domingo, 24 de novembro de 2013

Leia poema inédito de Manoel de Barros

folha de são paulo

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DE SÃO PAULO

A TURMA
A gente foi criado no ermo igual ser pedra.
Nossa voz tinha nível de fonte.
A gente passeava nas origens.Bernardo conversava pedrinhas
com as rãs de tarde.
Sebastião fez um martelo de pregar água
na parede.
A gente não sabia botar comportamento
nas palavras.
Para nós obedecer a desordem das falas
Infantis gerava mais poesia do que obedecer
as regras gramaticais.
Bernardo fez um ferro de engomar gelo.
Eu gostava das águas indormidas.
A gente queria encontrar a raiz das
palavras.
Vimos um afeto de aves no olhar de
Bernardo.
Logo vimos um sapo com olhar de árvore!
Ele queria mudar a Natureza?
Vimos depois um lagarto de olhos garços beijar as pernas da Manhã!
Ele queria mudar a Natureza?
Mas o que nós queríamos é que a nossa
palavra poemasse.

Medicos acusam OMS de negligência em surto de poliomielite na Síria

Jornais Internacionais - Der Spiegel

Christoph Reuter
  • Valentina Petrova/AP
    As condições precárias de higiene em bairros controlados pelos rebeldes e centros de refugiados fazem do surto de poliomelite uma "bomba relógio" na região
    As condições precárias de higiene em bairros controlados pelos rebeldes e centros de refugiados fazem do surto de poliomelite uma "bomba relógio" na região
A poliomielite está ensaiando seu retorno em uma região dizimada da Síria, mas as delicadas políticas vigentes durante a guerra estão dificultando a realização de campanhas de vacinação. E enquanto a ameaça de uma epidemia da doença paira sobre a região, a raiva em relação à inércia da OMS (Organização Mundial de Saúde) vem crescendo.

O médico sírio Khalid Milaji está muito irritado com a entidade. "Eles sabiam que isso ia acontecer!", afirma ele. "Faz mais de um mês que nós estamos alertando o pessoal da OMS, dizendo que a pólio está se espalhando, mas eles se recusam a enviar a vacina!" Milaji faz parte da Força Tarefa de Controle da Poliomielite, um grupo que tenta conter uma nova epidemia de poliomielite na Síria com a ajuda do Ocidente – e ele está furioso com o fato de a organização estar resistindo a seus pedidos de ajuda.

A OMS é a mesma entidade da ONU (Organização das Nações Unidas) que vem realizando uma campanha extremamente bem sucedida contra a paralisia infantil, ou poliomielite, desde 1988. Nesse período, os casos de pólio foram reduzidos em 99% e o número de países afetados diminuiu de 125 para meia dúzia.
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A crise na Síria em fotos200 fotos

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22.nov.2013 - Sírios tentam se manter aquecidos com fogueiras em campo de refugiados na cidade de Harmanli, na Bulgária Valentina Petrova/AP
E, no entanto, durante várias semanas a OMS impediu a realização de uma campanha de vacinação destinada a conter o surto atual – que provavelmente é o mais perigoso dos últimos anos –, registrado na província síria de Deir ez-Zor. A OMS até tentou barrar a análise de amostras de vírus.

O motivo: a OMS tem uma política de cooperar exclusivamente com o governo de Damasco, mesmo em tempos de guerra, apesar do fato de o governo central ter desistido há muito de Deir ez-Zor. O exército do presidente Bashar al-Assad controla apenas dois distritos da capital provincial, enquanto o restante da província está nas mãos dos rebeldes.
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Armas da guerra civil são transformadas em "playground" na Síria7 fotos

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Crianças brincam com instrumentos improvisados com restos de bombas russas em um porão no bairro de Duma, em Damasco, na Síria. O sírio Abou Ali al-Bitar tem usado restos de armas da guerra civil no país, incluindo foguetes e morteiros, para criar objetos decorativos, instrumentos musicais e brinquedos para entreter as crianças durante o feriado muçulmano Eid al-Adha Leia mais Bassam Khabieh/Reuters

Um novo e perigoso surto

Nos últimos dois anos, a província tem sido dizimada pelos bombardeios. Não há mais energia elétrica, assistência médica, rede de telefonia nem estação de tratamento de esgoto. Cerca de meio milhão de refugiados estão abarrotando as cidades ao longo do rio Eufrates, que é onde os primeiros casos de pólio foram registrados, em setembro passado. Mais casos foram detectados nas províncias Idlib e Aleppo no meio da semana passada, o que elevou a contagem total de novos casos registrados para 48 até sexta-feira passada – e novos casos têm aparecido diariamente.

A poliomielite tornou-se um novo ponto de discórdia em meio à guerra síria, colocando os CDCs (Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos, os médicos sírios e o Ministério da Saúde da Turquia contra a OMS e o governo de Damasco.

No verão, especialistas em doenças infecciosas dos CDCs – que estavam cooperando com os médicos sírios de províncias do norte e do leste do país, das quais as forças de Assad foram expulsas – começaram a desenvolver o sistema de alerta precoce EWARN. As equipes de hospitais improvisados receberam telefones com conexão via satélite e foram instruídas a relatar, o mais cedo possível, quaisquer casos suspeitos de cólera, tifo, poliomielite e de outras doenças infecciosas para que a propagação não detectada dessas moléstias possa ser evitada. "Temos monitorado 10 doenças desde julho passado", disse o doutor Mohammed Alsaad, diretor do EWARN, "para que possamos reagir imediatamente".
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Garoto de 10 anos trabalha em fabricação de armas para rebeldes na Síria15 fotos

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Issa, 10, mede o diâmetro de um morteiro durante dia de trabalho em uma fábrica de armas do Exército Livre da Síria em Aleppo, reduto da revolta contra o regime de Bashar Assad. Ele trabalha com o pai na fábrica por dez horas todos os dias, exceto às sextas-feiras Leia mais Hamid Khatib/Reuters

Uma batalha envolvendo testes clínicos

Os médicos que fazem parte dessa cadeia de alerta precoce detectaram um surto de poliomielite na cidade de Sbichan, na região sul da província, em setembro e, no início de outubro, levaram as primeiras amostras de fezes para a Turquia. "Durante o percurso até a Turquia, nós contatamos os CDCs para descobrir qual laboratório de Gaziantep (a cidade grande mais próxima) poderia analisar as amostras", disse o dr. Haytham Shaqla, que acompanhou o transporte do material. Mas, ao chegarem ao hospital que havia sido recomendado, eles foram impedidos de entrar. "A administração nos disse que a OMS havia proibido expressamente o laboratório de aceitar e testar nossas amostras".

