O trivial maravilhoso
Sentidos do prosaico na obra de Luigi Ghirri
LORENZO MAMMÌRESUMO A obra do italiano Luigi Ghirri (1943-92) identifica as sutilezas de um cotidiano transformado pela modernização acelerada dos anos 1960. Voltadas para a representação do banal, suas fotos, que terão mostra em São Paulo, buscam retratar a nova paisagem dos territórios nem urbanos nem rurais do pós-Guerra.
No ensaio incluído no catálogo da exposição de Luigi Ghirri que agora chega ao Brasil, Quentin Bajac alude à "grande desconstrução do meio fotográfico realizada na década de 1960, de que o contexto italiano foi na Europa o ator principal" e cita, entre outros, as fotografias sobre espelho de Michelangelo Pistoletto e o filme "Blow Up" (1966), de Michelangelo Antonioni.
Vale ampliar o quadro de referência: a discussão sobre a fotografia se insere num processo de reconstrução dos códigos narrativos e descritivos que interessava a toda a cultura italiana da época. Estava-se saindo da experiência neorrealista, que tentara o resgate de um país arcaico e pobre (bem diferente daquele que a retórica anterior à guerra glorificava), mediante procedimentos narrativos modernos e altamente sofisticados, tanto na literatura como no cinema.
O crescimento econômico que culminou nos anos de 1960, a americanização acelerada da sociedade, o desaparecimento rápido de tradições culturais seculares, quando não milenárias, tornou aqueles procedimentos insuficientes.
As estratégias de representação precisavam ser reformuladas, para adquirir um alcance maior e, ao mesmo tempo, tornar-se mais transparentes. Não era apenas questão de novas realidades a serem representadas: a própria relação entre realidade e representação tornava-se problemática, sob o impacto dos meios de comunicação de massa.
Por outro lado, a modernização não se instalava sobre um terreno quase virgem, como aconteceu na América. Para a Europa, e para a Itália especialmente, o arcaico não é só o atrasado mas também o antigo. Uma nova rede de imagens se sobrepunha a uma paisagem urbana e rural cuja legibilidade já era muito consistente, depurada pela experiência de séculos, mesmo nas camadas populares.
A consciência moderna permitia uma nova leitura do mundo tradicional; mas o mundo tradicional também, com seu patrimônio de imagens, suas sabedorias artesanais, seu patrimônio de formas e objetos, enfim, sua história, permitia uma leitura diferente, mais matizada e problemática, do sistema moderno de produção e troca.
O neorrealismo, nesse quadro, não foi repudiado. Antes, foi virado do avesso, fazendo referência constante a seus mecanismos internos, como para mostrar as linhas de costura. Surgiram, num período relativamente curto de tempo, o cinema de Antonioni, Fellini e Pasolini, a narrativa de Italo Calvino, a música metalinguística de Luciano Berio (a partir, não por acaso, das "folk songs"), a arquitetura tipológica de Aldo Rossi, a arte povera.
Todas essas manifestações artísticas buscaram meios linguísticos mais reflexivos para lidar com uma realidade complexa em que traços culturais contrastantes conviviam, mas não renunciaram ao contato com essa realidade.
Todas se caracterizaram pela tensão entre modernidade e tradição, novos códigos e escavação quase arqueológica de camadas de significado que se sobrepunham sem se encobrirem totalmente.
A ressignificação do mundo se apoiava sobre um fundo de memórias. O grande desenvolvimento das pesquisas semiológicas, tendo Umberto Eco como figura de maior ressonância internacional (mas Roland Barthes também foi muito lido na Itália), dialogou com grande parte dessa produção, garantindo uma verificação contínua entre teoria e praxe artística.
INFLEXÃO
Na obra de Luigi Ghirri, que pertence à geração imediatamente seguinte à que descrevi, tais questões alcançam, no que diz respeito ao meio fotográfico, desenvolvimento pleno mas também um ponto de inflexão.
Fotografias de Luigi Ghirri
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Estúdio de Giorgio Morandi (1989-1990), em Bolonha
O processo de transformação já não tem o impulso de outrora: o moderno começa a envelhecer, o antigo já não é um fundo compacto, mas uma substância que transpira entre as malhas não tão cerradas da modernidade. Mais que a energia propositiva e rebelde, passa a valer a sutileza capaz de identificar as resistências, as contaminações, os pontos de sutura num panorama já transformado, em que novidade e obsolescência se fundem, às vezes, no mesmo objeto.
Quando Ghirri fotografa plantas recortadas em formas geométricas ou dispostas simetricamente no espaço exíguo entre uma grade e um muro de concreto, ou cadeiras de jardim no espaço diminuto da varanda de uma casa pequeno-burguesa de periferia, ele parece buscar, na terra de ninguém que cresce desmedidamente entre as cidades históricas e o campo, o aflorar de sentidos antigos: a ordem cósmica do jardim à italiana, traduzido em arranjo doméstico; a "joie de vivre" do subúrbio impressionista homogeneizada por um piso de granito industrial.
