folha de são paulo
Já houve um tempo em que a conexão era visível. Os fios indicavam os caminhos entre aparelhos e suas fontes de energia, de dados, de contato. Bastava puxar o plugue para se isolar.
Não mais. Hoje vivemos em uma paisagem feita de várias camadas superpostas. Um cobertor gigantesco e crescente de informações permeia corpos e ambientes, imperceptível, na forma de ondas eletromagnéticas ou hipersônicas, que só a visão biônica das próteses digitais consegue perceber.
Aviões trafegam em avenidas de informação, transparentes como os radares e comunicações da Polícia. Barcos desviam de recifes e procuram cardumes usando frequências sonoras inaudíveis até por morcegos. Em casa, luzes invisíveis esquentam a comida, tocam alarmes, detectam fumaça e ligam a TV. Nos hospitais, aparelhos de Raio X, Ressonância Magnética e Tomografia invadem o corpo humano com precisão de fazer inveja ao Super-homem.
Invisível e onipresente, o espectro eletromagnético foi aos poucos conquistado. As várias formas de Rádio, das emissoras aos intercomunicadores, GPS, portões eletrônicos, fones de ouvido, celulares, TV a satélite, telefones e periféricos de computador sem fio são apenas algumas das paisagens invisíveis, de outra dimensão, interferindo no cotidiano.
Smartphones deixam e procuram rastros de feromônios digitais o tempo todo, seja pela luz infravermelha dos controles remotos ou por tecnologias de rádio cujos nomes fariam inveja a insetos, como Bluetooth, ZigBee, DMB, NFC, GSM, RFID e Wi-Fi. No Quênia usa-se o celular para pagar o ônibus. Na Líbia, ele é quase um cartão de crédito. Franceses o usam como carteirinha de serviços de saúde. Alemães controlam o trabalho de equipes através deles. Hotéis da Suécia os aceitam como chaves de quarto. Por menos de um dólar é possível comprar, via Internet, uma etiqueta que identifica objetos perdidos. Robôs agrícolas, implantes corporais e remédios nanoscópicos estão no horizonte próximo.
O mundo está cada vez mais denso em informação, acessível somente por máquinas. Há redes de todo tamanho, desde o campo próximo dos bilhetes de transportes, passando pelo corpo, espaço individual, eletrodomésticos, automóveis, locais, área de alcance do smartphone, casas, empresas, universidades, cidades, países e nuvem, essa instância virtual e multinacional que tenta se confundir com a Internet que a sustenta.
Não tardará para que a computação esteja distribuída pelo ambiente, transformando qualquer superfície disponível em uma interface e qualquer momento do dia em uma possível interação. Computadores estão se dissolvendo na nuvem, no ambiente e nos corpos. As próximas gerações serão incapazes de identificá-los.
Voz, temperatura e umidade corporal, movimento e geolocalização geram informações que podem ser interpretadas, comparadas e armazenadas. Fazendas de servidores, com poder computacional gigantesco interpretam a linguagem falada, identificam padrões de comportamento, tomam decisões a partir de informações dúbias e produzem, quase que instantaneamente, as respostas mais simples e diretas possíveis, normalmente na forma de um conjunto de palavras ou um valor numérico.
Aplicativos invisíveis ignoram interfaces gráficas ricas em favor de um conteúdo mínimo, pragmático, contextual, humanizado e adequado. São o primeiro passo na direção de um futuro baseado em uma simplicidade tecnologicamente calculada.
À medida que se sofisticam, essas tecnologias se tornam cada vez mais opacas. Muitas cedem à tentação de se tornarem fechadas, proprietárias, criptografadas, intraduzíveis. Ao mesmo tempo que podem facilitar o contato com o mundo, essas tecnologias podem ser intraduzíveis para seus usuários, legislando sobre eles sem enfrentar oposição. É impossível desenvolver uma crítica quando não se é capaz de entender o ambiente.
É preciso desenvolver a percepção a respeito das coisas invisíveis, imateriais e intangíveis ao redor. Em uma sociedade conectada, a capacidade de traduzir as máquinas herméticas, abrindo-as, desmistificando-as e explicando seu impacto sobre potenciais usuários e seu ambiente é fundamental.
Quem não for capaz de compreender a dimensão do mundo digital não será capaz de agir efetivamente nele, e acabará forçado a acatar qualquer decisão tomada por ali.
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.