domingo, 17 de novembro de 2013

Hoje suspeitos, fiscais e vereadores fizeram parte da CPI do IPTU

MÁFIA DO ISS
Ronilson Rodrigues, investigado no esquema de desvio de ISS, ajudou a 'elucidar' falhas, afirma relatório de 2009
Quatro anos depois, auditores sugerem em escutas que pagaram propina aos vereadores que os interrogaram
GIBA BERGAMIM JR.FOLHA DE SÃO PAULOOs auditores fiscais suspeitos de integrar a máfia do ISS ajudaram a "elucidar" as falhas na arrecadação de impostos na cidade.
A conclusão é da CPI do IPTU, comandada em 2009 pelos vereadores Antonio Donato (PT) e Aurélio Miguel (PR).
São esses mesmos auditores, suspeitos de causar um rombo de R$ 500 milhões aos cofres públicos, que agora dizem ter dado dinheiro aos respectivos parlamentares, segundo investigação da Promotoria e da prefeitura.
Donato --que até a semana passada era secretário de governo, braço direito do prefeito Fernando Haddad (PT)-- e Miguel comandaram a comissão que buscava revelar falhas que reduziam a arrecadação de IPTU.
Havia à época a suspeita de que empreendimentos imobiliários de grande porte não pagavam o imposto.
Na condição de testemunhas estavam os auditores fiscais Ronilson Rodrigues e Eduardo Horle Barcellos, que segundo a Promotoria, acumularam junto com outros dois auditores R$ 80 milhões obtidos por meio de propina.
A máfia do ISS daria a construtoras descontos no ISS em troca de pagamentos.
Em seu depoimento naquele ano, Rodrigues disse que era dono de um "apartamentinho" na Vila Mariana --segundo a Promotoria, a quadrilha liderada por ele acumulou imóveis e carros de luxo nos últimos anos.
Barcellos disse na semana passada que, de 2011 até o ano passado, dava um pagamento mensal de R$ 20 mil para Donato --valor pago em dinheiro no gabinete do parlamentar, diz Barcellos. Donato pediu demissão depois disso.
O mesmo auditor disse que Ronilson, que era chefe da Receita no município até 2012, lhe confidenciou que deu "muito dinheiro" a Miguel.
APARTAMENTINHO
Trechos do relatório final da CPI assinado por Donato chamam de "elucidativo" o depoimento de Ronilson Rodrigues, quando ele explica os critérios usados para avaliar um imóvel.
Segundo Rodrigues, um luxuoso imóvel poderia ter a mesma base de cálculo de IPTU de uma modesta residência, de acordo com os parâmetros usados pela Secretaria de Finanças à época.
Para explicar, tentou mostrar ser uma pessoa de poucas posses ao comparar seu patrimônio ao do banqueiro falido Edemar Cid Ferreira.
"Realmente, para você ter uma ideia, o imóvel do dono do Banco Santos ou o meu apartamentinho na Vila Mariana, se chega a um nível de padrão em que ele não cresce [valoriza] mais", disse.
A mesma CPI ouviu Hussain Aref Saab, ex-diretor do Aprov que é investigado por enriquecimento ilícito, após a Folha revelar que ele comprou 106 imóveis durante a gestão Serra/Kassab.
Miguel diz que "graças à CPI", foram evitadas perdas de "R$ 350 milhões na arrecadação". No ano passado, ele foi acusado de receber dinheiro de construtoras para ajudar a intermediar a liberação de empreendimentos, como shoppings, irregulares na prefeitura e tirar os nomes delas do relatório final da CPI.
"Quando os auditores foram depor, eles eram vistos como profissionais respeitados. Nunca se imaginou esses esquemas de corrupção", disse o ex-vereador Cláudio Fonseca (PPS), que também era integrante da CPI.
Se Donato era considerado sereno em seus questionamentos, Miguel usava tom incisivo nas perguntas, segundo alguns depoentes. Como na pergunta feita a Barcellos: "Se há problema no IPTU, fico imaginando no ISS. Deve ser uma loucura o que nós perdemos em arrecadação".
Os dois parlamentares negam ter recebido qualquer quantia dos auditores.

    Marcelo Leite

    folha de são paulo
    Desastre amazônico
    Desmate aumentou em termos percentuais, não tanto no valor absoluto, mas governo se atrapalhou
    Um desastre. Não merece outra descrição o processo pelo qual veio a público a péssima notícia de que aumentou 28% a taxa de desmatamento na Amazônia neste ano.
    A divulgação desse dado sempre foi traumática para o governo. Como ocorre em geral em novembro, coincide com a época em que se realizam as rodadas anuais de negociação internacional sobre a mudança do clima. Se a taxa sobe, queima o filme da delegação brasileira.
    Na próxima terça-feira, por exemplo, começa o segmento de alto nível --quer dizer, com a presença de ministros de Estado-- da reunião que teve início na semana passada em Varsóvia, apelidada de COP-19.
    O índice anual de desmatamento é calculado pelo sistema Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Ele se baseia em centenas de imagens de satélite, mas depende de laboriosa interpretação. Embora boa parte do processamento hoje seja digital, a palavra final cabe a especialistas humanos.
    O Inpe, órgão federal vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, havia recebido a determinação, como de hábito, para fechar a conta do Prodes antes da COP. Assim se fez. Com a demora na divulgação da cifra, porém, espalhou-se a impressão de que o Planalto estava enrolando para não passar vergonha em Varsóvia.
    Se foi mesmo essa a motivação --mais uma aplicação da Lei de Ricupero (o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde)--, alguém pisou na bola. Tentar esconder informação em Brasília sempre é um lance arriscado.
    Saiu primeiro o jornal "O Globo", na terça-feira, com a informação de que haveria aumento ("até 20%"). Na quinta, o Blog do Kennedy (Alencar) escancarou o percentual correto de incremento: 28%.
    A área desmatada tinha saltado de 4.571 km², no período de observação agosto/2011-julho/2012, para 5.843 km² (agosto/2012-julho/2013). Ainda assim, é o segundo menor valor desde o início da série histórica, em 1988. Os números vêm caindo desde 2004, quando se alcançou o pico de 27,7 mil km².
    A ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, convocou uma entrevista coletiva para o mesmo dia. Parecia bem irritada, quase furibunda. Disse que o governo não tinha perdido o controle do desmatamento nem era conivente com ele, que era errado atribuir às mudanças no Código Florestal o repique da taxa, que sua antecessora Marina Silva (PSB) deveria se informar melhor.
    Se os 28% fossem só uma flutuação, a ministra não teria dado a performance que deu. Ninguém que exerça o poder gosta de perder o domínio da situação. Para piorar, a ex-ministra e pré-candidata Marina Silva de fato tinha pisado na bola.
    Numa palestra relatada pelo jornal "Valor Econômico", Marina acusou o governo federal de "conivência" com o aumento da destruição. E foi além: "(A ONG) Imazon está dizendo que é muito mais (92%)".
    A ex-ministra misturou alhos com bugalhos. O Imazon, de Belém, faz um bom monitoramento de curto prazo, comparável ao sistema oficial Deter, mas os seus próprios técnicos dizem que ele não serve para fazer predições sobre a taxa anual.
    O fato é que o desmate aumentou muito, mas na taxa percentual, não tanto no valor absoluto. Bem preparada e explicada, não seria uma mensagem tão difícil de transmitir. Na base do improviso e da indignação, pareceu descontrole mesmo.

