Estranhos no ninho
Quando os filhos não são como se espera
RAQUEL COZERRESUMO Em "Longe da Árvore", recém-lançado no Brasil, o autor americano estuda a relação de pais com filhos que, por questões físicas, psíquicas ou sociais, não corresponderam a seus anseios. Aqui, Solomon comenta os desafios enfrentados por pais que lutaram para se adaptar aos filhos e os dilemas dos que desistiram deles.
O SONHO de maternidade e paternidade carrega uma dose inegável de egoísmo. O que se espera, no geral, é uma criança que se assemelhe a seus criadores na fisionomia, no jeito, na cultura de vida. A prova dos nove acontece quando esse esperado fruto cai longe da árvore, com características que os pais não reconhecem como suas.
O assunto interessa ao escritor americano Andrew Solomon, 49, desde que se conhece por gente. "A percepção de que o que eu queria era exótico e fora de sintonia com a maioria veio tão cedo que não me lembro de um tempo que a precedesse", ele escreve, a respeito de sua homossexualidade, na abertura de "Longe da Árvore" [trad. Donaldson M. Garschagen, Luiz A. de Araújo e Pedro Maia Soares; Companhia das Letras; R$ 79,50; 1.056 págs.].
A noção de que seus próprios pais nunca aceitaram ter um filho gay norteou a pesquisa do volume recém-lançado no Brasil, embora a homossexualidade não seja, em si, um dos temas pesquisados.
Autor de elogiadíssimo estudo sobre a depressão ("O Demônio do Meio-Dia", vencedor do National Book Award 2001) e de reportagens para publicações como o "New York Times" e a "New Yorker", Solomon passou 20 anos conversando com centenas de famílias nas quais os filhos não se encaixavam nos anseios iniciais dos pais --fosse por deficiências, como a síndrome de Down; fosse por distúrbios psiquiátricos, como a esquizofrenia; fosse por implicações sociais, como a gravidez indesejada após um estupro.
O resultado é um compêndio sobre disfunções pouco compreendidas e sobre a tentativa dos pais de lidar com o indesejado na criação dos filhos. Leia entrevista que o autor concedeu à
Folha, por telefone, de Nova York, onde vive.
Folha - O sr. aborda no livro questões tão distintas quanto a relação de pais com crianças surdas, com síndrome de Down, vistas como prodígio e com propensão ao crime. Como selecionou os temas?
Andrew Solomon - Entrevistei mais de 300 famílias; ao fim, tinha 40 mil páginas transcritas, inclusive com entrevistas para capítulos que não escrevi. Escolhi os temas para mostrar uma ampla gama de relações de pais com filhos considerados diferentes.
Procurei tópicos representativos. Concluí, entre outras coisas, que as experiências de pais de surdos e cegos poderiam ser diferentes entre si, mas não tanto que exigisse um capítulo para cada caso. Comecei a ouvir as famílias e deixei isso guiar minhas pesquisas, o que ajudou a definir a estrutura.
No capítulo sobre prodígios, por exemplo, quis escrever primeiro sobre o lado positivo e depois sobre crianças que sofreram com a incompreensão dos pais. Abri o capítulo sobre autismo com casos traumáticos e depois tratei do movimento dos direitos dos autistas.
Tentei balancear a visão dos distúrbios vistos como doença e como identidade, falando com famílias que lutaram e famílias que se sentiram incapazes de ir em frente.
Embora chame de identidades distúrbios como o autismo e a esquizofrenia, o sr. diz que outros problemas, como a bulimia e a anorexia, não passam de doenças. Pode explicar essa distinção?
Quase todos os distúrbios podem ser descritos tanto como doenças quanto como identidades. Foi curioso notar como as pessoas veem cada caso de forma diferente. Isso ocorreu inclusive entre entrevistados para o livro --houve, por exemplo, surdos que não gostaram de se ver numa obra que também trata de esquizofrênicos. No caso da anorexia e da bulimia, que não abordei na pesquisa, há quem as descreva como identidade, mas também há quem morra por essa condição, então não é algo que possa ser celebrado.
