RAQUEL COZER
COLUNISTA DA FOLHA
Allan Kardec vai aparecer perto de você nos próximos dias --na TV, nas rádios, no metrô, na internet e, acima de tudo, nas livrarias.
A exposição da imagem do fundador do espiritismo faz parte de uma forte ação de marketing da editora Record, que distribui 100 mil cópias de "Kardec: A Biografia", de Marcel Souto Maior.
É uma aposta alta para um grupo editorial cujo maior best-seller no quesito biografias vendeu 64 mil cópias -- foi com "A Arte da Política - A História que Vivi" (Civilização Brasileira, 2006), de Fernando Henrique Cardoso.
Os reis da psicografia
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O médium Robson Pinheiro, autor de "Tambores de Angola" (Casa dos Espíritos), ditado por Angelo Inacio
A biografia anterior escrita por Souto Maior, "As Vidas de Chico Xavier" (LeYa), sobre o médium brasileiro, teve cerca de 1 milhão de cópias vendidas e originou o filme "Chico Xavier", visto por mais de 3 milhões de pessoas.
O novo biografado, o francês Allan Kardec (1804-1869), é ele próprio um best-seller. Vendeu mais de 11 milhões de livros no Brasil, considerados só os números da maior editora do gênero, a Federação Espírita Brasileira. Há 120 casas espíritas no país, todas aptas a publicar "O Livro dos Espíritos" e outras obras do autor, em domínio público.
E a biografia que sai agora também vai virar filme, previsto para 2015, sob direção de Wagner de Assis.
Com o lançamento, a Record foca em especial o público leigo, menos afeito a uma história conhecida dos adeptos do espiritismo, mas tateia nicho promissor.
Embora só 2% (3,8 milhões) da população brasileira se diga espírita, segundo o Censo de 2010, simpatizantes das notícias post-mortem são 50 milhões, segundo a Federação Espírita Brasileira.
E, mesmo considerando só os 2% de espíritas --ante 64% de católicos (123 milhões) e 22% de evangélicos (42,5 milhões)-- eles representam o segmento religioso com os mais altos índices de educação e renda. Têm hábito de comprar mais livros --e pagar mais por eles.
MAIS VENDIDOS
Levantamento feito a pedido da Folha pela Nielsen, que começou a monitorar as vendas de livros no Brasil neste ano, dá a dimensão disso.
Presente em nove países com a pesquisa em livrarias, a empresa americana optou pela contagem da venda de títulos espíritas só no Brasil, único país em que a doutrina se firmou como religião.
O levantamento abrange a comercialização dos últimos quatro meses pelas maiores redes do país.
Considerado só o faturamento com a venda de livros religiosos, os títulos espíritas correspondem a 32,63%, à frente dos católicos (31,79%) e dos evangélicos (19,92%).
O que explica o fato de uma religião com menos adeptos liderar o faturamento desse setor são os preços dos livros espíritas: custam em média R$ 29,13, ante R$ 17,19 dos católicos e R$ 21,21 dos evangélicos.
Também impulsiona essas vendas outro fenômeno nacional, os romances psicografados por nomes Zibia Gasparetto, Robson Pinheiro e Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho, que circulam aos milhões --isso, vale fazer a ressalva, num cenário em que os únicos números totais conhecidos são os divulgados pelas próprias editoras.
Esses autores vendem tão bem hoje que ficam à frente de Chico Xavier (1910-2002) na contagem da Nielsen. Ocupam, respectivamente, o primeiro, o terceiro e o quarto lugar em vendas. Com 16 milhões de livros vendidos, Zibia Gasparetto, 87, deixa para trás até Kardec, em segundo lugar na lista.