      A ciência e o vazio espiritual - Marcelo Gleiser

      folha de são paulo

      A ciência e o vazio espiritual

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      Alguns anos atrás, fui convidado para dar uma entrevista ao vivo para uma rádio AM de Brasília. A entrevista foi marcada na estação rodoviária, bem na hora do rush, quando trabalhadores mais humildes estão voltando para suas casas na periferia. A ideia era que as pessoas dessem uma parada e ouvissem o que eu dizia, possivelmente fazendo perguntas.
      O entrevistador queria que falasse sobre a ciência do fim do mundo, dado que havia apenas publicado meu livro "O Fim da Terra e do Céu". O fim do mundo visto pela ciência pode ser abordado de várias formas, desde as mais locais, como no furacão que causou verdadeira devastação nas Filipinas, até as mais abstratas, como na especulação do futuro do universo como um todo.
      O foco da entrevista eram cataclismos celestes e como inspiraram (e inspiram) tanto narrativas religiosas quanto científicas. Por exemplo, no antigo testamento, no Livro de Daniel ou na história de Sodoma e Gomorra, e no novo, no Apocalipse de João, em que estrelas caem dos céus (chuva de meteoros), o Sol fica preto (eclipse total), rochas incandescentes caem sobre o solo (explosão de meteoro ou de cometa na atmosfera) etc.
      Mencionei como a queda de um asteroide de 10 quilômetros de diâmetro na península de Yucatan, no México, iniciou o processo que culminou na extinção dos dinossauros 65 milhões de anos atrás. Enfatizei que o evento mudou a história da vida na Terra, liberando os mamíferos que então existiam --de porte bem pequeno-- da pressão de seus predadores reptilianos, e que estamos aqui por isso. O ponto é que a ciência moderna explica essas transformações na Terra e na história da vida sem qualquer necessidade de intervenção divina. Os cataclismos que definiram nossa história são, simplesmente, fenômenos naturais.
      Foi então que um homem, ainda cheio de graxa no rosto, de uniforme rasgado, levantou a mão e disse: "Então o doutor quer tirar até Deus da gente?"
      Congelei. O desespero na voz do homem era óbvio. Sentiu-se traído pelo conhecimento. Sua fé era a única coisa a que se apegava, que o levava a retornar todos os dias àquela estação e trabalhar por um mísero salário mínimo. Como que a ciência poderia ajudá-lo a lidar com uma vida desprovida da mágica que fé no sobrenatural inspira?
      Percebi a enorme distância entre o discurso da ciência e as necessidades da maioria das pessoas; percebi que para tratar desse vão espiritual, temos que começar bem cedo, trazendo o encantamento das descobertas científicas para as crianças, transferindo a paixão que as pessoas devotam à sua fé para um encantamento com o mundo natural. Temos que ensinar a dimensão espiritual da ciência --não como algo sobrenatural-- mas como uma conexão com algo maior do que somos. Temos que fazer da educação científica um processo de transformação, e não meramente informativo.
      Respondi ao homem, explicando que a ciência não quer tirar Deus das pessoas, mesmo que alguns cientistas queiram. Falei da paixão dos cientistas ao devotarem suas vidas a explorar os mistérios do desconhecido. O homem sorriu; acho que entendeu que existe algo em comum entre sua fé e a paixão dos cientistas pelo mundo natural.
      Após a entrevista, dei uma volta no lago Sul pensando em Einstein, que dizia que a ciência era a verdadeira religião, uma devoção à natureza alimentada pelo encantamento com o mundo, que nos ensina uma profunda humildade perante sua grandeza.
      Marcelo Gleiser
      Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".

      Sentidos do prosaico na obra de Luigi Ghirri - LORENZO MAMMÌ

      folha de são paulo
      O trivial maravilhoso
      Sentidos do prosaico na obra de Luigi Ghirri
      LORENZO MAMMÌRESUMO A obra do italiano Luigi Ghirri (1943-92) identifica as sutilezas de um cotidiano transformado pela modernização acelerada dos anos 1960. Voltadas para a representação do banal, suas fotos, que terão mostra em São Paulo, buscam retratar a nova paisagem dos territórios nem urbanos nem rurais do pós-Guerra.

      No ensaio incluído no catálogo da exposição de Luigi Ghirri que agora chega ao Brasil, Quentin Bajac alude à "grande desconstrução do meio fotográfico realizada na década de 1960, de que o contexto italiano foi na Europa o ator principal" e cita, entre outros, as fotografias sobre espelho de Michelangelo Pistoletto e o filme "Blow Up" (1966), de Michelangelo Antonioni.
      Vale ampliar o quadro de referência: a discussão sobre a fotografia se insere num processo de reconstrução dos códigos narrativos e descritivos que interessava a toda a cultura italiana da época. Estava-se saindo da experiência neorrealista, que tentara o resgate de um país arcaico e pobre (bem diferente daquele que a retórica anterior à guerra glorificava), mediante procedimentos narrativos modernos e altamente sofisticados, tanto na literatura como no cinema.
      O crescimento econômico que culminou nos anos de 1960, a americanização acelerada da sociedade, o desaparecimento rápido de tradições culturais seculares, quando não milenárias, tornou aqueles procedimentos insuficientes.
      As estratégias de representação precisavam ser reformuladas, para adquirir um alcance maior e, ao mesmo tempo, tornar-se mais transparentes. Não era apenas questão de novas realidades a serem representadas: a própria relação entre realidade e representação tornava-se problemática, sob o impacto dos meios de comunicação de massa.
      Por outro lado, a modernização não se instalava sobre um terreno quase virgem, como aconteceu na América. Para a Europa, e para a Itália especialmente, o arcaico não é só o atrasado mas também o antigo. Uma nova rede de imagens se sobrepunha a uma paisagem urbana e rural cuja legibilidade já era muito consistente, depurada pela experiência de séculos, mesmo nas camadas populares.
      A consciência moderna permitia uma nova leitura do mundo tradicional; mas o mundo tradicional também, com seu patrimônio de imagens, suas sabedorias artesanais, seu patrimônio de formas e objetos, enfim, sua história, permitia uma leitura diferente, mais matizada e problemática, do sistema moderno de produção e troca.
      O neorrealismo, nesse quadro, não foi repudiado. Antes, foi virado do avesso, fazendo referência constante a seus mecanismos internos, como para mostrar as linhas de costura. Surgiram, num período relativamente curto de tempo, o cinema de Antonioni, Fellini e Pasolini, a narrativa de Italo Calvino, a música metalinguística de Luciano Berio (a partir, não por acaso, das "folk songs"), a arquitetura tipológica de Aldo Rossi, a arte povera.
      Todas essas manifestações artísticas buscaram meios linguísticos mais reflexivos para lidar com uma realidade complexa em que traços culturais contrastantes conviviam, mas não renunciaram ao contato com essa realidade.
      Todas se caracterizaram pela tensão entre modernidade e tradição, novos códigos e escavação quase arqueológica de camadas de significado que se sobrepunham sem se encobrirem totalmente.
      A ressignificação do mundo se apoiava sobre um fundo de memórias. O grande desenvolvimento das pesquisas semiológicas, tendo Umberto Eco como figura de maior ressonância internacional (mas Roland Barthes também foi muito lido na Itália), dialogou com grande parte dessa produção, garantindo uma verificação contínua entre teoria e praxe artística.
      INFLEXÃO
      Na obra de Luigi Ghirri, que pertence à geração imediatamente seguinte à que descrevi, tais questões alcançam, no que diz respeito ao meio fotográfico, desenvolvimento pleno mas também um ponto de inflexão.