Um dos médicos da equipe, no entanto, tinha boas conexões com o governo provincial de Gaziantep e ligou para o governador, que, por sua vez, contatou as autoridades da capital, Ancara. O Ministério da Saúde turco enviou imediatamente uma equipe para o sul da Turquia para pegar as amostras.

A OMS disse que, ao transportarem a poliomielite para a Turquia, os sírios tinham retirado as amostras da jurisdição da divisão da OMS no Oriente Médio, que inclui a Síria, e as transportado para a área pertencente à divisão europeia, que inclui a Turquia. O governo turco, no entanto, estava interessado em resolver a situação rapidamente e testou as amostras de fezes das crianças doentes.

Damasco muda de opinião

A pedido da OMS, outras amostras de Sbichan foram enviadas para Damasco. Os médicos sírios receberam os resultados oficiais do Ministério da Saúde da Síria quando se encontraram em Gaziantep, em 14 de outubro passado, para discutir o que fazer em relação ao surto. O ministério alegou que as amostras não continham vírus da poliomielite, mas, em vez disso, continham evidências de envenenamento por água contaminada com petróleo e da síndrome de Guillain-Barré, uma rara doença neurológica.

Quatro dias depois, funcionários dos CDCs em Atlanta, nos EUA, informaram os médicos Gaziantep sobre os resultados de Ancara. Todos os três casos haviam testado positivo para poliomielite. Testes adicionais, realizados em um laboratório de referência holandês, demonstraram que o vírus da pólio detectado nas amostras era do "tipo 1", que também tinha sido detectado recentemente ou sido repetidamente registrado em Israel, no Egito e no Paquistão.

"A OMS já sabia disso, mas não nos disse nada", disse Milaji. "Por que eles estão nos ignorando? Eles nem sequer falavam com a gente até recentemente, apesar de as câmaras municipais locais e os rebeldes constituírem a única forma de ordem governamental em Deir ez-Zor. E fomos nós, no final das contas, que descobrimos todos os casos".

Perto do final de outubro passado, só depois de casos adicionais terem vindo à tona, impedindo que a epidemia continuasse sendo mantida em segredo, o Ministério da Saúde de Damasco descobriu, de repente, o vírus da poliomielite nas amostras. Finalmente, em 29 de outubro, a OMS anunciou oficialmente o início da epidemia. Ainda é um mistério por que isso levou semanas para acontecer. Os médicos consideram o comportamento da OMS absolutamente negligente.

"A ponta do iceberg"

Isso porque a poliomielite, uma vez contraída, é incurável. Mas uma simples vacina oral é o suficiente para prevenir a infecção. Embora apenas uma em cada 200 crianças infectadas, em média, desenvolva o sintoma mais grave da doença, que é a paralisia permanente, e outras experimentem apenas sintomas leves ou até mesmo nenhum sintoma, qualquer pessoa infectada pode transmitir o vírus. É por isso que uma taxa de vacinação mínima de 95% é considerada necessária para evitar a propagação da doença.

O surto sírio contém todos os ingredientes para se transformar em uma epidemia desastrosa: guerra, cerca de 5 milhões de desalojados domésticos que vivem abarrotados e em condições sanitárias deploráveis, um grande grupo de pessoas em constante movimentação e até 4.000 pessoas por dia fugindo através das fronteiras para países vizinhos. Em grandes partes da Síria não há atendimento médico e campanhas de vacinação não são realizadas nesses locais há dois anos.

O médico Bruce Aylward, diretor-geral assistente da OMS e desde 1998 chefe da campanha de combate à poliomielite da organização, diz que o surto é uma bomba-relógio. Para ele, os casos confirmados são "apenas a ponta do iceberg", e todo o Oriente Médio corre o risco de sofrer uma epidemia maciça. Agora a OMS planeja vacinar todas as crianças em círculos concêntricos ao redor do epicentro do surto, o que equivale a 20 milhões de crianças que vivem na Jordânia, Líbano, Turquia e em outros países vizinhos.

Crise no epicentro

Mas pouco está acontecendo no próprio epicentro da epidemia. Todas as manhãs centenas de mães se aglomeram em frente das enfermarias improvisadas aguardando por uma vacina que não chega. Em turnos quinzenais, uma equipe de médicos da Força Tarefa de Controle da Poliomielite vão à região para acompanhar o desenvolvimento da epidemia e realizar uma campanha de informação utilizando o rádio, as mesquitas e folhetos para espalhar sua mensagem. Os médicos aconselham os moradores a lavar as mãos após usarem o banheiro e antes de comer. "Mas a coisa toda vira uma piada quando você diz às pessoas para que bebam apenas água limpa", diz o doutor Bashir, diretor da força-tarefa. "Oitenta por cento das pessoas que vivem aqui obtêm sua água potável do Eufrates, onde todo o esgoto não tratado é despejado. Estamos agora aconselhando as pessoas a desinfectarem a água, adicionando duas colheres de água sanitária para cada mil litros. A prática não é exatamente saudável, mas o que podemos fazer?"

A força-tarefa criará uma cadeia de refrigeração para possibilitar o transporte e o armazenamento das vacinas, diz Bashir, mas a OMS primeiro precisa liberar as doses. "Nós temos um plano completo, temos os centros de saúde e nós podemos recrutar os mil voluntários necessários para realizarmos uma campanha porta-a-porta – mas temos que esperar". Embora Bashir reconheça o dilema vivido pela OMS, ele não concorda com a decisão da organização. "Se eles nos aceitarem", diz ele, "eles estarão quebrando regras internacionais. Se eles não nos aceitarem, ninguém vai brecar a epidemia. O regime não tem interesse em fazê-lo, pois as crianças foram vacinadas nas áreas que ele controla".

"O governo nunca mentiu"

Mas a OMS continua insistindo em cooperar apenas com o governo Assad e mais ninguém.

"Se nós entregássemos vacinas através da fronteira turca, esse seria o limite para Damasco", disse Aylward. "E o governo sírio não aceitará os resultados de outros laboratórios. Na semana passada, eu conheci o ministro da Saúde da Síria, e o governo nos assegurou que vai vacinar todas as crianças do país. Eles disseram que vão fazer isso. Então nós precisamos pressioná-los o máximo possível. Eles disseram que vão fazer, por isso vamos responsabilizá-los. O governo nunca mentiu para nós".

