domingo, 6 de outubro de 2013

Por que ser cientista? - Marcelo Gleiser

Essa é uma pergunta que escuto frequentemente, quando converso com jovens ainda indecisos com relação a qual carreira seguir. Na verdade, o que vejo, e tenho certeza que meus colegas confirmam isso, é que a maioria absoluta dos jovens não tem a menor ideia do que significa ser um cientista ou como se constitui a carreira. Imagino que nem 5% da população brasileira possa mencionar o nome de três (ou um?) cientista brasileiro da atualidade. A questão não é essa constatação, que é óbvia, mas o que podemos fazer para mudar isso.
O primeiro obstáculo é o da invisibilidade. Se ninguém conhece um cientista, fora o que se vê na TV ou no cinema, fica difícil contemplar a possibilidade de uma carreira em ciências. Contraste isso com médicos, dentistas, professores, policiais, profissões que fazem parte da vida dos jovens. Quando um jovem imagina um cientista, provavelmente pensa no programa de TV "The Big Bang Theory", ou em uma foto do Einstein de língua de fora.
A solução é maior visibilidade: é ter cientistas visitando escolas públicas e particulares, incluindo estudantes de pós-graduação que, na maioria absoluta, têm uma bolsa de estudos do governo. Proponho que, como parte da bolsa, estudantes de mestrado e doutorado devam fazer uma visita ao ano (ou mais se desejarem) a uma escola local para conversar com as crianças sobre o seu trabalho de pesquisa e planos para suas carreiras. Sugiro que seus orientadores façam o mesmo.
Sim, eu faço isso com muita frequência, tanto no Brasil quanto nos EUA. Pelo menos uma visita ou palestra (às vezes via Skype) por mês. Não tira pedaço e é extremamente útil e gratificante.
O segundo obstáculo é o estigma de nerd. Cientista é o cara bobão, o que não tem nenhum amigo e por isso vira CDF. Grande bobagem. Tem cientista de todo jeito, e alguns são nerds, como são alguns médicos, dentistas e policiais, e outros são "supercool", com suas motocicletas, pranchas de surfe e sintetizadores. Tem nerd que é "cool". Tem cientista ateu e religioso, flamenguista e corintiano, conservador e comunista. A comunidade é tão variada quanto em qualquer outra profissão.
O terceiro obstáculo é o da motivação. Por que fazer ciência? Esse é o mais importante deles, e o que requer mais cuidado. A primeira razão para se fazer ciência é ter uma paixão declarada pela natureza, um desejo insaciável de desbravar os mistérios do mundo natural. Essa visão, sem dúvida romântica, é essencial para muita gente: fazemos ciência porque nenhuma outra profissão nos permite dedicar a vida a entender como funciona o mundo e como nós humanos nos encaixamos no grande esquema cósmico. Mesmo que o que cada um pode contribuir seja, na maioria dos casos, pouco, é o fazer parte desse processo de busca que nos leva em frente.
Existe também o lado útil da ciência, ligado diretamente a aplicações tecnológicas, em que novos materiais e novas tecnologias são postos a serviço da criação de produtos e da melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mas dado que a preparação para a carreira é longa --depois da graduação ainda tem a pós com bolsas bem baixas-- sem a paixão fica difícil ver a utilidade da ciência como a única motivação. No meu caso, digo que faço ciência porque não me consigo imaginar fazendo outra coisa que me faça tão feliz. Mesmo com todas as barreiras da profissão, considero um privilégio poder pensar sobre o mundo. E poder dividir com os outros o que vou aprendendo no caminho.
Marcelo Gleiser
Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".

