domingo, 27 de outubro de 2013

Minha história: Inventor ganha na Justiça a autoria da frase "chamada a cobrar"

DEPOIMENTO A...
NATÁLIA CANCIAN
folha DE SÃO PAULO
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"Chamada a cobrar. Para aceitá-la, continue na linha após a identificação." A frase faz parte do sistema de ligação direta a cobrar, criado por Adenor Martins de Araújo, 72.
Para ser reconhecido, foi preciso ir à Justiça contra a Telebras, para a qual a invenção era de domínio público. "Foi muita luta. Mas Davi venceu Golias."
*
Tudo surgiu de uma necessidade. Eu tinha crianças no colégio. A minha menina, de 11 anos, estudava no centro. Um dia, ela esqueceu o dinheiro do ônibus para voltar.
Ela foi até a empresa da minha mulher, mas a mãe tinha saído. Pediu dinheiro emprestado, mas não deram. Sem ficha, ela não podia ligar para casa. Ficamos sem notícias. Ela esperou sentada numa galeria, sem almoço, até que a mãe chegou, às 14h.
Tinha que encontrar uma solução. Não só para o caso dela, mas para emergências. Eu também viajava muito e procurava alternativas para falar com a família.
Naquele tempo, os orelhões funcionavam com ficha telefônica, e nem sempre havia onde comprar. Ligações interurbanas eram até 40% mais caras, ficava constrangido se estivesse na casa de um amigo.
Mas o único jeito de ligar a cobrar era via telefonista, numa fila que às vezes levava horas. Ficava indignado. Foi aí que comecei a fazer o projeto, à noite. Comecei a desenhar um circuito. Do papel, passei a um protótipo.
Foi o primeiro serviço com mensagem gravada. Escrevi e pedi para um locutor gravar. A mensagem era a mesma, só foi cortada uma introdução. A original começava com "Você está recebendo uma ligação a cobrar". No outro lado: "Você está fazendo...". Fiz isso em duas fitas cassete, que tinham dois canais. Um com a voz do locutor. Outro, um bip de sincronismo.
Também tinha outros detalhes. Na ligação normal, se eu colocar o telefone no gancho, não te derrubo. A cobrar, precisava desligar no ato. E depois botei o "9" para indicar um DDD a cobrar, invertendo a tarifação.
Arquivo pessoal
Adenor Martins de Araújo, 72, mostra foto de homenagens pela sua invenção
Adenor Martins de Araújo, 72, mostra foto de homenagens pela sua invenção
CONTINUE NA LINHA
Para fazer tudo, ficava acordado até madrugada. Quando as coisas surgem, você tem que pôr em prática logo, antes que desanime.
Levou dois meses para concluir o protótipo e testar. Quando vi que ia resolver o problema dos usuários, fiz uma carta para a Telesc, onde trabalhava, e pedi testes.
Instalei o equipamento em Blumenau, no primeiro teste de campo, e perguntei a um diretor se ele queria fazer uma ligação nacional. Para minha surpresa, ele ligou para o ministro das Telecomunicações, Haroldo de Mattos, que estava no Rio. Considero essa a primeira ligação oficial a cobrar.
Em 1982, começou a implantação do sistema, por Santa Catarina. Quando recebi a carta-patente, em 1984, ainda estavam implantando.
Com a invenção, não teve mais telefonista, mesa interurbana, trabalho manual. O custo operacional das telefônicas caiu. O serviço teve aceitação imediata. Fui homenageado. Ministro, presidente da Telebrás e governador me cumprimentaram. E depois quiseram anular a patente.
Foi aí que a luta na Justiça começou. Por lei, tinha direito de cobrar royalties e até exportar a tecnologia. Mas nunca ganhei nada. Só paguei. Se vir o que gastei, podia ser um cara rico [ri].
Também sofri pressão. Trabalhava na Telebrás e fui a Brasília gerenciar um projeto. Diziam que, se não entregasse a patente, iriam me mandar de volta a Florianópolis. Era o fim do regime militar. Sentia-me uma formiga pisoteada por um elefante.
Fui transferido para Florianópolis. Tive que voltar sozinho, minha família depois. Foi difícil. Depois a situação melhorou, ocupei cargos de chefia, me aposentei. Também montei a minha empresa. Nunca parei de trabalhar.
Desde que inventei o protótipo, já se passaram 33 anos, 25 na Justiça. No dia 1º, meu advogado me ligou, disse que estava saindo do julgamento [no STJ]. Fui reconhecido como o único inventor da chamada a cobrar.
Usei muito meu sistema, e ainda uso. Antes era o problema da ficha [telefônica]. Hoje é o pré-pago. Mesmo com celular, sempre tem alguém que precisa usar. Os jovens vivem sem crédito, não é?
OUTRO LADO
Procurada pela reportagem, a companhia Telebras informou que o caso é da época da antiga holding de mesmo nome, que foi desmembrada e vendida após ser privatizada, em 1998.
A atual Telebras diz não ter envolvimento no processo, por ter sido recriada em 2010.
Em Santa Catarina, a Telesc, empresa que fazia parte da Telebras, passou para o comando da antiga Brasil Telecom, hoje Oi. A Oi, por sua vez, afirmou que não comentaria o caso.
Oi não comenta; teles negam envolvimento
DE SÃO PAULO
Procurada pela reportagem, a companhia Telebras informou que o caso é da época da antiga holding de mesmo nome, que foi desmembrada e vendida após ser privatizada, em 1998.
A atual Telebras diz não ter envolvimento no processo, por ter sido recriada em 2010.
Em Santa Catarina, a Telesc, empresa que fazia parte da Telebras, passou para o comando da antiga Brasil Telecom, hoje Oi.
A Oi, por sua vez, afirmou que não comentaria o caso.

Neschling 'pariu' salto de qualidade - João Batista Natali

folha de são paulo
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A história de uma orquestra sinfônica está ligada à criação de uma cultura interna, na qual músicos e maestros introduzem uma visão singular das obras do repertório.
A Osesp tentou por duas vezes parir sua cultura. A primeira com Eleazar de Carvalho, regente titular entre 1973 e 1996. Mas só o segundo parto, operado por John Neschling, foi bem-sucedido. Ao assumir e reformular a orquestra, em 1997, Neschling deu a ela um padrão até então desconhecido entre as sinfônicas brasileiras.
Pouco antes de morrer, em 1996, Eleazar disse à Folha que uma grande orquestra só era viável se os músicos recebessem o equivalente a US$ 5 .000 mensais. Mas o orçamento que Estado dava a ele naquela época só permitia salários de R$ 1.200 (um quarto do ideal).
A questão não é financeira. É sobretudo artística. Instrumentista mal pago precisa se desdobrar em aulas particulares, cachês em casamentos ou gravações de publicidade para reforçar o pagamento.
Eleazar foi um grande maestro. Assistente do russo Sergei Koussevitzky, na Sinfônica de Boston, foi titular da Sinfônica de Saint Louis (1963-68), colocando-a no mapa das grandes orquestras americanas.
Mas a Osesp que ele criou em 1973 -ainda chamada de "estadual", em oposição à doTheatro Municipal- teve muitos altos e baixos, sobretudo quando seus músicos, a exemplo do resto do funcionalismo público noregime militar, tinham salários achatados.
Apesar disso, Eleazar tinha uma visão primeiro-mundista do repertório. Fez a integral das nove sinfonias de Gustav Mahler, das nove de Beethoven, das nove de Bruckner e também das 41 de Mozart. Sem a possibilidade de longos períodos de ensaios, os resultados nem sempre eram brilhantes.
O melhor período de Eleazar foi por volta de 1975. A "estadual" se apresentava regularmente no Teatro de Cultura Artística e era honestamente remunerada.
As vacas magras vieram em seguida, quando ela passou a se apresentar no Cine Copan e a seguir no Auditório Simón Bolívar, do Memorial da América Latina. A questão não era apenas a arquitetura inadequada ou a acústica lastimável. A decadência orçamentária afetava o amor-próprio dos músicos.
Se a Osesp (o nome surgiu em 1978) não dava o melhor de si, é porque seus instrumentistas tinham nela apenas um "bico". O empobrecimento da sonoridade desencantava Eleazar e seu então assistente, Diogo Pacheco.
Pior do que aquilo só havia sido a crise de 1956, com o então maestro Souza Lima, quando o Estado fechou suas torneiras para os músicos. A orquestra hibernou e ressurgiria apenas depois de um período de inatividade de oito anos.
PENEIRA
Mas às vésperas da morte de Eleazar, a Osesp já seria potencialmente uma grande orquestra? A resposta é: não. Tanto que Neschling, ao assumir, demitiu coletivamente os músicos. Os que quisessem ficar precisariam passar pela peneira de audições (concursos). Apenas 44 deles foram reaproveitados.
A esse núcleo se agregaram instrumentistas contratados no exterior. Houve um salto de qualidade. Com novos salários (R$ 4.800 por mês), os ensaios para duas récitas semanais, às quintas e aos sábados, eram de oito horas. O atual padrão Osesp começou a emergir no Teatro São Pedro, com seus 636 lugares, de início ocupados pela metade. Hoje a Sala São Paulo, com seus 1.500, está sempre lotada.
O Brasil tinha finalmente uma grande orquestra. Não era mais preciso concentrar o vigor sinfônico nos conjuntos estrangeiros que chegavam pelo Mozarteum ou pelo Cultura Artística.
Neschling, por vezes autoritário, quase sempre ególatra, soube esculpir, com a Osesp, sua grande obra biográfica.
Diversificou de modo radical o repertório. Era preciso que Dutilleux, Britten, Gubaidulina, Hindemith ou Korngold se incorporassem ao "clube" de Beethoven, Schumann ou Chopin.
O mesmo aconteceu com os compositores brasileiros, como Camargo Guarnieri, Francisco Braga, Cláudio Santoro, Gilberto Mendes, Ronaldo Miranda, André Mehmari ou Ricardo Tacuchian, e não apenas Villa-Lobos.
Essa imersão numa maior diversidade, obviamente, ajudou a catapultar a Osesp para o padrão que ela ocupa hoje.
Os dois titulares que se seguiram a Neschling -Yan Pascal Tortelier (refinado no repertório francês), de 2009 até 2013, e a americana Marin Alsop (uma perfeccionista), de 2012 até hoje- não precisaram criar uma nova cultura para a orquestra. A Osesp já era dona de seu jeito superlativo de fazer música.
JOÃO BATISTA NATALI, 65, é professor de ética jornalística na Casper Líbero.

