folha de são paulo
Os mitos da caverna
Uma espiadinha na reclusão de Salinger & Co.
ALEXANDRE RODRIGUES
RESUMO A reclusão tem sido um estilo de vida abraçado ao longo do tempo por grandes escritores, do japonês Saigyo Hoshi, no século 12, ao brasileiro Rubem Fonseca. Biografia de J.D. Salinger e novo romance de Thomas Pynchon lançam luz na vida e obra dos escritores, dois dos mais folclóricos eremitas do mundo das letras.
Recluso mesmo era Saigyo Hoshi (1118-90). Patriarca da literatura reclusa, movimento que prosperou no Japão medieval, o soldado que largou a farda aos 22 anos e foi escrever poemas no campo acreditava que o escritor devia viver em isolamento para refletir sobre as restrições da vida normal nas cidades e sobre a natureza.
De maneira menos radical, a tradição sobreviveu como a opção de alguns gigantes da literatura depois da fama. A poeta americana Emily Dickinson (1830-86) passou seus últimos 20 anos em casa. O francês Marcel Proust (1871-1922) não só ficou 13 anos isolado, tempo em que escreveu "Em Busca do Tempo Perdido", como nos últimos três nem sequer saiu do quarto.
Entre os brasileiros, Dalton Trevisan, Raduan Nassar e Rubem Fonseca --este prestes a pôr na praça seu 28º título, "Amálgama", pela Nova Fronteira-- vivem quase no anonimato. Mas é provavelmente na percepção da obra de dois norte-americanos que a imagem eremítica mais colou. Ao falar de J. D. Salinger (1919-2010) e Thomas Pynchon, parece quase impossível dispensar o aposto "recluso" e suas variantes.
Os lançamentos de "Salinger" [Simon & Schuster, 720 págs., R$ 87], biografia do autor de "O Apanhador no Campo de Centeio", e "Bleeding Edge" [Penguin, 478 págs., R$ 88,10], novo romance de Pynchon, deixam em evidência os dois ermitões. Salinger viveu 55 anos isolado do mundo. Pynchon vai além: há 60 anos não é fotografado e por mais de uma década duvidou-se até de sua existência.
Não é surpresa que o isolamento seja o fio condutor de "Salinger", biografia assinada pelo escritor David Shields e pelo roteirista Shane Salerno, diretor do documentário de mesmo nome que estreou nos EUA em setembro. Filme --que deve virar cinebiografia com atores-- e livro --a sair no Brasil em janeiro, pela Intrínseca-- se completam num conjunto multimídia que vem irritando fãs do autor pelo foco em sua vida pessoal.
Nascido em 1919, filho de um judeu e de uma católica convertida ao judaísmo, criado na classe média de Nova York, Jerome David era mais um autor jovem e promissor quando os japoneses atacaram a base de Pearl Harbor, em 1941.
Decidiu se alistar no Exército e acabou na linha de frente do desembarque das tropas aliadas na Normandia no Dia D, 6 de junho de 1944. Tomou parte de outras batalhas importantes e presenciou a libertação do campo de concentração de Dachau, na Alemanha. Terminou o conflito internado em um hospital psiquiátrico com transtorno de estresse pós-traumático.
Seus contos, até então algo frívolos, passaram a refletir o vazio dos jovens que chegaram pós-Guerra. Publicada pela revista "New Yorker" em 1948, a história "Um Dia Ideal para os Peixes-Banana", cujo personagem principal, Seymour Glass, era um traumatizado de guerra, fez com que o escritor fosse visto como a voz de sua geração.
Seu único romance, "O Apanhador no Campo de Centeio", o transformaria de autor "cult" em celebridade. Lançado em 1951, o livro, um libelo contra o sistema protagonizado pelo adolescente rebelde Holden Caulfield, já vendeu mais de 65 milhões de cópias e influenciou multidões: de escritores como Tom Wolfe, que dá depoimento no filme e no livro, a figuras como Mark Chapman, o assassino de John Lennon, preso na cena do crime com um exemplar do romance.
PASSATEMPO O Brasil não ficou incólume à rebeldia de Holden. Fãs do livro, três jovens resolveram traduzi-lo como passatempo. A versão foi publicada em 1965 pela Editora do Autor, de Fernando Sabino, Rubem Braga e Walter Acosta, este ainda hoje à frente da casa.
Por pouco, o livro não foi batizado "A Sentinela do Abismo". "Eu e meus cotradutores (Alvaro Alencar e Antonio Rocha) achamos que não ia funcionar no Brasil a tradução literal de The Catcher in the Rye'", recorda Jorio Dauster. Da agente de Salinger, porém, chegou a ordem: nada de mexer no título.
"Como nessa época já era impossível ter contato direto com o eremita de New Hampshire, fomos obrigados a ceder. Anos mais tarde, descobri os desatinos que tinham sido cometidos com o título --por exemplo, Uma Agulha no Palheiro', em Portugal, e El Cazador Oculto', na Espanha-- e dei toda razão ao Salinger", diz.
Mas, se a história de Holden Caulfield cativava leitores e fez do escritor um homem rico, a invasão de sua vida pessoal logo começou a perturbá-lo. Salinger ainda lançaria três livros, mas em 1955 deixou Nova York, iniciando seu exílio na pequena cidade de Cornish. A partir de 1965, quando publicou na "New Yorker" o conto "Hapworth 16, 1924", fez-se seu silêncio.