Quando os filhos não são como se espera - Raquel Cozer

ENTREVISTA ANDREW SOLOMON
Estranhos no ninho
Quando os filhos não são como se espera
RAQUEL COZERRESUMO Em "Longe da Árvore", recém-lançado no Brasil, o autor americano estuda a relação de pais com filhos que, por questões físicas, psíquicas ou sociais, não corresponderam a seus anseios. Aqui, Solomon comenta os desafios enfrentados por pais que lutaram para se adaptar aos filhos e os dilemas dos que desistiram deles.
O SONHO de maternidade e paternidade carrega uma dose inegável de egoísmo. O que se espera, no geral, é uma criança que se assemelhe a seus criadores na fisionomia, no jeito, na cultura de vida. A prova dos nove acontece quando esse esperado fruto cai longe da árvore, com características que os pais não reconhecem como suas.
O assunto interessa ao escritor americano Andrew Solomon, 49, desde que se conhece por gente. "A percepção de que o que eu queria era exótico e fora de sintonia com a maioria veio tão cedo que não me lembro de um tempo que a precedesse", ele escreve, a respeito de sua homossexualidade, na abertura de "Longe da Árvore" [trad. Donaldson M. Garschagen, Luiz A. de Araújo e Pedro Maia Soares; Companhia das Letras; R$ 79,50; 1.056 págs.].
A noção de que seus próprios pais nunca aceitaram ter um filho gay norteou a pesquisa do volume recém-lançado no Brasil, embora a homossexualidade não seja, em si, um dos temas pesquisados.
Autor de elogiadíssimo estudo sobre a depressão ("O Demônio do Meio-Dia", vencedor do National Book Award 2001) e de reportagens para publicações como o "New York Times" e a "New Yorker", Solomon passou 20 anos conversando com centenas de famílias nas quais os filhos não se encaixavam nos anseios iniciais dos pais --fosse por deficiências, como a síndrome de Down; fosse por distúrbios psiquiátricos, como a esquizofrenia; fosse por implicações sociais, como a gravidez indesejada após um estupro.
O resultado é um compêndio sobre disfunções pouco compreendidas e sobre a tentativa dos pais de lidar com o indesejado na criação dos filhos. Leia entrevista que o autor concedeu à Folha, por telefone, de Nova York, onde vive.
Folha - O sr. aborda no livro questões tão distintas quanto a relação de pais com crianças surdas, com síndrome de Down, vistas como prodígio e com propensão ao crime. Como selecionou os temas?
Andrew Solomon - Entrevistei mais de 300 famílias; ao fim, tinha 40 mil páginas transcritas, inclusive com entrevistas para capítulos que não escrevi. Escolhi os temas para mostrar uma ampla gama de relações de pais com filhos considerados diferentes.
Procurei tópicos representativos. Concluí, entre outras coisas, que as experiências de pais de surdos e cegos poderiam ser diferentes entre si, mas não tanto que exigisse um capítulo para cada caso. Comecei a ouvir as famílias e deixei isso guiar minhas pesquisas, o que ajudou a definir a estrutura.
No capítulo sobre prodígios, por exemplo, quis escrever primeiro sobre o lado positivo e depois sobre crianças que sofreram com a incompreensão dos pais. Abri o capítulo sobre autismo com casos traumáticos e depois tratei do movimento dos direitos dos autistas.
Tentei balancear a visão dos distúrbios vistos como doença e como identidade, falando com famílias que lutaram e famílias que se sentiram incapazes de ir em frente.
Embora chame de identidades distúrbios como o autismo e a esquizofrenia, o sr. diz que outros problemas, como a bulimia e a anorexia, não passam de doenças. Pode explicar essa distinção?
Quase todos os distúrbios podem ser descritos tanto como doenças quanto como identidades. Foi curioso notar como as pessoas veem cada caso de forma diferente. Isso ocorreu inclusive entre entrevistados para o livro --houve, por exemplo, surdos que não gostaram de se ver numa obra que também trata de esquizofrênicos. No caso da anorexia e da bulimia, que não abordei na pesquisa, há quem as descreva como identidade, mas também há quem morra por essa condição, então não é algo que possa ser celebrado.
Para a maioria da população, ser surdo parece uma tragédia, mas muitos surdos, extremamente ligados à linguagem e à cultura que desenvolveram, nunca viram isso como problema. Eu não gostaria de perder a audição, mas acredito que seja possível, se você tem uma diferença, mesmo que não seja algo que ambicione, tornar isso central em sua identidade.
Vivi a experiência de nascer gay numa época em que a homossexualidade era considerada doença e amadurecer num mundo onde a homossexualidade faz parte da identidade. Queria entender como esses modelos podem ser estendidos, como se dá a mudança de percepção entre o que é doença ou deficiência e o que é identidade.
O sr. iniciou a pesquisa para lidar com a incompreensão de seus pais sobre sua homossexualidade e, no livro, cita casos de pais que desistiram dos filhos que lhes traziam dificuldades. Como isso o fez sentir?
Há uma variável grande que envolve crianças mais fáceis ou difíceis de lidar e há também a habilidade dos pais para lidar com elas. Meu propósito foi observar modelos de resiliência das famílias.