Um palco todo seu - Morris Kachani

folha de são paulo
Um palco todo seu
Tons e subtons de seis décadas de Osesp
MORRIS KACHANI
RESUMO Turnê pela Europa que se encerra hoje deu início às comemorações dos 60 anos da Osesp. Hoje dona de orçamento vultoso e de crescente prestígio internacional, a orquestra teve história pontuada, até sua reestruturação e a inauguração da Sala São Paulo, em 1997, por baixos salários e instalações precárias.
Quando hoje à noite soarem os últimos acordes do "Titã" de Gustav Mahler no Bridgewater Hall, em Manchester, a Osesp terá concluído sua nona turnê pela Europa. Com orçamento de cerca de R$ 6 milhões, o tour que levou 120 pessoas e sete toneladas de equipamento a 13 cidades, em 15 concertos ao longo de 21 dias, deu início ao ciclo das comemorações de 60 anos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, que se completam em setembro de 2014.
O giro levou a agrupação a templos da música, como a Salle Pleyel, em Paris, e o Royal Festival Hall, em Londres, tocando nas mesmas séries que algumas das melhores do mundo, como a Filarmônica de Viena e a holandesa Concertgebouw.
"A Osesp está prestes a se tornar uma orquestra séria no contexto global", afirma àFolha James Jolly, editor-chefe da tradicional revista britânica "Gramophone". Para ele, a nomeação da norte-americana Marin Alsop como regente titular, a partir de 2012, "fez emergir uma identidade internacional da orquestra".
"A Osesp tem energia, flexibilidade e entusiasmo palpável. Isso é tão importante quanto tradição e herança cultural. Música clássica não é peça de museu. A vitalidade e a habilidade para se conectar com o público de hoje (e de amanhã) são essenciais. É uma orquestra da nova geração que já tem esse status", completa Jolly.
Foi a partir de sua reestruturação, em 1997, que a Osesp mudou a paisagem da música erudita brasileira. Sua trajetória de sucesso e o impressionante acúmulo de conquistas são consequência de uma injeção vultosa de recursos e de determinante vontade política.
Segundo levantamento do anuário "Viva Música!", publicação de referência sobre a atividade orquestral no país, foram 242 concertos em 2012, para 238.111 pessoas. E, no ano passado, além do corpo fixo de 169 músicos (115 da orquestra e 54 do coro), foram contratados por cachê outros 285.
SÍMBOLO O maior símbolo da pujança da Osesp é a Sala São Paulo. O lugar onde se ergue, na região central da cidade, era antes um grande hall descoberto, com muitas palmeiras: o jardim da estação ferroviária Júlio Prestes, projetada pelo arquiteto Cristiano Stockler das Neves e inaugurada em 1938.
Em 1999, quando foi reaberto como Sala São Paulo, o espaço tinha recebido projeto acústico sofisticado, com um teto móvel, composto de 15 placas de aço, de 7,5 toneladas cada, recobertas de madeira e movimentadas individualmente por computador para se ajustar à obra musical executada. O projeto ganhou o Architecture Honor Award 2000 nos quesitos de arquitetura, restauração e tecnologia. O prêmio foi conferido pelo Usitt (sigla em inglês para Instituto do Teatro dos EUA).
A Sala São Paulo, porém, representa mais do que uma conquista tecnológica. Sua inauguração deu uma sede própria à orquestra, que vinha de uma trajetória errante, feita de poucos momentos de glória e inúmeros de renúncia, pontuada pelo abandono do poder público e pela aflição dos músicos.
Embora tenha sido seu primeiro regente titular, em sua autobiografia o maestro João de Souza Lima (1898-1982) não a menciona uma única vez. Em dissertação de mestrado, o oboísta Arcádio Minczuk revisita a história da orquestra e encontra o depoimento do spalla Natan Schwartzman: "A verba que o governo estadual preparou para a orquestra [em 1954] foi de apenas um mês. Então nós ainda ficamos tocando dois meses para ver se a Assembleia Legislativa poderia fazer alguma coisa. Depois, ficou todo mundo debandando".
A Osesp de hoje deve muito ao sonho de Eleazar de Carvalho, o maior regente brasileiro. O maestro, porém, não pôde ver a concretização de seus desejos para a orquestra, cujo comando assumiu em 1973. Ele, que lecionou na Universidade de Yale e na Juilliard, e teve entre seus alunos Zubin Mehta, Seiji Ozawa e Claudio Abbado, morreu em setembro de 1996.
O pianista e maestro João Carlos Martins acredita que, se Eleazar estivesse hoje à frente da orquestra, ela "estaria entre as cinco melhores do mundo". No tempo em que a Osesp residiu no teatro Cultura Artística, de 1975 até 1985, houve apresentações memoráveis. O primeiro ciclo completo das sinfonias de Mahler e a "Sinfonia Fantástica" de Berlioz, uma especialidade de Eleazar, são evocativos dessa época. Mas, alguns anos mais tarde, a orquestra também chegaria a tocar para seis pessoas em uma antiga sala de cinema, dentro do edifício Copan.
A transformação do cinema em teatro e sede da orquestra ocorreu na gestão Franco Montoro (1983-87), com o secretário da Cultura Jorge da Cunha Lima. A acústica do local era péssima, e o espaço administrativo ficou mais restrito do que na casa anterior. O único equipamento era um telefone, sem linha para ligar para o exterior ou fax. Não havia ar-condicionado.
Em 1988, a Osesp fez ensaios e apresentações nos auditórios dos clubes Hebraica e Paulistano, da escola Caetano de Campos e nas arcadas do largo de São Francisco. Um ano depois, passou a residir no Memorial da América Latina, mas, sem contar com prioridade no uso do auditório, parte dos ensaios passou a acontecer fora dele, até no restaurante do local.
Faltava amor próprio ao conjunto, e muitos viviam dele como se fosse um "bico". Por várias vezes o maestro precisou alterar a programação, especialmente quando havia peças como "Sagração da Primavera", de Stravinsky.
"Os salários dos músicos às vezes atrasavam e eram baixos. Eleazar também tinha dificuldade em ampliar a orquestra --eram poucos os músicos qualificados disponíveis. Por isso havia volatilidade e ele se via obrigado a alterar a programação com peças que não exigissem orquestração completa", explica o trompetista Gilberto Siqueira, que, aos 63 anos e 40 de Osesp, é seu músico mais antigo.
A elegância e a precisão dos gestos de Eleazar e seu profundo conhecimento sobre as obras sempre foram louvados. Mas as dificuldades enfrentadas pela orquestra o consumiam. De temperamento intempestivo, o regente se indispunha frequentemente tanto com os músicos quanto com políticos.
Diante desse quadro, segundo conta o maestro Diogo Pacheco, que foi seu assistente, ele resolveu adotar o pragmatismo. "Quando não se pode fazer o que se deve, deve se fazer o que se pode: ele vivia repetindo essa frase", recorda.
IMPROVISO O velório de Eleazar de Carvalho marcou o ponto de mutação. A cerimônia foi realizada no Theatro Municipal, com o caixão sobre o palco. Formações sinfônicas revezadas o rodeavam, executando obras de Bach e outros compositores. A certa altura, o trompetista Gilberto Siqueira, num arroubo, discursou de improviso.
"Falei sobre uma coisa muito importante, pela qual o Eleazar havia lutado pela vida inteira e não tinha conseguido conquistar. Até para ser velado ele precisou de uma casa emprestada", lembra Siqueira. "O Municipal, que estava lotado, veio abaixo, como no final de uma ópera." O governador Mario Covas estava presente. Marcos Mendonça, secretário de Cultura à época, estava a seu lado e atesta: "Esse discurso teve uma influência no rumo dos acontecimentos".
O rumo atual é amparado por uma realidade oposta à do período de Eleazar. Com orçamento de R$ 98 milhões anuais, a Osesp, se fosse norte-americana, só ficaria atrás das "big five" (Los Angeles, Boston, San Francisco, Nova York e Chicago).
Desse total, R$ 55 milhões anuais são subvencionados pelo Estado. Além disso, a captação própria de recursos cresceu de R$ 15 milhões, em 2006, para R$ 43 milhões, em 2012, perfazendo o total que sustenta as atividades.
Apresentado aos dados, o editor britânico James Jolly se espanta com a proporção do crescimento. No mesmo momento, orquestras do mundo todo se contraíam: a crise de 2008 fez encolher as doações na Europa e nos Estados Unidos.
Na Grã-Bretanha, a BBC gastou o equivalente a R$ 114 milhões em 2012 para suas cinco orquestras: BBC Symphony, BBC Philharmonic, National Orchestra of Wales, BBC Scottish e BBC Concerto Orchestra. Elas não sofrem as pressões de orquestras independentes, e a venda de ingressos importa menos do que as transmissões.
"É meio arriscado comparar orçamentos, pois cada orquestra tem suas características. A BBC Symphony e a BBC Philarmonic estariam no segundo escalão das boas orquestras internacionais. Mas seu orçamento demonstra que é possível administrar uma boa orquestra com muito menos dinheiro do que muitas fazem", afirma Jolly.
Marcelo Lopes, diretor-executivo da Osesp, rebate: "As comparações com orquestras inglesas são bem impróprias: reconhecidamente são as mais mal pagas da Europa". Além disso, "os impostos sobre salários são bem menores lá do que no Brasil" diz. E acrescenta que o "prestígio" funciona como "facilitador". "Os grandes artistas querem mesmo tocar em Londres e, sabendo da situação, acabam aceitando cachês mais baixos."
De acordo com Lopes, 50% do orçamento da Osesp é gasto com pessoal. Outros 25%, com orçamento artístico --cachês de regentes e solistas convidados (serão 70 em 2014, com valores que variam de US$ 5.000 a US$ 20 mil), passagens, hospedagem. E 8%, com manutenção predial. O restante se distribui em despesas variadas.