Para a maioria da população, ser surdo parece uma tragédia, mas muitos surdos, extremamente ligados à linguagem e à cultura que desenvolveram, nunca viram isso como problema. Eu não gostaria de perder a audição, mas acredito que seja possível, se você tem uma diferença, mesmo que não seja algo que ambicione, tornar isso central em sua identidade.
Vivi a experiência de nascer gay numa época em que a homossexualidade era considerada doença e amadurecer num mundo onde a homossexualidade faz parte da identidade. Queria entender como esses modelos podem ser estendidos, como se dá a mudança de percepção entre o que é doença ou deficiência e o que é identidade.
O sr. iniciou a pesquisa para lidar com a incompreensão de seus pais sobre sua homossexualidade e, no livro, cita casos de pais que desistiram dos filhos que lhes traziam dificuldades. Como isso o fez sentir?
Há uma variável grande que envolve crianças mais fáceis ou difíceis de lidar e há também a habilidade dos pais para lidar com elas. Meu propósito foi observar modelos de resiliência das famílias.
Centrei em famílias que seguiram em frente, não sem grande e doloroso esforço. É claro que foi mais fácil falar com essas pessoas, porque quem sabe que fez um bom trabalho tem mais propensão a falar do que quem não conseguiu.
Não quis que o livro sugerisse que a resposta natural a situações como essas é cooperar. Nem que parecesse fácil. É difícil. Há pais para quem a luta é impossível, e não posso julgar isso. Pessoas diferentes têm diferentes habilidades.
Um trecho surpreendente do livro lista histórias de pais que acabaram matando filhos autistas. O filicídio é mais comum nesses casos que nos de outras deficiências?
Há filicídios relativos a outras condições debilitadoras, mas a taxa envolvendo autismo é particularmente alta. Acredito que isso ocorra com maior frequência no autismo por envolver um número expressivo de desafios.
Se o seu filho tem nanismo, você tem que aceitar que ele nunca terá mais de 1,20 m e tirar o melhor dessa situação. Se tem síndrome de Down, há intervenções efetivas para ajudá-lo a progredir.
No autismo, os tratamentos funcionam até certo ponto, para algumas pessoas. Lidar com autistas exige muita energia nos casos mais graves, e é comum não haver progresso. Além disso, crianças com autismo grave são incapazes de comunicar afeição como os pais esperariam. Muitos parecem não sentir afeição pelos pais, que se sacrificam tanto por eles. Tentar ajudar alguém que não melhora e não parece se importar com a tentativa de fazê-lo melhorar é uma combinação particularmente difícil.
Outro caso curioso é o da mulher que, prestes a sofrer um "aborto trágico" aos cinco meses de gestação, se viu obrigada pelo hospital a aceitar um procedimento que deixaria sua filha viva, mas gravemente afetada. A criança nasceu cega, nunca andou nem falou. O sr. escreve: "A política oficial impediu a filha de morrer; a política oficial disse que era problema dos pais passar o resto da vida atendendo às necessidades da menina". Os pais deveriam ter a opção de deixar a criança morrer, na sua opinião?
O sistema hospitalar americano é obcecado por manter todo mundo vivo, com ou sem dor, felizes ou infelizes com isso. Ninguém pode deduzir que uma criança com deficiência grave terá necessariamente uma vida de miséria, mas intervenções severas como essa são opressoras. A família deveria ser autorizada a tomar algumas decisões, como o quanto de intervenção médica vai aceitar para seu filho, já que o natural para a criança, nesse caso, seria morrer.
Tendo dito isso, há uma percepção geral de que ter múltiplas deficiências significa viver uma vida de agonia e dor, mas muitos pais de crianças com deficiências severas que entrevistei tinham a convicção de que elas eram felizes.
