domingo, 6 de outubro de 2013

Que a queda da USP sirva de alerta - Henrique Meirelles

Solidariedade equivocada


 
FOLHA DE SÃO PAULO
A saída da USP da relação das 200 melhores universidades do mundo carrega forte conteúdo simbólico. Nosso grande desafio é o aumento da produtividade, e não avançaremos com universidades e escolas que não deem aos estudantes condições de atingir o desempenho das economias mais competitivas.
Os EUA, maior economia do mundo, têm 77 universidades entre as 200. E não porque o país é rico -o país é rico porque investe em educação. A segunda maior economia do mundo, a China, expandiu o investimento em educação em dimensão sem paralelo na história recente. Mesmo centrando gastos no ensino fundamental, ela conta hoje com 350.000 profissionais com curso de mestrado e doutorado nas melhores universidades do mundo. O Japão, terceira maior economia, tem história de excelência educacional baseada numa cultura que dá enorme valor à educação.
Os países que valorizam a educação, o professor e o desempenho escolar têm como consequência provada o aumento de produtividade, que gera o crescimento da riqueza.
O processo de melhora da educação é virtuoso. Não só avança o desempenho de cada profissional, mas a qualidade das decisões em todos os níveis, inclusive na estrutura política, dado o maior acesso à informação. A Coreia do Sul, por exemplo, tinha renda per capita menor que a do Brasil. Hoje, após choque de educação, sai do grupo dos emergentes para entrar no de países desenvolvidos. Disciplina na escola e desempenho acadêmico são parte fundamental da cultura coreana. Em muitos aspectos, o que ocorre na Coreia do Sul é o oposto do que ocorre no Brasil. Aqui, tivemos uma relativização do desempenho escolar que gera até discriminação dos melhores estudantes.
Participei de experiência sintomática numa universidade brasileira. Um professor estrangeiro deu aos próprios alunos o poder de decidir as notas, repartindo determinado número de pontos entre os com melhor e os com pior desempenho. Ficou chocado quando a decisão do grupo foi dar nota média a todos, reflexo da grande dificuldade de premiar o melhor e penalizar o pior, uma visão errada de solidariedade.
Para elevar a produtividade, crescer mais e garantir entrada no grupo de países de alta renda, o Brasil precisa perseguir a excelência na educação. Não é só o total do investimento que importa, mas a melhora da qualidade e a busca da excelência acadêmica, que passam pela valorização do professor e do desempenho escolar.
É fundamental levar a sério a queda da USP, e não só atenuá-la questionando critérios. Que sirva como alerta para a necessidade de mudança de cultura, no sentido de demandar cada vez mais desempenho dos alunos e qualidade dos professores.
Divulgação
Henrique Meirelles é presidente do Conselho da J&F (holding brasileira que controla empresas como JBS, Flora e Eldorado) e chairman do Lazard Americas. Ele foi presidente do Banco Central do Brasil de 2003 a 2010 e, antes disso, presidente global do FleetBoston e do BankBoston.

Calmaria e tempestade - Marcelo Leite

Calmaria e tempestade

É balela essa conversa de que o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) não faz política, só ciência. Não há nada mais político -no bom sentido da palavra- do que reunir a melhor informação científica disponível para orientar as decisões e ações coletivas.
Foi o que o IPCC fez há nove dias, ao lançar o AR5 ("Quinto Relatório de Avaliação"). Reuniu a melhor literatura sobre o tema e avisou: a atmosfera da Terra continua esquentando e o maior responsável por isso é a humanidade, não a variação natural do sistema climático.
Acredita e aceita quem quiser. O problema todo reside no fato de que muita gente não acredita e não aceita por razões que transcendem a ciência e se enraízam na política -em sua pior acepção, fundada só na ignorância.
Esse pessoal do contra se agarra a qualquer fiapo de evidência capaz de insuflar dúvida nas conclusões do IPCC. A complexidade do clima, sua variabilidade natural e as margens de incerteza inevitáveis em tais pesquisas trabalham a seu favor.
A diminuição do ritmo de aquecimento no intervalo arbitrário de 15 anos entre 1998 e 2013 foi comemorado como indício de que a mudança do clima projetada não deve ser levada a sério.
Se a concentração de CO2 na atmosfera continua aumentando, a temperatura média da atmosfera não deveria seguir em alta linear?
A resposta é conhecida por qualquer pessoa que tenha acompanhado o assunto com atenção e honestidade nas duas últimas décadas: nada é linear no sistema do clima.
Em primeiro lugar, desaceleração do aquecimento não implica diminuição, muito menos desaquecimento. Em segundo lugar, os climatologistas têm uma boa hipótese sobre o destino dessa energia que não fica retida na atmosfera -eles têm quase certeza de que ela passou a ser absorvida pelas camadas mais profundas dos oceanos.
Dá para ficar aliviado com essa capacidade insuspeitada dos mares de amortecer o aquecimento global? Ninguém sabe. Provavelmente não. A temperatura e a evaporação dos oceanos são o maior motor dos ventos, das nuvens e das correntes marinhas. Adicionar energia a essa massa líquida pode trazer transformações ainda mais drásticas no clima global do que se pode prever.
Um dos efeitos previsíveis de mares mais quentes é a aceleração do derretimento da calota de gelo sobre o oceano Ártico e das geleiras sobre terra firme. Só as últimas teriam efeito sobre a elevação do nível do mar, o que no entanto se somaria ao aumento de volume da água ditado pela temperatura mais alta (expansão térmica).
O IPCC elevou a previsão de aumento do nível do mar. Quem preferir manter as viseiras, contudo, pode se dar por contente com a "explosão" de gelo sobre o Ártico neste verão do hemisfério Norte.
O clima sempre produzirá variações temporais e locais -invernos rigorosos, chuvas torrenciais, secas e ondas de calor- para criar a aparência fugaz de verdade às asneiras que se escolha preferir.
Não se trata de torcer para que o clima piore. Nem de torcer para que a sorte nos desvie da tempestade que se pode prever, apesar da calmaria. Trata-se de agir responsavelmente, com base na melhor informação disponível -algo de que a política se torna cada vez menos capaz.
marcelo leite
MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp). Escreve aos domingos.

Por que ser cientista? - Marcelo Gleiser

Essa é uma pergunta que escuto frequentemente, quando converso com jovens ainda indecisos com relação a qual carreira seguir. Na verdade, o que vejo, e tenho certeza que meus colegas confirmam isso, é que a maioria absoluta dos jovens não tem a menor ideia do que significa ser um cientista ou como se constitui a carreira. Imagino que nem 5% da população brasileira possa mencionar o nome de três (ou um?) cientista brasileiro da atualidade. A questão não é essa constatação, que é óbvia, mas o que podemos fazer para mudar isso.
O primeiro obstáculo é o da invisibilidade. Se ninguém conhece um cientista, fora o que se vê na TV ou no cinema, fica difícil contemplar a possibilidade de uma carreira em ciências. Contraste isso com médicos, dentistas, professores, policiais, profissões que fazem parte da vida dos jovens. Quando um jovem imagina um cientista, provavelmente pensa no programa de TV "The Big Bang Theory", ou em uma foto do Einstein de língua de fora.
A solução é maior visibilidade: é ter cientistas visitando escolas públicas e particulares, incluindo estudantes de pós-graduação que, na maioria absoluta, têm uma bolsa de estudos do governo. Proponho que, como parte da bolsa, estudantes de mestrado e doutorado devam fazer uma visita ao ano (ou mais se desejarem) a uma escola local para conversar com as crianças sobre o seu trabalho de pesquisa e planos para suas carreiras. Sugiro que seus orientadores façam o mesmo.
Sim, eu faço isso com muita frequência, tanto no Brasil quanto nos EUA. Pelo menos uma visita ou palestra (às vezes via Skype) por mês. Não tira pedaço e é extremamente útil e gratificante.
O segundo obstáculo é o estigma de nerd. Cientista é o cara bobão, o que não tem nenhum amigo e por isso vira CDF. Grande bobagem. Tem cientista de todo jeito, e alguns são nerds, como são alguns médicos, dentistas e policiais, e outros são "supercool", com suas motocicletas, pranchas de surfe e sintetizadores. Tem nerd que é "cool". Tem cientista ateu e religioso, flamenguista e corintiano, conservador e comunista. A comunidade é tão variada quanto em qualquer outra profissão.
O terceiro obstáculo é o da motivação. Por que fazer ciência? Esse é o mais importante deles, e o que requer mais cuidado. A primeira razão para se fazer ciência é ter uma paixão declarada pela natureza, um desejo insaciável de desbravar os mistérios do mundo natural. Essa visão, sem dúvida romântica, é essencial para muita gente: fazemos ciência porque nenhuma outra profissão nos permite dedicar a vida a entender como funciona o mundo e como nós humanos nos encaixamos no grande esquema cósmico. Mesmo que o que cada um pode contribuir seja, na maioria dos casos, pouco, é o fazer parte desse processo de busca que nos leva em frente.
Existe também o lado útil da ciência, ligado diretamente a aplicações tecnológicas, em que novos materiais e novas tecnologias são postos a serviço da criação de produtos e da melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mas dado que a preparação para a carreira é longa --depois da graduação ainda tem a pós com bolsas bem baixas-- sem a paixão fica difícil ver a utilidade da ciência como a única motivação. No meu caso, digo que faço ciência porque não me consigo imaginar fazendo outra coisa que me faça tão feliz. Mesmo com todas as barreiras da profissão, considero um privilégio poder pensar sobre o mundo. E poder dividir com os outros o que vou aprendendo no caminho.
Marcelo Gleiser
Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".