Esta é uma hipótese estranha, considerando-se o fato de que o regime vem bombardeando hospitais há mais de dois anos, proibiu equipes médicas de tratar vítimas de ataques aéreos em hospitais do governo e realizou assassinatos seletivos de médicos e farmacêuticos que tratam e fornecem medicamentos para pessoas que vivem em áreas controladas pelos rebeldes.

Em 4 de novembro passado, o vice-ministro das Relações Exteriores da Síria, Faisal Muqdad, disse que o governo concede acesso humanitário aos cidadãos sírios em todas as regiões do país e que nunca impediu a entrada das remessas de ajuda. Mas já faz alguns meses, por exemplo, que mais de 600 mil pessoas que vivem nos subúrbios do nordeste de Damasco estão completamente desconectadas do mundo externo. Forças do regime não estão sequer permitindo que alimentos, para não falar de medicamentos e vacinas, sejam levados para essas áreas. Em setembro as crianças começaram a morrer de fome em dois outros bairros sitiados localizados ao sul da capital síria.

"O vírus é apolítico"

"É idiotice ou crime – dependendo de sua posição e responsabilidade – aceitar as mentiras sistemáticas do regime de Damasco", diz um diplomata ocidental em Gaziantep. "A ONU deve parar de fechar os olhos para o que está acontecendo à vista de todos. Caso contrário a organização não estará desempenhando o papel que lhe cabe".

Durante a semana passada, os especialistas da OMS e de outras organizações internacionais realizaram reuniões em Gaziantep com médicos e representantes locais das províncias para saber quantas pessoas vivem em cada região. A campanha de vacinação poderia começar dentro de alguns dias se a OMS liberasse a vacina. Mas a situação não parece promissora. O doutor Milaji tem uma visão cínica e sóbria sobre a questão: "Assad tem suas armas químicas. Nós temos a nossa arma biológica. Embora ela afete principalmente a nós mesmos em primeiro lugar, ela acabará por se espalhar por toda a região. E, quando se trata de contágio, o vírus é apolítico".
Tradutor: Cláudia Gonçalves

O "Trem das Onze" uniu Haddad e Alckmin num palco em Paris

folha de são paulo
REPORTAGEM
Quando os políticos sambam miudinho

RESUMO Enquanto os protestos que varreriam o país tinham início em São Paulo, o governador do Estado, Geraldo Alckmin, e o prefeito da cidade, Fernando Haddad, foram à França promover a capital paulista como sede da Expo 2020. Vídeo inédito, obtido pela Folha, mostra a dupla em ação, cantando Adoniran Barbosa em Paris.
FERNANDO MELLO