Como concilia sua posição sobre o direito ao aborto com casos em que as mulheres se viram impedidas de abortar e hoje agradecem por isso?
Todas as mulheres deveriam ter acesso ao aborto. Mas espero que algumas pessoas leiam o livro e decidam ter uma criança que em outra circunstâncias prefeririam não ter, que encontrem modelos que lhes sejam significativos.
Recebi uma carta raivosa outro dia, dizendo: "Você diz que as mulheres têm o direito de abortar, mas como se sentiria se alguém começasse a abortar fetos gays?". Falei: "Eu ficaria triste, mas também diria que cabe a elas decidir". Ninguém deve ser forçado a dar à luz uma criança que não quer ter.
Numa das centenas de histórias que o sr. conta, uma mãe cega, Deborah, se magoa quando o marido comemora o fato de o filho deles não ter herdado a cegueira. O livro mostra vários casos de pessoas com deficiência que se orgulham de sua condição. Isso o surpreendeu?
Esse caso em particular é poderoso e desconcertante. Sofri depressão, assunto do meu livro anterior, e de certo modo a depressão faz parte da minha identidade, mas não quero que meus filhos sejam deprimidos e farei o que puder para que não experimentem isso.
Deborah escreveu esse ensaio em que dizia que "não ansiava pela visão mais do que por um par de asas". Ela vive bem como cega e não imagina por que alguém preferiria uma criança que enxergasse. Pensei como me sentiria se tivesse um filho com uma mulher que falasse: "Ainda bem que ele não é gay". Muitos temem a ideia, mas seria triste ouvir isso de alguém próximo. Entendo alguém se magoar com outra pessoa descrevendo uma característica sua como indesejável, porque, ao rejeitar isso, você rejeita quem eu sou. Mas, como não sou cego, acho a ideia da cegueira aterrorizante, e esse tipo de reação me surpreendeu muito.
A culpa que muitos pais sentem por deficiências ou distúrbios dos filhos pode afetar a relação familiar?
Já foi muito comum a ideia de que pais tinham filhos gays por serem superprotetores ou porque o pai era passivo em relação à mãe. Acreditava-se que a esquizofrenia e o autismo eram causados por pais muito frios. Os pais historicamente se sentem culpados.
Começamos a deixar de pensar isso nesses casos e é preciso abandonar a sensação de culpa em outros casos também. Pode ser verdade que pais que abusam de seus filhos os levam ao crime, mas muitos que não fizeram nada errado passam pela mesma situação.
O que tem de ser levado em conta é outra coisa. Os pais podem não causar o autismo, mas podem fazer o filho ter uma relação boa ou terrível com a condição. O pai não faz o filho surdo, mas pode levá-lo a se adaptar ou se sentir inadequado. O que me interessava era como pais podem ajudar os filhos a crescer psicologicamente saudáveis.
De que modo prodígios, filhos de estupro e adolescentes com tendência ao crime, assuntos de capítulos na segunda metade do livro, podem ser comparados a pessoas que têm deficiências e distúrbios?
Queria mostrar como os pais lidam com o que é diferente. É claro que o pai de um prodígio não se sentirá triste como o de uma criança com deficiências múltiplas, mas não é muito mais fácil lidar com o prodígio. Também será preciso imergir no mundo estranho que o filho vai conhecer e garantir que ele cresça com um grau mínimo de ajuste emocional. Quis mostrar, de forma provocativa, como um prodígio se assemelha a um doente.
Filhos de estupro lidam com mães que acham difícil expressar amor e lutam contra os instintos para se desconectar dessas crianças. O estupro faz com que crianças sem deficiências sejam recebidas como filhos que têm deficiência.
Sobre a tendência ao crime, notei que muitas pessoas que entrevistei tinham um senso de identidade em suas comunidades devido à forma como se comportavam. Claro, o imperativo social é de batalhar contra essa identidade. Mas tentei entender o que se passa na mente de quem comete crimes, como muitos acreditam encontrar sua identidade ao cometer crimes.