Quando os filhos não são como se espera - Raquel Cozer

ENTREVISTA ANDREW SOLOMON
Estranhos no ninho
Quando os filhos não são como se espera
RAQUEL COZERRESUMO Em "Longe da Árvore", recém-lançado no Brasil, o autor americano estuda a relação de pais com filhos que, por questões físicas, psíquicas ou sociais, não corresponderam a seus anseios. Aqui, Solomon comenta os desafios enfrentados por pais que lutaram para se adaptar aos filhos e os dilemas dos que desistiram deles.
O SONHO de maternidade e paternidade carrega uma dose inegável de egoísmo. O que se espera, no geral, é uma criança que se assemelhe a seus criadores na fisionomia, no jeito, na cultura de vida. A prova dos nove acontece quando esse esperado fruto cai longe da árvore, com características que os pais não reconhecem como suas.
O assunto interessa ao escritor americano Andrew Solomon, 49, desde que se conhece por gente. "A percepção de que o que eu queria era exótico e fora de sintonia com a maioria veio tão cedo que não me lembro de um tempo que a precedesse", ele escreve, a respeito de sua homossexualidade, na abertura de "Longe da Árvore" [trad. Donaldson M. Garschagen, Luiz A. de Araújo e Pedro Maia Soares; Companhia das Letras; R$ 79,50; 1.056 págs.].
A noção de que seus próprios pais nunca aceitaram ter um filho gay norteou a pesquisa do volume recém-lançado no Brasil, embora a homossexualidade não seja, em si, um dos temas pesquisados.
Autor de elogiadíssimo estudo sobre a depressão ("O Demônio do Meio-Dia", vencedor do National Book Award 2001) e de reportagens para publicações como o "New York Times" e a "New Yorker", Solomon passou 20 anos conversando com centenas de famílias nas quais os filhos não se encaixavam nos anseios iniciais dos pais --fosse por deficiências, como a síndrome de Down; fosse por distúrbios psiquiátricos, como a esquizofrenia; fosse por implicações sociais, como a gravidez indesejada após um estupro.
O resultado é um compêndio sobre disfunções pouco compreendidas e sobre a tentativa dos pais de lidar com o indesejado na criação dos filhos. Leia entrevista que o autor concedeu à Folha, por telefone, de Nova York, onde vive.
Folha - O sr. aborda no livro questões tão distintas quanto a relação de pais com crianças surdas, com síndrome de Down, vistas como prodígio e com propensão ao crime. Como selecionou os temas?
Andrew Solomon - Entrevistei mais de 300 famílias; ao fim, tinha 40 mil páginas transcritas, inclusive com entrevistas para capítulos que não escrevi. Escolhi os temas para mostrar uma ampla gama de relações de pais com filhos considerados diferentes.
Procurei tópicos representativos. Concluí, entre outras coisas, que as experiências de pais de surdos e cegos poderiam ser diferentes entre si, mas não tanto que exigisse um capítulo para cada caso. Comecei a ouvir as famílias e deixei isso guiar minhas pesquisas, o que ajudou a definir a estrutura.
No capítulo sobre prodígios, por exemplo, quis escrever primeiro sobre o lado positivo e depois sobre crianças que sofreram com a incompreensão dos pais. Abri o capítulo sobre autismo com casos traumáticos e depois tratei do movimento dos direitos dos autistas.
Tentei balancear a visão dos distúrbios vistos como doença e como identidade, falando com famílias que lutaram e famílias que se sentiram incapazes de ir em frente.
Embora chame de identidades distúrbios como o autismo e a esquizofrenia, o sr. diz que outros problemas, como a bulimia e a anorexia, não passam de doenças. Pode explicar essa distinção?
Quase todos os distúrbios podem ser descritos tanto como doenças quanto como identidades. Foi curioso notar como as pessoas veem cada caso de forma diferente. Isso ocorreu inclusive entre entrevistados para o livro --houve, por exemplo, surdos que não gostaram de se ver numa obra que também trata de esquizofrênicos. No caso da anorexia e da bulimia, que não abordei na pesquisa, há quem as descreva como identidade, mas também há quem morra por essa condição, então não é algo que possa ser celebrado.
Para a maioria da população, ser surdo parece uma tragédia, mas muitos surdos, extremamente ligados à linguagem e à cultura que desenvolveram, nunca viram isso como problema. Eu não gostaria de perder a audição, mas acredito que seja possível, se você tem uma diferença, mesmo que não seja algo que ambicione, tornar isso central em sua identidade.
Vivi a experiência de nascer gay numa época em que a homossexualidade era considerada doença e amadurecer num mundo onde a homossexualidade faz parte da identidade. Queria entender como esses modelos podem ser estendidos, como se dá a mudança de percepção entre o que é doença ou deficiência e o que é identidade.
O sr. iniciou a pesquisa para lidar com a incompreensão de seus pais sobre sua homossexualidade e, no livro, cita casos de pais que desistiram dos filhos que lhes traziam dificuldades. Como isso o fez sentir?
Há uma variável grande que envolve crianças mais fáceis ou difíceis de lidar e há também a habilidade dos pais para lidar com elas. Meu propósito foi observar modelos de resiliência das famílias.
Centrei em famílias que seguiram em frente, não sem grande e doloroso esforço. É claro que foi mais fácil falar com essas pessoas, porque quem sabe que fez um bom trabalho tem mais propensão a falar do que quem não conseguiu.
Não quis que o livro sugerisse que a resposta natural a situações como essas é cooperar. Nem que parecesse fácil. É difícil. Há pais para quem a luta é impossível, e não posso julgar isso. Pessoas diferentes têm diferentes habilidades.
Um trecho surpreendente do livro lista histórias de pais que acabaram matando filhos autistas. O filicídio é mais comum nesses casos que nos de outras deficiências?
Há filicídios relativos a outras condições debilitadoras, mas a taxa envolvendo autismo é particularmente alta. Acredito que isso ocorra com maior frequência no autismo por envolver um número expressivo de desafios.
Se o seu filho tem nanismo, você tem que aceitar que ele nunca terá mais de 1,20 m e tirar o melhor dessa situação. Se tem síndrome de Down, há intervenções efetivas para ajudá-lo a progredir.
No autismo, os tratamentos funcionam até certo ponto, para algumas pessoas. Lidar com autistas exige muita energia nos casos mais graves, e é comum não haver progresso. Além disso, crianças com autismo grave são incapazes de comunicar afeição como os pais esperariam. Muitos parecem não sentir afeição pelos pais, que se sacrificam tanto por eles. Tentar ajudar alguém que não melhora e não parece se importar com a tentativa de fazê-lo melhorar é uma combinação particularmente difícil.
Outro caso curioso é o da mulher que, prestes a sofrer um "aborto trágico" aos cinco meses de gestação, se viu obrigada pelo hospital a aceitar um procedimento que deixaria sua filha viva, mas gravemente afetada. A criança nasceu cega, nunca andou nem falou. O sr. escreve: "A política oficial impediu a filha de morrer; a política oficial disse que era problema dos pais passar o resto da vida atendendo às necessidades da menina". Os pais deveriam ter a opção de deixar a criança morrer, na sua opinião?
O sistema hospitalar americano é obcecado por manter todo mundo vivo, com ou sem dor, felizes ou infelizes com isso. Ninguém pode deduzir que uma criança com deficiência grave terá necessariamente uma vida de miséria, mas intervenções severas como essa são opressoras. A família deveria ser autorizada a tomar algumas decisões, como o quanto de intervenção médica vai aceitar para seu filho, já que o natural para a criança, nesse caso, seria morrer.
Tendo dito isso, há uma percepção geral de que ter múltiplas deficiências significa viver uma vida de agonia e dor, mas muitos pais de crianças com deficiências severas que entrevistei tinham a convicção de que elas eram felizes.