"TODO HOMEM cria sem saber/Como respira", diz o primeiro verso de um dos poemas que o francês Paul Valéry (1871-1945) escreveu especialmente para a fachada do Palácio de Chaillot, em Paris. Foi ali que, em 10 de junho de 2013, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e o governador do Estado, Geraldo Alckmin (PSDB), lançaram a candidatura paulistana para sediar a Expo 2020.
A presença da dupla na França procurava transmitir a imagem de um esforço conjunto e apartidário pela disputa ao direito de sediar a principal feira de eventos do mundo, inferior em tamanho apenas à Olimpíada e à Copa do Mundo.
O coquetel começou com garrafas de champanhe, enquanto garçons passeavam pelo salão com quitutes de salmão, carne e vegetais. Alckmin e Haddad estavam acompanhados de suas mulheres, Lu e Ana Estela.
O evento transcorria de maneira protocolar, quando, às 19h, os dois políticos foram convidados a subir ao palco onde se apresentava a cantora Daniela Mercury.
Microfones em punho, o tucano, à direita da artista baiana, e o petista, à esquerda dela, entoaram "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa (1910-82), uma espécie de hino dos paulistas.
Pode-se dizer que o estilo de cada político em cena mimetizou o que se sabe, ou o que transparece, de suas personalidades, como mostra vídeo inédito da apresentação ao qual a Folha teve acesso.
Geraldo Alckmin vestia um terno escuro e gravata alaranjada. Ora cruzava os braços sobre o corpo, como se estivesse em posição de respeito ao hino nacional, ora arriscava passos de samba marcados por meneios de cabeça. Sorriso contido, manteve o padrão "competente" e "correto", bem de acordo com a forma como foi apresentado no jingle de sua campanha vitoriosa em 2010.
Fernando Haddad usava um terno cinza e algo amassado com gravata vermelha e roxa, balançando o corpo a todo momento. Empolgado, arriscou voo solo no verso "só amanhã de manhã", provocando reação da cantora: "O prefeito está sozinho, tá vendo?". Confiante, o político tentou comandar a banda, puxando o "eu não posso ficar" que reconhecidamente chama a recomeçar a música.
O grito, no entanto, entrou na hora errada, merecendo pronta reprimenda da cantora, que seguiu trinando o refrão, acompanhada por piano, contrabaixo, bateria e percussão. Sorriso largo, Haddad resguardava a postura jovial de "homem novo", mote da campanha que o elegeu em 2012.
Enquanto a luz arroxeada dos refletores iluminava o trio canoro, convidados vestindo trajes "passeio completo" sambavam em frente ao palco, celulares em riste, registrando a performance.
Mesmo diante do questionável brilhantismo musical de seus parceiros, Daniela Mercury intercalou os versos do compositor paulista com comentários como "a dupla é boa" e, ao final da apresentação, sentenciou: "O PSDB e o PT estão bem, né, gente?".
FALTA DE RITMO Por trás do "pascalingundum" daquela noite havia mais do que falta de ritmo e de entonação dos governantes.
Nos dias anteriores à viagem, em 6 e 7 de junho, protestos em São Paulo, convocados pela organização Movimento Passe Livre, cobrando a redução de tarifas de transporte público, tinham evoluído para confrontos com a Polícia Militar e quebra-quebra.
Numa foto na capa da Folha, no dia 8 de junho, integrantes da manifestação ocupavam as pistas da via que margeia o rio Pinheiros e voltavam-se para aqueles que tomavam o trem na estação ao lado. Entre os muitos motes levados às ruas em cartazes e faixas naqueles dias, um avisava: "Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar".
Folha apurou que a conveniência de ir a Paris naquele momento de tensão foi sopesada por Alckmin, Haddad e assessores. As equipes preferiram manter a agenda, em vista dos potenciais benefícios da Expo 2020 para São Paulo. Antes de embarcar para a Europa, afinados, os dois defenderam a ação da Polícia Militar.
Procurada pela reportagem,a Prefeitura de São Paulo informou, por meio de sua assessoria, que a decisão da viagem foi tomada pela importância da Expo 2020 e porque, até então, os protestos tinham magnitude considerada normal e compatível com outros atos que ocorrem pela cidade. Segundo a assessoria, o convite para cantar foi feito espontaneamente por Daniela Mercury. O governo do Estado não respondeu à reportagem até a conclusão desta edição.
Em 11 de junho, no entanto, os protestos pela diminuição das tarifas explodiriam. A avenida Paulista, onde o ato daquele dia tinha tido início, parou: dois ônibus foram parcialmente incendiados, e cinco agências bancárias, quebradas.
A manifestação durou até quase as onze da noite --a hora cantada por Adoniran Barbosa, que fizera não muito longe dali, no começo de 1964, numa boate da rua Augusta, a "première" da canção, com os Demônios da Garoa.
DISCURSOS Na véspera, no Palácio de Chaillot, sob o lema "poder da diversidade e harmonia do crescimento", prefeito e governador de São Paulo faziam seus discursos em defesa da candidatura da capital paulista. Foram acompanhados, na fala a empresários e convidados franceses e brasileiros, pelo vice-presidente da República, Michel Temer (PMDB), que não participou do número musical.
O evento teve por cenário a torre Eiffel, vista através das grandes vidraças do palácio, considerado um dos melhores pontos da cidade para a observação da atração.
Construído para a Exposição Universal de 1937 no mesmo local onde se erguera, para a Expo de 1878, o antigo Palácio de Trocadéro, o Chaillot abrigou a Assembleia Geral das Nações Unidas que sagrou a Declaração Universal dos Direitos Humanos no dia 10 de dezembro de 1948.
O documento foi recordado durante a onda de protestos que varreu o Brasil, marcada pela atuação violenta da polícia, muitas vezes arbitrária, contra manifestantes.
DISTANCIAMENTO Uma das explicações mais adotadas para a onda de protestos irradiada de São Paulo para todo o país a partir de junho é a de que ela seria fruto do distanciamento entre os políticos, principais alvos das ruas, e a população que representam.
De acordo com o mais recente "Latinobarómetro" --pesquisa de opinião pública realizada anualmente desde 1995 em 18 países latino-americanos, pelo instituto chileno de mesmo nome--, divulgado no começo deste mês, a confiança dos brasileiros na democracia representativa e nos políticos é uma das menores do continente.
Segundo os dados (referentes a 2011), 26% dos brasileiros se dizem "muito" ou "algo" satisfeitos com o funcionamento da democracia no país --índice próximo à menor média de satisfação com o regime jamais registrada no continente (25%, em 2001).
Além disso, a democracia está longe de ser consenso no país. Enquanto a preferência por ela é expressiva em países como Venezuela (87%), Argentina (73%) e Bolívia (61%), no Brasil ela é considerada a melhor opção por 49% dos entrevistados para o estudo.
Para a diretora do instituto Latinobarómetro, Marta Lagos, a população de diferentes países da América Latina está enviando um recado aos políticos: "Não importa como, mas alguém vai ter que me ouvir". "Os brasileiros aprenderam que mobilidade social é possível. Agora muitos a almejam", diz Lagos à Folha.
LENTES Na opinião de Charles King, professor de relações internacionais da Universidade de Georgetown, é importante que os analistas políticos não se valham de lentes ultrapassadas para observar os protestos atuais.
Falando no âmbito de um debate, em Washington, no qual as revoltas brasileiras foram comparadas por professores de diversas áreas às ocorridas na Turquia e no Egito, King afirmou que as categorias já conhecidas "não se encaixam perfeitamente ao que está acontecendo nas ruas".
Segundo o professor, conceitos como transição entre regimes ou consolidação da democracia estão ligados mais à década de 1990 e não explicam os acontecimentos mundiais nos últimos anos. "Não temos um jeito muito bom para falar sobre como as democracias se comportam", resume King.
Para Diana Kapiszewski, especialista em política brasileira, os protestos no Brasil ganharam força por terem mobilizado grupos ansiosos por governos melhores e com menos corrupção.
Na sua opinião, o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo e outras capitais foi apenas uma faísca, mas a causa principal dos protestos pode ser achada na "desigualdade financeira brasileira e no desgosto dos cidadãos com os políticos". Entre os alvos populares, estavam o governador e o prefeito de São Paulo.
No Palácio de Chaillot, Alckmin e Haddad se mantiveram conectados aos celulares, segundo assessores ouvidos pela Folha, e trocavam informações sobre o que acontecia em São Paulo. Para aliviar a tensão, entre um e outro canapé, chegaram a contar piadas, de acordo com relatos de convidados do evento.
A resposta inicial aos protestos foi articulada entre petista e tucano. Ainda em Paris, o governador chamou os manifestantes de "baderneiros" e "vândalos", acionou a Tropa de Choque da Polícia Militar e disse que iria cobrar o ressarcimento dos prejuízos aos cofres públicos. Fernando Haddad fez coro, dizendo que os manifestantes não usavam de forma adequada a liberdade de expressão e que seus métodos não eram "aprovados pela sociedade".
No dia 19 de junho, Alckmin e Haddad anunciaram em conjunto que as tarifas de transporte cairiam, voltando aos valores anteriores ao reajuste.
COQUETEL O coquetel no palácio foi um evento privado. Na ocasião, o governo paulista tornou pública uma foto de Geraldo Alckmin e sua mulher sorridentes em frente à Torre Eiffel.
O vídeo do show daquela noite não foi divulgado. Não é difícil imaginar que o "Trem das Onze" dos governantes poderia ter jogado gasolina nos protestos.
Uma mostra em cartaz até janeiro no Newseum, em Washington, compila bons exemplos de como as imagens são poderosas na constituição de ideias políticas.
"Creating Camelot" destrincha a longa história do fotógrafo Jacques Lowe ao lado da família Kennedy. Iniciada quando John Fitzgerald Kennedy era candidato à reeleição no Senado (1958), a parceria perdurou até os primeiros anos de presidência do democrata.
A família harmônica e o líder vigoroso registrados naquelas fotografias ajudaram a criar o que se conheceu como mito de Camelot, que aproxima a figura de JFK e seus anos à frente dos EUA à corte do lendário rei Arthur, com um soberano sábio, sua bela rainha e seus valentes cavaleiros.
Porém, como nos recorda o poema de Valéry inscrito nas paredes do Chaillot, muitas vezes a criação nos escapa ao controle racional, e seus produtos, palavras ou imagens, ganham força espontânea.
Três dias após a gravação da cantoria de Alckmin e Haddad, a Folha publicou em sua primeira página a foto do policial militar Wanderlei Vignoli, ferido e apontando a arma para um manifestante. A imagem, feita pelo fotógrafo Drago, do coletivo SelvaSP, ganhou neste mês o Prêmio Esso de Jornalismo de 2013.
O contraste entre a violência das imagens publicadas e a despretensiosa apresentação musical causa, agora, um imponderável estranhamento.
Vistos lado a lado, o policial sangrando e o trio sobre o palco parecem tão distantes quanto os versos do simbolista Vale?ry, sempre em busca de um "eu puro" por meio do "culto ao intelecto", imortalizado nas paredes do palácio, e os do popular Adoniran, com sua prosódia peculiar, entoados naquela noite no interior do edifício.
O anúncio sobre a cidade escolhida para sediar a Expo 2020 está previsto para os próximos dias. São Paulo está no páreo, mesmo que as imagens que ganharam mundo durante os protestos não tenham contribuído para a campanha. Músicas de Adoniran Barbosa são esperadas em uma eventual festa de comemoração.
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Microfones em punho, o tucano, à direita de Daniela Mercury, e o petista, à esquerda dela, entoaram "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa, uma espécie de hino dos paulistas
A conveniência da viagem foi sopesada por Alckmin, Haddad e assessores. Optaram por manter a agenda, em vista dos potenciais benefícios da Expo 2020 para São Paulo
No evento, Alckmin e Haddad se mantiveram conectados e trocavam informações sobre o que acontecia em São Paulo. A resposta inicial aos protestos foi articulada entre ambos

