quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Contardo Calligaris

Um casal bem normal
A heterossexualidade não é nenhum tipo de baluarte contra a bizarrice do sexo e do desejo
O papa Francisco, recentemente, lembrou que a Igreja Católica não deve se esquecer que ela tem, antes de mais nada, missões positivas --de obras e de fé. Claro, ela pode se opor tanto ao casamento gay quanto ao aborto, mas sem confundir essas preocupações com o essencial de seu ministério. Seria fácil acrescentar que, de qualquer forma, em matéria de proibição, a Igreja só escreveu as páginas mais nefastas de sua história.
Enfim, a fala do papa assinala que provavelmente, aos poucos, o casamento gay se tornará, por assim dizer, usual. Nas próximas décadas, senão nos próximos anos, ele integrará as modalidades habituais de amor e convivência. O casamento gay nos parecerá tão normal quanto o casamento heterossexual.
Visto que eu prezo a liberdade individual, só me restaria festejar. E festejo, mas com uma reserva: não gostaria que a aceitação do casamento gay criasse uma espécie de boa consciência coletiva, segundo a qual estaríamos fazendo as pazes com a diversidade do mundo e a variedade do amor e do desejo.
Nada disso: começaremos a entender e aceitar a diversidade do mundo quando pararmos de imaginar que o casamento heterossexual seja algum tipo de baluarte contra a bizarrice do sexo e do desejo. Ou seja, na hora em que o casamento gay está sendo normalizado, é urgente se lembrar de que o casamento heterossexual só foi e é "normal" em aparência.
Se você quiser chacoalhar um pouco suas ideias em matéria de casamento heterossexual e de "normalidade", ainda há uma chance.
Depois de uma temporada no Centro Cultural São Paulo e outra nos Satyros, "Lou & Leo", de Nelson Baskerville e Leo Moreira Sá, volta brevemente, a partir de amanhã, no Teatro do Ator, em São Paulo, na praça Roosevelt (dia 4 de outubro às 23h, dias 11, 18 e 25 de outubro às 21h30).
A peça dramatiza a história da aventurosa vida do próprio Leo, que faz o papel de si mesmo. Leo nasceu Lou, foi baterista das Mercenárias (famosa banda rock punk dos anos 1980), envolveu-se com tráfico de drogas, passou anos preso (ou presa, no caso, por isso acontecer, inevitavelmente, em presídios femininos) e se tornou homem e ator.
Mais importante aqui é que o grande amor da vida de Leo foi Gabi (na peça, a ótima Beatriz Aquino). Leo e Gabi se amaram e se casaram, no civil, em 2002 (divorciaram em 2012). Se o casal quisesse, o casamento poderia ter sido celebrado no religioso também.
Você perguntará: como foi possível, se Leo, juridicamente ainda era Lourdes? Foi casamento gay em 2002? Nada disso, foi um casamento absolutamente normal, entre um homem e uma mulher: se Leo tinha nascido e estava registrado como Lourdes, Gabi tinha nascido e estava registrada como Carlos.
Para o cartório que os casou, portanto, Carlos e Lourdes eram um casal heterossexual. De fato, Lou (que era quase Leo) queria ser o homem para uma mulher. E Carlos (que já era Gabi) procurava um homem para quem ser mulher.
Em suma, foi um amor improvável. Mas, para que alguém se transformando de mulher para homem pudesse se casar com um travesti (como Gabi se via na época), não precisou que existisse o casamento gay: o casamento heterossexual, em sua "normalidade", foi suficiente.
Claro, a história de Leo e Gabi é um caso extremo, paradoxal. Mas sua estranheza não deveria esconder sua "banalidade". "Banalidade"? Isso mesmo. O casamento de Leo e Gabi é "banal", não porque seria corriqueiro o amor entre um transexual e um travesti, mas porque (sem exagero) o amor e o sexo, em qualquer casal dito heterossexual, são quase sempre tão paradoxais quanto o amor e o sexo entre Leo e Gabi.
Na peça, há momentos francamente engraçados. Um deles é quando se trata dos começos do casal: para Leo, a presença de um pênis entre as pernas de Gabi podia ser supérflua e incômoda, enquanto, para Gabi, talvez o problema fosse a ausência de um pênis entre as pernas de Leo. Lembrei-me imediatamente de um casal heterossexual no qual ambos declaravam que, na transa, nenhum deles sabia mais de quem era o pênis.
Enfim, por sorte dos heterossexuais, a heterossexualidade não implica nem garante nenhuma "normalidade". A grandíssima maioria dos casais heterossexuais são bizarros (ou seja, singulares), a começar por aqueles que passam a vida sem sexo ou quase.
Ou seja, gays ou héteros, somos, de fato, todos anormais.