Centrei em famílias que seguiram em frente, não sem grande e doloroso esforço. É claro que foi mais fácil falar com essas pessoas, porque quem sabe que fez um bom trabalho tem mais propensão a falar do que quem não conseguiu.
Não quis que o livro sugerisse que a resposta natural a situações como essas é cooperar. Nem que parecesse fácil. É difícil. Há pais para quem a luta é impossível, e não posso julgar isso. Pessoas diferentes têm diferentes habilidades.
Um trecho surpreendente do livro lista histórias de pais que acabaram matando filhos autistas. O filicídio é mais comum nesses casos que nos de outras deficiências?
Há filicídios relativos a outras condições debilitadoras, mas a taxa envolvendo autismo é particularmente alta. Acredito que isso ocorra com maior frequência no autismo por envolver um número expressivo de desafios.
Se o seu filho tem nanismo, você tem que aceitar que ele nunca terá mais de 1,20 m e tirar o melhor dessa situação. Se tem síndrome de Down, há intervenções efetivas para ajudá-lo a progredir.
No autismo, os tratamentos funcionam até certo ponto, para algumas pessoas. Lidar com autistas exige muita energia nos casos mais graves, e é comum não haver progresso. Além disso, crianças com autismo grave são incapazes de comunicar afeição como os pais esperariam. Muitos parecem não sentir afeição pelos pais, que se sacrificam tanto por eles. Tentar ajudar alguém que não melhora e não parece se importar com a tentativa de fazê-lo melhorar é uma combinação particularmente difícil.
Outro caso curioso é o da mulher que, prestes a sofrer um "aborto trágico" aos cinco meses de gestação, se viu obrigada pelo hospital a aceitar um procedimento que deixaria sua filha viva, mas gravemente afetada. A criança nasceu cega, nunca andou nem falou. O sr. escreve: "A política oficial impediu a filha de morrer; a política oficial disse que era problema dos pais passar o resto da vida atendendo às necessidades da menina". Os pais deveriam ter a opção de deixar a criança morrer, na sua opinião?
O sistema hospitalar americano é obcecado por manter todo mundo vivo, com ou sem dor, felizes ou infelizes com isso. Ninguém pode deduzir que uma criança com deficiência grave terá necessariamente uma vida de miséria, mas intervenções severas como essa são opressoras. A família deveria ser autorizada a tomar algumas decisões, como o quanto de intervenção médica vai aceitar para seu filho, já que o natural para a criança, nesse caso, seria morrer.
Tendo dito isso, há uma percepção geral de que ter múltiplas deficiências significa viver uma vida de agonia e dor, mas muitos pais de crianças com deficiências severas que entrevistei tinham a convicção de que elas eram felizes.
Como concilia sua posição sobre o direito ao aborto com casos em que as mulheres se viram impedidas de abortar e hoje agradecem por isso?
Todas as mulheres deveriam ter acesso ao aborto. Mas espero que algumas pessoas leiam o livro e decidam ter uma criança que em outra circunstâncias prefeririam não ter, que encontrem modelos que lhes sejam significativos.
Recebi uma carta raivosa outro dia, dizendo: "Você diz que as mulheres têm o direito de abortar, mas como se sentiria se alguém começasse a abortar fetos gays?". Falei: "Eu ficaria triste, mas também diria que cabe a elas decidir". Ninguém deve ser forçado a dar à luz uma criança que não quer ter.
Numa das centenas de histórias que o sr. conta, uma mãe cega, Deborah, se magoa quando o marido comemora o fato de o filho deles não ter herdado a cegueira. O livro mostra vários casos de pessoas com deficiência que se orgulham de sua condição. Isso o surpreendeu?
Esse caso em particular é poderoso e desconcertante. Sofri depressão, assunto do meu livro anterior, e de certo modo a depressão faz parte da minha identidade, mas não quero que meus filhos sejam deprimidos e farei o que puder para que não experimentem isso.
Deborah escreveu esse ensaio em que dizia que "não ansiava pela visão mais do que por um par de asas". Ela vive bem como cega e não imagina por que alguém preferiria uma criança que enxergasse. Pensei como me sentiria se tivesse um filho com uma mulher que falasse: "Ainda bem que ele não é gay". Muitos temem a ideia, mas seria triste ouvir isso de alguém próximo. Entendo alguém se magoar com outra pessoa descrevendo uma característica sua como indesejável, porque, ao rejeitar isso, você rejeita quem eu sou. Mas, como não sou cego, acho a ideia da cegueira aterrorizante, e esse tipo de reação me surpreendeu muito.
A culpa que muitos pais sentem por deficiências ou distúrbios dos filhos pode afetar a relação familiar?
Já foi muito comum a ideia de que pais tinham filhos gays por serem superprotetores ou porque o pai era passivo em relação à mãe. Acreditava-se que a esquizofrenia e o autismo eram causados por pais muito frios. Os pais historicamente se sentem culpados.
Começamos a deixar de pensar isso nesses casos e é preciso abandonar a sensação de culpa em outros casos também. Pode ser verdade que pais que abusam de seus filhos os levam ao crime, mas muitos que não fizeram nada errado passam pela mesma situação.