Também a captação própria de recursos, que quase triplicou nos últimos sete anos, depende, ainda que indiretamente, do setor público. Lopes afirma que os aumentos foram em grande parte suscitados pelo benefício da Lei Rouanet.
Os projetos incentivados lideram o ranking das fontes de arrecadação. Respondem basicamente pelos gastos das temporadas anuais, turnês e, mais recentemente, do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, gerido pela Osesp desde 2012.
Foram captados, através da Lei Rouanet, R$ 14 milhões para a temporada de 2012; para o festival, foram R$ 3,5 milhões. Os maiores patrocinadores (acima de R$ 100 mil) incluem instituições financeiras, como Banco do Brasil e Credit Suisse, e multinacionais, como Atlas Schindler e Basf.
CONTEXTO Os custos da orquestra não se devem só aos esforços por excelência, mas ao projeto maior da Osesp, o contexto no qual a orquestra se insere.
As ações educativas, por exemplo, devem atingir, em 2013, 120 mil crianças, por meio dos concertos didáticos e de ensaios abertos. Só até julho foram 38 dessas apresentações, nas quais o público tem acesso a um repertório introdutório e conhece os instrumentos, muitas vezes até subindo no palco. No ano passado, mais de 900 professores receberam capacitação para orientar alunos em sala.
Há também as produções fonográficas. Até hoje a orquestra já gravou 64 álbuns, por selos brasileiros e do exterior. Nesse quadro, têm destaque composições nacionais. A Osesp registrou todo o ciclo dos choros e bachianas de Villa-Lobos e resgatou obras de brasileiros da primeira metade do século passado, como Camargo Guarnieri e Francisco Mignone. No ano que vem, estreia no prestigiado selo Decca, com um CD que terá obras interpretadas pelo pianista Nelson Freire, sob regência de Marcelo Lehninger, e outro com peças brasileiras regidas por Marin Alsop.
A Osesp também conta com uma editora de partituras, a Criadores do Brasil, lançando uma média de 15 obras de brasileiros ao ano, além do trabalho de recuperação e publicação do repertório nacional.
A busca por uma identidade brasileira da orquestra se reflete também no percentual de apresentações dedicadas ao repertório nacional, que no ano passado bateu os 10%. Para James Jolly, da "Gramophone", é um balanço razoável: "É importante prestigiar a produção local. Duvido que as orquestras inglesas executem o repertório britânico nessa proporção".
Para Arthur Nestrovski, diretor artístico da Osesp desde 2010, a palavra-chave na composição dos programas é "equilíbrio".
"Há um esforço para contemplar os mais variados estilos, períodos e formações musicais ao longo da temporada. Tanto os compositores centrais do repertório --Beethoven, Mozart, Brahms, Tchaikovsky-- como os autores do nosso tempo e os compositores do século 20 aparecem regularmente nos programas, assim como os criadores brasileiros, do passado e do presente. Queremos cultivar a tradição e ao mesmo tempo acompanhar a produção atual."
"Nenhuma outra orquestra desse porte toca mais brasileiros do que a Osesp --de longe. Nenhuma faz mais encomendas (pelo menos seis por ano)", acrescenta.
REESTRUTURAÇÃO Quando a reestruturação da Osesp passou a se desenhar, Marcos Mendonça tinha alguns trunfos no seu currículo de secretário de Estado da Cultura. A reforma da Pinacoteca, empreendida por Paulo Mendes da Rocha, estava em andamento. Um ano antes, o museu havia abrigado a célebre exposição de Rodin, que teve mais de 180 mil visitantes.
Marcelo Lopes, diretor-executivo da Osesp, lembra que o projeto partiu das diretrizes básicas lançadas por Eleazar de Carvalho.
O conceito se erguia sobre duas bases: a requalificação dos músicos e a construção de uma sala de alta qualidade acústica. A esses pilares seria acrescida a institucionalização da Osesp, a partir da criação de uma organização com mais autonomia de gestão. Isso determinou a criação da Fundação Osesp, em 2005, contratada pela Secretaria de Estado da Cultura para gerir a orquestra e seus projetos, como organização social (OS).
O modelo, porém, não é unânime. Para Carlos Augusto Calil, secretário municipal de Cultura entre 2005 e 2012, "as OSs não são uma maravilha, mas funcionam". "No caso da Osesp, o governo do Estado não tem mais uma orquestra: ele a transferiu para uma fundação de direito privado."
No último ano da gestão de Gilberto Kassab como prefeito, Calil criou uma fundação de direito público para administrar o Theatro Municipal. "A diferença é que a fundação é do município, e o Theatro não foi privatizado", pontua. Ele explica que a fundação poderá contratar uma OS para gerir as atividades artísticas, mas o planejamento se mantém na fundação, que agirá como intermediária entre a administração direta e a OS.
Para o secretário de Estado da Cultura, Marcelo Araújo, a fundação "é injustamente criticada como modelo de privatização quando, na verdade, busca agilidade na gestão, na implantação das políticas e diretrizes fixadas pela secretaria".
Segundo ele, a Fundação Osesp se tornou referência de administração cultural para várias outras instituições do país. Hoje todos equipamentos da secretaria funcionam dentro desse modelo. São 25 contratos de gestão com 20 OSs.
MÃO DE FERRO A consolidação da reestruturação deve grande parte de seu êxito ao perfeccionismo e à mão de ferro do maestro John Neschling, contratado em março de 1997. Acumulando os cargos de regente titular e diretor artístico, ele saiu do zero absoluto, em termos de assinantes, a 11.626 subscritores (hoje são 12.303). O piso salarial, que à sua chegada era de R$ 1.500, está em R$ 10.897.
Tão ou mais lembrada quanto a excelência de Neschling, no entanto, é sua vaidade. Antes de ser contratado, ele já dizia: "Eu não preciso da orquestra, a orquestra é que precisa de mim". Acabou demitido em 2009. Hoje à frente do Theatro Municipal, o regente não quis falar à reportagem. "Neschling é um grande empreendedor, honesto e comprometido, com um conhecimento incrível. É, também, um homem de relacionamento zero", define o veterano Siqueira.
O momento mais delicado do processo foi a requalificação dos músicos, que ocorreu três meses após a contratação de Neschling.
Todos deveriam ser submetidos a exames de seleção. Houve muita oposição e desconfiança, com trocas de acusações de parte a parte. Por fim, dos 97 integrantes da antiga estrutura da Osesp, 68 se inscreveram para as audições, e 44 foram aprovados para integrar a nova orquestra.
A necessidade emergencial à época, de acordo com Arcádio Minczuck, autor de uma dissertação de mestrado sobre a Osesp, era por instrumentistas de cordas.
Por isso, a opção foi realizar audições em países com tradição na formação desse tipo de instrumentista. O momento colaborava: ganhava-se mal no Leste Europeu. Foram feitas audições em Bucareste (Romênia) e Sofia (Bulgária), e 16 músicos foram trazidos.
Hoje, 25% dos instrumentistas da Osesp são estrangeiros --10% da orquestra provém de países europeus; outros 8% são russos.
INCOMPLETO Carlos Augusto Calil considera a Osesp "um projeto incompleto". "Apesar do alto padrão musical, a orquestra não tem ainda uma identidade brasileira, latino-americana. O seu parâmetro é estrangeiro, reproduzindo a mentalidade colonial, que predomina no país", afirma.
Para o ex-secretário municipal de Cultura, mesmo a relação da agrupação com o entorno é falha.
"O fato de você entrar na sala São Paulo como se fosse em uma fortaleza blindada, com o carro de vidros fechados, mostra que, infelizmente, o poder público não cuidou de promover a integração com o bairro. No entorno, encontram-se algumas das mais importantes instituições culturais da cidade, como a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa e o Sesc Bom Retiro, além das duas estações ferroviárias e do parque da Luz."
A Osesp, porém, ressalta sua política de democratização do acesso a suas atividades.
Atualmente, 62% do público da Osesp não paga ingresso ou paga até R$ 15 por uma entrada de concerto. Em 2012, foram 7 concertos gratuitos da Osesp, 21 de orquestras parceiras, 30 ensaios gerais abertos, 37 concertos fora da Sala São Paulo e 27 do projeto Osesp Itinerante, que levou a orquestra a nove cidades do interior do Estado. As turnês pelo interior ou em outros locais, como o parque Ibirapuera, atingiram um público de 96.788 pessoas. Na fronteira virtual, a Osesp inaugurou os concertos digitais e oferece gratuitamente no seu site (osesp.art.br) download de gravações, podcasts e textos.
A orquestra também atua no campo de formação de músicos. Conta com uma academia com 40 alunos bolsistas, em tempo integral --quatro dos atuais membros da agrupação saíram dela. Além disso, o Festival de Inverno de Campos do Jordão tem um projeto pedagógico para alunos bolsistas --neste ano, foram 144.
Em entrevista à Folha, o executivo Fábio Barbosa, recentemente nomeado presidente da Fundação Osesp, sucedendo Fernando Henrique Cardoso, afirmou que o momento é de consolidação.
"Os horizontes se abriram, na medida em que a orquestra se tornou mais respeitada. No momento estamos definindo as linhas do planejamento estratégico para os próximos anos. Mais ações de educação ou menos? Mais ou menos turnês? Quais iniciativas nos levariam a ter uma orquestra da qual a população e a sociedade se orgulhariam ainda mais?"

