folha de são paulo
ANÁLISE
Maior legado de Lessing são as perguntas que ela deixa
Penúltima obra da escritora reflete sobre o feminino no mito da criação
NOEMI JAFFEESPECIAL PARA A FOLHA
"11 de Setembro não foi uma coisa assim tão extraordinária" e "Cristo!", talvez sejam as duas frases mais conhecidas pronunciadas pela britânica Doris Lessing.
A primeira não precisa de contextualização. A segunda foi dita assim que ela soube ter ganhado o Nobel de Literatura, em 2007. Descia do táxi, aparentemente vindo do supermercado; carregava compras e, ao saber da notícia, além de dizer o famoso "Cristo!", ainda se preocupou em pagar o motorista.
Os jornalistas imploravam por cinco minutos, que ela, reticentemente, reduziu para um. "Esses suecos não têm tradição literária, não têm nada para fazer, então ficam distribuindo prêmios", disse.
Pode-se questionar a literatura de Lessing, especialmente pela variedade de gêneros que ela contempla, em mais de 50 livros; pode-se discordar das declarações controversas. Mas dificilmente alguém poderá criticar a autenticidade com que ela falava, dava entrevistas e, principalmente, escrevia.
Isso não é pouco, quando tantos ganhadores de Nobel soam como uma máquina de repetir respostas. Se não bastasse, há grandes livros em sua obra inclassificável.
Muitos consideram sua obra como pioneira de certo feminismo e de discursos anti-racistas, principalmente com seus primeiros dois sucessos: "A Canção da Relva" e "O Carnê Dourado". Ela recusava esse rótulo.
Outros a consideram mestre da ficção científica, por causa da série "Canopus". Ela disse mal saber que escrevia algo do gênero. Ainda outros a chamam de guru sufista, o que ela igualmente negava.
Odiava a mãe, que a obrigou, vivendo na África --onde passou a infância-- a uma vida regrada e protegida.
Foi proibida de voltar ao Zimbábue, em função de sua militância contra o apartheid. Também não tinha muita certeza sobre sua própria competência como mãe.
Como se percebe, não se encantava facilmente com quase nada. A inocência passava longe, tanto da pessoa quanto da sua obra.
Seu penúltimo livro, "A Fenda", é um espécie de fábula pré-histórica contada por um historiador romano. Uma mitologia em que, num mundo dominado por mulheres, um homem teria, inesperadamente, nascido de uma fenda nas rochas.
E se nossos mitos de criação tivessem origem feminina? E se o mundo ocidental não fosse uma continuação do mundo dos romanos?
Morta ontem, Doris Lessing não pode mais responder. Mas, como essas, deixou muitas outras perguntas. É o melhor que alguém pode deixar.
Morre a escritora Doris Lessing, vencedora mais velha do Nobel de literatura
DE SÃO PAULO
Morreu, aos 94 anos, a escritora britânica Doris Lessing, de acordo com seu agente e amigo pessoal, Jonathan Clowes.
"Ela era uma escritora maravilhosa com uma mente fascinante e original. Foi um privilégio trabalhar para ela e vamos sentir imensamente sua falta", declarou, acrescentando que Lessing morreu na madrugada deste domingo, "em paz". Ele não revelou a causa da morte.
Ganhadora do Nobel de literatura de 2007, ela foi autora de mais de 50 novelas, entre as quais "O Carnê Dourado" (1962) e "A Canção da Relva" (1950).
A autora morava há mais de 25 anos na mesma rua do londrino bairro de West Hampstead. Foi lá que recebeu a notícia de que havia sido vencedora do Nobel.
Ela recebeu o prêmio em janeiro de 2008 também na cidade, após ter se declarado muito doente para viajar à Suécia para a cerimônia oficial de entrega ocorrida no mês anterior.
Doris foi a pessoa mais velha a ser agraciada com o laurel na área de literatura e a 11ª mulher a ganhar a distinção. Atualmente, esse número aumentou para 13.
"Tenho 88 anos e eles não podem dar o Nobel para um morto, então acho que eles pensaram que era melhor me dar logo antes que eu batesse as botas", brincou na ocasião.
O prêmio se uniu a outros que já havia recebido ao longo da carreira, como o o Príncipe das Astúrias em 2001.
| Toby Melville - 30.jan.2008/Reuters | |
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A autora britânica Doris Lessing discursa após receber o prêmio Nobel de literatura, em 2008 |
VIDA
Doris May Tayler, seu nome de batismo, nasceu em 22 de outubro de 1919 em Kermanshah, na antiga Pérsia (hoje Irã). Ela era filha de um bancário e ex-capitão do exército britânico e de uma enfermeira.