Como concilia sua posição sobre o direito ao aborto com casos em que as mulheres se viram impedidas de abortar e hoje agradecem por isso?
Todas as mulheres deveriam ter acesso ao aborto. Mas espero que algumas pessoas leiam o livro e decidam ter uma criança que em outra circunstâncias prefeririam não ter, que encontrem modelos que lhes sejam significativos.
Recebi uma carta raivosa outro dia, dizendo: "Você diz que as mulheres têm o direito de abortar, mas como se sentiria se alguém começasse a abortar fetos gays?". Falei: "Eu ficaria triste, mas também diria que cabe a elas decidir". Ninguém deve ser forçado a dar à luz uma criança que não quer ter.
Numa das centenas de histórias que o sr. conta, uma mãe cega, Deborah, se magoa quando o marido comemora o fato de o filho deles não ter herdado a cegueira. O livro mostra vários casos de pessoas com deficiência que se orgulham de sua condição. Isso o surpreendeu?
Esse caso em particular é poderoso e desconcertante. Sofri depressão, assunto do meu livro anterior, e de certo modo a depressão faz parte da minha identidade, mas não quero que meus filhos sejam deprimidos e farei o que puder para que não experimentem isso.
Deborah escreveu esse ensaio em que dizia que "não ansiava pela visão mais do que por um par de asas". Ela vive bem como cega e não imagina por que alguém preferiria uma criança que enxergasse. Pensei como me sentiria se tivesse um filho com uma mulher que falasse: "Ainda bem que ele não é gay". Muitos temem a ideia, mas seria triste ouvir isso de alguém próximo. Entendo alguém se magoar com outra pessoa descrevendo uma característica sua como indesejável, porque, ao rejeitar isso, você rejeita quem eu sou. Mas, como não sou cego, acho a ideia da cegueira aterrorizante, e esse tipo de reação me surpreendeu muito.
A culpa que muitos pais sentem por deficiências ou distúrbios dos filhos pode afetar a relação familiar?
Já foi muito comum a ideia de que pais tinham filhos gays por serem superprotetores ou porque o pai era passivo em relação à mãe. Acreditava-se que a esquizofrenia e o autismo eram causados por pais muito frios. Os pais historicamente se sentem culpados.
Começamos a deixar de pensar isso nesses casos e é preciso abandonar a sensação de culpa em outros casos também. Pode ser verdade que pais que abusam de seus filhos os levam ao crime, mas muitos que não fizeram nada errado passam pela mesma situação.
O que tem de ser levado em conta é outra coisa. Os pais podem não causar o autismo, mas podem fazer o filho ter uma relação boa ou terrível com a condição. O pai não faz o filho surdo, mas pode levá-lo a se adaptar ou se sentir inadequado. O que me interessava era como pais podem ajudar os filhos a crescer psicologicamente saudáveis.
De que modo prodígios, filhos de estupro e adolescentes com tendência ao crime, assuntos de capítulos na segunda metade do livro, podem ser comparados a pessoas que têm deficiências e distúrbios?
Queria mostrar como os pais lidam com o que é diferente. É claro que o pai de um prodígio não se sentirá triste como o de uma criança com deficiências múltiplas, mas não é muito mais fácil lidar com o prodígio. Também será preciso imergir no mundo estranho que o filho vai conhecer e garantir que ele cresça com um grau mínimo de ajuste emocional. Quis mostrar, de forma provocativa, como um prodígio se assemelha a um doente.
Filhos de estupro lidam com mães que acham difícil expressar amor e lutam contra os instintos para se desconectar dessas crianças. O estupro faz com que crianças sem deficiências sejam recebidas como filhos que têm deficiência.
Sobre a tendência ao crime, notei que muitas pessoas que entrevistei tinham um senso de identidade em suas comunidades devido à forma como se comportavam. Claro, o imperativo social é de batalhar contra essa identidade. Mas tentei entender o que se passa na mente de quem comete crimes, como muitos acreditam encontrar sua identidade ao cometer crimes.
O sr. defende uma distinção entre os cérebros de adolescentes e adultos para justificar punições diferentes para crimes cometidos por uns e outros. Como ser preso com adultos pode afetar o comportamento juvenil? Pergunto porque há uma discussão no Brasil sobre a redução da maioridade penal.
Há interesses conflitantes na acusação de adolescentes. Queremos limitar o crime, mas sabemos que adolescentes podem cometer erros por falta de maturidade.
Se falamos em reduzir a maioridade penal, a primeira pergunta é o que se alcança com isso. Será que a perspectiva de receber penas mais duras pode impedir um adolescente de cometer crimes que cometeria tendo em vista penas mais brandas? Não conheço pesquisa sobre isso no Brasil, mas os estudos nos EUA mostram que o efeito dissuasor de sentenças mais duras é praticamente nulo. A estratégia é ineficaz porque adolescentes não têm sistemas de controle maduros e, portanto, cometem com mais constância erros de julgamento.
Se continuarmos a dar sentenças mais leves a adolescentes, alguns podem amadurecer e deixar de ser criminosos? Sim: programas de reabilitação que não funcionam para adultos podem ser úteis a adolescentes. Sentenças mais duras são ineficazes. É fato que ninguém comete crimes nas ruas estando na cadeia; assim, poderíamos estipular a prisão perpétua a todos os criminosos. Isso talvez reduzisse a criminalidade, mas a um custo terrível: vidas desperdiçadas e um imenso gasto público.
O sr. cita algumas vezes no livro a reação de seus pais ao fato de o sr. ser gay. Acha comparável o grau de aceitação da sociedade à homossexualidade e a deficiências como a síndrome de Down e o nanismo?
Há vários grupos que batalham por seus direitos, conseguem-nos e então excluem outros grupos. Quando os gays começaram a dizer que se inspiravam na luta pelos direitos civis, alguns ativistas negros disseram: "Vocês não são como nós. Somos uma minoria racial, vocês têm essa doença de ser gays".
Moro em Nova York, numa casa que pertenceu a Emma Lazarus (1849-87), poeta mais famosa por ter um poema na Estátua da Liberdade, mas que também escreveu: "Até sermos todos livres, nenhum de nós será livre". Pensei que, em vez de me colocar na posição de negros ou mulheres no passado, era mais generoso ir na direção de quem ainda não tem reconhecimento, não tem nada a não ser o que os outros veem como doença.
Após anos escrevendo sobre nanismo, ao falar com filhos anões de pais comuns, senti que sua experiência se parece à de filhos gays de pais heterossexuais. São famílias que se sentem normais, mas têm crianças diferentes. Parece artificial a ideia de que umas diferenças são aceitáveis e outras não.
Recentemente discutiu-se no Brasil projeto de lei que propunha a "cura gay" por meio de atendimento psicológico. Como vê a ideia?
Tratamentos assim são inúteis, imorais e exploradores. São inúteis porque não podem trazer a mudança prometida. Gays não se tornam heterossexuais mediante terapia, isso é risível do ponto de vista médico. São imorais porque estigmatizam os gays, fortalecem a homofobia e o auto-ódio, e sustentam a mensagem de que ser gay é tragédia ou pecado, quando é, na verdade, parte do espectro da identidade humana. E são exploradores porque despendem enormes quantidades de tempo e dinheiro sem nenhum resultado.
Será que endossaríamos um médico que desenvolvesse uma prática baseada na noção de que é desvantajoso ser baixo e criasse um tratamento para esticar as pessoas até elas ficarem altas? Não, nós diríamos que isso é ultrajante, doloroso e sem propósito.
Tentar converter gays pode causar danos psíquicos permanentes. Permitir esse tipo de terapia é passar uma mensagem que os prejudica e os torna menos capazes de participar da sociedade.