Saladino e Natã - GOTTHOLD EPHRAIM LESSING tradução JACÓ GUINSBURG e INGRID DORMIEN KOUDELA ilustração ANA SARIO

folha de são paulo

Saladino e Natã



GOTTHOLD EPHRAIM LESSING
tradução JACÓ GUINSBURG e INGRID DORMIEN KOUDELA
ilustração ANA SARIO

SOBRE O TEXTO Este trecho é parte da cena 7 do terceiro ato da peça "Natã, o Sábio", de Gotthold Ephraim Lessing (1729-81). A obra do dramaturgo alemão que versa sobre as três religiões monoteístas será publicada em livro que a Perspectiva prepara para 2014. "Nathan, o Sábio", filme de 1922 inspirado no texto, será exibido hoje na área externa do Auditório Ibirapuera, às 20h, na programação da Mostra de Cinema de São Paulo.
*
Saladino (À parte: - Então o campo aqui está livre!) - Não estou voltando rápido demais? Você já se acha no fim de suas reflexões. - Agora então, fale! Não nos ouve alma alguma.
Natã - Tomara que o mundo inteiro também nos ouça.
Saladino -Tão seguro está Natã de sua causa? Ah! Isto é o que eu chamo de sábio. Nunca esconder a verdade! Por ela colocar tudo em jogo! De corpo e alma! Os bens e o sangue!
Natã - Ah sim, sim! Quando é necessário e útil.
Saladino - De agora em diante me é dado, espero, trazer com todo direito um de meus títulos, o de Melhorador do Mundo e da Lei.
Natã - Deveras, um belo título! Porém, sultão, antes que eu me confie por inteiro a você, permita que lhe conte uma pequena história?
Saladino - Por que não? Sempre fui amigo de histórias, se bem contadas.
RUBENS FIGUEIREDO,
Natã - Sim, contar bem, isso não é exatamente o meu forte.
Saladino - Já, de novo, tão orgulhosamente modesto? - Vamos! Conte, conte!
Natã - Há muitos e muitos anos vivia no Oriente um homem que possuía um anel de valor inestimável, recebido de mãos queridas. A pedra era uma opala, que cintilava com cem cores das mais belas, e tinha a força secreta, a de tornar agradável a Deus e aos homens quem usasse o anel com essa confiança. Seria de admirar que um homem no Ocidente nunca o tirasse do dedo, e tomasse a disposição a fim de conservá-lo para sempre na família em sua casa? E assim foi. Ele deixou o anel ao filho mais amado; e estipulou que este, por sua vez, também o deveria deixá-lo em herança ao filho que mais amasse; e sempre o mais amado, sem levar em conta a ordem do nascimento, por força do anel, se tornaria o cabeça, o príncipe da casa. -
Está me entendendo, magnífico sultão?
Saladino - Estou. Continue!
Natã - Foi assim que esse anel, de filhe em filho, chegou por fim a um pai de três filhos; todos os três lhe eram igualmente obedientes; e a todos três ele não podia impedir-se, por consequência, de amá-los igualmente. Apenas, de tempo em tempo, ora este, ora aquele, ora o terceiro - quando cada um deles se encontrava sozinho com ele e os outros dois não partilhavam de seu transbordante coração - parecia-lhe mais digno do anel; pois ele também tinha a piedosa fraqueza de prometê-lo a cada um deles. Isso continuou assim, enquanto continuou. Mas quando chegou a hora da morte, o bom pai viu-se em apuros. Doía-lhe ferir de tal modo dois de seus filhos que haviam confiado em sua palavra. - O que fazer? - Ele mandou procurar em segredo um joalheiro, a quem encomendou, conforme o modelo de seu anel, dois outros, e lhe ordenou que, sem poupar gastos nem labor, os fizesse iguais, perfeitamente iguais ao molde. Isso o joalheiro conseguiu. Quando ele lhe trouxe os anéis, nem o próprio pai pôde distinguir o original. Alegre e animado, ele chamou os filhos, um de cada vez, e deu a cada um em separado a sua benção - o seu anel - e morreu. - Está ouvindo, sultão?
Saladino (que, surpreendido, se afasta) - Estou ouvindo, estou ouvindo! - Chega logo ao fim com essa sua história. - Vai chegar?
Natã - Estou no fim. Pois, o que segue, compreende-se por si próprio. Mal o pai morreu, cada um dos filhos veio com o seu anel e cada qual quis ser o príncipe da casa. Examinaram, brigaram, reclamaram. Em vão; não era possível provar qual era o verdadeiro anel. (Após uma pausa, na qual espera a resposta do sultão.) - É quase tão difícil de provar, como para nós agora - a verdadeira fé.
Saladino - Como? Essa deve ser a resposta à minha pergunta?...
Natã - Queira desculpar-me se não ouso diferenciar os anéis que o pai mandou fazer com o propósito de que com isso eles não fossem diferenciáveis.
Bruno Poletti / Folhapress
Ilustração da artista Ana Sario
Ilustração da artista Ana Sario
Saladino - Os anéis! - Não brinque comigo! - Eu pensaria que as religiões, que eu lhe mencionei, fossem de fato diferentes uma da outra, até no vestuário, até na comida e na bebida!
Natã - E apenas nos seus fundamentos, não. Pois, elas não se fundamentam todas na história? Escrita ou transmitida oralmente! - E a história decerto tem de ser aceita, ela própria, por fé e crença? - Não é? -Ora, que fé e crença a gente põe menos em dúvida? A nossa? Aquela a cujo sangue nós pertencemos? Aquela que, desde a infância, nos deu provas de amor? Que nunca nos enganou, senão lá onde ser enganado era para nós mais benéfico? - Como posso eu acreditar menos nos meus pais do que você nos seus? Ou o inverso. - Posso eu exigir de você que desminta seus antepassados para que não contradigam os meus? Ou o inverso? O mesmo vale para os cristãos. Não é verdade?
Saladino - Pelo Vivente! O homem tem razão. Eu devo emudecer.
Natã - Permita que voltemos de novo aos nossos anéis. Como dissemos, os filhos acusaram-se uns aos outros; e cada qual jurou perante o juiz que havia recebido o anel diretamente da mão do pai. - O que também era verdade! - Isso, depois de ter tido, já de há muito, a sua promessa de que, um dia, desfrutaria do privilégio do anel. - O que não era menos verdade! - O pai, cada um deles afirmou, não poderia ter sido falso contra ele; e para não suspeitar isso dele, de um pai tão querido, era obrigado a acusar os irmãos pelo jogo desleal, por mais propenso que estivesse em outras coisas a crer somente o melhor respeito deles.
Saladino - Bem, e o juiz? - Tenho muita vontade de ouvir o que você deixou para o juiz dizer. Fale!
Natã - O juiz disse: "Se vocês não me trouxerem logo o pai até aqui, ordeno-lhes que saiam da frente de minha curul de magistrado. Pensam que estou aqui para decifrar charadas? Ou esperam que o anel verdadeiro abra a boca e fale? Mas esperem! Ouço que o anel verdadeiro tem o poder miraculoso de tornar amado o seu portador, agradável perante Deus e perante os homens. Isso é o que deve decidir! Porque os anéis falsos não poderão certamente fazê-lo! Pois bem; quem de vocês é o mais amado pelos outros dois? - Vamos, digam! Vocês calam? Os anéis só atuam para trás? E não para fora? Cada um de vocês só ama a si próprio, sobretudo? - Ah! Então todos os três são trapaceiros trapaceados. Seus anéis não são todos os três autênticos. O autêntico provavelmente foi perdido. Para esconder isso, para substituir essa perda, o pai mandou fazer os três por um".
Saladino - Esplêndido! Esplêndido!
Natã - "E assim", prosseguiu o juiz, "se vocês não querem o meu conselho, em lugar de minha sentença: Vão em frente! - Meu conselho, porém, é o seguinte: tomem a coisa como ela se apresenta. Cada um de vocês tem o seu anel de seu pai, de modo que cada qual crê com certeza que seu anel é o autêntico. - É possível que o pai não quisesse mais tolerar a tirania de um anel único em sua casa! - E sem dúvida ele amava vocês, a todos os três, e os amava igualmente: visto que não quis preterir dois para favorecer apenas um. - É isso! Que cada um de vocês rivalize com ele apenas no amor incorrupto, livre de preconceitos. Que cada um de vocês se esforce nesse desafio a pôr à mostra o poder da pedra de seu anel. Que venha em ajuda desse poder com benignidade, com cordial espírito de conciliação, com prática do bem, com a mais entranhada devoção a Deus! E quando então o poder do anel se revelar aos filhos de seus filhos de seus filhos, daqui a mil, mil anos, eu os convidarei de novo a comparecer perante esta curul de tribunal. Então, um homem mais sábio do que eu estará sentado nela e lhes falará. Podem ir!" - Assim disse o modesto juiz!
GOTTHOLD EPHRAIM LESSING (1729-81) é poeta e dramaturgo alemão, autor de "Natã, o Sábio".
JACÓ GUINSBURG, 92, crítico, ensaísta e professor, é fundador da editora Perspectiva.
INGRID DORMIEN KOUDELA, 65, é docente da pós-graduação em artes cênicas da USP.