Em 1925, a família se mudou para o sul de Rodésia (o Zimbábue atual), onde seu pai comprou uma fazenda que não frutificou e sua mãe se esforçou para viver como uma dama georgiana, o que teve um impacto pernicioso em sua filha, que a autora descreveu na primeira parte de sua autobiografia, "Debaixo da Minha Pele" (1994).
Lessing, que foi internada em um colégio de freiras, abandonou a educação formal aos 14 anos e teve vários empregos, ao mesmo tempo em que começou a experimentar na literatura.
Após trabalhar como telefonista em Salisbury (atual Harare), em 1939, com 19 anos se casou com o funcionário Frank Charles Wisdom, com quem teve um filho, John, e uma filha, Jean, e de quem se divorciou em 1943.
Dois anos depois se casou com Gottfried Lessing, uma exilado judeu-alemão a quem tinha conhecido em um grupo literário marxista, e com quem teve outro filho, Peter.
Após divorciar-se de Lessing, em 1949 a escritora se transferiu ao Reino Unido com o filho mais novo, deixando na África do Sul os outros dois ao concluir, segundo explicou anos depois, que não queria desperdiçar seu intelecto no trabalho de ser mãe.
Lessing militou no Partido Comunista britânico entre 1952 e 1956 e participou de campanhas contra as armas nucleares. Sua crítica ao regime sul-africano lhe custou o veto de sua entrada ao país entre 1956 e 1995, e também a Rodésia em 1956.
Uma das escritoras mais influentes do século 20, ela era ícone de marxistas, anticolonialistas, militantes anti-apartheid e feministas.
Grande parte de sua obra narrativa e poética está baseada em sua própria experiência na África e na Inglaterra, com personagens femininos sensíveis e perceptivos que se adentram em questões existenciais e exploram as contradições.
Além da crítica social de seus primeiros textos, considerados comunistas, a escritora também se dedicou à ficção científica com sua série "Canopus em Argos", realizada entre 1979 e 1983 e inspirada no sufismo.
Outros livros são "A Terrorista" (1985), "O Quinto Filho" (1988) e os que escreveu sob o pseudônimo de Jane Somers, como "O Diário de uma Boa Vizinha" (1983), a fim de demonstrar as dificuldades para publicar que enfrentavam os escritores novatos.
Apesar de ter rejeitado ser porta-voz do feminismo da época, que considerava um simplificação da relação entre homens e mulheres, sua obra mais famosa, "O Carnê Dourado", de marcado tom autobiográfico, se transformou em um clássico da literatura feminista por seu estilo experimental e sua análise da psique feminina.
Lessing, que em 1999 rejeitou o título de Dama do Império Britânico concedido pela rainha Elizabeth 2ª, porque "já não há nenhum império", embora tenha aceitado outro título menor, trabalhou até o final de sua vida escrevendo artigos, romances, relatos e poesia.
13 MULHERES DESDE 1901
Desde sua criação, em 1901, 106 prêmios Nobel de Literatura foram entregues, apenas 13 para mulheres.
Veja a lista das vencedoras:
2013 - Alice Munro (Canadá)
2009 - Herta Müller (Alemanha)
2007 - Doris Lessing (Grã-Bretanha)
2004 - Elfriede Jelinek (Áustria)
1996 - Wislawa Szymborska (Polônia)
1993 - Toni Morrison (EUA)
1991 - Nadine Gordimer (África do Sul)
1966 - Nelly Sachs (Suécia)
1945 - Gabriela Mistral (Chile)
1938 - Pearl Buck (EUA)
1928 - Sigrid Undset (Noruega)
1926 - Grazia Deledda (Itália)
1909 - Selma Lagerlöf (Suécia)
Vencedores do Nobel de Literatura no século 21
2013: Alice Munro (Canadá)
2012: Mo Yan (China)
2011: Tomas Tranströmer (Suécia)
2010: Vargas Llosa (Peru)
2009: Herta Müller (Romênia-Alemanha)
2008: J.M. Le Clézio (França-Ilhas Maurício)
2007: Doris Lessing (Pérsia-Reino Unido)
2006: Orhan Pamuk (Turquia)
2005: Harold Pinter (Inglaterra)
2004: Elfriede Jelinek (Áustria)
2003: J.M. Coetzee (África do Sul)
2002: Imre Kertész (Hungria)
2001: V.S. Naipaul (Trinidad e Tobago-Reino Unido)
Com EFE e FRANCE PRESSE