    Das dificuldades de traduzir "Os Persas" - Nelson De Sá

    Outros 300
    NELSON DE SÁRESUMO Lançamento de duas novas traduções da tragédia de Ésquilo, primeira peça ocidental que de que se tem notícia, traz à luz as dificuldades para traduzir e montar um texto clássico. Especialistas debatem questões inerentes ao trabalho com um texto antigo, como a manutenção da métrica e a adaptação do léxico à atualidade.
    Quando preparava a montagem de "Os Persas" no ano passado, parte de um projeto maior voltado ao teatro de Ésquilo, o diretor Roberto Alvim buscou as traduções existentes e não gostou do que viu. Acabou por construir um texto próprio, que levou ao palco do Club Noir em São Paulo. É a prática corrente nas encenações de tragédia grega --e de outras peças clássicas-- nos palcos brasileiros.
    Os atores se exasperam diante dos diálogos que não cabem na boca --no jargão teatral, traduções que não parecem ter sido feitas para a cena. "É importante perceber que se trata da fala, não da palavra", cobra o diretor. "Que o texto foi escrito por Ésquilo para ser falado por atores. E que é preciso não azeitar o texto, que tem característica propositalmente torta, da ordem do ruído, da dissonância."
    Uma das questões mal resolvidas nas traduções do texto de Ésquilo, aponta Alvim, é que muitas delas tentam reproduzir em prosa, longamente, os múltiplos sentidos contidos em poucas palavras no original. Outro equívoco comum que o encenador diz notar nas traduções da peça é a adoção de linguagem anacrônica, o que ele classifica como "um erro brutal".
    "A gente tem de se colocar hoje no lugar em que Ésquilo estava quando escreveu. Não tem sentido empregar português arcaico porque o texto data do século 5 a.C."
    REMANESCENTE "Os Persas" é a mais antiga tragédia grega a sobreviver até os nossos dias --mais que isso, é o mais antigo texto remanescente do teatro ocidental.
    A peça estreou em Atenas no festival de Dioniso de 472 a.C., quando Ésquilo já contava perto de 50 anos de vida e 27 como autor. Isto foi oito anos após a batalha de Salamina, em que as tropas gregas, comandadas por Temístocles, venceram o contingente persa sob o comando de Xerxes.
    A tragédia retrata a derrota dos invasores, mas não do ponto de vista dos vitoriosos gregos, e sim segundo a visão dos persas. O próprio Ésquilo teria sido um combatente de Salamina, lutando ao lado de um irmão. O autor também estava em Atenas quando a cidade foi saqueada e destruída.
    Embora reafirme a importância de "Os Persas" como documento "estético", José Antonio Alves Torrano, professor de língua e literatura gregas na USP e tradutor da peça (Iluminuras, 2009), ressalta sua importância sob o ponto de vista historiográfico, "inclusive porque é fonte de Heródoto", que dele teria se servido em suas "Histórias", obra posterior à tragédia de Ésquilo e mais difundida que ela.
    "Heródoto tem uma dívida com relação à descrição que Ésquilo faz da batalha de Salamina", afirma Torrano. "O quadro geral é de Ésquilo. A forma da batalha, as principais referências, os elementos da narrativa: todos foram tirados por Heródoto do texto de Ésquilo. Não temos outra documentação mais importante do que esta."
    É consenso que a imagem que a cultura ocidental carrega até hoje de Xerxes, até mesmo em filmes como "300" (2006), se deve mais a Heródoto. Mas outros trechos da peça, além da batalha, seguem ecoando no presente. "Quando surge da tumba o pai de Xerxes, Dario, e diz que o filho cometeu um grande erro ao ligar o Oriente com o Ocidente, é extremamente atual", opina Trajano Vieira.
    Vieira, que é professor de língua e literatura gregas na Unicamp, assina uma nova tradução de "Os Persas". Ele destaca o pano de fundo histórico entre as peculiaridades da tragédia de Ésquilo.
    "Diferentemente de boa parte do teatro grego, o núcleo de Os Persas' não é mítico, e sim histórico. Foi a história, da qual Ésquilo participou ativamente, que o levou a escrever". E lembra: "Em sua lápide não há referência à atividade como teatrólogo, mas à participação na guerra contra os persas".
    Se, ao procurar textos para sua montagem, o encenador Roberto Alvim tivesse esperado mais um pouco, teria tido à sua disposição não só a opção oferecida por Trajano Vieira [Perspectiva, R$ 34,90, 144 págs.] mas também uma de Junito Brandão (1924-95), que o helenista deixou inédita ao morrer [Mameluco, R$ 54, 360 págs.].
    As duas edições são bilíngues e contam com textos de apoio. No caso de Brandão, o livro é uma homenagem ao tradutor. Antonio Medina Rodrigues, professor de grego da USP, morto em maio passado, assina um dos textos. No ensaio "Junito, o Meio-termo Radical", elogia no tradutor "o simples, isento de qualquer afetação", ou ainda, "sem ornatos".
    CONFRONTO Nas duas novas versões de "Os Persas", percebe-se um confronto subterrâneo entre simplicidade e complexidade.
    "É uma peça com enorme preocupação formal, é sua particularidade maior", define Vieira. "Nela, os jogos verbais e a complexidade da linguagem são muito grandes."
    O professor sublinha uma das dificuldades que o autor teve de superar e que se reapresentam ao tradutor: "Mais de 75% dos nomes do contingente persa citados são de origem oriental. Você imagina a maestria do Ésquilo para adaptar à métrica grega. E é apenas um exemplo da estrutura poética. Meu interesse maior foi dar conta, de algum modo, dessa complexidade".
    Ele ilustra a riqueza formal com um exemplo: "Existe o verbo destruir, persai', que aparece em algumas passagens e que tem a sonoridade da palavra persa, persai'. Ele surge também como epíteto do Xerxes, o adjetivo que o qualifica num certo momento, perseptolis', quer dizer, destruidor de cidades. É um jogo que o Ésquilo faz com a palavra".
    O tradutor Torrano tem uma abordagem distinta quanto à complexidade do texto. Para ele, sua linguagem "não oferece dificuldade especial". "Apenas a de ser religiosa, com um caráter oracular. Ela interpreta, ela não descreve."
    As especificidades da linguagem, defende Trajano Vieira, devem ser levadas em conta na transposição ao palco. Para ele, é fundamental que o diretor não perca de vista a "estrutura poética da linguagem" --o que vale não só para "Os Persas" mas para todo o teatro grego. "Cada um dos três grandes que restaram tem características muito diferentes. Por exemplo, nos casos de Sófocles e Eurípides, há as incorporações da linguagem científica."
    Por outro lado, diz Vieira, a fidedignidade ao texto original (quesito muito frequentemente associado à qualidade, quando se fala de traduções e adaptações) não pode ser um limitador da criação. "O diretor também não pode ser servil ao texto, deve sempre buscar uma reinvenção pessoal, necessária para a sua concepção".
    De qualquer maneira, não faltam atrativos para levar "Os Persas" ao palco. "A peça segue o esquema das outras tragédias de Ésquilo", diz Torrano, que traduziu as sete. "É o mesmo para todas, esta não foge à regra: um crescente de expectativa, de angústia e de medo que está por vir. E toda a expectativa, a angústia e o medo se cumprem no final."
    PALCO Uma boa tradução não necessariamente se presta facilmente ao palco. Foi o que aconteceu com a versão de "Hécuba", de Eurípides, feita por Christian Werner, professor de língua e literatura gregas na USP, para a Martins Fontes, em 2005. Gabriel Villela a considerou e descartou para encenação da peça que dirigiu em 2011.
    "Quando o diretor resolveu montar a tragédia, deu uma olhada na minha tradução e achou muito complicada para o cronograma deles, um texto que teriam de trabalhar muito", recorda.
    A opção da montagem recaiu sobre uma versão anterior do mesmo texto feita por Mário da Gama Kury (Zahar, 1992), talvez o maior tradutor brasileiro de obras clássicas, em volume.
    Segundo Werner, que lista a "Hécuba" de Villela entre as encenações mais bem-sucedidas do gênero no país, o texto de Gama Cury era "bem mais fluido, bem mais fácil de, sem muito trabalho, adaptar para uma encenação".
    A questão é que simplicidade ou complexidade não definem necessariamente qualidade. Werner trata de desmistificar algumas premissas correntes sobre o ofício.
    Uma delas diz respeito à preservação do metro. Para o tradutor "adotar ou não métrica não significa rigor maior, não torna o texto mais denso ou mais próximo de especificidades do original".
    Entre desafios mais relevantes, ele vê o de "trazer para a tradução um certo vocabulário polivalente, ambíguo, sem criar estranhamento muito grande no espectador".
    E cita o modelo de Friedrich Hölderlin, poeta alemão contemporâneo de Goethe e Schiller.
    "Foi um dos tradutores mais radicais. Suas traduções de Antígona' e Édipo Rei', de Sófocles, foram muito criticadas na época, por se distanciarem de um alemão canônico. Mas até hoje recebem encenações, embora sejam extremamente difíceis para o público contemporâneo."