O que tem de ser levado em conta é outra coisa. Os pais podem não causar o autismo, mas podem fazer o filho ter uma relação boa ou terrível com a condição. O pai não faz o filho surdo, mas pode levá-lo a se adaptar ou se sentir inadequado. O que me interessava era como pais podem ajudar os filhos a crescer psicologicamente saudáveis.
De que modo prodígios, filhos de estupro e adolescentes com tendência ao crime, assuntos de capítulos na segunda metade do livro, podem ser comparados a pessoas que têm deficiências e distúrbios?
Queria mostrar como os pais lidam com o que é diferente. É claro que o pai de um prodígio não se sentirá triste como o de uma criança com deficiências múltiplas, mas não é muito mais fácil lidar com o prodígio. Também será preciso imergir no mundo estranho que o filho vai conhecer e garantir que ele cresça com um grau mínimo de ajuste emocional. Quis mostrar, de forma provocativa, como um prodígio se assemelha a um doente.
Filhos de estupro lidam com mães que acham difícil expressar amor e lutam contra os instintos para se desconectar dessas crianças. O estupro faz com que crianças sem deficiências sejam recebidas como filhos que têm deficiência.
Sobre a tendência ao crime, notei que muitas pessoas que entrevistei tinham um senso de identidade em suas comunidades devido à forma como se comportavam. Claro, o imperativo social é de batalhar contra essa identidade. Mas tentei entender o que se passa na mente de quem comete crimes, como muitos acreditam encontrar sua identidade ao cometer crimes.
O sr. defende uma distinção entre os cérebros de adolescentes e adultos para justificar punições diferentes para crimes cometidos por uns e outros. Como ser preso com adultos pode afetar o comportamento juvenil? Pergunto porque há uma discussão no Brasil sobre a redução da maioridade penal.
Há interesses conflitantes na acusação de adolescentes. Queremos limitar o crime, mas sabemos que adolescentes podem cometer erros por falta de maturidade.
Se falamos em reduzir a maioridade penal, a primeira pergunta é o que se alcança com isso. Será que a perspectiva de receber penas mais duras pode impedir um adolescente de cometer crimes que cometeria tendo em vista penas mais brandas? Não conheço pesquisa sobre isso no Brasil, mas os estudos nos EUA mostram que o efeito dissuasor de sentenças mais duras é praticamente nulo. A estratégia é ineficaz porque adolescentes não têm sistemas de controle maduros e, portanto, cometem com mais constância erros de julgamento.
Se continuarmos a dar sentenças mais leves a adolescentes, alguns podem amadurecer e deixar de ser criminosos? Sim: programas de reabilitação que não funcionam para adultos podem ser úteis a adolescentes. Sentenças mais duras são ineficazes. É fato que ninguém comete crimes nas ruas estando na cadeia; assim, poderíamos estipular a prisão perpétua a todos os criminosos. Isso talvez reduzisse a criminalidade, mas a um custo terrível: vidas desperdiçadas e um imenso gasto público.
O sr. cita algumas vezes no livro a reação de seus pais ao fato de o sr. ser gay. Acha comparável o grau de aceitação da sociedade à homossexualidade e a deficiências como a síndrome de Down e o nanismo?
Há vários grupos que batalham por seus direitos, conseguem-nos e então excluem outros grupos. Quando os gays começaram a dizer que se inspiravam na luta pelos direitos civis, alguns ativistas negros disseram: "Vocês não são como nós. Somos uma minoria racial, vocês têm essa doença de ser gays".
Moro em Nova York, numa casa que pertenceu a Emma Lazarus (1849-87), poeta mais famosa por ter um poema na Estátua da Liberdade, mas que também escreveu: "Até sermos todos livres, nenhum de nós será livre". Pensei que, em vez de me colocar na posição de negros ou mulheres no passado, era mais generoso ir na direção de quem ainda não tem reconhecimento, não tem nada a não ser o que os outros veem como doença.
Após anos escrevendo sobre nanismo, ao falar com filhos anões de pais comuns, senti que sua experiência se parece à de filhos gays de pais heterossexuais. São famílias que se sentem normais, mas têm crianças diferentes. Parece artificial a ideia de que umas diferenças são aceitáveis e outras não.
Recentemente discutiu-se no Brasil projeto de lei que propunha a "cura gay" por meio de atendimento psicológico. Como vê a ideia?
Tratamentos assim são inúteis, imorais e exploradores. São inúteis porque não podem trazer a mudança prometida. Gays não se tornam heterossexuais mediante terapia, isso é risível do ponto de vista médico. São imorais porque estigmatizam os gays, fortalecem a homofobia e o auto-ódio, e sustentam a mensagem de que ser gay é tragédia ou pecado, quando é, na verdade, parte do espectro da identidade humana. E são exploradores porque despendem enormes quantidades de tempo e dinheiro sem nenhum resultado.
Será que endossaríamos um médico que desenvolvesse uma prática baseada na noção de que é desvantajoso ser baixo e criasse um tratamento para esticar as pessoas até elas ficarem altas? Não, nós diríamos que isso é ultrajante, doloroso e sem propósito.
Tentar converter gays pode causar danos psíquicos permanentes. Permitir esse tipo de terapia é passar uma mensagem que os prejudica e os torna menos capazes de participar da sociedade.