      Fotografias de Luigi Ghirri

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      Luigi Ghirri/Eredi Ghirri
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      Estúdio de Giorgio Morandi (1989-1990), em Bolonha
      O processo de transformação já não tem o impulso de outrora: o moderno começa a envelhecer, o antigo já não é um fundo compacto, mas uma substância que transpira entre as malhas não tão cerradas da modernidade. Mais que a energia propositiva e rebelde, passa a valer a sutileza capaz de identificar as resistências, as contaminações, os pontos de sutura num panorama já transformado, em que novidade e obsolescência se fundem, às vezes, no mesmo objeto.
      Quando Ghirri fotografa plantas recortadas em formas geométricas ou dispostas simetricamente no espaço exíguo entre uma grade e um muro de concreto, ou cadeiras de jardim no espaço diminuto da varanda de uma casa pequeno-burguesa de periferia, ele parece buscar, na terra de ninguém que cresce desmedidamente entre as cidades históricas e o campo, o aflorar de sentidos antigos: a ordem cósmica do jardim à italiana, traduzido em arranjo doméstico; a "joie de vivre" do subúrbio impressionista homogeneizada por um piso de granito industrial.
      O que o fotógrafo registra é a persistência dos homens em qualificar os espaços, atribuir valores às coisas, transformá-las em signos. E esses signos, por baratos e ingênuos que sejam, individualmente, se combinam em cadeias nem sempre intencionais, mas que sempre os tornam mais ricos.
      O lugar de eleição para que tal combinação se torne legível, se não decifrável, é o enquadramento fotográfico. Em Ghirri é sempre frontal, a ponto de o espaço representado parecer tão plano como uma página ou um mapa. A luz é uniforme, seja aquela leitosa da planície do rio Pó, ou a dourada de Capri e do litoral da Puglia.
      Ghirri não se pauta pela poética do momento decisivo, pelo esforço de resumir no instante o significado inteiro de uma ação. É fotógrafo dos tempos longos, das permanências: na ação humana, interessam-lhe os sedimentos, aquilo que se depositou e já não tem mais sujeito -a cultura, enfim, enquanto patrimônio coletivo de significados.
      A sensibilidade à luz é, de fato, um grande trunfo de sua arte. Nos tempos longos da narrativa ghirriana, a luz é o tempo longuíssimo, o que unifica, como um campo linguístico mais geral, a colagem e superposição contínua dos signos.
      Longuíssimo, mas não imóvel. As fotos justamente famosas de Versalhes, por exemplo, foram realizadas com meios simples e sem manipulação na impressão. Essencial foi esperar o momento e as condições atmosféricas exatas em que o ambiente adquirisse a aparência irreal de postal colorido.
      A vida imita não a arte, mas a imagem barata, de uso cotidiano. Toda imagem de Ghirri é releitura de outras imagens, não só quando fotografa outras fotos, mapas, propagandas, maquetes mas também ao retratar paisagens ou edifícios.
      Atrás de cada enquadramento há inúmeras imagens que, de tão repetidas, se tornaram banais: cartões-postais, decorações em "trompe-l'oeil" de palácios antigos (não as obras-primas, mas a pintura menor, quase artesanal), cartazes de agências de turismo, suvenires em gesso ou plástico.
      Esse repertório comum, aparentemente inexpressivo, Ghirri o subverte, conferindo-lhe uma intensidade inesperada. Suas imagens, quando vistas pela primeira vez, são reconhecíveis, como se já nos pertencessem. Ao mesmo tempo despertam uma sensação de estranhamento, como se aquilo que é excessivamente familiar se tornasse, por isso mesmo, enigmático.
      Em seus numerosos escritos, Ghirri insiste sobre dois pontos: o primeiro é a transformação da realidade em imagem, como se o mundo estivesse se tornando uma grande fotografia.
      Emblema disso é a famosa imagem da Terra vista do espaço, realizada durante a viagem da Apollo 11 à Lua, em 1969. Ela é, para Ghirri, a foto das fotos, aquela que contém potencialmente todas as outras. Ele a reencontra e a reproduz em 1978 numa sinalização em Lido de Spina, pequeno balneário no delta do rio Pó.
      Não é uma brincadeira sem intenção: se o mundo inteiro é um signo, também todo signo, pelas infinitas relações que entretém com todos os outros, é o mundo. A imagem da Terra tirada da nave e aquela pendurada no poste são dois polos de uma cadeia ininterrupta de significados. Uma não é mais real do que a outra.
      O segundo ponto focal da reflexão de Luigi Ghirri é a representação da nova paisagem.
      Esse termo define especialmente aqueles espaços nem urbanos nem rurais (periferias que se esgarçam em direção ao campo, regiões agrícolas atravessadas por rodovias e já contaminadas por complexos industriais e comerciais), cuja existência se tornou sempre mais evidente e invasiva a partir do pós-Guerra. Certamente, não era uma questão só de Ghirri, nem apenas italiana, muito embora na Itália, pelo valor icônico de que a paisagem se revestia anteriormente, ela fosse mais pungente.
      A esse respeito, Ghirri reconhece sua dívida com a nova fotografia de paisagem norte-americana: William Eggleston, Stephen Shore. Mas, atrás deles, sua referência principal declarada é o realismo enxuto de Walker Evans.
      Pode surpreender, num fotógrafo interessado na fotografia como signo, essa admiração incondicional por um artista marcado pela busca de um contato direto e despojado com os homens e as coisas.
      Para Ghirri, porém, não vale aquilo que a doutrina moderna do simulacro defende: o mundo das imagens e dos signos não é um substituto do mundo real.
      Ao contrário, as coisas são tão mais reais quanto mais carregam significados, quanto mais são marcadas por investimentos afetivos. Olhar para os hieroglíficos de que a realidade se compõe (o termo é do próprio Ghirri) significa olhar para a própria realidade, em suas infinitas articulações.
      Nota: Este texto foi adaptado pelo autor a partir de ensaio escrito originalmente para o catálogo da mostra de Luigi Ghirri a ser inaugurada no Instituto Moreira Salles de São Paulo no próximo dia 23.
      LORENZO MAMMÌ, 56, é professor do departamento de filosofia da USP, crítico de arte e de música.
      LUIGI GHIRRI (1943 - 92), fotógrafo italiano.