      A timidez de Sérgio Porto

      ARQUIVO ABERTO
      A timidez de Sérgio Porto
      Rio de Janeiro, 1959
      ÂNGELA PORTOHá 45 anos sua ausência se abateu sobre nós como uma "machadada de Brucutu", como dizia Manuel Bandeira, de quem tomo emprestada a imagem. Mesmo ausente, meu pai, mais conhecido pelos leitores como Stanislaw Ponte Preta, mantém em minha vida uma forte presença e me traz com frequência boas lembranças.
      Sua presença é forte, antes de tudo, por imaginá-lo sempre um homem enorme, como de fato era. Trabalhava principalmente em casa, batucando dia e noite sua "intimorata Remington", na sua própria expressão. Mas também trabalhava na praia, aonde íamos pela manhã, coisa que ele adorava fazer. Pegava suas três filhas pelos braços e, junto a uma pilha de jornais, descíamos as três quadras em direção à praia.
      Morávamos em Copacabana, cuja praia era de mar mais batido antes da reforma da avenida Atlântica. Enquanto brincávamos perto da água, papai se sentava na areia, lia freneticamente os jornais e recortava com uma tesoura as notícias que usaria mais tarde como material para suas crônicas. Às vezes era despertado dessa atividade pelo movimento de pessoas que se amontoavam para assistir ao salvamento de três meninas.
      Papai nasceu, viveu e morreu na rua Leopoldo Miguez, em Copacabana. Era um homem muito bem-humorado, brincalhão, de uma ironia que surpreendia e a todos fazia rir, mas, paradoxalmente, tímido para determinadas situações em que tivesse que se expor.
      Aqueles que acompanhavam suas divertidas crônicas pelos jornais não podiam imaginar que, por trás de suas páginas, se escondia um homem acanhado com o público. O "Show do Crioulo Doido", que criou e apresentou por dois anos, fez enorme sucesso e o tornou famoso. Durante esse período, saíamos todos os sábados para jantar e depois assistir ao show. Muitas vezes, ele era reconhecido por alguém que logo começava a puxar o samba de sua autoria.
      Nós, as três irmãs, ainda adolescentes, nos sentíamos envergonhadas, mas ele ficava vermelho e absolutamente sem graça, com vontade de fugir. Para disfarçar seu desconforto, fazia graça fingindo que iria "sair de fininho".
      Assim era o tímido Sérgio Porto, que preferia deixar a notoriedade para seu outro, o Stanislaw. A criação desse pseudônimo, idealizado por ele e seu tio, o crítico musical Lúcio Rangel, foi um artifício, entre outras necessidades profissionais, para acobertar o lado mais formal de meu pai. Assim ele poderia se aventurar numa outra modalidade de escrita mais irreverente, que caracterizou na família Ponte Preta e nos "Febeapás", permanecendo o autor Sérgio Porto com o estilo "mais sério" que imprimiu em "A Casa Demolida" e "As Cariocas".
      Mas, com toda sua timidez, nunca vi meu pai mais vexado do que no dia de minha "formatura" no jardim de infância.
      Isso se deu em 1959, no Colégio Mello e Souza. Houve uma grande festa em que todos os alunos deveriam vestir-se com roupas que indicassem a profissão dos pais. Todos foram de médico, advogado, engenheiro, professor etc.
      Mamãe se viu em maus lençóis para fazer minha fantasia, mas inspirou-se numa caricatura que o Lan havia feito. Era um desenho de papai escrevendo à máquina, cercado de vários recortes em que se lia: rádio, televisão, jornal, show, revista tal e tal. Assim era minha roupa: um vestido branco com vários recortes colados.
      No final da festa, cada aluno fazia uma apresentação: recitava um versinho, dançava, cantava. Eu quis cantar e pedi que meu pai me acompanhasse. Ele ficou sem jeito e foi cutucado por minha mãe, que o estimulou a subir no palco.
      Mas o que o fez mesmo corar de vergonha foi a música que escolhi para cantarmos. Ao meu lado, teria de entoar os famosos versos de Paulo Borges, que uns anos antes haviam feito sucesso na voz de Alcides Gerardi: "Encosta tua cabecinha no meu ombro e chora".

        Ciência e arte - Helio Schwartsman

        SÃO PAULO - "The Age of Insight" é um livro impressionante. Eric Kandel é um neurocientista de primeira. Já fora agraciado com o Prêmio Nobel de Medicina em 2000 por seus trabalhos sobre a fisiologia da memória. Mas, em vez de escrever sobre axônios e dendritos, preferiu debruçar-se sobre a arte, mais especificamente sobre o modernismo vienense, e o resultado é uma obra de fôlego, tanto do ponto de vista da estética como da ciência.
        Kandel, ele próprio um vienense expatriado, fala com propriedade do ambiente cultural que reinava na capital austríaca na virada do século 20. Uma das teses do autor é a de que, assim como a física de Newton inspirou o iluminismo, a biologia de Darwin está na base do modernismo.
        Kandel destrincha escritos de Sigmund Freud e Arthur Schnitzler e as pinturas de Gustav Klimt, Oskar Kokoschka e Egon Schiele, para mostrar como as ideias inicialmente surgidas na Escola Médica de Viena acabaram engendrando um movimento artístico cujas influências perduram até hoje --e não apenas na arte.
        Freud e Schnitzler beberam dessa biologia médica para forjar as noções de inconsciente e sexualidade em seus contornos modernos. Klimt, Kokoschka e Schiele deram tradução pictórica a esses conceitos. Mas Kandel não se limita a contar essa história. Ele também escarafuncha nossos cérebros para revelar os mecanismos neuronais da visão e da percepção que esses pintores exploraram tão bem, ainda que não tivessem tanta clareza sobre seu funcionamento.
        E que não temam os puristas. As análises de Kandel, apesar de recheadas de boa ciência, lembram mais escritos de grandes historiadores da arte como Gombrich e Panofsky do que as anódinas descrições técnicas dos periódicos científicos.
        Kandel consegue com felicidade juntar arte, história e ciência numa obra. É um daqueles raros livros que mostram que ciências e humanidades são perfeitamente conciliáveis.

        Antonio Prata

        Dente por dente
        Se ficarem em silêncio, terão de atravessar os infinitos minutos lendo Atlas, Atlas, Atlas, Atlas
        Eu estava escovando os dentes no banheiro do Sesc, depois do almoço e antes de uma reunião, quando um cara entrou. Confesso que ao ser flagrado ali, naquele momento mezzo íntimo, fiquei um pouco envergonhado. Um pouco só, mas o suficiente para abaixar a cabeça e diminuir o ímpeto da escovação --passando de espadachim a enfrentar dois inimigos, simultaneamente, a um inglês no metrô falando ao celular.
        Talvez você, que tem um emprego de verdade e fica o dia todo fora de casa, ache este reflexo pudibundo uma frescura de moçoila da belle époque. É, é meio ridículo, mesmo, mas a gente que trabalha em casa e tem como único colega de batente um pombo cinza que vez ou outra pousa na janela vai ficando aos poucos com umas manias de filho único: muito cioso do próprio espaço, sem saber brincar em turma, de modo que, quando o cara entrou, como eu já disse, abaixei a cabeça e assumi aquela circunspecção de mictório.
        Meu casulo, contudo, se desfez bem rápido, pois o sujeito parou ao meu lado, tirou da mochila uma necessaire e começou, ele também, a escovar os dentes. O leve constrangimento se foi e deixou em seu lugar uma pequena felicidade. Pequena, mas suficiente para me fazer levantar a cabeça e, pelo espelho, acenar com uma sobrancelha ao meu parceiro de escovação. Foi um gesto discreto, da mesma envergadura do meu constrangimento e do meu alívio, só um meneio cúmplice, de boas-vindas, como uma pessoa que, abrigando-se da chuva sob uma marquise, vê chegar outro cidadão ensopado. O cidadão, contudo, não era muito de dividir marquises: fingiu que não me viu, pregou os olhos no espelho, franziu as sobrancelhas e deu início aos trabalhos com uma fúria de enceradeira.
        Veja, não sou uma pessoa carente. Minto, sou carente, somos todos carentes, mas não sou um chato. Eu não ia, caso ele respondesse a meu aceno, puxar um papo sobre pasta de dentes e logo em seguida alugá-lo por meia hora com minhas queixas sobre o trânsito, a dor no ciático e os embargos infringentes. Era só um "Vai, Corintcha!", um "Que chuva, hein?!", uma dessas microparcerias que deixam a vida na cidade menos desoladora.
        Fala-se muito mal de papos sobre o tempo: pois eu acho uma grande conquista da civilização. Você entra no elevador, o senhor do 903 entra no elevador: se ficarem em silêncio, terão de atravessar os infinitos minutos olhando pro teto, pro chão, lendo ininterruptamente Atlas, Atlas, Atlas, Atlas ou mexendo no celular --sem sinal. Mas basta um dos dois dizer "Que calor, hein?" e o outro responder "Dos infernos..." e, pronto, uma brisa refresca aquele mormaço.
        Infelizmente, meu vizinho de pia não compartilhava do mesmo protocolo de civilidade: seguiu fechado em sua bravurinha escovatória. Infelizmente pra ele, pois saindo dali o cara descobriu que era comigo a reunião das duas e ambos sabíamos muito bem o que tinha acabado de acontecer e ele aceitou o orçamento que havia me dito por e-mail que não dava pra aceitar e topou o prazo que havia jurado que não conseguia me dar e eu só não levei pra casa sua mesa, sua cadeira, seu computador e sua carteira porque sou um homem honesto e não gosto de me aproveitar dos outros nos momentos de fraqueza.