    Das dificuldades de traduzir "Os Persas" - Nelson De Sá

    Outros 300
    NELSON DE SÁRESUMO Lançamento de duas novas traduções da tragédia de Ésquilo, primeira peça ocidental que de que se tem notícia, traz à luz as dificuldades para traduzir e montar um texto clássico. Especialistas debatem questões inerentes ao trabalho com um texto antigo, como a manutenção da métrica e a adaptação do léxico à atualidade.
    Quando preparava a montagem de "Os Persas" no ano passado, parte de um projeto maior voltado ao teatro de Ésquilo, o diretor Roberto Alvim buscou as traduções existentes e não gostou do que viu. Acabou por construir um texto próprio, que levou ao palco do Club Noir em São Paulo. É a prática corrente nas encenações de tragédia grega --e de outras peças clássicas-- nos palcos brasileiros.
    Os atores se exasperam diante dos diálogos que não cabem na boca --no jargão teatral, traduções que não parecem ter sido feitas para a cena. "É importante perceber que se trata da fala, não da palavra", cobra o diretor. "Que o texto foi escrito por Ésquilo para ser falado por atores. E que é preciso não azeitar o texto, que tem característica propositalmente torta, da ordem do ruído, da dissonância."
    Uma das questões mal resolvidas nas traduções do texto de Ésquilo, aponta Alvim, é que muitas delas tentam reproduzir em prosa, longamente, os múltiplos sentidos contidos em poucas palavras no original. Outro equívoco comum que o encenador diz notar nas traduções da peça é a adoção de linguagem anacrônica, o que ele classifica como "um erro brutal".
    "A gente tem de se colocar hoje no lugar em que Ésquilo estava quando escreveu. Não tem sentido empregar português arcaico porque o texto data do século 5 a.C."
    REMANESCENTE "Os Persas" é a mais antiga tragédia grega a sobreviver até os nossos dias --mais que isso, é o mais antigo texto remanescente do teatro ocidental.
    A peça estreou em Atenas no festival de Dioniso de 472 a.C., quando Ésquilo já contava perto de 50 anos de vida e 27 como autor. Isto foi oito anos após a batalha de Salamina, em que as tropas gregas, comandadas por Temístocles, venceram o contingente persa sob o comando de Xerxes.
    A tragédia retrata a derrota dos invasores, mas não do ponto de vista dos vitoriosos gregos, e sim segundo a visão dos persas. O próprio Ésquilo teria sido um combatente de Salamina, lutando ao lado de um irmão. O autor também estava em Atenas quando a cidade foi saqueada e destruída.
    Embora reafirme a importância de "Os Persas" como documento "estético", José Antonio Alves Torrano, professor de língua e literatura gregas na USP e tradutor da peça (Iluminuras, 2009), ressalta sua importância sob o ponto de vista historiográfico, "inclusive porque é fonte de Heródoto", que dele teria se servido em suas "Histórias", obra posterior à tragédia de Ésquilo e mais difundida que ela.
    "Heródoto tem uma dívida com relação à descrição que Ésquilo faz da batalha de Salamina", afirma Torrano. "O quadro geral é de Ésquilo. A forma da batalha, as principais referências, os elementos da narrativa: todos foram tirados por Heródoto do texto de Ésquilo. Não temos outra documentação mais importante do que esta."
    É consenso que a imagem que a cultura ocidental carrega até hoje de Xerxes, até mesmo em filmes como "300" (2006), se deve mais a Heródoto. Mas outros trechos da peça, além da batalha, seguem ecoando no presente. "Quando surge da tumba o pai de Xerxes, Dario, e diz que o filho cometeu um grande erro ao ligar o Oriente com o Ocidente, é extremamente atual", opina Trajano Vieira.
    Vieira, que é professor de língua e literatura gregas na Unicamp, assina uma nova tradução de "Os Persas". Ele destaca o pano de fundo histórico entre as peculiaridades da tragédia de Ésquilo.
    "Diferentemente de boa parte do teatro grego, o núcleo de Os Persas' não é mítico, e sim histórico. Foi a história, da qual Ésquilo participou ativamente, que o levou a escrever". E lembra: "Em sua lápide não há referência à atividade como teatrólogo, mas à participação na guerra contra os persas".
    Se, ao procurar textos para sua montagem, o encenador Roberto Alvim tivesse esperado mais um pouco, teria tido à sua disposição não só a opção oferecida por Trajano Vieira [Perspectiva, R$ 34,90, 144 págs.] mas também uma de Junito Brandão (1924-95), que o helenista deixou inédita ao morrer [Mameluco, R$ 54, 360 págs.].
    As duas edições são bilíngues e contam com textos de apoio. No caso de Brandão, o livro é uma homenagem ao tradutor. Antonio Medina Rodrigues, professor de grego da USP, morto em maio passado, assina um dos textos. No ensaio "Junito, o Meio-termo Radical", elogia no tradutor "o simples, isento de qualquer afetação", ou ainda, "sem ornatos".
    CONFRONTO Nas duas novas versões de "Os Persas", percebe-se um confronto subterrâneo entre simplicidade e complexidade.
    "É uma peça com enorme preocupação formal, é sua particularidade maior", define Vieira. "Nela, os jogos verbais e a complexidade da linguagem são muito grandes."
    O professor sublinha uma das dificuldades que o autor teve de superar e que se reapresentam ao tradutor: "Mais de 75% dos nomes do contingente persa citados são de origem oriental. Você imagina a maestria do Ésquilo para adaptar à métrica grega. E é apenas um exemplo da estrutura poética. Meu interesse maior foi dar conta, de algum modo, dessa complexidade".
    Ele ilustra a riqueza formal com um exemplo: "Existe o verbo destruir, persai', que aparece em algumas passagens e que tem a sonoridade da palavra persa, persai'. Ele surge também como epíteto do Xerxes, o adjetivo que o qualifica num certo momento, perseptolis', quer dizer, destruidor de cidades. É um jogo que o Ésquilo faz com a palavra".
    O tradutor Torrano tem uma abordagem distinta quanto à complexidade do texto. Para ele, sua linguagem "não oferece dificuldade especial". "Apenas a de ser religiosa, com um caráter oracular. Ela interpreta, ela não descreve."
    As especificidades da linguagem, defende Trajano Vieira, devem ser levadas em conta na transposição ao palco. Para ele, é fundamental que o diretor não perca de vista a "estrutura poética da linguagem" --o que vale não só para "Os Persas" mas para todo o teatro grego. "Cada um dos três grandes que restaram tem características muito diferentes. Por exemplo, nos casos de Sófocles e Eurípides, há as incorporações da linguagem científica."
    Por outro lado, diz Vieira, a fidedignidade ao texto original (quesito muito frequentemente associado à qualidade, quando se fala de traduções e adaptações) não pode ser um limitador da criação. "O diretor também não pode ser servil ao texto, deve sempre buscar uma reinvenção pessoal, necessária para a sua concepção".
    De qualquer maneira, não faltam atrativos para levar "Os Persas" ao palco. "A peça segue o esquema das outras tragédias de Ésquilo", diz Torrano, que traduziu as sete. "É o mesmo para todas, esta não foge à regra: um crescente de expectativa, de angústia e de medo que está por vir. E toda a expectativa, a angústia e o medo se cumprem no final."
    PALCO Uma boa tradução não necessariamente se presta facilmente ao palco. Foi o que aconteceu com a versão de "Hécuba", de Eurípides, feita por Christian Werner, professor de língua e literatura gregas na USP, para a Martins Fontes, em 2005. Gabriel Villela a considerou e descartou para encenação da peça que dirigiu em 2011.
    "Quando o diretor resolveu montar a tragédia, deu uma olhada na minha tradução e achou muito complicada para o cronograma deles, um texto que teriam de trabalhar muito", recorda.
    A opção da montagem recaiu sobre uma versão anterior do mesmo texto feita por Mário da Gama Kury (Zahar, 1992), talvez o maior tradutor brasileiro de obras clássicas, em volume.
    Segundo Werner, que lista a "Hécuba" de Villela entre as encenações mais bem-sucedidas do gênero no país, o texto de Gama Cury era "bem mais fluido, bem mais fácil de, sem muito trabalho, adaptar para uma encenação".
    A questão é que simplicidade ou complexidade não definem necessariamente qualidade. Werner trata de desmistificar algumas premissas correntes sobre o ofício.
    Uma delas diz respeito à preservação do metro. Para o tradutor "adotar ou não métrica não significa rigor maior, não torna o texto mais denso ou mais próximo de especificidades do original".
    Entre desafios mais relevantes, ele vê o de "trazer para a tradução um certo vocabulário polivalente, ambíguo, sem criar estranhamento muito grande no espectador".
    E cita o modelo de Friedrich Hölderlin, poeta alemão contemporâneo de Goethe e Schiller.
    "Foi um dos tradutores mais radicais. Suas traduções de Antígona' e Édipo Rei', de Sófocles, foram muito criticadas na época, por se distanciarem de um alemão canônico. Mas até hoje recebem encenações, embora sejam extremamente difíceis para o público contemporâneo."