      Eleonora de Lucena Entrevista István Mészáros

      folha de são paulo
      ENTREVISTA ISTVÁN MÉSZÁROS
      A barbárie no horizonte
      Filósofo húngaro encara a crise do capitalismo
      ELEONORA DE LUCENARESUMO O filósofo húngaro István Mészáros, principal discípulo e conhecedor da obra de seu conterrâneo György Lukács, lança livro e faz palestras no Brasil. O pensador marxista argumenta que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram e defende mudanças estruturais para conter a crise do capitalismo.
      A atual crise do capitalismo, que faz eclodir protestos por toda a parte, é estrutural e exige uma mudança radical. Essa é a visão do filósofo István Mészáros, 82.
      Professor emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), o marxista Mészáros defende que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram. Nesta entrevista, feita por e-mail, ele diz que o avanço da pobreza em países ricos demonstra que "há algo de profundamente errado no capitalismo", que hoje promove uma "produção destrutiva".
      Mészáros vem ao Brasil para palestras em São Paulo (amanhã, no Tuca, às 19h), Marília, Belo Horizonte e Goiânia. Maior discípulo e conhecedor da obra do também filósofo húngaro marxista György Lukács (1885-1971), Mészáros lançará aqui o seu livro "O Conceito de Dialética em Lukács" [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$ 39, 176 págs.], dos anos 60.
      A mesma editora lança, de Lukács, "Para uma Ontologia do Ser Social 2" [trad. Ivo Tonet, Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes, R$ 98, 856 págs.] e o volume "György Lukács e a Emancipação Humana" [org. Marcos Del Roio, R$ 39, 272 págs.].
      Folha - O sr. vem ao Brasil para falar sobre Lukács. Como avalia a importância das suas ideias hoje?
      István Mészáros - Lukács foi meu grande professor e amigo por 22 anos, até sua morte, em 1971. Ele começou como crítico literário e transitou para temas filosóficos fundamentais, em trabalhos com implicações de longo alcance. Fala-se menos de sua atuação política direta entre 1919 e 1929. Ele foi ministro de Educação e Cultura no breve governo revolucionário da Hungria em 1919 e é um exemplo de que moralidade e política não só devem como podem andar juntas.
      Sua vida e a dele unem teoria e prática. Que diferença há entre ser militante marxista no séc. 20 e hoje?
      A dolorosa e grande diferença é que os principais partidos da Terceira Internacional, que teve uma força organizacional significativa e até influência eleitoral durante algum tempo, implodiram. Como um militante intelectual por mais de 50 anos, ele estaria desolado hoje.
      Quando a União Soviética acabou, muitos previram o fracasso do marxismo. Depois, com a crise de 2008, muitos previram o fim do neoliberalismo e a volta das ideias de Marx. O marxismo está em expansão?
      Conclusões apressadas geralmente nascem mais de desejos do que de evidências. O colapso do governo [Mikhail] Gorbatchov (1985-91) não resolveu nenhum dos problemas em questão na URSS. Também não é possível descartar o neoliberalismo só pelo fato de que suas ideias são perigosamente irracionais. Em certas condições, até absurdos perigosos obtêm apoio em massa, como mostra a história.
      A mudança de humor que colocou "O Capital", de Marx, de novo na moda não significa que as ideias marxistas estejam avançando. É inegável que o aprofundamento da crise está gerando protestos mundo agora. Mas encontrar soluções sustentáveis requer a elaboração de estratégias e de formas de organização.
      E as ideias conservadoras? Elas estão ganhando mais adeptos?
      Inegavelmente, ainda que não sejam sustentáveis. "Não mudar" é quase sempre mais fácil do que "mudar" uma forma de comportamento. Na situação atual, respostas podem requerer esforços maiores do que seguir o que "deu certo".
      Qual seria uma boa definição para o período histórico atual?
      Há diferença fundamental entre as tradicionais crises cíclicas/conjunturais do passado (que pertencem à normalidade do capitalismo) e a crise estrutural do sistema do capital como um todo --que define o atual período. Nossa crise estrutural (que nasce no final dos anos 1960 e se aprofundou desde então) necessita de mudanças estruturais.
      Quais são as figuras mais importantes deste século 21 até agora?
      A figura política cujo impacto deve perdurar e se estender é a do presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013). Fidel Castro foi muito ativo na primeira metade desta década, mas as raízes de seu impacto histórico estão nos anos 50. Do lado conservador, se ainda estivesse vivo, eu não hesitaria em nomear o general De Gaulle. Ninguém neste século chegou a sua estatura no lado conservador.
      E o evento mais surpreendente?
      É provavelmente a velocidade com que a China conseguiu se aproximar da economia norte-americana, alcançando o ponto em que ultrapassá-los é considerado factível em alguns anos. No entanto seria ingênuo imaginar que a China possa permanecer imune à crise estrutural do sistema do capital. Mesmo o superávit de trilhões de dólares dos chineses pode evaporar numa turbulência.
      O capitalismo se fortaleceu ou se enfraqueceu com a crise?
      As tradicionais crises cíclicas/conjunturais fortaleciam o capitalismo, já que eram eliminadas empresas capitalistas inviáveis. Assim, ocorria o que [Joseph] Schumpeter (1883-1950) idealmente chamou de "destruição criativa". Os problemas são mais sérios hoje, porque a crise estrutural afeta de forma perigosa até a dimensão mais fundamental do controle metabólico social da humanidade, incluindo a natureza. É mais apropriado descrever o que ocorre como "produção destrutiva".
      A crise provocou mudanças políticas em muitos países. É possível discernir um movimento geral, para a esquerda ou para a direita?
      Até agora, é mais para a direita do que para a esquerda. Todos os governos "capitalistas avançados" adotaram políticas que tentam resolver problemas pela "austeridade", com cortes reais em salários e nos padrões de vida já precários dos "menos privilegiados". Mas é improvável que essas políticas produzam soluções duradouras.
      Como o sr. previu, a pobreza aumentou. Nos EUA, a desigualdade cresceu. O que está errado no capitalismo?
      Certamente há algo de profundamente errado e insustentável na maneira como o crescimento é perseguido sob o capitalismo. Há alguns dias o ex-primeiro-ministro britânico John Major reclamava que neste inverno muitas pessoas no Reino Unido terão de escolher entre comer e se aquecer. Em 1992, quando era premiê, ele disse, com autocomplacência: "O socialismo está morto; o capitalismo funciona". Eu disse, então: "Para quem e por quanto tempo?". O único crescimento com significado é o que responde à necessidade humana.
      A crise ampliou o desemprego em muitas regiões e abalou o Estado de bem-estar social na Europa. Multidões foram às ruas protestar. Os partidos de esquerda estão se beneficiando desses movimentos?
      O Estado do bem-estar social foi limitado a um punhado de países capitalistas e se ergueu sobre fundações frágeis. A tendência que se nota e que se aprofunda eu já havia caracterizado nos anos 70 como "equalização descendente da taxa diferencial de exploração". Isso diz respeito às diferenças nos ganhos por hora de trabalhadores para o mesmo trabalho na mesma transnacional na "metrópole" e em países "periféricos".
      Os protestos em muitos países capitalistas são compreensíveis e devem se agudizar. Eles surgem no arcabouço dessa tendência perversa. Os partidos que operam no enquadramento da política parlamentar, compreensivelmente, não podem se beneficiar dos protestos --eles tendem a acomodar seus objetivos a limites restritos.
      Os protestos no Brasil têm conexão com os de outros países?
      É impossível achar hoje um lugar no mundo onde não estejam ocorrendo protestos sérios. Eles parecem ter diferentes temas, criando uma impressão superficial de que não há correlação entre eles. É um autoengano. A grande variedade de protestos não se enquadra nos modos de ação da política tradicional, mas isso não é prova de sua irrelevância. Ao contrário, apontam para as razões mais profundas dos problemas e das contradições acumuladas.
      Qual a relevância das ideias socialistas hoje?
      As ideias socialistas têm sido definidas desde o início como as que requerem uma época histórica para a sua concretização, embora os problemas imediatos, de onde elas devem partir, sejam muito dolorosos. Elas requerem não apenas os serviços urgentes mas também prevenção para as doloridas infecções no longo prazo. As ideias socialistas são, portanto, mais relevantes hoje do que jamais foram.
      O socialismo ou o comunismo são objetivos atingíveis no futuro? Há risco de barbárie?
      Como já escrevi antes, se tivesse que modificar as famosas palavras de Rosa Luxemburgo, "socialismo ou barbárie", acrescentaria: "Barbárie se tivermos sorte". Porque o extermínio da humanidade é a ameaça que se desenrola. Enquanto falharmos em resolver os grandes problemas que se espalham por todas as dimensões da nossa existência e nas relações com a natureza, o perigo seguirá no horizonte.