          Elio Gaspari

          As campeãs nacionais de desastres
          O sonho petista de criar um bloco de empresas financiadas pelo BNDES reeditou um pesadelo
          Em 2007, o BNDES ressuscitou o zumbi da anabolização de empresários amigos e anunciou que o governo queria criar um núcleo de "campeões nacionais", inserindo-o no mundo das grandes empresas mundiais. Nesse lance, botou perto de R$ 20 bilhões em empresas companheiras.
          Numa mesma semana, dois fatos mostraram o tamanho do fracasso dessa política. O conglomerado da OGX, produção megalomaníaca de Eike Batista na qual o BNDES financiou R$ 10,4 bilhões, está no chão. A "supertele" Oi, produto da fusão pra lá de esquisita e paternal da Telemar com a Brasil Telecom, tornou-se uma campeã nacional portuguesa, fundindo-se com a Portugal Telecom. Em 2010, o BNDES e os fundos de pensão tinham 49% da empresa. A nova "supertele" nasce com uma dívida de R$ 45,6 bilhões. Novamente, receberá recursos do BNDES e dos fundos companheiros. O ministro Paulo Bernardo, das Comunicações, garante que essa fusão é uma "estratégia". Vá lá, desde que ele acredite que o Unibanco fundiu-se com o Itaú.
          A carteira de ações do BNDESPar caiu de R$ 89,7 bilhões em 2011 para R$ 72,8 bilhões em 2012. A campeã do ramo de laticínios chamava-se LBR e quebrou. A Fibria, resultante da fusão da Aracruz (chumbada) com a Votorantim, atolou. O frigorifico Marfrig tomou R$ 3,6 bilhões no banco e acabou comido pela JBS, cujos controladores movem-se num perigoso mundo onde convivem a finança internacional e a política goiana. Já o Bertin teve que ser vendido logo depois de o BNDES entrar na empresa. (Até 2013, esse setor recebeu a maior parte dos investimentos do BNDES.)
          O BNDES anunciou há meses que abandonou a estratégia da criação dos campeões nacionais. Falta só explicar quanto custou, quanto custará e que forças alavancaram os afortunados. Essa tarefa será fácil para alguns petistas e para o doutor Luciano Coutinho. Eles conhecem a história do banco.
          TUDO BEM COM THOR
          Eike Batista não pagou os US$ 45 milhões que devia aos seus credores, mas ninguém deve temer que seus dependentes entrem para o cadastro do Bolsa Família. Seu filho Thor, que estava em Miami com a mãe, a atriz Luma de Oliveira, veio para o Rio. Mesmo tendo prestado serviços despiciendos ao grupo OGX, recolheu aquilo a que julgava ter direito.
          TIRADENTES
          Quarenta anos depois do aparecimento do esplêndido "Devassa da Devassa", que recontou a história da Inconfidência Mineira, o professor Kenneth Maxwell voltou às Minas Gerais do século 18. Num texto de 57 páginas que serve de introdução à história de um livro que pertenceu a Tiradentes, Maxwell coloca no seu devido contexto a aproximação de inconfidentes com os "americanos ingleses", notadamente Thomas Jefferson, que era embaixador na França.
          Coisa de quem leu tudo e é capaz de ver na articulação dos mineiros não só uma busca de ajuda junto aos subversivos da época, mas um desejo de aproximar os brasileiros do pensamento político e econômico da Revolução Industrial nascente.
          Tiradentes e seus pares eram perigosos porque iam atrás das ideias dos americanos. Tanto era assim que ele tinha um livro com os textos da Declaração da Independência e as Constituições de 6 das 13 ex-colônias americanas.
          Pela primeira vez, o "Livro de Tiradentes" tem sua íntegra publicada e comentada no Brasil. Até 1860, ele ficou dentro de um saco verde nos arquivos brasileiros. Passou por Santa Catarina e só voltou a Ouro Preto em 1989.
          EREMILDO, O IDIOTA
          Eremildo é um idiota e acha que alguém está com saudade das manifestações de junho.
          O Judiciário bloqueou a Rede de Marina Silva por falta de apoio dos eleitores e criou o Pros (ganha uma viagem a Frankfurt quem souber o que ele é) e o Solidariedade (ganha outra viagem quem não souber o que ele é).
          MASSIMO (1978-2013)
          Acabou-se o restaurante Massimo, meca da comida italiana e da plutocracia paulistana nos anos 80. Massimo Ferrari, a alma da casa, deixara-a em 2006. O desfecho deu-se por causa de um litígio judicial com os proprietários do imóvel, que se arrastava há anos.
          CHAFURDANDO
          Em março, aborrecido com uma pergunta do repórter Felipe Recondo, o ministro Joaquim Barbosa chamou-o de "palhaço", mandando-o "chafurdar no lixo". Pouco depois, sua assessoria manifestou-se: "Em nome do presidente do STF, peço desculpas aos profissionais de imprensa pelo episódio ocorrido hoje".
          Passados sete meses, Barbosa oficiou ao ministro Ricardo Lewandowski, pedindo que considerasse o defenestramento da mulher de Recondo, lotada na assessoria do colega. Reputou "antiética" a posição da servidora, mas, salvo a relação matrimonial, não apresentou um único fato que amparasse o adjetivo. A senhora é servidora pública concursada desde 2000. Casou-se com Recondo em 2006.
          Lewandowski rebarbou a sugestão, e Barbosa recuou.
          Tudo bem, Barbosa acha que se pode descarregar sobre as atividades profissionais das mulheres os desconfortos que se gostaria de impor aos maridos.
          O que não se entende é o pedido de desculpas de março. Era brincadeira, ou agora Barbosa quer um embargo infringente reverso?

          ~>A VIÚVA NA FARRA DA FEIRA DE FRANKFURT<~ 
          Sempre é o caso de repetir a lição do embaixador Azeredo da Silveira: "Tem gente que atravessa a rua para escorregar na casca de banana que está na outra calçada". O Ministério da Cultura e a Biblioteca Nacional meteram-se com uma farra na feira de livros de Frankfurt e comprometeram R$ 18,9 milhões da Viúva para custear a homenagem que o país receberá.
          Trata-se de um evento de negócios que começa quarta-feira, dura uma semana, mas estará aberto ao público por apenas dois dias. Para ele convidaram 70 escritores, à custa da Boa Senhora. Ganha uma viagem a Cuba quem souber a importância de uma homenagem na feira de Frankfurt para quem paga imposto em Pindorama, onde a Biblioteca Nacional, arruinada, não abre aos domingos e nela é vedado o uso de canetas. Recarga para o laptop, só num restaurante próximo.
          Em 2000, quando o governo de FHC torrou R$ 14 milhões na feira de Hanover, comemorando os 500 anos do Descobrimento, o procurador Luiz Francisco de Souza acusou a empresa que montou o pavilhão brasileiro de improbidade. Se os empresários do mercado editorial brasileiro precisassem da homenagem da feira, poderiam recebê-la, com o dinheiro deles. O setor está grandinho. Faturou R$ 5 bilhões em 2012 e nele há administradores sagazes. Em 2012, o Brasil importou 13,5 mil toneladas de livros mandados imprimir na China. Afinal, custam a metade. Dão emprego a chineses e, com o dinheiro dos brasileiros, festejam-se na Alemanha.
          Às vésperas da feira, viu-se que foram contratados serviços sem as devidas licitações, e um jornal alemão lembrou que entre os 70 escritores convidados há apenas um negro, Paulo Lins. Apesar disso, o Brasil é apresentado como "um país que se reinventa". Na sexta-feira, o escritor Paulo Coelho detonou a comitiva da reinvenção.