O que o fotógrafo registra é a persistência dos homens em qualificar os espaços, atribuir valores às coisas, transformá-las em signos. E esses signos, por baratos e ingênuos que sejam, individualmente, se combinam em cadeias nem sempre intencionais, mas que sempre os tornam mais ricos.
O lugar de eleição para que tal combinação se torne legível, se não decifrável, é o enquadramento fotográfico. Em Ghirri é sempre frontal, a ponto de o espaço representado parecer tão plano como uma página ou um mapa. A luz é uniforme, seja aquela leitosa da planície do rio Pó, ou a dourada de Capri e do litoral da Puglia.
Ghirri não se pauta pela poética do momento decisivo, pelo esforço de resumir no instante o significado inteiro de uma ação. É fotógrafo dos tempos longos, das permanências: na ação humana, interessam-lhe os sedimentos, aquilo que se depositou e já não tem mais sujeito -a cultura, enfim, enquanto patrimônio coletivo de significados.
A sensibilidade à luz é, de fato, um grande trunfo de sua arte. Nos tempos longos da narrativa ghirriana, a luz é o tempo longuíssimo, o que unifica, como um campo linguístico mais geral, a colagem e superposição contínua dos signos.
Longuíssimo, mas não imóvel. As fotos justamente famosas de Versalhes, por exemplo, foram realizadas com meios simples e sem manipulação na impressão. Essencial foi esperar o momento e as condições atmosféricas exatas em que o ambiente adquirisse a aparência irreal de postal colorido.
A vida imita não a arte, mas a imagem barata, de uso cotidiano. Toda imagem de Ghirri é releitura de outras imagens, não só quando fotografa outras fotos, mapas, propagandas, maquetes mas também ao retratar paisagens ou edifícios.
Atrás de cada enquadramento há inúmeras imagens que, de tão repetidas, se tornaram banais: cartões-postais, decorações em "trompe-l'oeil" de palácios antigos (não as obras-primas, mas a pintura menor, quase artesanal), cartazes de agências de turismo, suvenires em gesso ou plástico.
Esse repertório comum, aparentemente inexpressivo, Ghirri o subverte, conferindo-lhe uma intensidade inesperada. Suas imagens, quando vistas pela primeira vez, são reconhecíveis, como se já nos pertencessem. Ao mesmo tempo despertam uma sensação de estranhamento, como se aquilo que é excessivamente familiar se tornasse, por isso mesmo, enigmático.
Em seus numerosos escritos, Ghirri insiste sobre dois pontos: o primeiro é a transformação da realidade em imagem, como se o mundo estivesse se tornando uma grande fotografia.
Emblema disso é a famosa imagem da Terra vista do espaço, realizada durante a viagem da Apollo 11 à Lua, em 1969. Ela é, para Ghirri, a foto das fotos, aquela que contém potencialmente todas as outras. Ele a reencontra e a reproduz em 1978 numa sinalização em Lido de Spina, pequeno balneário no delta do rio Pó.
Não é uma brincadeira sem intenção: se o mundo inteiro é um signo, também todo signo, pelas infinitas relações que entretém com todos os outros, é o mundo. A imagem da Terra tirada da nave e aquela pendurada no poste são dois polos de uma cadeia ininterrupta de significados. Uma não é mais real do que a outra.
O segundo ponto focal da reflexão de Luigi Ghirri é a representação da nova paisagem.
Esse termo define especialmente aqueles espaços nem urbanos nem rurais (periferias que se esgarçam em direção ao campo, regiões agrícolas atravessadas por rodovias e já contaminadas por complexos industriais e comerciais), cuja existência se tornou sempre mais evidente e invasiva a partir do pós-Guerra. Certamente, não era uma questão só de Ghirri, nem apenas italiana, muito embora na Itália, pelo valor icônico de que a paisagem se revestia anteriormente, ela fosse mais pungente.
A esse respeito, Ghirri reconhece sua dívida com a nova fotografia de paisagem norte-americana: William Eggleston, Stephen Shore. Mas, atrás deles, sua referência principal declarada é o realismo enxuto de Walker Evans.
Pode surpreender, num fotógrafo interessado na fotografia como signo, essa admiração incondicional por um artista marcado pela busca de um contato direto e despojado com os homens e as coisas.
Para Ghirri, porém, não vale aquilo que a doutrina moderna do simulacro defende: o mundo das imagens e dos signos não é um substituto do mundo real.
Ao contrário, as coisas são tão mais reais quanto mais carregam significados, quanto mais são marcadas por investimentos afetivos. Olhar para os hieroglíficos de que a realidade se compõe (o termo é do próprio Ghirri) significa olhar para a própria realidade, em suas infinitas articulações.
Nota: Este texto foi adaptado pelo autor a partir de ensaio escrito originalmente para o catálogo da mostra de Luigi Ghirri a ser inaugurada no Instituto Moreira Salles de São Paulo no próximo dia 23.
LORENZO MAMMÌ, 56, é professor do departamento de filosofia da USP, crítico de arte e de música.
LUIGI GHIRRI (1943 - 92), fotógrafo italiano.