        No último Kubrick, não leve as crianças - Contardo Calligaris

        folha de são paulo 
        Quinta-feira,02 de setembro de 1999 daqui

        Estréia amanhã o último filme de Kubrick, "De Olhos Bem Fechados". O título original, "Eyes Wide Shut", é um trocadilho. Sua tradução literal seria: "De Olhos Arregaladamente Fechados". Como se, de tanto arregalar os olhos, não desse para ver mais nada.
        Não sei por que Kubrick inventou esse título. Mas ele é, de qualquer forma, emblema do que vem acontecendo com a representação do sexo no cinema: ganhamos, enfim, livre acesso aos vestiários masculinos e femininos, escutamos as conversas e vemos livremente os corpos. É engraçado, pode até ser excitante, mas ficamos por conta. Pois o sexo, de fato, não é feito nem de piadas nem de bundas. Sexo é um jogo de fantasias, nem sempre claras, cômodas ou confessáveis.
        Ora, o filme de Kubrick é um filme sobre sexo. Por isso, aliás, não está garantido que encontre seu público. Parece que nos acostumamos à simplificação infantil da sexualidade: piadas e bundas. Há, para tal, uma explicação de marketing. Nos anos 90, os adolescentes e pré-adolescentes se tornaram público-alvo de um número cada vez maior de filmes. Hollywood aprendeu que os jovens têm mais dinheiro no bolso, gostam de ir ao cinema e levam os adultos consigo, estabelecendo e promovendo modas.
        Os adultos adoram pegar onda com a rapaziada. Portanto, a representação do sexo no cinema se aproximou da que os adolescentes conseguem tolerar: barulhenta, mas fundamentalmente reprimida. Os palavrões, a vulgaridade (em breve, o barulho), servem para silenciar desejos e fantasias.
        Este infantilismo sexual não é só efeito da chegada dos adolescentes no mercado da cultura. É também o refluxo dos anos 60. No burburejar da revolução sexual, parece que o cinema conseguiu encarar milagrosamente a complexidade do sexo. E isso para platéias que de alguma forma se reconheciam nele.
        Entre 67 e 73, foram filmados, por exemplo, "A Primeira Noite de um Homem", "Perdidos na Noite" e "Último Tango em Paris". Desde então, os filmes sobre sexo se tornaram mais raros. Com a exceção (notável) da obra de Almodóvar e de alguns filmes em que o sexo aparece, mas com a desculpa de ser uma obsessão patológica (tipo "9 Semanas e 1/2 de Amor"), o cinema de grande público oferece desbunde, nudez e vulgaridade, mas não sexo.
        O que aconteceu? Deveria se esperar que a revolução sexual permitisse olhar para o sexo em sua complexidade, às vezes soturna. Ora, parece que, em vez de abrir os olhos, nós os arregalamos, o que pode ser uma maneira de fechá-los. O sexo sumiu por baixo de uma caricatura festiva. A liberação sexual veio junto com uma recrudescência da ideologia higienista da vida: querem seus corpos para com eles livremente explorar prazeres? Podem, mas que sejam corpos saudáveis. Ou seja, querem gozar? Aqui está: cooper, aeróbica, muito sol (agora com protetor) e abaixo o colesterol.
        O sexo liberado projetava uma orgia e acabou se parecendo com uma festa de cruzeiro durante as férias obrigatórias. A manteiga do "Último Tango em Paris" se tornou margarina dietética.
        No filme de Kubrick há justamente uma cena de orgia que foi muito discutida. Por um lado, críticos e intelectuais (até no Brasil) se indignaram porque, a fim de evitar que o filme fosse classificado pornográfico, 65 segundos de película foram manejados eletronicamente para esconder órgãos sexuais copulando. Gritos de horror contra a censura. Os brasileiros podem ficar sossegados: no Brasil o filme será exibido na íntegra.
        Mas vale lembrar que uma verdadeira censura sobre o sexo começa a funcionar quando pensamos que o sexo seja isso: pênis e vaginas expostos. Quem se preocupou com a ausência de órgãos eretos ou ficou esperando para ver se Cruise e Kidman transariam, pois bem: ficou de olhos arregaladamente fechados. De tanto querer ver, não viu nada.
        Por outro lado, há a crítica frequente de que a cena da orgia seria triste, ritualizada. Caramba! Parece que a idéia mais comum de orgia é a caricatura do set de um filme pornográfico onde todos transam "legal", com muita luz e bom humor. Ou então, pior ainda, um clube de troca de casais, no qual um organizador do Club Mediterranée anima um bingo para quebrar o gelo.
        Será que ainda há público para um filme adulto sobre sexo? Espero que sim. Deixe as crianças em casa. Deixe em casa também a criancice. E curta um filme que tenta levar o sexo a sério.

        P.S. 1 - A escolha de Cruise e Kidman não é erro: eles são perfeitos por serem a imagem de um casal água-com-açúcar. Não transpiram sexo, não são Bruce Willis e Kim Basinger. Mas é esse o ponto: eles são um casal "copo-de-leite-bom-pra-saúde" e vão encontrar, de repente, dentro de si, alguns sonhos mais cabeludos.
        2. Por favor: o filme não é uma história de ciúme. Salvo no sentido em que o ciúme é um vasto repertório de fantasias eróticas.

        Email: ccalligari@uol.com.br

        Marcelino Freire

        folha de são paulo

        50 letras, sem tirar nem pôr


         
        MARCELINO FREIRE
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        Dalton Trevisan não poderia faltar. Pus no juízo: vou atrás, insisto, me rastejo, ínfimo. Uma antologia de microcontos não ficaria completa sem ele. Mestre da concisão. Alto Dalton. Máximo, grande.
        Mas ele vive recluso, não dá as caras. Eu não desisto.
        O ano era de 2004. Muito antes do Twitter. Resolvi criar a antologia "Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século" (Ateliê Editorial). Uma referência à organizada pelo Italo Moriconi, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século". Ao Italo, pedi a assinatura de um microprefácio. Que ele generosamente fez. Em 50 palavras.
        Os contos, esses não, teriam de ter até 50 letras. Sem contar o título. Isso, inspirado que fui pelo microconto mais famoso do mundo, o do guatemalteco Augusto Monterroso. Uma história de 37 letrinhas, a saber: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá".
        Toparam participar Sérgio Sant'Anna, Adriana Falcão, João Gilberto Noll, Manoel de Barros, Modesto Carone, Andréa Del Fuego, Glauco Mattoso...
        Lygia Fagundes Telles escreveu um, genial, só em diálogos: "- Fui me confessar ao mar. / - E o que ele disse? / - Nada.".
        Maravilha!
        Mas faltava o Dalton.
        Fabio Braga/Folhapress
        Exemplar de "O Anão e a Ninfeta" autografado por Dalton Trevisan
        Exemplar de "O Anão e a Ninfeta" autografado por Dalton Trevisan
        Até o Millôr Fernandes topou -esse, antigo seguidor dos microformatos. Com Millôr foi relativamente fácil. Eu já tinha estado com ele no Rio para um papo raro. Cheio de humor e irreverência. Ligou-me para se certificar: "Até 50 letras, sem contar o título, é isto?". É isto, Millôr.
        E não é que ele me mandou um conto em contadinhas 50 letras? No entanto, o título era imenso. "Fiz o que você me pediu, não fiz?"
        Fez, sim, fez.
        Mas repito: faltava a presença do Vampiro de Curitiba. Eu havia mandado uma carta para ele. Havia mais de um mês.
        Esperei, esperei. Noventa e nove escritores já reunidos. O livro todo diagramado. Organizado por ordem alfabética. Na letra "D", antes de Daniel Galera, deixei o espaço vago.
        Qualquer coisa, se o Dalton não me responder, eu invento um autor: Dalvan Trigueiro. Faço uma homenagem, sei lá, à revelia. E mando o livro para a gráfica, entristecido.
        O tempo ficando miúdo. A esperança é a última que chega. Em cima da hora. Eis que recebo um envelope. E, dentro, o conto, também em diálogos: "- Lá no caixão... / - Sim, paizinho. / -... não deixe essa aí me beijar".
        E eu quase morro.
        Dalton Trevisan é desses escritores que me deixam sem fôlego. É ele em que me espelho quando coloco minhas neuroses na página. Gosto de suas obsessões. Inquietações. A cada livro seu, uma surpresa. Dalton escreve na velocidade da luz.
        Não se engane. Ele não é só o "dono" de um estilo rápido. Vupt, vapt. Dalton escreve à velocidade da sombra. Vai sempre longe.
        E foi assim.
        A antologia finalmente saiu. Até hoje é referência para quem quer estudar as narrativas curtas. Foi trabalho, fiquei sabendo, inédito no mundo, à época: esse de reunir tantos autores, de uma vez só, escrevendo "enormemente menor".
        A todos, até hoje agradeço. Sobretudo aos que já se foram: Moacyr Scliar, Manoel Carlos Karam, Alberto Guzik, Wilson Bueno. E idem ao sempiterno Millôr.
        E essa antologia também me deu, ave, a amizade do Dalton. De quando em quando, assim, a gente se fala. Via correios.
        O contato mais surpreendente foi pouco antes de ele ganhar o Prêmio Camões, em maio de 2012. Enviei a ele o meu livro de contos "Amar É Crime" (Edith).
        Recebi, em troca, "O Anão e a Ninfeta", com a seguinte dedicatória: "Ao Marcelino Freire, com a muita admiração do seu leitor fiel".
        E eu quase morro. De novo. Em saber que ele se diz o meu "leitor". Eu que aprendi a ler com ele. Nas entrelinhas. E continuo a apreender. E a me surpreender.
        A dedicatória do Dalton, por exemplo, tem exatas 50 letras. Sem tirar nem pôr. Pode crer.
        MARCELINO FREIRE, 46, lança o romance "Nossos Ossos" (ed. Record). É criador da Balada Literária, que acontece de quarta a domingo (www.baladaliteraria.com.br).