    De Big Apple a Gran Manzana - Marcos Augusto Gonçalves

    folha de são paulo
    DIÁRIO DE NOVA YORK
    O MAPA DA CULTURA
    Passado hispânico sai de baixo do tapete
    MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
    QUANDO PUBLICOU um editorial em apoio a Bill de Blasio, o então candidato democrata à Prefeitura de Nova York, o jornal "The New York Times" argumentou que a cidade havia obtido "muitos sucessos" ao longo dos três mandatos consecutivos de Michael Bloomberg (2001-13), mas seu "renascimento" ainda precisava se completar.
    A metrópole que enfrentou a criminalidade, reorganizou as finanças, revitalizou bairros e redesenhou espaços públicos continua a conviver com padrões incômodos de desigualdade social.
    De Blasio, segundo o "Times", é o homem indicado para "dar voz aos nova-iorquinos esquecidos", os 46% que vivem próximos à linha de pobreza, os milhares que dormem em abrigos públicos, as famílias de baixa renda que não conseguem pagar aluguel e são empurradas para longe na luta pela sobrevivência.
    Grande parte da retumbante vitória que De Blasio afinal conquistou (ele é um típico progressista que quer taxar ricos para financiar o ensino público infantil) se deve à comunidade de origem hispânica.
    Os considerados brancos, que eram 42% da população nova- iorquina em 1990, são hoje 33% --enquanto os hispânicos já chegam a 29%.
    Ouve-se gente falando espanhol em cada esquina, em cada balcão, em cada carrocinha de cachorro-quente.
    PINTA
    A presença hispânica também é marcante no mundo das artes e da cultura. No fim de semana passado aconteceu a Pinta, a feira de arte latino-americana, que reúne galerias de países do continente, além de americanas, espanholas e portuguesas. O evento, que andou caído nas últimas edições, reapareceu com vigor, num endereço bacana (na r. Mercer, 82), no bairro do Soho.
    Em atmosfera intimista, a feira designou alguns curadores que selecionaram artistas e galerias para participar das diversas seções --como arte moderna, arte contemporânea, vídeos e emergentes.
    As galerias brasileiras Casa Triângulo e Baró foram convidadas para o "Emerge", setor coordenado pelo colombiano José Roca, curador- assistente de arte latino-americana da Tate, de Londres. A feira também teve uma programação de debates, dois deles dedicados a nomes brasileiros --os incontornáveis Hélio Oiticica e Oscar Niemeyer.
    Não pude comparecer à mesa que discutiu a obra do artista carioca, mas assisti ao painel sobre nosso arquiteto mais famoso, com a presença de Carlos Brillembourg, da Brillembourg Architects, e de Patricio del Real, curador-assistente do departamento de arquitetura e design do MoMA. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos.
    CASA ESPANHOLA
    Enquanto isso, o Museu do Brooklyn apresenta até janeiro uma exposição intitulada "Atrás das Portas: Arte na Casa Hispano-Americana (1492""1898)", a primeira grande mostra realizada nos Estados Unidos sobre a vida privada e os interiores das residências da elite espanhola que viveu na América, da descoberta até o fim do século 19.
    São cerca de 160 pinturas, esculturas, gravuras, tecidos e objetos de arte decorativa, que remetem o visitante a temas como a representação pictórica dos indígenas, os sinais distintivos da nobreza, o esquadrinhamento da casa e os rituais da vida doméstica.
    A convite de Gabriel Pérez- Barreiro, diretor da prestigiada Coleção Patricia Phelps de Cisneros (que cedeu peças para a exposição), tive a oportunidade de participar de uma visita guiada, com o curador Richard Aste. Uma aula.
    O império espanhol chegou a ocupar mais da metade do território hoje pertencente aos Estados Unidos --uma longa e tumultuada história, muitas vezes empurrada para debaixo do tapete, que continua a bater à porta do "sonho americano".
    SERRA NA GAGOSIAN
    Poucas coisas exibidas no circuito de arte em Nova York causam tanta impressão quanto a nova escultura que Richard Serra instalou na galeria Gagosian, na r. 21, no bairro de Chelsea (www.gagosian.com).
    São duas peças de aço justapostas, que formam uma estrutura sinuosa de grande escala, com espaços e caminhos internos pelos quais --como em outras obras do artista-- as pessoas podem transitar. As dimensões impressionam: as duas "metades" têm 4 metros de altura, e o conjunto alcança 25 metros de extensão por 12,2 metros de largura.
    Nascido em San Francisco em 1938, Serra é um dos maiores escultores de nosso tempo, justamente celebrado em todos os quadrantes do planeta.
    E, sim, também ele é parte da herança hispânica na América: seu pai, Tony, era um imigrante de Mallorca que foi morar na Califórnia. Hasta la vista, baby.

