treino e marcando não uma nem duas nem cinco, mas nove vezes, como fizeram na noite infame daquela sexta-feira, 11 de outubro do ano da (des)graça de 2013.
              Ora, pra que tanto drama? O que eu esperava? O Autonama (Autorennationalmannschaft), time de escritores germânicos que enfrentamos (sic) durante a feira de Frankfurt, joga desde 2005, com técnico, uniforme, juiz e bandeirinha. Já nós, o Pindorama FC, tínhamos apenas dois meses e o sentimento do mundo; no currículo, somente um par de treinos, sete contra sete no Playball da Barra Funda -os 11 nunca haviam estado do mesmo lado num campo oficial.
              Dadas as circunstâncias, 9 x 1 (o nosso saiu aos 40 do segundo tempo, num pênalti pra lá de duvidoso) nem foi tão mau assim. Veja o Taiti, por exemplo, é uma seleção profissional e tomou de 10 x 0 da Espanha, na Copa das Confederações. Bem pior, não?
              Devo dizer, ainda, em defesa da nossa honra -se é que restou alguma a ser defendida-, que nem todos no Pindorama eram pernas de pau, como eu: Rogério Pereira, o Pelé Polaco, Marcelo Moutinho, o Canhão de Madureira, Zé Luis Tahan, o Trator da Baixada, Celso de Campos Jr., El Capitán, Vladir Lemos, a Estrela de Santos, e Flávio Carneiro, o melhor jogador goiano de Teresópolis, são craques que, entrosados, colocariam nosso time em condições de ganhar não só de escritores alemães, mas até de engenheiros ou, quem sabe, de um selecionado de imigrantes turcos e africanos.
              Éramos, no entanto, 11 homens contra um time -e nem a mais deslavada arrogância brasileira pode achar que o talento individual, sem nenhuma organização, é capaz de vencer uma boa equipe treinada. (Muito menos uma boa equipe alemã treinada).
              Curioso é que, apesar do placar, do frio, das dores musculares e da sempiterna nódoa que carregarei em minh'alma, quando penso naqueles alemães, sinto-me grato. Organizaram um evento impecável, entramos em campo de mãos dadas com criancinhas uniformizadas, cantamos o hino e, durante o jogo, mesmo quando ficou claro que a Oktoberfest engoliria o Carnaval, não se viu um toque de calcanhar, não se ouviu um "Olé!". Dado o massacre, contudo, desconfio que minha gratidão tenha outro nome: síndrome de Estocolmo. Ou melhor: síndrome de Frankfurt.
              Seja o que for, é inútil chorar sobre o "liebfraumilch" derramado. Agora é bola pra frente. Ano que vem, o Autonama vem ao Brasil para a revanche: espero que saibamos recebê-los da mesma forma, de braços abertos e com os pés afinados.
              antonio prata
              Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve aos domingos na versão impressa de "Cotidiano".