            Janio de Freitas

            Justiça pelo avesso
            Tudo indica que o TSE favoreceu os culpados pelas estranhezas na tramitação do partido de Marina
            Inocências e culpas receberam tratamentos invertidos nos dois casos mais recentes que trouxeram os altos tribunais às apropriadas altitudes também do noticiário. No primeiro caso, o Tribunal Superior Eleitoral ofereceu cena e voz. No outro, não chega a ser surpresa, o protagonista foi o ministro Joaquim Barbosa.
            Tudo indica que o Tribunal Superior Eleitoral, mesmo com os votos em geral bem argumentados dos seus ministros, favoreceu os possíveis culpados pelas estranhezas na tramitação do pretendido partido de Marina Silva. Ainda que não houvesse "uma ação deliberada" de "mais de 53% dos cartórios" eleitorais, na gravíssima acusação feita por Marina Silva, os indícios de anormalidade na verificação dos apoios de eleitores (necessários 492 mil) foram, pior do que inexplicados, suspeitos.
            O deputado Miro Teixeira, do Rio e entusiasta da Rede de Marina, sustenta que "no ABC (Grande São Paulo), a quantidade de apoios rejeitados pelos cartórios é absolutamente anormal". Para admitir a possibilidade dessa anormalidade e de sua dimensão, é só lembrar-nos de que o ABC é uma cidadela da CUT e do PT, contrários à criação da Rede, e de que outros também levantavam lá um partido, o plagiário Solidariedade do Paulinho da Força Sindical.
            Mais difícil é admitir que, em tais circunstâncias, os comandos da Rede tivessem a ingenuidade de aplicar no ABC o trabalho mais promissor em outras regiões. Não foram as únicas ingenuidades influentes no desfecho negativo.
            Não há dúvida da falta de 50 mil apoios válidos para o total necessário, comprovada na contagem pedida pela relatora Laurita Vaz. Mas dessa certeza não decorre a segurança de que as tantas invalidações fossem de fato motivadas, já que nem ao menos suas causas foram informadas.
            Ciente desse e de outros problemas, como o irregular excesso de tempo consumido pela burocracia cartorial, o TSE deveria providenciar uma verificação por amostragem nos cartórios com rejeição anormal. Não o fez. Deu votos sólidos para o que parecia, não para a certeza do que era.
            Ao pedir a retirada da servidora Adriana Leineker Costa do Supremo Tribunal Federal, por ser casada com o jornalista Felipe Recondo, que atua no Judiciário para "O Estado de S. Paulo", o ministro Joaquim Barbosa invocou uma situação contrária à ética. A situação é incomum, mas falta de ética, a haver, não estaria propriamente nela. Se existisse, viria da conduta de um ou de ambos, com o aproveitamento da relação conjugal para beneficiar o jornal e o prestígio do repórter com informações especialíssimas.
            Adriana Leineker Costa, originária do STJ, está lotada no STF há 13 anos. O fato de que seu marido seja designado pelo jornal para cobrir o STF não é de sua responsabilidade. E, se ao presidente do tribunal a situação parecer intolerável, cabe-lhe pedir ao jornal a substituição do repórter ou descredenciá-lo. Punir com transferência indesejada quem não criou a situação é punir quem não tem culpa. O contrário de ato próprio de magistrado.

              Suzana Singer - Ombudsman

              Arauto das más notícias
              Folha destaca apenas dados negativos da Pnad, apesar de a pesquisa ter apontado aumento de renda em 2012
              A edição que a Folha fez da pesquisa Pnad, que traça anualmente um quadro social do país, é um prato cheio para quem acha que o jornal só publica más notícias. Todos os destaques pinçados no levantamento eram negativos.
              O título na capa informava que "Analfabetismo e desigualdade ficam estagnados no país" (28/9). Em "Cotidiano", havia o aumento da diferença de renda entre homem e mulher, os salários inchados pela falta de mão de obra especializada e o celular como o único tipo de telefone em mais da metade dos lares. A análise dizia que o resultado da pesquisa pode significar "o fim da década inclusiva".
              Outros jornais optaram por manchetes do tipo uma no cravo outra na ferradura: "Renda média sobe, mas desigualdade para de cair" ("O Globo"), "Analfabetismo para de cair no país; emprego e renda sobem" ("Estado"), "Em todas as regiões houve aumento de renda, mas a desigualdade ficou estagnada" (Jornal Nacional).
              Com seu característico catastrofismo, a Folha fez uma leitura míope da pesquisa, que é muito importante pela sua abrangência -são 363 mil entrevistados respondendo sobre escolaridade, trabalho, moradia e acesso a bens de consumo.
              O dado mais surpreendente era que a renda do brasileiro cresceu em 2012, ano em que o PIB subiu apenas 0,9%. Na Folha, esse fenômeno só foi citado no meio de uma reportagem sobre a desigualdade.
              Coube ao colunista Vinicius Torres Freire, no dia seguinte, chamar a atenção para o fato de que o Brasil estava mais rico "e não sabíamos". "É possível dizer que a taxa de pobreza deve ter caído bem no ano passado", escreveu Freire.
              Pelos cálculos de Marcelo Neri, 50, presidente do Ipea, 3,5 milhões de brasileiros saltaram a linha de pobreza em 2012. "No conjunto das transformações, foi a melhor Pnad dos últimos 20 anos", diz Neri.
              A desigualdade parou mesmo de cair, mas foi porque os muito ricos (1% da população) ficaram ainda mais ricos (a renda subiu 10,8%), num ritmo mais rápido do que os muitos pobres (10% na base da pirâmide) ficaram menos pobres (ganho de renda de 6,4%). É claro que não se deve desprezar o abismo social, mas não dá para ignorar que houve uma melhora geral no ano passado, o que é um mistério a ser explicado pelos economistas.
              Se o jornal subestimou o dado da renda, deu espaço demais para o fato de o analfabetismo ter parado de cair. Teve nesse ponto a companhia dos outros jornais e da TV.
              Depois de 15 anos de queda contínua, a taxa de analfabetismo variou de 8,6% para 8,7%. A diferença, irrisória, pode ser apenas uma flutuação estatística. Nem o fato de a taxa ter parado de cair é importante, segundo os especialistas.
              Os analfabetos brasileiros concentram-se, principalmente, na faixa etária mais alta (60 anos ou mais). Os mais velhos, que não tiveram acesso à escola na infância, são mais difíceis de serem alfabetizados. "Entre os jovens, a proporção de analfabetos continua caindo. A conclusão é que, embora nossa educação tenha muitos problemas, este não é um deles", explica Simon Schwartzman, 74, presidente do Iets.
              O destaque dado à diferença entre a remuneração de homens e mulheres também foi descabido. Em 2011, a brasileira recebia 73,7% do salário de um homem. No ano passado, era 72,9%.
              Além de não ser uma variação muito significativa, pode ser um problema amostral. "As mulheres não estão necessariamente ganhando menos do que os homens. Se elas já têm uma renda média menor, basta crescer a participação feminina no mercado de trabalho para aumentar a diferença entre os sexos", afirma Marcio Salvato, 44, professor de economia do Ibmec.
              Entre os bens de consumo, o jornal destacou o celular e as motos. Wasmália Bivar, 53, presidente do IBGE, ressalta a máquina de lavar roupa, presente em 55% das casas. "Para a vida das famílias mais pobres, é um bem de grande significado, porque dá mais tempo livre para as mulheres."
              Não é fácil escolher o que há de mais relevante em uma pesquisa extensa como a Pnad, mas não dá para adotar o critério dos piores números. O jornalismo deve ter como primeira preocupação o que vai mal, apontar os problemas, só que o necessário viés crítico não pode impedir que se destaque o que é de fato o mais importante.

                José Simão

                Ueba! Partido é como banana!
                E o partido Solidariedade diz que é de centro-esquerda. Só se for de centro espírita. Até morto eles filiaram. Rarará!
                Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E os predestinados da semana. Funcionária do Senado suspeita de lavagem de dinheiro: Flávia PERALTA! E a mãe na maternidade: "minha filha, você vai se chamar Flávia Peralta e vai fazer peraltices lá no gabinete do Renan". Médico cubano que desistiu do programa Mais Médicos: Bladimir REMÉDIOS! Era placebo! Rarará. "Acá la salud non tiene remedios". E pegou uma balsa pra Miami! E o presidente do PT, Rui Falcão, é o que mais falta na Assembleia. Então é o RUI FALTÃO! E adoro o Aécio convidando: "Vamos conversar?". "Vamos! Cadê o bafômetro?". Rarará.
                E os novos partidos? O Brasil já não tem quase partido, tava precisando de mais três mesmo. Partido no Brasil é como banana, dá em penca! Tem esse partido chamado Pros! Pros filhos, pros netos, pros genros e pros raios que os parta! E um leitor sugeriu um novo nome pro Pros: PROSTÍBULO! Rarará! Esse Pros é Pros Mesmos!
                E o partido Solidariedade do Paulinho da Forca Sindical: Solidariedade. Só se for auto-solidariedade! Diz que é de centro-esquerda. Só se for de centro espírita. Até morto eles filiaram. Rarará! E a Marina? A Marinárvore! A tartaruga sem casco! O partido da Marina é um PSD que não come carne. Rarará.
                Rede com gancho enferrujado! Nhenc nhenc. E eu bem que sugeri pra Marina pra ela chamar os gremlins. Pra multiplicar as assinaturas. Ela pegava um gremlin, jogava um copo d'água, eles se multiplicavam e formavam um partido. O Partido dos Gremlins! Rarará.
                E por que a Marina tá sempre com cara de mártir? E o Paulinho tá sempre com cara de quem tá se recuperando de uma hepatite crônica! Rarará!
                E o chargista Jotapê sugere um novo partido: o PQP. Partido das Questões Populares! E um monte de leitor me sugere o PUTA! Partido Unido dos Trabalhadores Autônomos. Mas o melhor partido continua sendo o meu partido; o PGN! Partido da Genitália Nacional! Rarará!
                E os professores? No Rio quem leva bomba são os professores! E adorei a charge do Nani com a PM do Rio gritando pros professores: "Professoras, trouxemos a borracha!". E POW POW! Rarará.
                É mole? É mole, mas sobe!
                O Brasil é Lúdico! Olha essa placa na lanchonete no Méier: "Sugestão do dia; Frango Assado! Coixas e sobrecoixas". Adorei, muito mais chique. Por exemplo, o Corinthians levou nas coixas! Rarará.
                E essa em Santana, Bahia: "Fazemos manutenção de mega-ré".
                Ueba! Nóis sofre, mas nóis goza! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