Reinvenção da existência - Evando Nascimento

folha de são paulo
RESUMO No momento em que as biografias suscitam amplo debate, é importante analisar o interesse cultural de publicá-las. Textos sobre a vida de filósofos e artistas, por exemplo, iluminam aspectos de suas obras, mas, como todo trabalho do gênero, devem ser encarados como uma reinterpretação, e não verdade absoluta.
*
Importa aqui refletir e testemunhar sobre o interesse cultural de escrever e publicar biografias hoje. Dada a complexidade da questão, vou recorrer a alguns exemplos que se relacionam sobretudo ao campo da filosofia e da literatura.
Começarei com um caso que me diz diretamente respeito. Por ter organizado o último evento de que Jacques Derrida participou, o colóquio internacional de 2004 sobre sua obra, no Rio de Janeiro, parceria da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Consulado da França, fui convidado a dar um testemunho para o trabalho biográfico de Benoît Peeters sobre Derrida (1930-2004), que estava se iniciando em 2007.
Refleti muito sobre o que seria relevante ou não narrar, principalmente por ter convivido com o pensador num momento de grande fragilidade física. A biografia foi publicada em 2010 e recebeu resenha extremamente elogiosa da psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco no "Le Monde".
Luciana Villas-Boas, então no comando editorial do grupo Record, convidou-me a prefaciar a tradução do livro, cuja edição eu lhe havia recomendado. "Derrida" acabou saindo neste ano, pelo selo Civilização Brasileira. O maior elogio que posso fazer ao livro é que contém muita informação importante mesmo para um estudioso de longa data do autor.
Peeters realizou uma pesquisa de fôlego durante três anos, lendo uma massa documental gigantesca e entrevistando uma centena de pessoas na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. É o tipo de abordagem que historiadores, jornalistas, críticos, teóricos e escritores desempenham com competência.
No entanto, há um episódio no volume bastante desagradável. Trata-se de um relacionamento extraconjugal, mas que era do conhecimento da família de Derrida, bem como de grande parte do meio intelectual parisiense; era, por assim dizer, um segredo de Polichinelo. Peeters poderia tê-lo ignorado, mas preferiu narrá-lo com todas as letras, porém igualmente com grande senso ético.
Qualquer desconfiança que o leitor possa ter quanto à validade de narrar o episódio se dissipa quando um dos filhos de Derrida conta sua versão dos fatos, com algum sofrimento, mas sem fazer nenhum julgamento moral. Daí se pode concluir que foi muito salutar não omitir essa informação, tanto por fidelidade à história, quanto -em nome dessa fidelidade- para evitar a hagiografia, ou seja, transformar aquele que foi considerado o filósofo mais influente da segunda metade do século 20 num santo.
Com isso, tem-se uma noção plena da figura humana de Derrida, situando-a em seu contexto. A história de um grande homem ou de uma grande mulher não é algo estritamente privado, mas um bem a ser compartilhado por todos os agentes culturais.
CONFISSÕES Do ponto de vista teórico, Jacques Derrida integra o grupo daqueles filósofos que, como santo Agostinho, Rousseau, Nietzsche e Benjamin, em algum momento de seu percurso, narraram as próprias memórias e/ou fizeram íntimas confissões.
Num de seus textos mais delicados, "Circonfissão" (Zahar), juntando saber e afeto, Derrida reflete, em diálogo com textos de santo Agostinho, sobre o instante em que sua mãe está em coma, após o que virá a morrer. Trata-se de uma elaboração filosófica só comparável, literariamente, ao luto materno de Barthes, consignado no "Diário de Luto" (Martins Fontes), contraface do igualmente autobiográfico "Roland Barthes por Roland Barthes" (Estação Liberdade).
Rousseau precisou escrever suas "Confissões" (Edipro), entre outras coisas, como um documento de autodefesa contra seus detratores. Benjamin registrou suas memórias em textos autobiográficos de extrema beleza e relevância política, como os de "Rua de Mão Única" (publicado originalmente pela Brasiliense, teve nova tradução neste ano pela Autêntica).
O que esses casos filosóficos e literários mostram é que, para esses autores, tomar a própria biografia como tema, autobiografando-se, tornou-se matéria indispensável para o trabalho reflexivo e ficcional. Longe de serem registros anódinos, há um entrecruzamento intensivo entre vida e obra.
Todavia não se trata de um empirismo determinista. Acima de tudo, porque a própria vida nunca se reduz a um mero alinhamento de fatos que podem ser um dia resgatados pelo próprio sujeito ou por um terceiro, o famigerado -e fundamental- biógrafo, configurando uma identidade monolítica.
O que em geral não se entende muito bem é que nem mesmo um biógrafo lida com os fatos em si: estes já aconteceram e pertencem ao passado, ainda quando são recentes.
O que resta sempre são vestígios, documentos que servem para rastrear os acontecimentos: cartas, documentação pessoal, depoimentos de toda ordem. Mesmo o testemunho autenticado do personagem biografado e o das pessoas que com que ele tiveram contato entram como registros e não como fatos em si.
Uma bio-grafia (vida + escrita) é, portanto, o texto de uma existência que precisa ser reinterpretado de múltiplas maneiras.
O problema das biografias oficiais (cognominadas "chapa-branca") é a reivindicação de servirem como fonte exclusiva. São necessárias muitas versões para se chegar à verdade histórica, se jamais isso for possível. Pois, como demonstra Maria Helena Werneck, com sua criteriosa leitura das biografias de Machado de Assis, em "O Homem Encadernado" (Eduerj), cada biógrafo é portador de uma vontade de verdade que nunca se realiza de todo.
Quem conhece os textos derridianos sabe que seu pensamento é, sobretudo, a desconstrução da metafísica ocidental -do etnocentrismo europeu, mas não só este, de matriz filosófica, que Derrida lê por meio de categorias como "logocentrismo" ou "falogocentrismo" (quando na leitura se incluem questões de gênero).
Ora, um dos aspectos que o trabalho de Peeters mais ilumina é como o fato de o pensador ser originário de um território dito "periférico" (noção hoje mais do que questionável), a Argélia da época colonial, lhe proporcionou uma visão singular da cultura ocidental.
Essa é a grande diferença entre a abordagem tradicional da questão biográfica e os estudos mais avançados: a vida de um filósofo ou de um artista jamais deve ser tomada como um conjunto empírico e fechado de ocorrências, mas como uma textualidade a se reinterpretar sob vários ângulos e com toda a liberdade.
AUTOFICÇÃO
Isso se torna mais relevante hoje, quando prolifera no mundo, em particular no Brasil, um procedimento inventivo nomeado "autoficção", por meio do qual vida e obra se nutrem explicitamente, muitas vezes dando margem a conflitos.
Inaugurada por Serge Doubrovsky nos anos 1970 na França, essa prática tem sido desenvolvida por autores nacionais como Silviano Santiago, João Gilberto Noll, Cristovão Tezza, Ricardo Lísias, Sérgio Sant'Anna e Tatiana Salem Levy.
Como autor de ficção, recorri a esse motor, mas não sem muitos questionamentos, temendo que ele fosse compreendido como egolatria, e não como um dispositivo perturbador que dificulta a identificação dos limites entre ficção e realidade, levando a transgressão autobiográfica às últimas consequências. Isso ocorre quando, por exemplo, autor, narrador e personagem têm o mesmo nome, como no caso de Doubrovsky.
O interesse nos cruzamentos entre a obra de um ficcionista ou poeta e sua biografia independe, porém, da explicitação, na literatura, dos fatos da vida de um autor.
Assinalaria ainda que a história de Clarice Lispector, uma de nossas escritoras mais em evidência no Brasil e no exterior, já conta com três investigações biográficas de peso.
A pioneira e essencial é a de Nádia Battella Gotlib, "Clarice, uma Vida que se Conta" (Edusp), em que a sequência de uma vida é submetida a refinada leitura em cotejo com escritas ficcionais. A segunda é o trabalho bastante informativo de Teresa Monteiro, "Eu Sou uma Pergunta"(Rocco). A terceira é a do norte-americano Benjamin Moser, "Clarice," (Cosac Naify), que parte de muitas das informações das outras biógrafas, mas desenvolve sua própria análise, pautada também pela obra da autora.
Ao escrever, dois anos atrás, o ensaio "Clarice Lispector: Uma Literatura Pensante" (Civilização Brasileira), eu me servi pontualmente desses três trabalhos, cruzando-os com questões filosóficas e artísticas. Embora a biografia não fosse meu tema principal, algumas das afirmações que fiz só foram possíveis porque, antes de mim, especialistas realizaram um árduo e inestimável trabalho.
Por último está o caso, a meu ver, mais significativo quando se fala de biografia, autobiografia e, agora, autoficção.
Nos anos 1990, a filósofa Sarah Kofman realizou seminários a que assisti na Sorbonne sobre o "Ecce Homo" de Nietzsche, resultando em dois alentados volumes, publicados pela Galilée. Sua abordagem deixava claro como e por que o próprio Nietzsche, diante da inépcia de seus contemporâneos, se viu na obrigação de reler sua obra à luz de sua vida -e vice-versa.
Embora não fosse biógrafa, Kofman explicita, em sua reflexão, o que o próprio texto de "Ecce Homo" expunha com todas as letras: a vida de um filósofo, a despeito de um antigo dogma em contrário, não tem nada de irrelevante.
A existência segue em paralelo com os textos de maneira autônoma, mas fornecendo muito mais material para reflexão do que poderia sonhar nossa eventual má vontade em relação ao assunto.
A desconstrução necessária do clássico gênero da biografia começaria não por desqualificá-la, mas por retirar o estatuto de verdade absoluta de que a maior parte das vezes ela é investida, liberando assim seu valor, o de reinvenção de uma existência.
EVANDO NASCIMENTO, 53, é ensaísta, professor universitário e escritor. Autor do livro de ficção "Retrato Desnatural" (Record) e de diversos estudos sobre Derrida.