        Apanhar o autocarro ou pegar o ônibus? - ISABEL COUTINHO

        folha de são paulo
        DIÁRIO DE LISBOA
        O MAPA DA CULTURA
        Português a falar brasileiro
        Apanhar o autocarro ou pegar o ônibus?
        ISABEL COUTINHOEm todas as edições se fazem apostas para tentar adivinhar quem vai receber o Prêmio José Saramago. A honraria no valor de € 25 mil (cerca de R$ 78 mil) é atribuída de dois em dois anos a uma obra literária de ficção escrita em língua portuguesa (e publicada em qualquer país lusófono) por um autor de não mais de 35 anos.
        Se em 2011 foi uma surpresa a vitória da brasileira Andréa del Fuego, por "Os Malaquias", o resultado deste ano, divulgado no dia 5 em Lisboa, confirmou o palpite de muitos.
        O vencedor, o angolano Ondjaki, havia muito era favorito. A vez dele chegou com o romance "Os Transparentes" (Companhia das Letras). O prêmio instituído pela Fundação Círculo de Leitores escolheu o livro por unanimidade.
        A escritora e imortal brasileira Nélida Piñon, parte do júri, disse que Ondjaki criou "uma galeria de grandes personagens, cada qual com suas idiossincrasias muito bem definidas, enlaçadas por um fio de solidariedade e de ironia".
        Ondjaki dedicou o Prêmio José Saramago ao país onde nasceu. "Este é um livro sobre uma Angola que existe dentro de uma Luanda que eu procurei escrever e descrever. Fi-lo com o que tinha dentro de mim entre verdade, sentimento, imaginação. E amor. É uma leitura de carinho e de preocupação. É um abraço aos que não se acomodam mas antes se incomodam. É uma celebração da nossa festa interior, trazendo as makas, os mujimbos, algumas dores, alguns amores. Penso que todos queremos uma Angola melhor."

        PAPÉIS DISPERSOS
        De Agustina Bessa-Luís, escritora do Porto afastada da vida pública por motivos de doença, acaba de ser publicado em Portugal "Caderno de Significados" (Guimarães Editora; € 12,50; cerca de R$ 38), com seleção, organização e fixação de texto de Alberto Luís (seu marido) e da escritora Lourença Baldaque (sua neta).
        Os escritos reunidos foram encontrados em "folhas soltas, em cadernos de notas, em espaços brancos de impressos, em margens de livros", explica Alberto Luís no prefácio. Há excertos de entrevistas, de conferências e alguns inéditos.
        Um dos textos é dedicado a Lisboa, que a escritora descreve assim: "Descei do céu para Lisboa, vindos de Nova York, e vereis a torre de Belém como um castelo de areia. Se o rio crescesse como cresce o mar, arrancava-lhe os dentes um a um. E ficava desdentada a bela torre; a sua lendária face deixava de ser proa de Lisboa. E o velho do Restelo não sabia mais o que dizer nem onde se encostar".

        VAI, BRASIL
        "Os cariocas têm de ganhar a vida como toda a gente, mas nunca a perdem por causa disso." Essa é uma das frases de "Vai, Brasil" (€ 18; R$ 55), novo livro de Alexandra Lucas Coelho, repórter e escritora portuguesa residente no Rio há alguns anos, que acaba de ser editado em Portugal na coleção de viagens da Tinta da China, dirigida por Carlos Vaz Marques.
        O editor considera ser este "o melhor livro" da autora. "Ela consegue uma síntese da língua portuguesa, cruzando o modo de dizer de Portugal com o jeito do Brasil de uma forma tão feliz que nos dá a sensação, em certos momentos, de estar a proceder à refundação do idioma, como Caetano Veloso a roçar sua língua pela língua de Luís de Camões."
        O livro, com prefácio de Francisco Bosco, colunista do jornal "O Globo", começa no final do governo Lula e termina nas gigantescas manifestações deste ano.
        Um excerto: "Português a falar brasileiro não tem jeito, mesmo quando tem. Mas o que não tem jeito mesmo é perder tempo a não ser entendido. Não vou subir a favela e dizer sítio quando posso dizer lugar, ou apelido quando posso dizer sobrenome, ou alcunha quando posso dizer apelido, ou apanhar o autocarro quando posso pegar o ônibus. Português a falar brasileiro nem é jeito de dizer, porque português e brasileiro falam sempre português, em toda a sua mestiça extensão".

        O RIO POR QUEM SABE
        E se Alexandra Lucas Coelho é a estrangeira que olha para o Brasil e nos mostra coisas que quem lá vive nem sempre vê, Rita Sousa Tavares revela-nos o Rio de Janeiro pelos olhos de quem lá mora.
        "Show Me Rio" (ed. Café Pessoa; R$ 109) é um livro de edição luxuosa, com fotografias belíssimas de José Pedro Monteiro e Márcio Mercante e textos, em "carioquês", da filha de Miguel Sousa Tavares.
        É vendido acompanhado por um CD com um documentário homônimo. Livro e filme têm dicas de 19 personalidades que nos guiam pela cidade. Entre elas, Chico Buarque, cuja conversa serve de introdução ao que veremos e leremos a seguir, Vik Muniz (nos mostra o Jardim Botânico e o Instituto Moreira Salles), Maitê Proença (recomenda o Theatro Municipal), o prefeito Eduardo Paes (nos leva à Floresta da Tijuca de bicicleta) e Zuenir Ventura (visita o Real Gabinete Português de Leitura).
        "Show Me Rio" é a primeira edição de um projeto intitulado "Show Me Cities" (www.showmecities.com), que nos levará para outras cidades vistas por quem lá vive.

          Ensinando a ser rico - Henrique Meirelles

          folha de são paulo
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          O Brasil hoje é um país caro, que perde capacidade exportadora e eleva importações, uma conjuntura insustentável ao equilíbrio econômico do país. Por isso, é fundamental aprofundar a discussão e as medidas para elevar nossa produtividade.
          Estudo do Banco Mundial cobrindo 40 anos e 50 países mostrou, de forma inequívoca, a relação direta do nível de educação com a produtividade e o nível de renda de um país.
          O progresso da educação brasileira nos últimos anos é inegável. O aumento do número de estudantes em todos os níveis foi conquista de diversos programas, mas principalmente do crescimento do investimento em educação.
          Em 1995, o Brasil investia 3,7% do PIB em educação, bem abaixo da média da OCDE (grupo dos países mais desenvolvidos). Hoje, investe 5,2% do PIB, superior à média de 4,8% da OCDE. Mesmo assim, seguimos com níveis de aprendizado abaixo da média mundial e de países como México e Chile.
          Se o aumento do número de estudantes e do tempo de estudo é essencial, o que eleva efetivamente a produtividade é o crescimento do nível geral de aprendizado, isto é, o aumento do desempenho, medido por testes de padrão internacional.
          O estudo citado e a experiência internacional mostram que essa evolução requer maior foco e investimento no ensino fundamental, melhor capacitação dos professores, métodos de ensino diferentes e abandono de práticas excessivamente teóricas.
          Os países onde o professor tem o status mais elevado na cultura nacional, como Cingapura, Coreia do Sul e Finlândia, são os com maior nível de aprendizado e os que conseguem atrair os melhores alunos para essa carreira fundamental ao desenvolvimento.
          O ensino teórico, repetitivo e baseado na memória deve ser substituído pelo ensino interativo, em linha com os jovens de hoje, com uso de técnicas que favoreçam o entendimento sobretudo de matemática, ciências e língua portuguesa. Isso requer mais investimento em equipamentos como computadores, laboratórios, bibliotecas tradicionais e eletrônicas.
          É imprescindível aumentar o tempo no qual os estudantes estão efetivamente engajados no aprendizado na aula. Ele não passa de 65% do tempo total nas melhores regiões do Brasil, contra a média de 88% dos países da pesquisa. O estudo conclui que, se atingir o nível médio do desempenho educacional dos países pesquisados, o Brasil pode elevar o PIB em cerca de dois pontos percentuais.
          Em resumo, o grande salto de produtividade do Brasil, capaz de elevar de forma sustentável a geração de riqueza e reduzir a desigualdade, passa não só por investimentos em infraestrutura e reformas fundamentais, mas, principalmente, pelo aumento da eficácia do processo educacional.
          HENRIQUE MEIRELLES escreve aos domingos nesta coluna.
          henrique meirelles
          Henrique Meirelles é presidente do Conselho da J&F (holding brasileira que controla empresas como JBS, Flora e Eldorado) e chairman do Lazard Americas. Ele foi presidente do Banco Central do Brasil de 2003 a 2010 e, antes disso, presidente global do FleetBoston e do BankBoston.