                  Senhoras Divas - Mônica Bergamo

                  Leandra Leal dirige documentário sobre travestis na época áurea da Cinelândia

                  O papo corre solto, naquela intimidade típica das longas amizades. "Sabe qual é o nome do filme da Camille?", indaga Rogéria. Ela mesma responde: "Deus Sabe o Quanto Amei!". Risos gerais diante da colega que, dizem, rivaliza com Elizabeth Taylor em número de casamentos.
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                  As risadas dão o tom do encontro no camarim do teatro Rival, no centro do Rio. As quatro senhoras dispensam apresentações quando exibem suas identidades artísticas: Rogéria, 70, Camille K, 71, Jane Di Castro, 67, e Eloína, 67. Já no RG, elas são Astolfo, Carlos, Luiz e Edson, respectivamente.
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                  Leandra Leal dirige documentário sobre travestis

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                  Rony Maltz/Folhapress
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                  No palco do teatro Rival, a atriz Leandra Leal posa deitada no colo de quatro das personagens do seu documentário "Divinas Divas": Camille K, Rogéria, Jane Di Castro e Eloína
                  As quatro estão ali para falar de "Divinas Divas", documentário que protagonizam ao lado de Marqueza, Waléria, Fujika de Halliday e Brigitte de Búzios. A história da geração de travestis da época áurea da Cinelândia deve chegar às telonas no ano que vem, pelo olhar da atriz Leandra Leal, 31, que estreia na direção de longa-metragem.
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                  "Elas são artistas de verdade e representam uma escola que vem do teatro de revista", explica a diretora. No corre-corre do lançamento de quatro filmes em que atua, Leandra reuniu o grupo para o bate-papo com a repórter Eliane Trindade. Elas chegam impecáveis. Vestem-se de personagens que encarnam no palco e nas ruas desde o final dos anos 1960.
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                  O elo entre a diretora e as transformistas é o teatro Rival. Foi ali que o avô de Leandra, Américo Leal, levou para a ribalta homens vestidos de mulheres. Em 1967, a trupe pioneira estreava o espetáculo "Pode Vir Quente que Eu Estou Fervendo", no mesmo palco onde brilhavam nomes como Luz Del Fuego, bailarina que se exibia seminua com uma cobra.
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                  As aspirantes ao estrelato ainda desfilavam pela vida de "homenzinhos". Maquiadora da TV Rio, Rogéria já era vedete, mas se vestia de mulher só no palco. Jane trabalhava em banco. "Chegava ao teatro de terno."
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                  A ousadia artística contrastava com o moralismo da época da ditadura. "Sair em trajes femininos era crime. Fui presa várias vezes", conta Jane. Além da polícia, encaravam "pit boys". "Juntávamos as piores bandidas e os bofes apanhavam horrores dos cem travestis da Lapa", recorda-se Rogéria, às gargalhadas.
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                  Já no palco, faziam a linha lady. As musas eram Marilyn Monroe, Tônia Carrero e Martha Rocha, ícones da beleza feminina. As transformações no corpo só vieram quando as primeiras embarcaram para a Europa na década de 1970.
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                  Brilhavam no Carrossel de Paris, templo do travestismo, e esculpiam o corpo com hormônios e silicone. "Voltei linda. Achavam que eu tava operada. Tinha de mostrar o peru para todo mundo", diz Rogéria. Até então adepta de peruca, lá fora descobriu que tinha madeixas poderosas. "Meu cabelo veio parar na cintura. Não tenho xoxota, mas a cabeleira ferve."
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                  As histórias pipocam numa balbúrdia de amigas que passaram por poucas e boas juntas. "Somos uma família. Como em qualquer outra, na nossa também existe fofoca", diz Jane. "Fizeram intriga comigo e Rogéria, comigo e Eloína. Tivemos brigas, mas nunca nos afastamos."
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                  Todas amam Camille. A figura magérrima contrasta com a exuberância das colegas. Famoso cabeleireiro da alta sociedade carioca, Carlinhos virou Camille K e passou a imitar a cantora Marlene e a se destacar em papéis cômicos. Foi dirigida no teatro por Miguel Falabella.
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                  No espetáculo "Gay Fantasy" (1981), Eloína reuniu a turma sob a direção de Bibi Ferreira. Foi ela também que apresentou Camille ao atual marido, o webdesigner Fabrício Marotte, 30. As quatro décadas de diferença de idade parecem não pesar no relacionamento de sete anos. "Nosso cotidiano é uma fantasia real", define ele. Fabrício tem uma diva 24 horas por dia. "Nunca vi a Camille sem maquiagem nem de chinelo." Levou três anos para seduzi-la.
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                  Jane achou seu "príncipe" na juventude. Está casada com o baiano Otávio Bonfim há 46 anos. A união civil só ocorreu há dois. Ele se encantou ao ver a morena à la Claudia Cardinale no palco. Mandou um bilhete e se encontrou com um engravatado. "Tava meio tubarão, meio sereia", brinca ela. Ele a incentivou a se transformar. "Tomei hormônio, operei o narizinho."
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                  O empurrão final foi ver as amigas voltando de Paris poderosas. "Eloína era feia e ficou bonita. Rogéria tava um escândalo. Eu quis ficar uma miss." A metamorfose de Eloína foi tamanha que ela virou rainha de bateria em 1976, entronizada por Joãosinho Trinta. "Enganamos todo mundo." Dois carnavais depois, descobriram que ela era ele.
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                  Quem também turbinou os seios foi Jane, mas ela se arrepende de ter colocado silicone líquido nas coxas. "Fomos cobaias. Caí na mão de um travesti assassino que me induziu a fazer aplicação na perna. Sofro até hoje."
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                  Entre as quatro, apenas Jane cogitou fazer cirurgia de mudança de sexo. "Uma operada tentou fazer minha cabeça, mas não caí nessa." Também driblaram a prostituição. Rogéria conta uma experiência em Paris. "As meninas diziam: 'Vai fazer [pegar] um cliente'. Saí com um cara e foi uma coisa horrorosa. Ele botou a mão na frente, lá. Não rolou", recorda-se. "Mas, de graça, peguei todos os lindos franceses."
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                  Jane relata ter feito michê para não passar fome em Paris. "Mas não é nossa praia." Rogéria pondera: "Tem muito travesti que se prostitui e são ótimos artistas".
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                  Essa trajetória será recontada em depoimentos e imagens no documentário, cujo "gran finale" será as filmagens do espetáculo "Divinas Divas", que estreou em 2004. Em 13 de dezembro, as oito subirão ao palco do Rival para encenar a própria história em uma superprodução.
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                  O projeto ganhou edital de R$ 200 mil da Prefeitura do Rio. Para fechar o orçamento, vão lançar um crowdfunding -ferramenta de financiamento pela internet- para tentar levantar R$ 150 mil. As cotas da "vaquinha virtual" começam em R$ 20 e chegam a R$ 10 mil. "A partir de R$ 100, a pessoa pode ver o show e fazer figuração no filme", diz a produtora Carolina Benjamin.
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                  O documentário coroa a carreira de um grupo que, com altos e baixos, nunca deixou os palcos e conquistou outros espaços. "Jamais imaginei chegar aos 70 anos sendo Rogéria", diz a própria. Ela é prova de que ator não tem sexo. Fez o papel de uma avó na novela "Lado a Lado", da Globo. "Somos os travestis da família brasileira."
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                  Além de síndica do prédio onde mora em Copacabana, Jane se orgulha de ser fundadora da Parada Gay. No primeiro desfile no Rio, ela cantou o Hino Nacional para barrar a ação violenta dos opositores. "Todo homofóbico tem problema. Não deu certo no sexo nem com homem nem com mulher. Quando nos veem pensam: 'Aquilo sou eu'. Tanto ódio é por não assumir a homossexualidade."
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                  Elas vieram ao mundo para confundir. "Fui fazer exame de próstata e, na hora de entrar na sala, a atendente perguntou cadê meu marido", conta Camille, provocando explosão de risos. "Os gays fazem da tristeza alegria. Somos iluminados." E elas não veem a hora de as luzes se acenderem para a cena final de "Divinas Divas". "Vamos morrer em cima do palco", diz a síndica Jane. Haja estreias e tapete vermelho.