Levar médico para periferia é 'admirável', diz pesquisador

folha de são paulo
Indiano estuda características de profissional que atua em áreas remotas
Especialista em saúde pública, estudioso afirma ser necessário dar vantagens aos que vão para zonas rurais
MARCELLE SANTOSCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAAs pesquisas sobre má distribuição geográfica de profissionais de saúde costumam focar os motivos pelos quais os médicos optam por não trabalhar em áreas rurais, remotas.
Indo na contramão desses estudos, Kabir Sheikh, pesquisador da Fundação de Saúde Pública da Índia, investiga o que os leva a ir para esses lugares e permanecerem em seus postos.
Em entrevista à Folha, ele avalia programas adotados pelo governo brasileiro para lidar com a carência de médicos nas áreas periféricas do país, entre eles o Mais Médicos, que trouxe profissionais estrangeiros para atuar no interior do país.
Folha - Há algo de errado com a maneira como se está ensinando medicina no Brasil?
Kabir Sheikh - Não devemos ver os valores da profissão como algo misterioso ou exótico --qualquer um que tenha cuidado de uma criança ou de um parente idoso entende a profunda satisfação que isso traz. Em nossa era utilitária, deixamos de ver o desejo de servir como um fato básico da existência humana, mesmo uma necessidade. O sistema deve apoiar e estimular, em vez de desabilitar, o profissional com valores.
Por que o programa Mais Médicos não teve apelo entre profissionais brasileiros?
Em países como Índia e Brasil, as áreas rurais são vistas como zonas de perigo e subdesenvolvimento. Há duas hipóteses para o programa não ter atraído médicos brasileiros: a preferência por áreas urbanas e a falta de atratividade das vagas em áreas rurais.
A primeira é difícil de mudar, porque implica transformar percepções em massa. A segunda exige apenas vontade política e perseverança para garantir condições que tornem positiva a experiência de profissionais de saúde nessas áreas.
Existem características que fazem médicos mais aptos para o trabalho nas áreas rurais?
É possível que algumas pessoas sejam mais aptas. No entanto, há uma lógica contrária que sugere que as políticas devem ser inclusivas e não exclusivas. Até mesmo percepções fixas podem ser transformadas com exposição e aprendizagem, e não devemos negar a ninguém a oportunidade de se tornar um médico rural.
Como avalia as medidas do governo brasileiro para tentar melhorar a saúde pública?
Esforços multifacetados são sempre mais eficazes, em saúde pública, que intervenções isoladas. Para garantir que as pessoas usufruam de serviços essenciais, o governo pode e deve incluir medidas de curto prazo, para preencher lacunas existentes, como medidas de longo prazo, tais como trabalhar para que as instituições e os profissionais de saúde se tornem mais orientados para objetivos sociais.
Como avalia o Mais Médicos?
Recrutar médicos para trabalhar em áreas rurais e remotas é um objetivo admirável, mas sua eficácia depende de incentivos e vantagens monetárias e não monetárias para os médicos lotados nessas áreas. Boas condições de trabalho e meios para que as famílias dos médicos consigam encontrar empregos e educar seus filhos nesses locais, por exemplo.
O programa é criticado pela classe médica.
As organizações da classe médica se preocupam em proteger interesses de sua base. É importante envolver os líderes da profissão no início de deliberações de modo que os debates não se polarizem.
Que tipo de conhecimento o médico pode adquirir servindo em uma área remota?
A visão típica de um médico de clínica é limitada. A medicina nos treina a pensar que estamos certos e que conhecemos o melhor para restringir o nosso quadro de referências aos problemas e suas soluções. Isso tem sua utilidade, especialmente para lidar com queixas graves e emergenciais.
Mas, em termos da capacidade de compreender e servir as populações rurais durante longos períodos, é uma visão limitada. Pensar sobre o que as pessoas precisam requer questionar a sua própria autoridade. Poucos médicos são capazes de fazer isso e ainda praticar a medicina tal qual ela é ensinada.

    As paisagens sonoras da natureza selvagem

    folha de são paulo
    Muito além dos sabiás


    REINALDO JOSÉ LOPES
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    RESUMO Músico que colaborou com trilhas de Hollywood se dedica há cerca de 40 anos ao estudo dos sons da natureza, tema de livro recém-lançado no Brasil. Para o naturalista, a complexidade dos sons produzidos em ambientes selvagens segue uma orquestração complexa e clara, que se perde em habitats alterados pelo homem.
    *
    Para o músico e naturalista americano Bernie Krause, 74, falar em "coral" ou "orquestra" para se referir à algazarra matutina dos pássaros ou ao canto noturno de rãs e grilos é mais do que mero lugar-comum poético.
    Autor de "A Grande Orquestra da Natureza" [trad. Ivan Weisz Kuck, Zahar, 248 págs., R$ 54,90], Krause deixou de lado o trabalho em Hollywood, onde colaborou com a trilha sonora de filmes como "Apocalypse Now" (1979), para fazer um doutorado em bio-acústica e se dedicar à gravação do que ele chama de "soundscapes", ou "paisagens sonoras", em ambientes naturais.
    Em vez de se concentrar nas vocalizações de um ou outro animal, como ainda costuma fazer a maioria dos biólogos, Krause se dedicou a captar retratos sonoros do ecossistema como um todo, ao longo de um dia inteiro e das várias estações do ano.
    Sua principal descoberta: em ambientes com pouca intervenção humana, cada espécie parece ter achado seu próprio "espaço" sonoro, uma faixa de frequências na qual cada bicho se encaixa com a mesma precisão e complexidade dos instrumentos de uma orquestra sinfônica.
    A sobreposição de frequências é mínima, e o timing dos "músicos" é impecável, afirma ele. Isso não acontece em ambientes desmatados, mesmo quando o corte de árvores é seletivo: a antiga orquestra sai do tom ou se cala.
    Ao estudar, em paralelo, a música de povos caçadores-coletores, o pesquisador encontrou paralelos intrigantes entre complexidade biológica e sofisticação musical. Ele propõe que o conjunto dos sons naturais seria uma das principais fontes da música e da linguagem humana e defende um retorno a essa fonte para renovar a arte musical no Ocidente.
    Alguns dos sons gravados por Krause podem ser ouvidos no endereço eletrônico bit.ly/orquestranatureza. Uma palestra do especialista, com legendas em português, está disponível em http://www.ted.com/talks/bernie_krause_the_voice_of_the_natural_world.html. Leia a seguir trechos da entrevista.
    *
    Folha - O sr. acha que é possível se treinar para ficar mais consciente em relação aos sons da natureza?
    Bernie Krause - Sim, é claro que isso é possível, e acho que é bastante simples. As pessoas precisam aprender a escutar, mas, para isso, precisam ir para lugares ainda selvagens e simplesmente prestar atenção nas paisagens sonoras. Infelizmente, as paisagens sonoras com as quais estamos acostumados, repletas de sons de origem mecânica ou elétrica, geram sons que tendem a ser incoerentes e caóticos, o que nos causa muito estresse, entre outros problemas.
    Então não é possível, na sua opinião, aprender a ouvir melhor os sons naturais num ambiente urbano, como um parque ou uma pequena reserva florestal?
    Bem, há algumas maneiras de conseguir isso -não digo no caso de um parque urbano, que nunca vai se comparar a lugares realmente selvagens. Mas um jeito de conseguir essa compreensão, que certamente não é tão bom quanto visitar esses lugares, é entrar em casa, fechar as portas e janelas e se concentrar para ouvir gravações das paisagens sonoras originais. Para a sorte de vocês no Brasil, ainda há lugares fantásticos na Amazônia e na mata atlântica, por exemplo, que me parecem relativamente acessíveis para alguém que deseje ter essa experiência.
    Apesar disso, no livro o sr. conta como, mesmo numa reserva florestal da mata atlântica, a assinatura sonora que o sr. conseguiu gravar parecia bastante debilitada perto da que se ouve em florestas mais isoladas mundo afora.
    Sim, isso foi uma pena. Uma coisa interessante sobre essa experiência, aliás, é que tivemos a oportunidade de nos encontrar com Tom Jobim no Rio de Janeiro e ele nos contou como, na sua infância, ele costumava ouvir uma enorme variedade de pássaros a poucos metros do restaurante onde estávamos jantando. Ele acabou gravando um disco inteiro, batizado de "Passarim" [1987], em homenagem a essas lembranças.
    No livro, o sr. explica como é possível notar que determinado ambiente foi degradado simplesmente olhando para as faixas do espectro sonoro que aparecem numa gravação, porque a diversidade e a organização dos sons é muito menor num habitat alterado. Seria possível usar isso para fazer avaliações rápidas da saúde ambiental de um ecossistema, por exemplo?
    Isso já foi feito diversas vezes por muitas instituições de pesquisa, aqui nos EUA, na Itália, pela Universidade de Urbino, e em outros lugares. É um modelo que está "pegando" cada vez mais.
    O sr. compara essa estrutura das paisagens sonoras naturais à de uma orquestra. Em certo ponto, porém, a analogia não deixa de valer, já que uma orquestra humana depende de uma colaboração intencional entre os músicos?
    Acho que existe uma colaboração evolutiva, de longuíssimo prazo, entre os animais que produzem os sons da natureza, embora de fato ela seja diferente da colaboração numa orquestra humana. Trata-se de uma colaboração contínua, que atravessa a noite e o dia, mantém-se ao longo das estações, e é impressionante pela complexidade e pela estrutura clara que ela é capaz de produzir num ambiente saudável. Para mim, a percepção dessa estrutura complexa é o principal achado do que chamo de ecologia da paisagem sonora.
    Existe uma ligação estreita entre biodiversidade e complexidade musical? A música das populações de caçadores-coletores que vivem em florestas tropicais, onde está concentrada a biodiversidade do planeta, também tende a ser a mais variada e complexa?
    Com certeza. É claro que cada ambiente tem sua própria paisagem sonora, mas as florestas úmidas equatoriais, em qualquer lugar do mundo, são sempre as que apresentam máxima diversidade de espécies e máxima densidade de seres vivos, e isso se reflete em suas paisagens sonoras.
    De modo geral, quanto mais "básica" a cultura dos povos que vivem nesses lugares, quanto mais conectada ao seu ambiente, maior é a complexidade de sua música, creio. Outra coisa interessante é que a compreensão da paisagem sonora por parte das comunidades tradicionais se expressa num espectro muito amplo dessas culturas, desde o gerenciamento dos recursos naturais -a capacidade de localizar fontes de água ou de alimento com base nas pistas sonoras do ambiente, por exemplo - até a religião. Todas essas histórias podem ser contadas a partir da paisagem sonora de um ambiente.
    Qual sua paisagem sonora favorita?
    Bem, qualquer paisagem sonora selvagem, não adulterada, sempre é envolvente para mim, tem até um elemento de experiência religiosa. Dito isso, as que mais têm apelo para mim hoje em dia são as do Alasca e dos territórios do noroeste do Canadá.
    Por quê?
    Porque são lugares onde ainda há pouquíssima gente, por causa da distância e do isolamento, então é possível ouvir e gravar paisagens sonoras durante dias a fio sem interrupções -sem estradas, sinais de trânsito, lojas de lembrancinhas ou guias florestais tentando explicar o tempo todo o ciclo de vida das renas ou dos ursos.
    Reduzir o ruído produzido por seres humanos para que seja possível voltar a ouvir os panoramas sonoros naturais é um objetivo factível?
    Depende da nossa vontade de voltarmos a nos relacionar com outros seres vivos. Esta talvez seja a nossa última chance de ouvir os panoramas sonoros naturais, essenciais para construirmos uma narrativa para a cultura humana que afirme a vida, em vez de ignorá-la. Como dizia o ecologista Aldo Leopold [1887-1948], se você quer mexer com a natureza, é melhor ter certeza de que não vai perder nenhuma das peças dela.
    Hoje, mesmo a música clássica tradicional é totalmente esotérica para a maioria das pessoas. O sr. vê alguma esperança de uma música baseada nos panoramas naturais que não pareça hermética demais?
    Tenho de acreditar que sim, porque foi do mundo natural que veio a nossa música e é para ele que precisamos retornar se quisermos que ela mantenha sua vitalidade. E eu acho que estamos caminhando em direção a isso.
    Em 1970, eu e Paul Beaver lançamos o álbum "In a Wild Sanctuary" [num santuário selvagem], o primeiro a incorporar panoramas sonoros naturais como parte da orquestração. E, em julho de 2014, deve estrear no Reino Unido uma sinfonia de minha autoria, feita a pedido da BBC, cujo nome é "The Great Animal Orchestra" [a grande orquestra animal"], que fortalece esse conceito. Não é música pop, admito, mas creio que será capaz de agradar a um público amplo.
    REINALDO JOSÉ LOPES, 34, é jornalista, assina o blog "Darwin e Deus" no site da Folha.