      Não vim trazer a paz, mas a espada

      folha de são paulo

      Os ideais revolucionários de Jesus

      E
      REINALDO JOSÉ LOPES
      Ouvir o texto

      RESUMO Livro de autor norte-americano de origem iraniana defende que as pregações de Jesus convocando o "Reino de Deus" sejam lidas de forma mais literal e revolucionária que espiritual. Embora a tese não seja totalmente inovadora,"Zelota" popularizou-se após seu autor, muçulmano, ser atacado em entrevista à TV nos EUA.
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      "Não penseis que vim trazer paz à Terra; não vim trazer paz, mas espada. Vim trazer divisão entre o homem e seu pai, entre a filha e sua mãe", declara Jesus no capítulo dez do Evangelho de Mateus.
      Durante séculos, a maioria dos cristãos interpretou a frase belicosa do Nazareno de modo espiritual. Afinal, se levadas ao pé da letra, as exigências de Cristo para abandonar riquezas, casa, pais e filhos para segui-lo não estão entre os assuntos mais agradáveis para um almoço familiar de domingo.
      Para o escritor norte-americano de origem iraniana Reza Aslan, no entanto, está na hora de voltar a ler os versículos em seu contexto original -no qual a ideia era desembainhar uma espada literal, e não metafórica.
      Eis, em essência, a premissa de "Zelota: a Vida e a Época de Jesus de Nazaré" [trad. Marlene Suano, Zahar, R$ 36,90, 308 págs.], novo livro de Aslan, 41, que acaba de ser lançado no Brasil: Jesus não era um mestre pacifista, que só pensava em exaltar as virtudes dos lírios do campo e oferecer a outra face.
      O principal objetivo do profeta de Nazaré, fomentar a vinda do "Reino de Deus", equivalia a um programa político (e revolucionário), que envolvia a expulsão dos romanos da Palestina e a recriação da antiga e gloriosa monarquia israelita, com o próprio Jesus no trono, sob as bênçãos de Deus.
      Daí o nome do livro: zelota (do grego "zelotes") é como os autores bíblicos denominavam os judeus especialmente zelosos das prerrogativas religiosas do Deus de Israel -uma divindade que, ao menos no Antigo Testamento, era capaz de uma aterrorizante fúria militar contra os inimigos dos israelitas. Mais tarde, o termo seria usado para designar uma seita revolucionária judaica.
      "Vamos colocar a coisa da seguinte forma: há aqueles que acham que Jesus era total e absolutamente único, diferente de todos os judeus do seu tempo. E há os que acham que, embora ele fosse extraordinário e inovador, ainda assim seu pensamento tinha muito em comum com o de outros judeus. Eu faço parte desse segundo grupo", explicou Aslan, à Folha, em entrevista por telefone.
      "Os demais judeus do século 1º d.C. acreditavam que o Messias era um descendente do rei Davi cujo trabalho seria derrotar os inimigos de Israel e implantar o Reino de Deus na Terra. Acredito que essa era a visão que Jesus tinha sobre si mesmo."
      Aslan é um acadêmico, com mestrado em teologia na Universidade Harvard e doutorado em história das religiões na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, mas seu livro conquistou o grande público. Razões alheias ao seu conteúdo contribuíram para que a obra tivesse virado best-seller nos nos EUA.
      No dia 26 de julho, dez dias após o lançamento norte-americano do livro, Aslan foi hostilizado por uma entrevistadora do canal conservador Fox News, que exigiu que ele explicasse por que um muçulmano iria querer escrever um livro sobre Jesus. "Ser atacado de falta de 'jesusidade' por uma âncora da Fox Nex é aparentemente um bom caminho para conduzir seu livro ao número 1 das listas", comentou Adam Gopnik, na revista "New Yorker".
      O que a âncora de TV provavelmente não sabia era que o histórico religioso de Aslan é mais complexo do que ela deu a entender. Nascido numa família iraniana secular, ele tornou-se evangélico na adolescência e, mais tarde, retornou à fé de seus ancestrais.
      Larry D. Moore/Wikimedia Commons
      O escritor Reza Aslan
      O escritor Reza Aslan
      "O ponto mais importante, que muito gente não conseguiu entender, é que o livro não é sobre o cristianismo -Jesus, afinal, não era cristão, mas judeu. Meu tema é o judaísmo de veia revolucionária que existia no século 1º d.C., do qual Jesus era um representante", sustenta Aslan, que hoje é professor da Universidade da Califórnia em Riverside.
      O BÁSICO
      A abordagem do escritor é, em grande medida, uma espécie de "retorno ao básico" na pesquisa histórica sobre a figura de Jesus Cristo.
      De fato, um dos primeiros intelectuais a tentar uma interpretação secular para entender quem foi o Nazareno, o alemão Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), já defendia que os objetivos de Jesus eram basicamente políticos.
      Especialistas contam ao menos três grandes fases de "busca pelo Jesus histórico", a mais recente delas nos anos 1980. Um consenso entre os estudiosos parece quase tão distante quanto era no século 19.
      Aslan diz que não há muito mistério sobre o porquê desse aparente fracasso acadêmico. "Fora do Novo Testamento, simplesmente não há nenhum traço de evidências a respeito de Jesus que seja do século 1º d.C.", afirma.
      "Creio que até existe algum consenso, mas ele é muito limitado. Podemos dizer que Jesus era um judeu, que iniciou um movimento para os judeus da Palestina, e que Roma o executou como inimigo do Estado. E é só", diz Aslan. "O que conseguimos fazer é pegar esse pouquinho e colocá-lo no contexto do mundo no qual Jesus viveu, sobre o qual sabemos muita coisa.
      Sempre há a possibilidade de que alguma nova descoberta arqueológica mude esse cenário. Mas por enquanto isso não aconteceu."
      INTERPRETAÇÕES
      Diante de tal pobreza de dados, talvez não seja surpreendente que haja hoje no mercado uma variedade enorme de interpretações sobre Jesus.
      Excetuando a ideia de que o personagem nunca tenha existido, sendo apenas uma figura mitológica inventada pelo apóstolo Paulo ou outro membro da primeira geração de cristãos -o que raríssimos historiadores sérios consideram como uma possibilidade-, uma das visões mais influentes é a esposada pelo ex-padre irlandês John Dominic Crossan.
      Autor de "Quem Matou Jesus?" [trad. André Cardoso, Imago, R$ 60, 268 págs.], Crossan afirma que Jesus teria sido uma versão judaica dos filósofos cínicos gregos. Em outras palavras, um pensador itinerante que atacava as convenções sociais e convidava seus ouvintes a levar uma vida de solidariedade radical ("comensalidade" é um dos termos técnicos), defendendo que o "Reino de Deus" já estava presente entre os membros dessa confraria.
      Outro termo técnico para descrever a posição de Crossan e de outros especialistas é "escatologia realizada", no sentido de que o Jesus histórico pintado por eles não esperava o Juízo Final e a ressurreição dos mortos (e talvez nem a sua própria): a "escatologia", ou seja, a consumação do plano de Deus para o mundo, aconteceria naturalmente entre os que abraçassem a mensagem do Nazareno.
      Opõe-se a essa visão um grande campo de pesquisadores, bastante heterogêneo, para quem Jesus era acima de tudo um profeta apocalíptico, ou seja, alguém que previa -provavelmente "para ontem", ainda durante seu tempo de vida- a intervenção decisiva de Deus na história, libertando o "povo escolhido" de Israel e instaurando uma nova era de justiça e de paz.
      Uma das abordagens mais influentes sob essa perspectiva está em um dos quatro volumes da série, ainda não concluída, "Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico" [trad. Laura Rumchinsky, Imago, 468 págs., esgotado], do padre norte-americano John P. Meier.
      Ao analisar algo que parece ser tão banalmente cristão quanto a oração do Pai Nosso, por exemplo, Meier argumenta que a expressão "Venha a nós o vosso reino" deve ser lida, nos lábios de Jesus, como nada menos que um pedido para que a intervenção apocalíptica de Deus no Cosmos acontecesse o mais breve possível -o "reino" nada mais seria que esse domínio restaurado do Senhor.
      Aslan pende mais para o segundo campo, embora sua ênfase política o distinga de Meier, de quem se declara admirador. "Não acho que eu esteja explorando algum terreno realmente novo na questão", pondera. "Consegui apenas reunir os principais dados e argumentos de uma maneira coerente e que pode ser compreendida pelo leitor não especializado."
      Apesar da modéstia, Aslan teve peito para defender posições controversas mesmo para os padrões da pesquisa sobre o Jesus histórico. Ele vê a célebre "purificação do Templo" (episódio no qual Jesus expulsa cambistas e vendedores de animais do local mais sagrado de Jerusalém) como um ataque político direto à corrupção da elite sacerdotal judaica, aliada a Roma, coisa com a qual muitos outros estudiosos concordam.
      Mas vai além e argumenta que a passagem na qual Jesus diz "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" é, na verdade, uma frase sutilmente subversiva. E parte de uma explicação filológica: o "dai" seria tradução do verbo grego "apodidomi", ou "devolver". Em vez de dizer que é certo pagar imposto para os romanos, tema da frase, Jesus estaria dizendo simplesmente que se deve devolver o dinheiro romano ao imperador e retomar o que pertence a Deus, ou seja, a Terra Santa de Israel.
      Da mesma forma, a ideia de "oferecer a outra face" seria aplicável apenas a irmãos judeus, não a pagãos ocupando Jerusalém, ou a qualquer outro não judeu.
      "O judaísmo era tudo o que Jesus conhecia e pregava. Ele mesmo afirmou que não veio para abolir nem uma só letra da Lei de Moisés", diz Aslan. "O mandamento de amar ao próximo já estava presente no judaísmo, mas valia apenas para membros da comunidade de Israel."
      Pergunto se, sob essa perspectiva, Jesus e outros profetas e revolucionários judaicos do século 1º d.C. (alguns dos quais acabariam expulsando os romanos temporariamente entre 66 d.C. e 70 d.C., até serem esmagados) poderiam ser comparados aos muçulmanos que defendem a jihad hoje.
      "Certamente em nenhum momento Jesus pregou a violência contra não combatentes", afirma Aslan. "Mas, é claro, ao longo da história, sempre houve o uso da religião como arma contra potências consideradas opressoras ou em favor da justiça social."
      REINALDO JOSÉ LOPES, 34, é jornalista, assina o blog "Darwin e Deus" no site da Folha.