      A timidez de Sérgio Porto

      ARQUIVO ABERTO
      A timidez de Sérgio Porto
      Rio de Janeiro, 1959
      ÂNGELA PORTOHá 45 anos sua ausência se abateu sobre nós como uma "machadada de Brucutu", como dizia Manuel Bandeira, de quem tomo emprestada a imagem. Mesmo ausente, meu pai, mais conhecido pelos leitores como Stanislaw Ponte Preta, mantém em minha vida uma forte presença e me traz com frequência boas lembranças.
      Sua presença é forte, antes de tudo, por imaginá-lo sempre um homem enorme, como de fato era. Trabalhava principalmente em casa, batucando dia e noite sua "intimorata Remington", na sua própria expressão. Mas também trabalhava na praia, aonde íamos pela manhã, coisa que ele adorava fazer. Pegava suas três filhas pelos braços e, junto a uma pilha de jornais, descíamos as três quadras em direção à praia.
      Morávamos em Copacabana, cuja praia era de mar mais batido antes da reforma da avenida Atlântica. Enquanto brincávamos perto da água, papai se sentava na areia, lia freneticamente os jornais e recortava com uma tesoura as notícias que usaria mais tarde como material para suas crônicas. Às vezes era despertado dessa atividade pelo movimento de pessoas que se amontoavam para assistir ao salvamento de três meninas.
      Papai nasceu, viveu e morreu na rua Leopoldo Miguez, em Copacabana. Era um homem muito bem-humorado, brincalhão, de uma ironia que surpreendia e a todos fazia rir, mas, paradoxalmente, tímido para determinadas situações em que tivesse que se expor.
      Aqueles que acompanhavam suas divertidas crônicas pelos jornais não podiam imaginar que, por trás de suas páginas, se escondia um homem acanhado com o público. O "Show do Crioulo Doido", que criou e apresentou por dois anos, fez enorme sucesso e o tornou famoso. Durante esse período, saíamos todos os sábados para jantar e depois assistir ao show. Muitas vezes, ele era reconhecido por alguém que logo começava a puxar o samba de sua autoria.
      Nós, as três irmãs, ainda adolescentes, nos sentíamos envergonhadas, mas ele ficava vermelho e absolutamente sem graça, com vontade de fugir. Para disfarçar seu desconforto, fazia graça fingindo que iria "sair de fininho".
      Assim era o tímido Sérgio Porto, que preferia deixar a notoriedade para seu outro, o Stanislaw. A criação desse pseudônimo, idealizado por ele e seu tio, o crítico musical Lúcio Rangel, foi um artifício, entre outras necessidades profissionais, para acobertar o lado mais formal de meu pai. Assim ele poderia se aventurar numa outra modalidade de escrita mais irreverente, que caracterizou na família Ponte Preta e nos "Febeapás", permanecendo o autor Sérgio Porto com o estilo "mais sério" que imprimiu em "A Casa Demolida" e "As Cariocas".
      Mas, com toda sua timidez, nunca vi meu pai mais vexado do que no dia de minha "formatura" no jardim de infância.
      Isso se deu em 1959, no Colégio Mello e Souza. Houve uma grande festa em que todos os alunos deveriam vestir-se com roupas que indicassem a profissão dos pais. Todos foram de médico, advogado, engenheiro, professor etc.
      Mamãe se viu em maus lençóis para fazer minha fantasia, mas inspirou-se numa caricatura que o Lan havia feito. Era um desenho de papai escrevendo à máquina, cercado de vários recortes em que se lia: rádio, televisão, jornal, show, revista tal e tal. Assim era minha roupa: um vestido branco com vários recortes colados.
      No final da festa, cada aluno fazia uma apresentação: recitava um versinho, dançava, cantava. Eu quis cantar e pedi que meu pai me acompanhasse. Ele ficou sem jeito e foi cutucado por minha mãe, que o estimulou a subir no palco.
      Mas o que o fez mesmo corar de vergonha foi a música que escolhi para cantarmos. Ao meu lado, teria de entoar os famosos versos de Paulo Borges, que uns anos antes haviam feito sucesso na voz de Alcides Gerardi: "Encosta tua cabecinha no meu ombro e chora".

        Ciência e arte - Helio Schwartsman

        SÃO PAULO - "The Age of Insight" é um livro impressionante. Eric Kandel é um neurocientista de primeira. Já fora agraciado com o Prêmio Nobel de Medicina em 2000 por seus trabalhos sobre a fisiologia da memória. Mas, em vez de escrever sobre axônios e dendritos, preferiu debruçar-se sobre a arte, mais especificamente sobre o modernismo vienense, e o resultado é uma obra de fôlego, tanto do ponto de vista da estética como da ciência.
        Kandel, ele próprio um vienense expatriado, fala com propriedade do ambiente cultural que reinava na capital austríaca na virada do século 20. Uma das teses do autor é a de que, assim como a física de Newton inspirou o iluminismo, a biologia de Darwin está na base do modernismo.
        Kandel destrincha escritos de Sigmund Freud e Arthur Schnitzler e as pinturas de Gustav Klimt, Oskar Kokoschka e Egon Schiele, para mostrar como as ideias inicialmente surgidas na Escola Médica de Viena acabaram engendrando um movimento artístico cujas influências perduram até hoje --e não apenas na arte.
        Freud e Schnitzler beberam dessa biologia médica para forjar as noções de inconsciente e sexualidade em seus contornos modernos. Klimt, Kokoschka e Schiele deram tradução pictórica a esses conceitos. Mas Kandel não se limita a contar essa história. Ele também escarafuncha nossos cérebros para revelar os mecanismos neuronais da visão e da percepção que esses pintores exploraram tão bem, ainda que não tivessem tanta clareza sobre seu funcionamento.
        E que não temam os puristas. As análises de Kandel, apesar de recheadas de boa ciência, lembram mais escritos de grandes historiadores da arte como Gombrich e Panofsky do que as anódinas descrições técnicas dos periódicos científicos.
        Kandel consegue com felicidade juntar arte, história e ciência numa obra. É um daqueles raros livros que mostram que ciências e humanidades são perfeitamente conciliáveis.