Está tudo errado na ação de políticos e professores no Rio - Paula Cesarino Costa

Tudo errado
RIO DE JANEIRO - Professores municipais entraram em greve por melhores condições de trabalho e salários. Após um mês de negociação, aceitaram proposta de reajuste da prefeitura e interromperam o movimento. Voltaram a parar por discordar do plano de carreira e por não ter participado de sua elaboração.
A Prefeitura do Rio informou que fez mais de dez reuniões com os representantes dos professores e que eles exigiram que o prazo de discussão fosse reduzido de 90 dias para 30. O prefeito Eduardo Paes (PMDB) diz que os sindicalistas são filiados ao PSOL, partido de Marcelo Freixo, candidato derrotado por ele em 2010.
Na essência, o projeto faz modificações com o objetivo, entre outros, de aumentar o número de professores em regime de trabalho de 40 horas semanais (hoje são 6%) para colocar todos os alunos da rede estudando em horário integral. O prefeito errou na condução político-administrativo de um projeto necessário.
Há algo errado quando professores invadem e ocupam o plenário onde deveriam ser debatidos os projetos, xingam e agridem vereadores, rasgam camisa de funcionário, jogam garrafas e comida nos policiais e fecham rua, se podem ocupar a praça.
Há algo muito errado quando prefeito e vereadores precisam tirar a população da galeria e promover um cerco à Câmara, com grades e mais de 700 policiais, para conseguir a aprovação do plano, que teve 31 emendas, sem nenhum debate.
Há algo absurdamente errado quando policiais atacam professores, surram manifestantes com cassetetes, usam spray de pimenta e lançam uma sequência de bombas de gás por duas horas para dispersar professores que se reúnem para pressionar os legisladores, e permitem que um bando de mascarados imponha medo e destruição.
Está quase tudo errado na ação desses atores que fazem a história de um país sem educação.

    quarta-feira, 2 de outubro de 2013

    Elio Gaspari

    A mão peluda da censura
    O STF consagrou a liberdade de expressão mas, como as sentenças do mensalão, ela continua no papel
    Marinus Marsico, procurador do Tribunal de Contas da União, recomendou à Agência Nacional de Cinema que a produtora do filme "O Vilão da República", cuja trama contará a ação do comissário José Dirceu na Casa Civil da Presidência, procure "evitar que a obra constitua em apologia e culto à personalidade".
    Como se faz isso, não se sabe. O doutor não quer um filme apologético e argumenta que os recursos públicos captados pela Lei Rouanet não podem ofender os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade. Como se faz um filme sobre temas atuais com essas condicionantes, também não se sabe. Em 1982 a ditadura demitiu o atual ministro Celso Amorim da presidência da Embrafilme por ter financiado o filme "Pra Frente Brasil", com suas cenas de tortura.
    À primeira vista, Marinus Marsico teria um viés antipetista. Falso. Ele é um defensor da Bolsa da Viúva, e o uso da Lei Rouanet como alavanca marqueteira é uma preocupação justa. Ele já pediu que a filha de Fernando Henrique Cardoso devolvesse salários recebidos como funcionária de Senado sem comparecer à repartição. Batalha contra servidores que faturam acima do teto legal e contra as indenizações milionárias da Bolsa Ditadura. Sua recomendação à Ancine é apenas mais um episódio de um surto de obstáculos à liberdade de expressão.
    Neste ano já deram os seguintes casos: o presidente do Tribunal de Justiça do Paraná proibiu notícias sobre um processo que tramitava no Conselho Nacional de Justiça. O cantor Roberto Carlos pediu a retirada das livrarias de uma obra sobre a Jovem Guarda, que lhe deu fama cantando "quero que você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá pro inferno". Uma juíza proibiu que a editora americana Harper Collins venda no Brasil a tradução do livro "Gilded Lily" ("A Lily Dourada"), no qual a jornalista canadense Isabel Vincent conta a história da bilionária Lily Safra e de seus quatro matrimônios, dois dos quais terminaram com a morte trágica dos maridos. O último foi o banqueiro Edmond Safra, asfixiado em 1999 durante um incêndio em seu apartamento de Mônaco. A proibição estende-se à comercialização de uma edição em inglês que está na rede desde 2010 e custa US$ 9,78.
    Ao mandar ao arquivo a Lei de Imprensa da ditadura, o Supremo Tribunal Federal poderia ter construído um novo arcabouço para defender a liberdade de expressão. Infelizmente, ficou no papel de um Judiciário confuso, ineficiente e ineficaz, parafraseando-se o seu presidente.
    Manipular ou calar a voz dos outros é um velho instinto do gênero humano, variando apenas a forma como isso é feito. O procurador Marsico quer que "O Vilão da República" não resulte em "apologia e culto à personalidade" do comissário Dirceu. Faz isso dentro das regras do direito e das normas de um regime democrático.
    No dia 11 de setembro de 1973, dentro das regras na censura e das normas da ditadura, a Polícia Federal mandou um aviso à imprensa:
    "De ordem superior, recomendo parcimônia nas notícias relativas aos fatos ocorridos no Chile, posição do presidente Allende e evolução dos acontecimentos ocorridos naquele país."