      O fio que dá sentido à vida - Maria Rita Kehl

      folha de são paulo
      ARQUIVO ABERTO
      MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
      O fio que dá sentido à vida
      Aldeia guarani-kaiowá, Mato Grosso do Sul, 2013
      MARIA RITA KEHL
      DAMIANA AGRADECEU o modesto socorro que lhe oferecemos e se afastou com a família. É uma mulher miúda, como seus parentes guaranis-kaiowás. No momento, lidera o que restou de sua aldeia: a filha dela, dois adolescentes de idade indefinida e três crianças, além do cachorrinho que só percebi porque ganiu quando alguém pisou nele, no escuro.
      O menino de oito anos segurava uma lança um pouco mais alta que ele; o adolescente maior, uma borduna. Será este talvez todo o arsenal de guerra que ainda possuem. Devem saber que as armas não teriam serventia para enfrentar um pistoleiro. Muito menos um bando. Vulneráveis desse jeito --e ainda resistentes. Até o fim. Que convicção sustenta a valentia deles?
      Ficamos ainda do lado de fora vendo o grupo sumir na escuridão. Percebi que tinham arrastado uma árvore seca, que até eu sou capaz de remover, para simular um bloqueio à porteira de entrada.
      Nosso reforço consistiu em levar lanternas e alguns celulares carregados para que pudessem chamar por socorro --vindo da parte de quem? De nós quatro? Da polícia? --caso os capangas do fazendeiro decidissem cumprir as ameaças que fizeram por três vezes, durante o domingo [10/11].
      Do outro lado da estrada, os faróis dos caminhões iluminavam de passagem os fantasmas dos casebres em que eles viviam antes de entrar na fazenda. Se não era para entrarem de volta na terra que o fazendeiro tomara, por que tocaram fogo nas casas dos índios no acostamento?
      Essa pergunta é a mais fácil de responder: maldade. Para mostrar quem manda. Além de manchar a perfeição monótona da soja, a simples presença de um acampamento indígena na beira da estrada arranha o sentimento de soberania do fazendeiro.
      Não se trata de estética: o esqueleto dos casebres calcinados é muito mais feio do que a presença de gente inofensiva, mas persistente. Vai ver, o que incomoda é justo essa persistência a desafiar a lei do mais forte. A única lei que todos reconhecem na região. Menos os índios.
      A razão dos guarani para permanecer na terra é um pouco mais sofisticada. Eles não admitem abandonar seus mortos. Que por sua vez foram assassinados porque se recusavam a abandonar a terra de seus mortos mais antigos --e assim por diante. O fio que dá sentido à vida deles não se rompe com a morte dos antepassados.
      Ao contrário: os vivos continuam a se relacionar com os que se foram. Continuam ligados não apenas à memória dos mortos, como nós, mas ao terreno onde morreram e foram enterrados, pois ali eles ainda estão. Não se abandona a terra que abriga os corpos dos antepassados, dos companheiros e filhos, dos que morreram de velhice, de doença ou de tiro, ao proteger o mesmo cemitério indígena onde repousam antepassados ainda mais remotos.
      Por isso mesmo a maior maldade que os pistoleiros poderiam ter feito foi sumir com o corpo do cacique Nísio Gomes, no acampamento Guaviry (MS) em 2011, depois de atirarem nele de frente, à queima-roupa. Eles chegaram e chamaram o cacique, que se apresentou de pronto, sabendo que, se fugisse, a família inteira seria atacada.
      O corpo foi jogado na caçamba da caminhonete e nunca se soube para onde foi levado. Mais um motivo para o povo do Guaviry não se mover do lugar onde o sangue ficou misturado com a terra.
      Não entendi ainda a coragem resignada dos guaranis-kayowás de Mato Grosso do Sul. Será que eles não sabem que suas chances são mínimas?
      O que eles reivindicam não é a propriedade, é o pertencimento. Não é a terra "deles", embora saibam que a lei do branco exige papel passado. Não é a propriedade, é a terra à qual eles pertencem.
      Essa língua é mais estrangeira ao capitalista do que a própria língua indígena. A terra não é posse, não se troca por dinheiro, não serve para especular. Serve para você saber quem você é.
      Vincent Carelli, o criador do projeto Vídeo nas Aldeias, chama de martírio a disposição de resistência pacífica dos guaranis-kayowás. Pelo jeito, pretendem levar a briga até o fim.
      A família de Damiana se afasta em direção aos barracos. Um de nós diz "boa-noite", sem pensar. Isso é coisa que se diga a quem não sabe se vai ter dia seguinte?