          Manuel da Costa Pinto [revista são paulo]

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          Novo álbum resgata espírito original de Asterix como metáfora da Resistência francesa

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          O novo álbum de Asterix é duplamente histórico. É a primeira vez que uma HQ da série não é escrita e desenhada pelos criadores do pequeno gaulês e de seu inseparável companheiro Obelix. Além disso, "Asterix Entre os Pictos" reconduz as aventuras a seu espírito original.
          Comecemos por aí. Poucos leitores mirins percebem que a aldeia litorânea idealizada pelo roteirista Goscinny e imortalizada pelo traço de Uderzo é uma metáfora da França à época da ocupação nazista.
          Mas a página inicial, que se repete em todos os álbuns, com o mapa da Gália (território da atual França à época da expansão de Roma), não deixa dúvidas. Um pequeno quadro informa: "Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor". Eis a chave de leitura: numa França que estendeu o tapete vermelho para as tropas de Hitler, uns minguados resistentes infernizam a vida do inimigo.
          Reprodução
          Imagem do livro "Asterix entre os Pictos", desenhado por Didier Conrad
          Imagem do livro "Asterix entre os Pictos", desenhado por Didier Conrad
          Com a morte de Goscinny em 1977, porém, Uderzo acumulou a função de roteirista e acabou desfigurando a série. Começou com "O Grande Fosso", paródia de "Romeu e Julieta" distante da tradicional sátira ao chauvinismo francês, culminou em "O Dia em que o Céu Caiu", com a constrangedora inserção de extraterráqueos calcados em mangás japoneses.
          Tapetes voadores ("As 1.001 Horas de Asterix") e "gadgets" típicos de 007 ("A Odisseia de Asterix") quebraram o caráter naturalista da aventura --cujo único elemento mágico era a poção do druida Panoramix, que dava força sobre-humana aos gauleses e que na verdade era um placebo, uma metáfora da vontade --conforme se vira em "Asterix entre os Bretões".
          Agora, Jean-Yves Ferri e Didier Conrad (respectivamente, roteirista e desenhista da nova aventura) restauram a ideia de que os irredutíveis gauleses são expressão de uma Europa profunda dividida em tribalismos.
          Em "Asterix entre os Pictos", os heróis ajudam um escocês, que chega à praia da aldeia envolto numa redoma de gelo, a voltar a sua terra natal --onde se digladiam diferentes grupos (cada qual com a pele tingida de uma cor, derivando daí o epíteto latino de "pictos", "homens pintados").
          Por trás das rivalidades pessoais, estão os oportunismos daqueles que se alinham ao invasor --numa história com direito a monstro do lago Ness e ao tradicional banquete final regado a uísque escocês, enquanto um patético recenseador romano tenta entender os movimentos dessa turma ingovernável, que resiste aos imperialismos que volta e meia assolam o Velho Continente.
          LIVRO
          ASTERIX ENTRE OS PICTOS ***
          AUTORES: Jean-Yves Ferri e Didier Conrad
          TRADUÇÃO: Gilson Dimenstein Koatz
          EDITORA: Record (48 págs., R$ 28)
          *
          LIVRO
          ASTERIX E O ESCUDO ARVERNO ****
          Asterix e Obelix escoltam o chefe Abracurcix à região de Auvergne, que foi cenário da derrota dos gauleses diante de Roma e, ironicamente, sediou o governo colaboracionista de Vichy na Segunda Guerra.
          AUTORES: René Goscinny e Albert Uderzo
          TRADUÇÃO: Cláudio Varga
          EDITORA: Record (48 págs., R$ 30)
          *
          FILME
          A TRISTEZA E A PIEDADE ****
          Documentário de 1969 sobre a Resistência e, sobretudo, o colaboracionismo durante a ocupação nazista da França --eterna mancha na autoestima do país.
          DIREÇÃO: Marcel Ophüls
          DISTRIBUIDORA: Videofilmes (locação)
          -
          LIVRO
          ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA
          Alfredo Bosi (Editora 34, 480 págs., R$ 65)
          Reúne ensaios, entrevistas e "intervenções" (aulas, conferências) do professor de literatura e um dos críticos mais importantes da história do país. Sob a diversidade temática (poesia brasileira e pensamento político; Machado de Assis e Graciliano Ramos; Vico e Leopardi) revela-se, mais do que a erudição, a amarração rigorosa de questões estéticas e ideológicas.
          -
          DISCO
          BACH TRANSCRIBED
          Alessio Bax (Signum, importado)
          É comum que peças escritas para cravo por Bach sejam interpretadas ao piano (instrumento posterior à época do compositor alemão). As transcrições interpretadas pelo italiano Bax, porém, vão além desse repertório e incluem arranjos de autores como Busoni e Saint-Saëns para obras com outras formações originais --resultando num Bach noturno e romântico.
          -
          FILME
          O MOINHO E A CRUZ ***
          Lech Majewski (Lume, R$ 37,90)
          Nesta produção polonesa (falada em inglês), o pintor Bruegel (Rutger Hauer) concebe a tela "Procissão para o Calvário" durante a ocupação espanhola dos Países Baixos. E, se a tela funde passado e presente, a Paixão de Cristo e o cotidiano camponês do século 16, o cenário do filme é o quadro, mimetizado com fotografia deslumbrante, mas torna esquemática uma narrativa quase toda visual, que espelha a tensão entre Reforma e Contra-Reforma.
          Divulgação
          Hauer como Bruegel em "O Moinho e a Cruz"
          Hauer como Bruegel em "O Moinho e a Cruz"
          Manuel da Costa Pinto
          Manuel da Costa Pinto é jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Colunista da revista "sãopaulo" e editor do "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", é também editor do programa "Entrelinhas", da TV Cultura. Escreve aos domingos.

          Briga de peixes, com morte e aposta - Jaime Spitzcovsky

          folha de são paulo

          Briga de peixes, com morte e aposta

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          Converso muito com o Guerrero. Não me refiro ao Paolo, o autor de um dos gols mais importantes da história do Corinthians, o da final do Mundial de Clubes, em 2012. Meu interlocutor frequente é um peixe-beta, cujo aquário fica sobre minha escrivaninha, ao lado do computador.
          Enquanto trabalho, Guerrero, batizado em homenagem ao artilheiro, estica suas frondosas nadadeiras e cauda arroxeadas, num degradê bastante sutil. As cores contrastam com o verde-água das pedrinhas na base da beteira, como é conhecido o aquário construído para abrigar um dos peixes mais populares entre apaixonados pela fauna marinha.
          O contraste colorido fica mais gritante quando Guerrero repousa no fundo de sua casa. Quando me aproximo, ele majestosamente abre as nadadeiras, bate a cauda e irrompe numa acelerada movimentação para a superfície. Espera que eu polvilhe o alimento.
          Ilustração Tiago Elcerdo
          Guerrero é o segundo peixe-beta em casa. Tivemos antes o Nemo, que viveu cerca de três anos. Foi o primeiro bicho que a minha filha Silvia, então com três anos, pôde
          comprar e chamar de seu. Alimentar o peixe e vê-lo nadar com elegância, exibindo suas cores vivas, fascinavam a menina.
          Muito das cores dos peixes-beta à venda tem os dedos humano e da seleção genética. Na natureza, o animal costuma carregar coloração acastanhada, com leves pinceladas em azul e vermelho, num desenho para ajudar a escapar de predadores. Mas hoje alguns não escapam é da imbecilidade humana.
          O peixe-beta é territorialista, agressivo com machos da mesma espécie. Quando vislumbra um rival, eriça-se e pode partir para a briga. E, sobretudo no sudeste asiático, são promovidas lutas entre os peixes, com apostas e muitas vezes morte de um deles. Às vezes falo sobre isso ao meu Guerrero. E juro que ele parece fazer cara de quem não acredita que possa haver tal selvageria.
          jaime spitzcovsky
          Jaime Spitzcovsky, jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e em Pequim. Escreve sobre animais de estimação aos domingos, a cada duas semanas, na revista 'sãopaulo'.