    José Simão

    Ueba! Marina chama os gremlins!
    Agora temos esse partido Pros. Pros filhos, pros netos, pros genros e pros raios que os partam!
    Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Partido no Brasil é como banana, dá em penca! Partidos, não. Repartidos. Porque vão repartir tudo mesmo! E o presidente do PT, Rui Falcão, é o que mais falta na Assembleia. Então é o RUI FALTÃO!
    E adoro quando o Aécio implora: "Vamos conversar?". "Vamos! Cadê o bafômetro?". Rarará! Receita para fazer um partido novo: pega um monte de peça velha e faz um carro novo. É a mesma coisa! Você pega as portas de um Chevette 1971, as rodas de um Corcel 1984, o motor de um Monza e funda um novíssimo partido político. Um novelho!
    Agora temos esse partido Pros. Pros filhos, pros netos, pros genros e pros raios que os partam!
    E o Paulinho da Força Sindical fundou o Solidariedade. Auto-solidariedade! E o Paulinho tá sempre com aquela cara de quem tá se recuperando de uma hepatite crônica! E diz que o partido é de centro-esquerda. Só se for de centro espírita. Até morto eles filiaram. Rarará!
    E a Marinárvore? A tartaruga sem casco? E um amigo me disse que o partido da Marina é "um PSD que não come carne!" Rarará!
    A Marina tem que chamar os gremlins. Só assim alcança as assinaturas necessárias! Ela pega um gremlin, joga um copo d'água, ele se multiplica e funda um partido. O Partido dos Gremlins! Rarará! E a Rede da Marina tá com gancho enferrujado! Nhenc, nhenc, nhenc! E por que a Marina tá sempre com cara de mártir?
    Falando em mártir, e o Timão? Continuam zoando o Timão. As últimas do Timão! Ops, Timão vira ULTIMÃO! Rarará!
    E um leitor me enviou essa charada: "O que é o que é: começou com um selinho numa casa francesa e terminou de quatro pra Portuguesa!". Rarará!
    E como diz o site FuteboldaDepressão: "Na Síria tá tudo em paz, a coisa tá feia mesmo é no Corinthians!". E adorei que o Itaquerão foi feito com entulho do Palmeiras. Entulhão! "Moço, onde eu posso jogar esse entulho?". "No Itaquerão!" Rarará. É mole? É mole, mas sobe!
    O Brasil é lúdico! Olha essa placa numa lanchonete no Méier: "Sugestão do dia: frango assado, COIXA E SOBRECOIXA!". Adorei, achei mais chique: coixa e sobrecoixa. Por exemplo, o Corinthians levou nas coixas! Rarará! E essa placa em Santana na Bahia: "Fazemos manutenção de MEGA-RÉ!". Ueba!
    Nóis sofre, mas nóis goza!
    Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