    Na transição democrática, a censura atuava pela moral e os bons costumes

    folha de são paul

    Na transição democrática, a censura atuava pela moral e os bons costumes


     
    FERNANDA ODILLA
    NATUZA NERY
    ilustração MANUELA EICHNER
    Ouvir o texto

    RESUMO Documentos desengavetados pelo Ministério da Justiça trazem detalhes da censura no Brasil durante a transição da ditadura militar para a democracia. Em 1981, o número de censores chegou a 221; a Folha conversou com cinco mulheres que exerceram a função e conta suas cruzadas contra pornografia, drogas e palavrões.
    *
    Após protagonizar oito dezenas de filmes pornô e de povoar a fantasia de muita gente nos anos 1980, Ginger Lynn, 50, continua loira e na ativa nos EUA. Tem uma conta no Twitter, um site oficial no qual vende sua obra e ainda arrisca "sensualizar" em produções recentes para o nicho mais maduro no mercado de vídeo.
    No Brasil, ainda jovem, foi protagonista involuntária de uma façanha: dois dos filmes em que mostra seus dotes foram liberados pela censura, ainda que parcialmente: "Girls on Fire" e "Jailhouse Girls". Ou, honrando a tradicional criatividade para títulos cinematográficos vigente no país, "Quanto mais Dentro, Melhor" e "O Carcereiro Sexomaníaco".
    O fato ocorreu em novembro de 1985, e a ditadura militar era defunta havia apenas oito meses. Mas um pequeno batalhão de censores e censoras sobreviveu a seu ocaso, vetando e ordenando remontagens de tudo o que fosse contra os códigos da moral e dos bons costumes.
    No caso do díptico de Ginger Lynn, censoras determinaram que seria preciso cortar da versão remontada "tomadas em plano detalhe, closes de sexo explícito, sejam eles homo ou heterossexuais exibidos sob a forma de felação, cunilíngua, sodomia e penetração vaginal". Precisariam ser eliminadas ainda "sequências de ejaculação externa em seios, nádegas, púbis e coxas, triolismo, mordidas em testículos, masturbação feminina e masculina, manipulação ou detalhes de genitálias".
    Os cortes nesses filmes foram sugeridos por seis mulheres, que, divididas em trios, assistiram e analisaram em detalhe as cenas picantes. Incrivelmente, sobrou aquilo que todo mundo sabe ser acessório em pornôs: o enredo. A saber, a trama da ninfomaníaca insatisfeita com o marido que aproveita a visita de dois agentes de seguro e a saga de prostitutas presas em flagrante que, rumo à penitenciária, são forçadas a fazer sexo com o policial e, depois, com funcionários e detentas da prisão.
    Alguns cortes revelavam o lado família das censoras. A produção franco-brasileira de título auto-explicativo "Casal Procura Casal para Sacanagem a Quatro", por sua vez, foi integralmente interditada por outro trio por ter desvirtuado "o sentido real do casamento" e seu "aspecto sentimental".
    Os pareceres dessas nove censoras fazem parte de um lote de documentos, muitos deles inéditos, que o Ministério da Justiça desengavetou e irá remeter ao Arquivo Nacional, em Brasília.
    A Folha localizou cinco dessas censoras, hoje aposentadas na casa dos 60 anos, daquelas que dificilmente alguém diria que já assistiu a filmes pornô e até apresentações ao vivo de sexo explícito.
    Uma delas é Maria das Graças Pinhati, 65, que diz ter assistido a muita pornochanchada, o popularesco pornô brasileiro que fez fama pela baixa qualidade, cenas de nudez e humor escatológico. "Aprendi a não me chocar com nada. Censor tem que ser imparcial e técnico e se preocupar com as crianças e os adolescentes", afirma, depois de 18 anos trabalhando diretamente com censura.
    Ela vetou na íntegra a produção franco-brasileira que narra "experiências sexuais de um jovem casal adepto ao swing" e mostra posições variadas com "destaque à técnica do 69". Fez constar de seu parecer que "as cenas são sempre agravadas pela prática simultânea de várias anomalias sexuais".
    GILBERTINHO
    A delegada aposentada Viviane da Rosa, 58, cai na gargalhada ao ouvir que também deu um parecer pela interdição do filme sobre troca de casais. "Era um inferno, um horror. Tinha que ter o trabalho de ver a fita toda, completa, e ir fornecendo sugestões de cortes", recorda. A cada cena que contrariava a lei, era preciso parar o filme e tomar nota. A lista de cortes era anexada ao parecer. "Tinha que falar para o rapaz que operava a máquina: 'Gilbertinho, para aí onde ela começa a chupar o pinto'", diz, emendando outra gargalhada.
    "A legislação era muito fechada. Não tinha jeito, a pornografia, conjunção carnal onde aparecesse sexo explícito, era proibida. Também tínhamos muita preocupação com as apologias às drogas", explica, dizendo que, sim, os censores eram "defensores da moral e dos bons costumes".