          Museu cria festival de vídeos com gatos e diz que tem valor artístico

          folha de são paulo


          GUILHERME GENESTRETI
          DE SÃO PAULO
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          No rol de artistas já exibidos pelo museu Walker Art Center estão Andy Warhol (1928-1987), Mark Rothko (1903-1970) e Jasper Johns. Agora, há uma gata brava, um felino existencialista e outro louco por um aspirador de pó.
          Esse centro de arte contemporânea na cidade de Minneapolis (EUA) é sede do Internet Cat Video Festival.

          O evento anual reúne até 10 mil pessoas para assistir a uma sequência de 75 minutos de vídeos de gatos da web: há de flagrantes engraçados a produções requintadas, com diálogos e paródias de filmes.
          Gene Pittman/Divulgação
          Estádio em Minneapolis cerca de 10 mil pessoas reunidas no último Cat Video Festival, evento criado por museu de arte
          Estádio em Minneapolis cerca de 10 mil pessoas reunidas no último Cat Video Festival, evento criado por museu de arte
          Mas vídeo de gato é arte?
          "Se expomos o que é relevante à cultura popular contemporânea, por que ignorar esses vídeos?", diz o curador da mostra, Scott Stulen, 38.
          "Há uma tendência em se buscar uma 'internet real' e o festival cumpre a função: reúne pessoas para compartilhar experiências que antes tinham sozinhas. O fator artístico está na plataforma criada para a experiência social compartilhada, que une o mundo da arte à cultura popular."
          PERFORMANCE
          Com uma equipe de dez pessoas, Stulen faz a curadoria dos vídeos e escolhe os 80 melhores. Na edição deste ano foram enviadas 10 mil "obras".
          Para Bia Granja, criadora do youPIX, festival brasileiro de cultura digital, gato também pode ser arte. "O Andy Warhol fazia colagens. Por que não uma colagem de vídeos da internet?"
          "A curadoria torna esses produtos uma performance artística", diz André Sturm, diretor do MIS (Museu da Imagem e do Som), que não gosta de gatos. "Tem exibição, plateia relevante e reação do público? Então é arte."
          Ricardo Resende, diretor do Centro Cultural São Paulo, concorda. "A arte está na ação, e não no objeto."
          Solange Farkas, fundadora do festival Sesc_Videobrasil, questiona: "Não dá para fingir que o universo virtual não existe, e ele muda de fato a forma de fruir arte, mas não acho que isso seja arte, a não ser que seja feito por artistas".
          FÊMEA EMBURRADA
          Visto mais de 13 milhões de vezes no YouTube desde setembro de 2012, o vídeo "The Original Grumpy Cat" (a gata rabugenta original) ganhou o "gatinho de ouro" no festival por votos do público.
          A fêmea emburrada estava no evento, acompanhada de seus humanos, ao lado de outras celebridades: Lil Bub, que virou documentário (leia abaixo), e Pudge, o gato bicolor.
          Gatos como esses são a ponta de uma indústria que movimenta anúncios, merchandising e agentes especializados: a Grumpy Cat, por exemplo, tem o mesmo empresário que o Keyboard Cat, o bicho que toca teclado em um vídeo visto 33 milhões de vezes.
          No Brasil, o atual sucesso é o site "Cansei de Ser Gato", que em quatro meses ganhou 128 mil fãs no Facebook. Diariamente, as criadoras do projeto fotografam o gato Chico com uma fantasia diferente.
          As donas de Chico, Stefany Guimarães, 24, e Amanda Nori, 25, largaram o emprego na publicidade para tocar o site.
          Por que gatos são tão populares? "É o jeito blasé e caricato", diz Stefany. Para Stulen, é porque eles não querem ser filmados, o "que torna tudo mais engraçado."
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          CELEBRIDADES DE QUATRO PATAS
          Quem são os gatos mais famosos da internet e os destaques do Internet Cat Video Festival
          'Grumpy Cat' Vencedor da última edição do evento, o vídeo da gata que faz cara de mal-humorada enquanto é acariciada foi visto 13 milhões de vezes
          'The Two Talking Cats' Duas gatas ronronam uma para a outra por um minuto e se lambem em vídeo acessado 54 milhões de vezes
          'Cat Licking Vacuum Cleaner' Em um dos destaques do festival, um bichano faz cara de muito sério enquanto lambe um aspirador
          'Jedi Kittens' Nessa montagem com som e efeitos especiais, dois felinos travam um duelo de sabres de luz no estilo da saga "Star Wars"
          'Nyan Cat' Três minutos de musiquinha repetitiva e visual de videogame antigo resumem o vídeo de gato mais assistido da web: 103 milhões de vezes

          OPINIÃO
          Vídeos são fofos e criativos, mas apelar aos bichos é rebaixar o nível
          FABIO CYPRIANOCRÍTICO DA FOLHASão todos muito fofos, são todos uma graça, mas os clipes com os gatinhos exibidos no Internet Cat Video Festival --o nome até que é bom-- são mais um exemplo de eventos popularescos, que mais confundem a já confusa compreensão do que pode ser visto como arte contemporânea.
          Como estratégia para buscar novos públicos ao museu, o formato até poderia ser valido: retirar da internet conteúdo que chama a atenção, levando uma atividade que costuma ser individual a tornar-se um evento coletivo.
          Os vídeos são criativos e engraçados, já alcançaram milhões de observadores, mas não estão nada longe de outro besteirol recente, a dancinha do "Harlem Shake".
          E aí reside a questão essencial: será que é preciso rebaixar tanto o nível?
          Há um desespero, comum a muitos museus em todo mundo, em alcançar maiores bilheterias, legitimando-se pela quantidade de visitantes e não pela qualidade do que é exposto. É nesse contexto que se pode olhar para eventos como o Internet Cat Video Festival.
          Estratégias assim simplistas são pura jogada de marketing. Com tantas obras em vídeo polêmicas, divertidas e até sensacionalistas, que poderiam ajudar a atrair público, apelar para os gatinhos é uma opção fácil demais.
            Documentário analisa fenômeno da gataria
            ALINE PELLEGRINIDE SÃO PAULOO documentário "A Gatinha Lil Bub e Seus Amiguinhos", que passa hoje em São Paulo, dá aos gatos da web o status dos Beatles e analisa o fenômeno.
            "Gatos são admirados porque servem de veículo para tudo, tanto como piada quanto como fonte de conforto", diz a documentarista americana Juliette Eisner, que dirige o longa com Andy Capper.
            "Vídeos de gatos são considerados arte", diz Eisner, a artista. Seu filme é protagonizado por Lil Bub, gata famosa pela eterna aparência de filhote, decorrente de mutação genética.
            Para Chris Swanson, distribuidor dos produtos de Bub e dono de gravadora, os vídeos são sucesso porque gatos "são mais acessíveis do que indie rock".
            No filme, Ben Lashes, empresário da gata Grumpy, que também participa do elenco, se empolga ao descrever um passeio com ela em Nova York e o assédio de fãs: "É como se John Lennon tivesse voltado à vida".