    Marcelo Coelho

    Águas e águas
    Nos contos de João Anzanello Carrascoza, memórias se misturam com sentimentos de ameaça e de presságio
    No final de "O Céu que Nos Protege", filme de Bernardo Bertolucci com Debra Winger e John Malkovich, o narrador faz algumas reflexões sobre a história que acaba de contar.
    "Como não sabemos a hora em que vamos morrer, temos a tendência de achar que a vida é uma espécie de poço inesgotável": poderíamos sempre tirar água lá de dentro.
    "Mas", prossegue, "as coisas só acontecem um número determinado de vezes, um número bem pequeno, na verdade. Quantas vezes você irá ainda ver uma lua cheia nascendo no horizonte? Vinte, talvez. Quem sabe menos."
    Ele também pergunta: "Quantas vezes você ainda vai se lembrar de uma certa tarde na sua infância, uma tarde bem comum, mas que se tornou uma parte tão íntima de você mesmo que você não poderia imaginar sua vida sem ela?"
    São feitos de tardes assim os contos de "Aquela Água Toda", de João Anzanello Carrascoza (ed. Cosac Naify). O livro, curtinho, concentra-se em lembranças de infância, tendo como personagem principal alguém a quem o autor, na maioria das vezes, se refere só como "o menino".
    Assim, na primeira história (a que dá nome ao livro), ficamos sabendo que "o menino estava na alegria". Era verão, e a mãe anuncia: "Iriam à praia de novo". Em menos de quatro páginas, o conto mostra toda a expectativa do personagem até entrar novamente no mar.
    "Ele flutuava no silêncio, de tão feliz", escreve Carrascoza. Na véspera da viagem, o menino demora para dormir: "Não podia perder aquele futuro que chegava, de mansinho, aos seus pés".
    Até que ele adormece no sofá, e o pai leva-o para a cama, "com seus braços de espuma".
    A grandeza literária do autor não está apenas em manter, com admirável simplicidade, todas aquelas sensações do menino num âmbito de imagens marinhas: flutuação, espuma, dias que se aproximam de nossos pés como a água da rebentação.
    O conto também evoca outro tipo de ambiguidade, que certamente sentimos ao entrar nas águas do mar. Ao mesmo tempo em que nos acolhe, o mar é infinito; pode ser uterino, mas é desconhecido também.
    Também a infância se compõe de familiaridade e descoberta. Tudo é novo, mas não há nada mais forte do que a rotina, a sensação de que nada, nunca, irá mudar. O pai, carregando o menino nos braços, é suave, leve, contorna o corpo e brinca à sua volta, como a espuma.
    Como a espuma, contudo, haverá de desaparecer rapidamente. Os contos de "Aquela Água Toda" estão longe de trazer uma visão adocicada da infância. Tem-se frequentemente a sensação de que algo muito ruim irá acontecer.
    Por acaso, antes de ler o livro, eu o abri em uma página que terminou me preparando para o clima geral dessas narrativas de Carrascoza. O céu é sempre azul e o dia está sempre começando; as pessoas cuidam de abrir a janela, abrir a porta, de modo que o mundo, indubitavelmente bom, venha a oferecer-se em luz.
    É a luz, entretanto, que torna mais branco ainda o papel de uma carta --que o menino não pode ler. O rosto da mãe se modifica. Também o coração do leitor se aperta, e irá apertar-se várias vezes nas poucas páginas desse livro belíssimo.
    Reencontro em "Aquela Água Toda" as emoções de outra narrativa extraordinária, "Uma Morte em Família", de James Agee (ed. Companhia das Letras).
    O romance começa com uma evocação da noite e do calor no sul dos Estados Unidos. O lirismo dessa passagem levou o compositor Samuel Barber a criar uma de suas mais belas obras para canto e orquestra, "Knoxville: Summer of 1915", que não é difícil de achar no YouTube.
    A família inteira, mãe, pai, tios, resolve se deitar à noite no quintal. Todos, diz o narrador, são maiores do que eu; a grama está úmida, as estrelas estão vivas, ouve-se o rumor de um bonde na distância. Cito traduzindo com minhas palavras.
    "Depois de um tempo me carregam para a cama. O sono, suave e sorridente, me acolhe; e todos me acolhem, os que cuidam silenciosamente de mim, como alguém amado e familiar naquela casa."
    Mas nenhum deles, prossegue Agee, "nenhum deles, não agora, não em momento nenhum, nenhum deles me dirá, nunca, que pessoa eu sou".
    Acrescente-se que, se lhe tivessem dito, Agee provavelmente não teria escrito livro nenhum. E João Anzanello Carrascoza não teria recolhido, de suas memórias junto ao mar e no quintal de casa, tanta água. São águas e águas.
    Felizmente, o poço a que se refere Paul Bowles (autor do livro que inspirou "O Céu que Nos Protege") é profundo o bastante para saciar a sede de muita gente e para alimentar as memórias de mais de um leitor --mesmo depois de terem desaparecido, como espuma, os personagens de tantas histórias.