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OS REIS DA PSICOGRAFIA
ROBSON PINHEIRO, 52
34 livros em 18 anos, com 1,2 milhão de exemplares
Espíritos Angelo Inacio teria sido jornalista em outra vida; Joseph Gleber se comunica em português com sotaque alemão
Best-seller "Tambores de Angola", com 179 mil exemplares
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO, 65
Quase 60 livros em 23 anos, com 3,5 milhões de exemplares por sua principal editora, a Petit
Espírito Antonio Carlos ditou a maior parte; Patrícia é responsável pelos maiores hits
Best-seller "Violetas na Janela", com 2 milhões de exemplares
MARCELO CEZAR, 46
14 livros em 13 anos, com 1,5 milhão de exemplares
Espírito Marco Aurélio, que teria sido escritor famoso em outra encarnação, mas prefere não divulgar
Best-seller "O Amor É para os Fortes", com 260 mil exemplares
ZIBIA GASPARETTO, 87
45 livros em 55 anos, com 16 milhões de exemplares
Espírito Lucius, desde sempre; o nome vem aparecendo em obras de outros médiuns, mas, segundo Zibia, deve ser outro
Best-seller "Ninguém é de Ninguém", com 865 mil exemplares
Nos livros, espíritos célebres deram lugar a anônimos
Lucius e Patrícia seriam as almas que ditam best-sellers do mercado espírita, liderado por Zibia Gasparetto
Autora mais vendida no gênero da psicografia diz que outros usam o nome do espírito que ela recebe sem razão
DA COLUNISTA DA FOLHANo tempo de Allan Kardec, espíritos como os de Santo Agostinho e Sócrates teriam ajudado a escrever "O Livro dos Espíritos" (1857). Hoje os best-sellers do gênero são ditados por nomes insuspeitos como Lucius e Patrícia.
Essa mudança de perfil é vista por editores como decorrente das necessidades de cada período do espiritismo.
"Kardec desenvolvia uma ciência, aqueles espíritos elevados eram necessários. No Brasil, a doutrina ganhou viés místico. Os espíritos são coerentes com a nova realidade, dão mensagens de conforto", diz o editor Leonardo Möller, da Casa dos Espíritos.
A editora publica best-sellers como "Tambores de Angola", que seriam ditados por Ângelo Inácio e psicografados por Robson Pinheiro.
Ângelo, segundo Pinheiro, foi um jornalista na última encarnação, mas prefere usar o pseudônimo para não chamar a atenção de parentes.
Reginaldo Prandi, autor de "Os Mortos e os Vivos -- Uma Introdução ao Espiritismo" (Três Estrelas), acredita que a discrição dos espíritos hoje decorre tanto do fato de a doutrina já ter se firmado quanto de uma precaução.
"Houve processos por direitos autorais, com familiares dizendo: Se usa o nome do meu avô, tem de pagar'."
Um caso famoso foi vivido por Chico Xavier, que psicografou vários textos do cronista Humberto de Campos (1886-1934) até ser processado pelos herdeiros.
Na ocasião, o juiz concluiu que só podia avaliar direitos autorais de obras produzidas em vida, mas, por prudência, Xavier passou a identificar o espírito como "Irmão X".
Um desenrolar curioso dessa história envolve Zibia Gasparetto. Meio século depois de ela lançar "O Amor Venceu", que teria sido ditado por Lucius, o nome do espírito passou a figurar em livros de outros médiuns como "Exilados por Amor" (Vivaluz), de Sandra Carneiro.
"Não é o mesmo Lucius", informa Zibia. "Ele diz que não tem tempo, que trabalha só comigo mesmo."
Sandra Carneiro diz que seu Lucius deixa para o leitor concluir se é ou não o mesmo que acompanha Zibia..
Mesmo o fundador da doutrina teve de lidar com questões envolvendo créditos, como conta Marcel Souto Maior na biografia "Kardec".
Embora tenha listado na primeira edição de "O Livro dos Espíritos" os desencarnados que ajudaram no trabalho, Kardec deixou os nomes dos médiuns envolvidos de fora. Causou ciumeira.
Para Souto Maior, esse foi o menor dos desafios que o francês teve de enfrentar.
Como lidava com uma doutrina que envolvia fenômenos sobrenaturais, sua batalha por toda a vida foi a de mostrar como no centro de tudo estava não o milagre, mas a solidariedade --até hoje, a maior parte das editoras espíritas doa direitos autorais a instituições de caridade.