        Antonio Prata

        Dente por dente
        Se ficarem em silêncio, terão de atravessar os infinitos minutos lendo Atlas, Atlas, Atlas, Atlas
        Eu estava escovando os dentes no banheiro do Sesc, depois do almoço e antes de uma reunião, quando um cara entrou. Confesso que ao ser flagrado ali, naquele momento mezzo íntimo, fiquei um pouco envergonhado. Um pouco só, mas o suficiente para abaixar a cabeça e diminuir o ímpeto da escovação --passando de espadachim a enfrentar dois inimigos, simultaneamente, a um inglês no metrô falando ao celular.
        Talvez você, que tem um emprego de verdade e fica o dia todo fora de casa, ache este reflexo pudibundo uma frescura de moçoila da belle époque. É, é meio ridículo, mesmo, mas a gente que trabalha em casa e tem como único colega de batente um pombo cinza que vez ou outra pousa na janela vai ficando aos poucos com umas manias de filho único: muito cioso do próprio espaço, sem saber brincar em turma, de modo que, quando o cara entrou, como eu já disse, abaixei a cabeça e assumi aquela circunspecção de mictório.
        Meu casulo, contudo, se desfez bem rápido, pois o sujeito parou ao meu lado, tirou da mochila uma necessaire e começou, ele também, a escovar os dentes. O leve constrangimento se foi e deixou em seu lugar uma pequena felicidade. Pequena, mas suficiente para me fazer levantar a cabeça e, pelo espelho, acenar com uma sobrancelha ao meu parceiro de escovação. Foi um gesto discreto, da mesma envergadura do meu constrangimento e do meu alívio, só um meneio cúmplice, de boas-vindas, como uma pessoa que, abrigando-se da chuva sob uma marquise, vê chegar outro cidadão ensopado. O cidadão, contudo, não era muito de dividir marquises: fingiu que não me viu, pregou os olhos no espelho, franziu as sobrancelhas e deu início aos trabalhos com uma fúria de enceradeira.
        Veja, não sou uma pessoa carente. Minto, sou carente, somos todos carentes, mas não sou um chato. Eu não ia, caso ele respondesse a meu aceno, puxar um papo sobre pasta de dentes e logo em seguida alugá-lo por meia hora com minhas queixas sobre o trânsito, a dor no ciático e os embargos infringentes. Era só um "Vai, Corintcha!", um "Que chuva, hein?!", uma dessas microparcerias que deixam a vida na cidade menos desoladora.
        Fala-se muito mal de papos sobre o tempo: pois eu acho uma grande conquista da civilização. Você entra no elevador, o senhor do 903 entra no elevador: se ficarem em silêncio, terão de atravessar os infinitos minutos olhando pro teto, pro chão, lendo ininterruptamente Atlas, Atlas, Atlas, Atlas ou mexendo no celular --sem sinal. Mas basta um dos dois dizer "Que calor, hein?" e o outro responder "Dos infernos..." e, pronto, uma brisa refresca aquele mormaço.
        Infelizmente, meu vizinho de pia não compartilhava do mesmo protocolo de civilidade: seguiu fechado em sua bravurinha escovatória. Infelizmente pra ele, pois saindo dali o cara descobriu que era comigo a reunião das duas e ambos sabíamos muito bem o que tinha acabado de acontecer e ele aceitou o orçamento que havia me dito por e-mail que não dava pra aceitar e topou o prazo que havia jurado que não conseguia me dar e eu só não levei pra casa sua mesa, sua cadeira, seu computador e sua carteira porque sou um homem honesto e não gosto de me aproveitar dos outros nos momentos de fraqueza.