    Ruy Castro

    Tumor nas cidades
    RIO DE JANEIRO - No domingo, em entrevista ao "Estado", o vice-presidente Michel Temer nos tranquilizou ao dizer que "não houve tropeço na economia". E sustentou sua afirmação com a frase: "Enquanto o cidadão puder ir ao supermercado, botar o filho na escola e comprar um carro, a economia do cotidiano não mudou". Às palavras do ilustre vice, 1960 jogou beijos e mandou lembranças.
    Os dois primeiros itens nem deveriam ser citados. Ainda hoje, muitos cidadãos brasileiros continuam impossibilitados de ir ao supermercado ou de botar o filho na escola, por mais dinheiro que o governo injete diretamente nos seus bolsos. E, no dia em que o brasileiro médio não puder fazer isso, o governo terá de pedir para sair. Mas o que mais deprime é o terceiro fator invocado por Michel Temer para louvar a estabilidade da economia.
    Para ele, a estabilidade consiste em o cidadão poder comprar um carro --mesmo que, para viabilizar esse suave milagre, o governo tenha de reduzir o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) referente a ele e, com isso, lá na frente, vá lhe faltar dinheiro para deixar as estradas em condições de receber o carro. Não importam, idem, a penúria dos portos e aeroportos, a alarmante frequência dos apagões e o estado lastimável em que se encontram outras infras. O brasileiro pode comprar um carro --portanto, tudo bem.
    Daí não surpreender que, segundo o PDTU (Plano Diretor de Transportes Urbanos), de 2002 a 2012, o deslocamento individual por carros particulares no Estado do Rio tenha aumentado, e o uso do transporte coletivo, diminuído. Deve ser assim também em outras regiões do país.
    O irônico é que nunca houve, como agora, tanta consciência sobre o carro como um tumor maligno no organismo das cidades. Mas quem resiste a um tumor que o próprio governo federal promove e financia?

      Rede achou que montaria partido com curtidas no Facebook - Igor Gielow

      Despertador

      BRASÍLIA - Independentemente do desfecho da novela de criação da Rede, Marina Silva só perdeu com o episódio. Além de poder ficar sem sua legenda, ela viu expostas contradições originadas na formação de sua imagem pública.
      Marina tenta capitalizar desde 2010 a fama de uma "outsider" dada a gerenciar de forma horizontalizada, seja lá o que for isso, o sonho dos milhões que a apoiaram.
      Só que esta hagiografia, calcada na narrativa da superação da miséria e no peculiar cruzamento entre ideologia "povo da floresta" e populismo evangélico, escamoteia o fato de que Marina é política de carteirinha.
      A dinastia petista do Acre, de onde vem, é tão viciada quanto qualquer outra. A forma envergonhada com a qual lida com empresários revela mais sobre a tradicional simbiose público-privado da política do que possam fazer crer mil palavras de ordem.
      Por fim, ensaia o papel de salvadora da pátria, "deus ex machina" da política. É personagem recorrente no Brasil, como Jânio e Collor não nos deixam esquecer.
      O processo de criação da Rede explicita a dificuldade de convivência entre a verdadeira Marina e a musa idealizada dos sonháticos. As regras são ridículas? São, mas é o que temos hoje; cláusula de barreira é o nome da melhoria possível.
      A Rede achou que seria possível montar um partido a partir de 500 mil curtidas no Facebook, e que o direito divino estaria a seu lado --a soberba de Marina em suas declarações é reveladora disso. Nesse sentido, o parecer negativo do Ministério Público vai ao ponto quando questiona a criação da sigla com fim exclusivo de eleger uma candidata.
      Se a lei for levada ao pé da letra pelo TSE, o fracasso empurrará Marina ou ao exílio orgulhoso ou à lambança de fazer tudo o que prometia não fazer. Se for rasgada, a vitória a manchará com a pecha de que apelou ao jeitinho como todo mundo. Sonhar é fácil. Despertar, nem tanto.
      IGOR GIELOW é diretor da Sucursal de Brasília