      Acordo para proteção de florestas é fechado em conferência do clima

      folha de são paulo

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      GIULIANA MIRANDA
      ENVIADA ESPECIAL A VARSÓVIA

      Contrariando a maior parte das expectativas, a 19ª Conferência Mundial do Clima, em Varsóvia, termina neste fim de semana com um resultado prático: o estabelecimento de regras para o pagamento pela proteção de florestas, o chamado Redd+ (Redução de Emissões por Desmatamento).
      Os países chegaram a um consenso sobre a origem do dinheiro, a metodologia para avaliar o resultado e as ferramentas para aumentar a transparência dos dados sobre a conservação. Agora, dizem os países, o Redd+ tem tudo para decolar.
      "Estou orgulhoso dessa conquista concreta", disse o presidente da COP-19, o polonês Marcin Korolec.
      A falta de consenso no assunto era antiga, com interesses conflitantes entre países ricos e pobres e entre as nações a serem beneficiadas.
      Kacper Pempel/Reuters
      Ativistas fantasiados de François Hollande, presidente da França; o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe; Barack Obama e a chanceler alemã, Angela Merkel "buscam" o rumo da segurança climática
      Ativistas fantasiados de François Hollande, presidente da França; o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe; Barack Obama e a chanceler alemã, Angela Merkel "buscam" o rumo da segurança climática
      Foram mais de sete anos até se chegar ao acordo de ontem, que foi aprovado em uma plenária cheia de discursos otimistas e encerrada com uma salva de palmas.
      As propostas aprovadas estão bem próximas daquilo que o governo brasileiro havia anunciado como os objetivos do país.
      A origem dos recursos era um dos grandes freios das discussões. Foi acertado que os projetos de redução de emissões por desmatamento poderão usar diversos tipos de capitalização, mas o Fundo Verde do Clima --criado na COP de 2010 para servir como canal de financiamento-- deverá ter um "papel-chave" nesse processo.
      Segundo os negociadores brasileiros, a definição do Fundo Verde do Clima como um dos pilares do Redd+ garante a "continuidade dos recursos destinados aos projetos de conservação".
      A capitalização para o fundo só começa em 2014, mas o Redd+ já conseguiu recursos significativos. Os governos dos EUA, da Noruega e do Reino Unido anunciaram um pacote de US$ 280 milhões para projetos de conservação.
      Os países também concordaram que as nações que queiram receber recursos pelo mecanismo devem atender recursos mínimos de transparência e de rastreabilidade dos resultados de suas ações.
      Ficou decidido que os países terão de usar referenciamento por satélite para provar os resultados.
      Além disso, os mecanismos de monitoramento também deverão ser submetidos a um painel internacional, que precisará referendá-lo.
      VENDA, NÃO
      A polêmica sobre o chamado "offsetting" --um país poder "comprar" a redução de emissões causada pelas ações de preservação de um outro-- foi empurrada para frente.
      O texto não prevê que o carbono não emitido pelo desmatamento possa ser comercializado. Mas, como também não há proibição explícita, é possível que a venda seja autorizada em negociações futuras sobre os mecanismos de mercado da convenção da ONU.
      EUA e outros países desenvolvidos querem poder comprar esses créditos. Isso permitiria que, se eles não conseguissem cumprir metas de redução de emissões, poderiam compensar comprando créditos de emissões evitadas pela proteção de florestas em outros países.
      A delegação brasileira é contra essa ideia. "Isso só faria com que os países ricos ficassem menos comprometidos em reduzir suas emissões. Em vez de evitarem por conta própria, comprariam os esforços de outros países."
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      O MECANISMO
      O Redd+ (Redução de Emissões por Desmatamento) é um mecanismo de compensação financeira pela conservação de florestas. Apesar de já ter sido usado de maneira informal em projetos de conservação florestal para compensar emissões de carbono, ainda não tinha uma regulamentação aceita entre todos os países.
      O QUE FALTAVA?
      Faltavam regras estabelecidas entre todos os países que unificassem o que é permitido dentro do mecanismo Redd+ e que permitissem que as nações ricas financiassem a manutenção de mata em pé pelos países em desenvolvimento com florestas dentro de seus territórios
      O QUE FOI ACERTADO
      As compensações financeiras em retribuição à conservação de florestas serão coordenadas em grande parte pelo Fundo Verde do Clima
      O pagamento será feito de acordo com resultados de conservação de cada país, que devem ser comprovados com dados de satélite
      A princípio, os países ricos não poderão usar o financiamento dado aos países em desenvolvimento para compensar emissões de poluentes que superem suas metas, mas essa possibilidade está em aberto
      A jornalista GIULIANA MIRANDA viajou a convite da Deutsche Welle Akademie