Shields e Salerno garantem ter as respostas para o que aconteceu.
Mas boa parte das alegadas revelações não é propriamente novidade. Biografias como "Em Busca de J. D. Salinger", do inglês Ian Hamilton (processado pelo escritor), e os livros de Margaret Salinger, sua filha, e da romancista Joyce Maynard, sua ex-paquera, já diziam que ele se dedicara à filosofia religiosa vedanta, só comia alimentos crus e vivia amargurado pelas lembranças da guerra.
O que "Salinger" conta de novo é que, ao contrário das lendas, ele não era propriamente um malucão solitário. Frequentava cafés, se relacionava com os vizinhos, ia ao cinema, tinha amigos. E escrevia. Uma "revelação" importante, ainda a confirmar, é de que ele teria deixado cinco livros prontos, a serem publicados entre 2015 e 2020.
Em termos literários, pouco há a acrescentar. A preferência é por informações que beiram a fofoca, com espaço até para uma especulação sobre o fato de que o escritor teria apenas um testículo.
Houve críticas e os autores responderam. "Meu objetivo não é derrubar Salinger, mas mostrar as fontes (de inspiração) horríveis da arte e os custos sem fim de uma guerra sem fim", defendeu-se Shane Salerno, em um artigo para a "Esquire". "Ele não era um deus. Era só um homem. Esse é o ponto."
PSEUDÔNIMO Como Salinger, Thomas Pynchon evita a imprensa. Sabe-se que nasceu em 1937, serviu a Marinha e estudou na Universidade de Cornell. Suas poucas fotos conhecidas, mostrando um garoto dentuço, foram feitas há décadas. Por muito tempo não se sabia onde vivia e cogitou-se até que Thomas Pynchon seria um pseudônimo adotado por J. D. Salinger.
Hoje sabe-se que ele mora em Nova York e é casado com a própria agente, Melanie Jackson, com quem tem um filho. À falta de detalhes pessoais, os livros têm sido a chave para sua visão do mundo.
Sua obra pode ser dividida entre romances curtos com trama mais ou menos definida e protagonistas claros, caso de "V.", "Vineland" e "Vício Inerente", e os caudalosos e experimentais, cheios de camadas, como os catataus "O Arco-íris da Gravidade" e "Contra o Dia".
"V." (1963), seu primeiro romance, trazia elementos que se tornariam sua marca: ironia, humor negro, sociedades secretas, enciclopedismo, citações obscuras e personagens de nomes esquisitos. Dez anos depois, com "O Arco-Íris da Gravidade", primeiro grande romance moderno sobre a paranoia, Pynchon foi reconhecido como um mestre.
Apesar de ele ser considerado hermético, seus leitores respondem com adoração. Os mais dedicados criaram na internet um banco de dados(pynchonwiki.com).
"Pynchon é um dos grandes nomes da ficção norte-americana do final do século 20", opina Paulo Henriques Britto, um de seus tradutores no Brasil. "A maneira como ele incorpora elementos da baixa cultura e os combina com uma técnica sofisticada permanece única."
"Bleeding Edge", nono livro do autor, atualiza temas caros a ele, tendo ao fundo o mais importante evento do século até agora: o 11 de Setembro. A protagonista do romance, Maxine Tarnow, uma examinadora de fraudes, descobre, ao investigar o empresário de tecnologia Gabriel Ice, que o atentado às Torres Gêmeas não tem a ver com fundamentalismo, mas com uma conspiração envolvendo geeks, hackers e a máfia russa.
As tramas paralelas típicas de Pynchon estão de volta. Seu temor quanto aos poderes da tecnologia também --aqui dirigido contra a internet. Lançado nos EUA em setembro e sem previsão de publicação no Brasil, "Bleeding Edge" tem sido saudado como um dos melhores livros do autor e foi indicado ao National Book Award.
"O recluso tende a ser cada vez mais uma figura de exceção com a incorporação da literatura no circuito das celebridades, com os festivais literários e demais nexos com o mundo do entretenimento massivo", opina Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A internet, porém, embaralhou o conceito de recolhimento: "O autor pode viver num isolamento físico e manter-se conectado".
Nos últimos anos, Pynchon tem se tornado mais visível.
Rompeu o silêncio em 2006 com uma carta de apoio ao inglês Ian McEwan, acusado de plágio no romance "Reparação". Chegou a fazer duas "aparições" na série de TV "Os Simpsons", ambas com um saco de papel na cabeça, gravou sua voz num filmete para promover "Vício Inerente" --que ganhará no ano que vem versão cinematográfica por Paul Thomas Anderson-- e até deu uma breve declaração à CNN (não levada ao ar, mas lida por um narrador). Nela, ironizou: "Recluso' é um código usado por jornalistas que significa: Não gosta de falar com repórteres'".
Uma peça publicitária feita pela editora para "Bleeding Edge" debocha da sua lenda. Nela, um jovem de óculos escuros vaga por Nova York vestindo uma camiseta com os dizeres: "Olá, eu sou Tom Pynchon".