O sr. defende uma distinção entre os cérebros de adolescentes e adultos para justificar punições diferentes para crimes cometidos por uns e outros. Como ser preso com adultos pode afetar o comportamento juvenil? Pergunto porque há uma discussão no Brasil sobre a redução da maioridade penal.
Há interesses conflitantes na acusação de adolescentes. Queremos limitar o crime, mas sabemos que adolescentes podem cometer erros por falta de maturidade.
Se falamos em reduzir a maioridade penal, a primeira pergunta é o que se alcança com isso. Será que a perspectiva de receber penas mais duras pode impedir um adolescente de cometer crimes que cometeria tendo em vista penas mais brandas? Não conheço pesquisa sobre isso no Brasil, mas os estudos nos EUA mostram que o efeito dissuasor de sentenças mais duras é praticamente nulo. A estratégia é ineficaz porque adolescentes não têm sistemas de controle maduros e, portanto, cometem com mais constância erros de julgamento.
Se continuarmos a dar sentenças mais leves a adolescentes, alguns podem amadurecer e deixar de ser criminosos? Sim: programas de reabilitação que não funcionam para adultos podem ser úteis a adolescentes. Sentenças mais duras são ineficazes. É fato que ninguém comete crimes nas ruas estando na cadeia; assim, poderíamos estipular a prisão perpétua a todos os criminosos. Isso talvez reduzisse a criminalidade, mas a um custo terrível: vidas desperdiçadas e um imenso gasto público.
O sr. cita algumas vezes no livro a reação de seus pais ao fato de o sr. ser gay. Acha comparável o grau de aceitação da sociedade à homossexualidade e a deficiências como a síndrome de Down e o nanismo?
Há vários grupos que batalham por seus direitos, conseguem-nos e então excluem outros grupos. Quando os gays começaram a dizer que se inspiravam na luta pelos direitos civis, alguns ativistas negros disseram: "Vocês não são como nós. Somos uma minoria racial, vocês têm essa doença de ser gays".
Moro em Nova York, numa casa que pertenceu a Emma Lazarus (1849-87), poeta mais famosa por ter um poema na Estátua da Liberdade, mas que também escreveu: "Até sermos todos livres, nenhum de nós será livre". Pensei que, em vez de me colocar na posição de negros ou mulheres no passado, era mais generoso ir na direção de quem ainda não tem reconhecimento, não tem nada a não ser o que os outros veem como doença.
Após anos escrevendo sobre nanismo, ao falar com filhos anões de pais comuns, senti que sua experiência se parece à de filhos gays de pais heterossexuais. São famílias que se sentem normais, mas têm crianças diferentes. Parece artificial a ideia de que umas diferenças são aceitáveis e outras não.
Recentemente discutiu-se no Brasil projeto de lei que propunha a "cura gay" por meio de atendimento psicológico. Como vê a ideia?
Tratamentos assim são inúteis, imorais e exploradores. São inúteis porque não podem trazer a mudança prometida. Gays não se tornam heterossexuais mediante terapia, isso é risível do ponto de vista médico. São imorais porque estigmatizam os gays, fortalecem a homofobia e o auto-ódio, e sustentam a mensagem de que ser gay é tragédia ou pecado, quando é, na verdade, parte do espectro da identidade humana. E são exploradores porque despendem enormes quantidades de tempo e dinheiro sem nenhum resultado.
Será que endossaríamos um médico que desenvolvesse uma prática baseada na noção de que é desvantajoso ser baixo e criasse um tratamento para esticar as pessoas até elas ficarem altas? Não, nós diríamos que isso é ultrajante, doloroso e sem propósito.
Tentar converter gays pode causar danos psíquicos permanentes. Permitir esse tipo de terapia é passar uma mensagem que os prejudica e os torna menos capazes de participar da sociedade.