    Os pareceres da censura

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    Alan Marques/ Folhapress
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    Ex-delegada da Polícia Federal Vivane da Rosa de Mendonça dá entrevista sobre o tempo que trabalhou como censora de filmes pornográficos
    O Brasil já respirava democracia quando Viviane começou a trabalhar como censora, em 1986. Outros tempos, diz ela. Assim, não foram apenas as cenas de dupla penetração, fetichismo, voyeurismo ou ejaculação externa múltipla descritas por ela que motivaram seu parecer contrário à exibição do filme sobre troca de casais -mas principalmente o casamento aberto dos protagonistas do filme.
    "Tudo é mostrado em planos de detalhe, fazendo uma apologia, tanto no aspecto visual quanto nos diálogos, de que o casamento é bom para que o casal tenha ampla liberdade para se relacionar com quem quiser, numa desvirtuação total do aspecto sentimental", diz trecho do parecer de Viviane.
    O erotismo e a sexualidade, na avaliação de especialistas, só eram totalmente barrados pela censura quando assumiam a forma de denúncia ou de provocação.
    "Era mais fácil um filme erótico conservador ser liberado pela censura do que, por exemplo, uma peça de Nelson Rodrigues. A censura aceitava uma mulher aparecendo como objeto e sendo dominada pelo homem, mas não tolerava um erotismo escrachado que devassava uma família burguesa", analisa a professora Cristina Costa, da USP.
    DESENHO ANIMADO
    Os censores não escolhiam o que analisar, apenas recebiam uma escala de trabalho que poderia ter um filme de Sydney Pollack pela manhã, uma letra da Legião Urbana à tarde e, para terminar o expediente, um nem tão inocente assim filminho para crianças. "Tinha que assistir de tudo e com muita atenção. Até desenho animado tinha cena de sexo", conta a ex-censora Maria das Dores Oliveira Freire, 62.
    Viviane da Rosa diz que muitas vezes ficava louca para assistir a filmes que não faziam parte da ordem de serviço dela. "Tinha um Costa-Gavras à tarde e eu estava escalada para ver uma porcaria de um pornográfico de manhã. Às vezes pedia ao chefe para ver por pura curiosidade, tinha muita coisa boa lá", afirma.
    Em casa, ela guarda verdadeiras preciosidades na forma de pareceres originais. Da letra da música "Faroeste Caboclo", ela sugeriu em 1987 que fossem retirados da saga de João de Santo Cristo três "expressões vulgares": "comia todas as menininhas da cidade", "com o cu na não" e "filha da puta".
    Apesar de, como frisa o texto, haver várias referências a drogas na composição sobre o homem que chega a Brasília "para se tornar traficante e bandido de renome", a censora considerou que não havia lá apologia ao consumo.
    A maior preocupação era abrir um precedente, dizem as censoras. Se um palavrão fosse autorizado, ele poderia ser reproduzido, a partir daquele momento, em todas as obras. A música teve a radiodifusão e todo tipo de execução pública proibidas; o disco vinha com essa advertência. Para driblar a proibição, como a música liderava as paradas de sucessos, as rádios colocavam um sinal sonoro para encobrir os palavrões.
    Qualquer produção cultural exibida no Brasil precisava passar previamente pelo crivo da Polícia Federal, que manteve até 1988 a Divisão de Censura de Diversões Públicas. A gênese da divisão estava num órgão similar criado por Getúlio Vargas em 1934, mas instalado oficialmente no auge do regime militar, em 1972.
    "Os censores não são uma invenção da ditadura e sempre tiveram um discurso autêntico, genuíno contra os excessos morais. Realmente acreditavam que estavam fazendo o melhor para a sociedade", diz o professor Carlos Fico, coordenador do grupo de estudos do regime militar da UFRJ.
    Para ele, houve duas censuras durante a ditadura: uma buscava os subversivos, e a outra mirava os imorais, em sua maioria artistas já familiarizados ao controle.
    Em 1974, para suprir a demanda crescente por controle, a Academia Nacional de Polícia promoveu um "curso de transformação" dirigido aos interessados em se tornarem censores. Para atuar como técnico de censura, a legislação exigia curso superior como ciências sociais, direito, filosofia, jornalismo, pedagogia ou psicologia.
    "Tinha exercício físico, curso de português, curso sobre cinema. Como fazer o parecer, o que buscar. Nos tempos antigos, o parecer vinha detalhado, com [campos para] enredo, personagens, mensagens e classificação final. Depois passou-se a fazer o parecer em folha em branco, sem roteiro", recorda Teresa Cristina dos Reis Sardinha, 66.
    Ela afirma não entender por que o cargo de censor foi tão criticado: "Nós éramos funcionários públicos, pagos pelo Estado e exercendo função legal e de acordo com as leis do país. A censura estava lá na Constituição Federal, tinha de cumprir".
    BIQUÍNI
    Os usos e costumes no tempo da ditadura não eram alvos exclusivos da censura oficial, como os arquivos do Ministério da Justiça mostram. Lá repousa um excepcionalmente bem conservado -para uma peça de 38 anos de idade- modelo P de biquíni vermelho, com a foice e o martelo bordados em amarelo. Segundo o então titular da pasta, Armando Falcão, um general havia lhe remetido o material. Em um bilhete a mão, ele pede a um assessor para "tomar providências cabíveis".
    Sobrou para a PF, que "solucionou o assunto", como registra ofício enviado a Falcão e no qual o chefe da polícia conta que os responsáveis da Requintada Modas e Confecções prometeram retirar de circulação modelos com "símbolos alusivos a representações de países e insígnias militares".
    Encontrado pela equipe que tria o material a ser descartado ou arquivado em definitivo, o traje de banho é a mais famosa peça do acervo e é usado de tempos em tempos pelo ministro de plantão para lembrar como eram as coisas quando se censurava até biquíni.
    Sob a sigla DCDP, a divisão da polícia combateu com vigor o comunismo e a subversão no auge da ditadura. Num momento em que o regime agonizava, a censura que antes tudo vetava passou a tolerar mais -desde que com cortes, sob uma "nova política governamental no tocante às divisões públicas", como dizem os pareceres da época.
    Após o fim do regime militar, a censura passou seus últimos anos lutando basicamente contra a imoralidade, em especial contra sexo explícito, drogas e palavrões, aos quais dedicava força total. Levantamento do pesquisador Carlos Fico mostra que em 1981 o número de censores chegou ao máximo de 221, sendo 59 em Brasília e outros 162 espalhados pelo país.
    AVALANCHE
    A equipe reforçada da censura foi surpreendida por uma avalanche de filmes pornô no início dos anos 1980. "Os conflitos entre censura e Justiça se tornaram cada vez mais comuns, e o país assistiu a uma verdadeira indústrias de liminares pró filmes pornô", afirma o escritor e jornalista Inimá Simões, autor do "Roteiro da Intolerância - A Censura Cinematográfica no Brasil" (ed. Senac São Paulo, 1999).
    Para os censores, a briga com a Justiça significava, quase sempre, energia desperdiçada. "Eles [os produtores] iam ao Judiciário e conseguiam liberar o filme na íntegra. A gente tinha uma trabalheira danada para sugerir os cortes, porque éramos extremamente criteriosos, mas não dava em nada. Exigiam liberação integral e, depois, faziam propaganda com uma tarja de "censurado". Para eles era o máximo dizer que o filme havia sido censurado", recorda Viviane.
    Quando um trio divergia sobre o que devia ou não ser liberado, outra equipe era convocada. Se o placar permanecesse apertado, até 20 censores se juntavam para debater. Foi o que houve com o filme "Je Vous Salue, Marie" (1985), de Jean-Luc Godard, em que a história da virgem Maria é transposta para o mundo contemporâneo, com direito a adultério e nu frontal. Houve protestos e censura em diversos países católicos, além de críticas do próprio papa João Paulo 2º.
    Apesar de o filme ter mobilizado várias equipes da Divisão de Censura, os técnicos decidiram liberá-lo, com cortes, recorda Viviane. Mas o então presidente José Sarney sucumbiu à pressão da Igreja Católica e determinou que a película fosse interditada em 1986, num episódio clássico que ilustra as dificuldades do período de adaptação à democracia.
    CARTAS
    Mesmo antes do fim da ditadura, houve episódios em que os vetos não se basearam apenas no livre-arbítrio do regime. A censura, bem como o Ministério da Justiça, sucumbia a muitos pedidos, apelos e pressões populares, muitas delas em cartas dos mais diferentes tipos de missivistas. Pode parecer paradoxal numa ditadura, mas o governo também prestava contas a parte do povo.
    "O ministério luta pela anulação da sentença liberatória", informou o órgão num telegrama a um cidadão que pediu, em 1982, a suspensão imediata do ousado "Calígula". Retrato dos casos sexuais bizarros do tirano romano, a fita fora filmada três anos antes e interditada sucessivamente pela Polícia Federal e pelo Conselho Superior de Censura. Também ganhou a "repulsa" do Ministério da Justiça. Ainda assim, foi liberado por juízes, o que originou a mensagem do cidadão pedindo a suspensão imediata do filme.
    A mensagem faz parte de um conjunto que reúne dezenas de telegramas, cartas e abaixo-assinados, ainda hoje sob a tutela do Ministério da Justiça, protestando contra a violência e o sexo explícito nos meios de comunicação e nas telas de cinema e TV. Entre elas, uma carta endereçada em 1977 ao então presidente Ernesto Geisel chama a atenção.
    Com caligrafia caprichada, ostenta florzinhas coloridas em torno do pedido de uma menina de 9 anos para que sejam tiradas de circulação revistas com mulheres peladas na capa. "Isto é uma pouca vergonha", escreveu a criança, que também convidou Geisel a visitá-la no Sul de Minas.
    Entre 1968 e 1985, de acordo com estudo do pesquisador Carlos Fico, a DCDP recebeu -ou foram encaminhadas a ela por outros órgãos- mais de duas centenas de cartas. Mensagens ao presidente ou ao ministro da Justiça também eram direcionadas à "Prezada Censura".
    Stallone Nem sempre, porém, era preciso pressão popular para mudar uma decisão. O próprio ministério forçou os censores a reverem a posição tomada em relação a "Stallone: Cobra" (1986), já que a pasta promovia uma campanha contra a violência, abundante no filme de Sylvester Stallone.
    Depois da reavaliação dos censores, pelo menos quatro cenas adicionais precisariam ser eliminadas num prazo de 48 horas. As sugestões de cortes incluíam as imagens de um refém sendo morto pelas costas, de um vigia esmagado contra a parede por um carro, a de um bandido sendo queimado vivo, além da luta mortal travada entre "Stallone e um psicopata".
    O filme, contudo, já estava em cartaz. Calculando o prejuízo, a produtora sugeriu que se aumentasse a restrição da faixa etária, pulando de 14 anos para 18 anos.
    Entre o trio de censoras escaladas para rever os pareceres estava Telma Lino, que também já tinha defendido cortes no pornô "Quanto mais Dentro, Melhor". Telma não se sente confortável ao falar sobre os tempos de censura. "Tínhamos curso superior, éramos muito preparados", afirmou. E encerrou a conversa dizendo estar atrasada para a missa.
    Após 1988, os censores e censoras foram realocados no governo. Alguns assessoraram a redação da nova Constituição. Defendiam a manutenção da censura, mas com mudanças e flexibilização da legislação. Foram vencidos. Ouviram de outros técnicos e de parlamentares da Constituinte que estavam ali para ser censurados, e já não o contrário.
    FERNANDA ODILLA, 34, é repórter da Folha em Brasília.
    NATUZA NERY, 36, é repórter especial da Folha em Brasília.
    MANUELA EICHNER, 29, é ilustradora.