folha de são paulo
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DO RIO
Quatro anos atrás, quando ainda se iniciava como cronista e autora de teatro, Fernanda Torres, 48, afirmou à Folha sentir vergonha de assumir que escrevia. "Eu sei o horror que é uma atriz que escreve", disse.
Hoje, com rotina autoral entranhada --publica coluna mensal na "Ilustrada" e outra quinzenal na "Veja Rio"-- e prestes a lançar o primeiro romance, "Fim", o sentimento certamente é diferente, não?
"Mais do que nunca é hora de ter vergonha de dizer que escrevo", diz ela, rindo. "A sensação atual é que não vou escrever nunca mais."
| Bob Wolfenson/Divulgação | |
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A atriz Fernanda Torres, 48, que lança o romance 'Fim' |
É claramente uma blague: ao longo da hora e meia de conversa em seu apartamento, na Lagoa, zona sul do Rio, Fernanda demonstra ter ficado satisfeita com a obra e com o próprio processo de criação.
"Fim" nasceu como um conto sobre os cinco últimos minutos de vida de um velho que, na caminhada de volta do médico para seu apartamento, em Copacabana, vai rememorando quatro amigos que morreram antes dele.
O texto havia sido encomendado pelo diretor Fernando Meirelles, que pretendia publicar um livro com contos sobre a velhice e adaptá-lo para a TV, numa ação casada entre a Companhia das Letras e a Rede Globo.
O projeto não vingou neste formato, mas Fernanda diz ter ficado "tão feliz" com o resultado do conto que o mostrou para a mãe, Fernanda Montenegro, e para amigos como os atores Vladimir Brichta e Débora Bloch.
"Eu fiquei surpresa, gostei, achei que estava direito. Escrevi em quatro dias, cuspi 11 páginas com uma curva [narrativa], algo que ia ficando esquisito. Achei que tinha fôlego para um romance."
A mesma opinião tiveram Meirelles e Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, que lança o livro na próxima terça (12).
O desenvolvimento da trama misturou diálogo interior ("É muito legal quando você escreve, o romance te comanda", diz) e exterior.
"Fui mostrando em fascículos para a editora, cada capítulo. Foi muito parecido com a relação com um diretor no teatro. O ator sobe em cena e propõe algo, e é sempre bom ouvir o outro lado."
HOMEM
A escolha por protagonistas masculinos, escritos em primeira pessoa, é explicada como um tipo de disfarce.
"Acho que é mais fácil se travestir, para não ficar falando de você, sabe? Quando você entra na pele de um velho, um homem, fala mais livremente, porque é claro que você escreve sobre coisas que pensa, que observa. Toda vez que eu penso em mulher me dá preguiça, é muito colado."
Além da masculinidade dos protagonistas, uma das características mais evidentes de "Fim" é sua trama "muito carioca", como diz a autora --e não apenas porque se passa em sua cidade natal.
"Queria que o livro tivesse um caráter muito pessoal daqui, o hedonismo, a decadência, o saber viver, o humor, mas com uma certa tragédia. O Rio é uma mixórdia, uma loucura e, ao mesmo tempo, tem um ar de corte, de uma certa nobreza falida. Eu tenho fascínio por esse Rio e queria fazer um livro sobre pessoas sem nenhuma grandeza."
A autora situou grande parte da história, que tem como evento central uma grande suruba regada a drogas, "nos anos 1970, que era uma época de uma sexualidade muito louca".
"Eu estava saindo da infância, e os meus pais são mais conservadores, eram mais velhos do que essa geração, então eu vi um pouco de longe. Hoje, eu tenho a idade em que a gente é livre, adulto. Acho que [a sexualidade da trama] vem desse choque de eu entender questões que vi de longe naquela época."
Lançado o romance, Fernanda vê no futuro próximo apenas projetos como atriz. Mas, ao descrever a sensação de ter completado o livro, deixa transparecer um revelador apreço por sua nova carreira.
"Estou feliz, é muito incrível você escrever um negócio. É o maior barato. E também você inventar uma outra coisa para si mesma, com 48 anos, sabe? É incrível."
Colaborou RAQUEL COZER
cRÍTICA - ROMANCE
Atriz escreve sobre geração em busca do desbunde perdido
MANUEL DA COSTA PINTOCOLUNISTA DA FOLHA"Fim", de Fernanda Torres, reescreve "Quadrilha" às avessas. Nos versos de Drummond, João amava Teresa que amava Raimundo etc., até que Lili, que não amava ninguém, se casa com J. Pinto Fernandes ""cujo sobrenome burocrático quebra a cadeia, fazendo o encanto naufragar nos protocolos do matrimônio.
Embora não cite Drummond, Fernanda parte daí, da asfixia da vida doméstica e das tentativas de libertação, para escrever um romance em quadros descontínuos.
Em cena, há cinco amigos que viveram desvarios na maturidade e que conservam, até o momento final, décadas depois, as nostalgias e as sequelas físicas da dissipação.
Os capítulos se abrem com a narrativa interior do momento que precede a morte de cada um, seguida de histórias, agora em terceira pessoa, de personagens diretamente tocados (ou mutilados) por eles.
Do velho caquético que vocifera contra a humanidade e a mulher adúltera ao "metrossexual" vítima dos efeitos colaterais do Viagra; do devasso senil que expira na orgia e na droga ao sedutor que leva à loucura a mulher a quem será devotamente infiel, passando pelo pai de família que assume o decoro imposto por sua condição de mulato de classe média, parece que estamos num romance geracional.
Não deixa de ser, mas não o da geração da autora e, sim, o daquela anterior à revolução de costumes dos anos 1960 e 1970 e que, num Rio transformado em Babilônia da contracultura, tentou recuperar o desbunde perdido.
A escrita densa de Fernanda Torres destrincha com sarcasmo os mecanismos mentais desses "Cavaleiros do Apocalipse", que violentam seus valores "burgueses" ao preço do rancor e da crueldade.
"Fim" é um romance sobre a corrida agônica contra o tempo, mas também sobre a ressaca terminal de quem tentou fugir, em descompasso, da "vida besta" de que falava Drummond.