          Elio Gaspari

          As campeãs nacionais de desastres
          O sonho petista de criar um bloco de empresas financiadas pelo BNDES reeditou um pesadelo
          Em 2007, o BNDES ressuscitou o zumbi da anabolização de empresários amigos e anunciou que o governo queria criar um núcleo de "campeões nacionais", inserindo-o no mundo das grandes empresas mundiais. Nesse lance, botou perto de R$ 20 bilhões em empresas companheiras.
          Numa mesma semana, dois fatos mostraram o tamanho do fracasso dessa política. O conglomerado da OGX, produção megalomaníaca de Eike Batista na qual o BNDES financiou R$ 10,4 bilhões, está no chão. A "supertele" Oi, produto da fusão pra lá de esquisita e paternal da Telemar com a Brasil Telecom, tornou-se uma campeã nacional portuguesa, fundindo-se com a Portugal Telecom. Em 2010, o BNDES e os fundos de pensão tinham 49% da empresa. A nova "supertele" nasce com uma dívida de R$ 45,6 bilhões. Novamente, receberá recursos do BNDES e dos fundos companheiros. O ministro Paulo Bernardo, das Comunicações, garante que essa fusão é uma "estratégia". Vá lá, desde que ele acredite que o Unibanco fundiu-se com o Itaú.
          A carteira de ações do BNDESPar caiu de R$ 89,7 bilhões em 2011 para R$ 72,8 bilhões em 2012. A campeã do ramo de laticínios chamava-se LBR e quebrou. A Fibria, resultante da fusão da Aracruz (chumbada) com a Votorantim, atolou. O frigorifico Marfrig tomou R$ 3,6 bilhões no banco e acabou comido pela JBS, cujos controladores movem-se num perigoso mundo onde convivem a finança internacional e a política goiana. Já o Bertin teve que ser vendido logo depois de o BNDES entrar na empresa. (Até 2013, esse setor recebeu a maior parte dos investimentos do BNDES.)
          O BNDES anunciou há meses que abandonou a estratégia da criação dos campeões nacionais. Falta só explicar quanto custou, quanto custará e que forças alavancaram os afortunados. Essa tarefa será fácil para alguns petistas e para o doutor Luciano Coutinho. Eles conhecem a história do banco.
          TUDO BEM COM THOR
          Eike Batista não pagou os US$ 45 milhões que devia aos seus credores, mas ninguém deve temer que seus dependentes entrem para o cadastro do Bolsa Família. Seu filho Thor, que estava em Miami com a mãe, a atriz Luma de Oliveira, veio para o Rio. Mesmo tendo prestado serviços despiciendos ao grupo OGX, recolheu aquilo a que julgava ter direito.
          TIRADENTES
          Quarenta anos depois do aparecimento do esplêndido "Devassa da Devassa", que recontou a história da Inconfidência Mineira, o professor Kenneth Maxwell voltou às Minas Gerais do século 18. Num texto de 57 páginas que serve de introdução à história de um livro que pertenceu a Tiradentes, Maxwell coloca no seu devido contexto a aproximação de inconfidentes com os "americanos ingleses", notadamente Thomas Jefferson, que era embaixador na França.
          Coisa de quem leu tudo e é capaz de ver na articulação dos mineiros não só uma busca de ajuda junto aos subversivos da época, mas um desejo de aproximar os brasileiros do pensamento político e econômico da Revolução Industrial nascente.
          Tiradentes e seus pares eram perigosos porque iam atrás das ideias dos americanos. Tanto era assim que ele tinha um livro com os textos da Declaração da Independência e as Constituições de 6 das 13 ex-colônias americanas.
          Pela primeira vez, o "Livro de Tiradentes" tem sua íntegra publicada e comentada no Brasil. Até 1860, ele ficou dentro de um saco verde nos arquivos brasileiros. Passou por Santa Catarina e só voltou a Ouro Preto em 1989.
          EREMILDO, O IDIOTA
          Eremildo é um idiota e acha que alguém está com saudade das manifestações de junho.
          O Judiciário bloqueou a Rede de Marina Silva por falta de apoio dos eleitores e criou o Pros (ganha uma viagem a Frankfurt quem souber o que ele é) e o Solidariedade (ganha outra viagem quem não souber o que ele é).
          MASSIMO (1978-2013)
          Acabou-se o restaurante Massimo, meca da comida italiana e da plutocracia paulistana nos anos 80. Massimo Ferrari, a alma da casa, deixara-a em 2006. O desfecho deu-se por causa de um litígio judicial com os proprietários do imóvel, que se arrastava há anos.
          CHAFURDANDO
          Em março, aborrecido com uma pergunta do repórter Felipe Recondo, o ministro Joaquim Barbosa chamou-o de "palhaço", mandando-o "chafurdar no lixo". Pouco depois, sua assessoria manifestou-se: "Em nome do presidente do STF, peço desculpas aos profissionais de imprensa pelo episódio ocorrido hoje".
          Passados sete meses, Barbosa oficiou ao ministro Ricardo Lewandowski, pedindo que considerasse o defenestramento da mulher de Recondo, lotada na assessoria do colega. Reputou "antiética" a posição da servidora, mas, salvo a relação matrimonial, não apresentou um único fato que amparasse o adjetivo. A senhora é servidora pública concursada desde 2000. Casou-se com Recondo em 2006.
          Lewandowski rebarbou a sugestão, e Barbosa recuou.
          Tudo bem, Barbosa acha que se pode descarregar sobre as atividades profissionais das mulheres os desconfortos que se gostaria de impor aos maridos.
          O que não se entende é o pedido de desculpas de março. Era brincadeira, ou agora Barbosa quer um embargo infringente reverso?

          ~>A VIÚVA NA FARRA DA FEIRA DE FRANKFURT<~ 
          Sempre é o caso de repetir a lição do embaixador Azeredo da Silveira: "Tem gente que atravessa a rua para escorregar na casca de banana que está na outra calçada". O Ministério da Cultura e a Biblioteca Nacional meteram-se com uma farra na feira de livros de Frankfurt e comprometeram R$ 18,9 milhões da Viúva para custear a homenagem que o país receberá.
          Trata-se de um evento de negócios que começa quarta-feira, dura uma semana, mas estará aberto ao público por apenas dois dias. Para ele convidaram 70 escritores, à custa da Boa Senhora. Ganha uma viagem a Cuba quem souber a importância de uma homenagem na feira de Frankfurt para quem paga imposto em Pindorama, onde a Biblioteca Nacional, arruinada, não abre aos domingos e nela é vedado o uso de canetas. Recarga para o laptop, só num restaurante próximo.
          Em 2000, quando o governo de FHC torrou R$ 14 milhões na feira de Hanover, comemorando os 500 anos do Descobrimento, o procurador Luiz Francisco de Souza acusou a empresa que montou o pavilhão brasileiro de improbidade. Se os empresários do mercado editorial brasileiro precisassem da homenagem da feira, poderiam recebê-la, com o dinheiro deles. O setor está grandinho. Faturou R$ 5 bilhões em 2012 e nele há administradores sagazes. Em 2012, o Brasil importou 13,5 mil toneladas de livros mandados imprimir na China. Afinal, custam a metade. Dão emprego a chineses e, com o dinheiro dos brasileiros, festejam-se na Alemanha.
          Às vésperas da feira, viu-se que foram contratados serviços sem as devidas licitações, e um jornal alemão lembrou que entre os 70 escritores convidados há apenas um negro, Paulo Lins. Apesar disso, o Brasil é apresentado como "um país que se reinventa". Na sexta-feira, o escritor Paulo Coelho detonou a comitiva da reinvenção.