segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Raquel Rolnik

folha de são paulo
O longo caminho por calçadas seguras
Calçadas seguras e confortáveis para todos têm que ser parte integrante de um sistema geral de produção da cidade
No mês passado, no Fórum de Mobilidade realizado pela Folha, Márcio Kogan exibiu imagens de calçadas de nossa cidade. Após a apresentação, o arquiteto concluiu afirmando que não tinha mais nada a dizer.
Ninguém precisa ter visto os slides para imaginar o que foi mostrado. Basta ser pedestre. Ou pior, basta ter ou estar com mobilidade reduzida, ou simplesmente tentar empurrar um carrinho de bebê pela cidade...
Estamos falando de maiorias: cerca de 30% dos deslocamentos na capital paulista são realizados a pé e quem usa transporte público também pode ser considerado pedestre, já que parte de seu deslocamento em direção aos pontos de ônibus e estações também é feito deste modo.
Calçadas seguras e transitáveis são um dos elementos centrais da mobilidade na cidade. Não se trata, porém, de tema fácil de ser equacionado.
Em 2011, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou uma nova lei sobre calçadas. Esta lei aumentou de 90 cm para 1,20 m o espaço mínimo livre e desimpedido reservado à passagem de pedestres, e determinou a localização --junto ao meio fio-- de uma faixa de 75 cm reservada para instalação de lixeiras, árvores e mobiliário urbano.
A lei definiu ainda como devem ser as esquinas, os materiais utilizados em cada tipo de via, entre outros aspectos, além de instituir multas para quem não cumprir as determinações.
À época, aliás, a prefeitura divulgou uma cartilha com orientações sobre a implementação da nova lei. O material está disponível no site da Folha:media.folha.uol.com.br/cotidiano/2012/04/09/regras-calcada.pdf
A responsabilidade pela construção e manutenção das calçadas é do proprietário. A lei municipal de São Paulo, no entanto, define que em áreas com maior circulação de pedestres e de concentração de serviços públicos, definidas como "rotas estratégicas", é a prefeitura que executa e mantém os passeios.
Em âmbito federal, está em debate no Congresso Nacional há anos, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que inclui a exigência de que, em todo o país, prefeituras implantem e mantenham calçadas que garantam acessibilidade às pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida em rotas e vias existentes que concentrem os focos geradores, públicos ou privados, de maior circulação de pedestres.
O problema de nossas péssimas calçadas não começa nem termina com a definição de responsabilidades, nem mesmo com o estabelecimento de parâmetros e regras para sua execução.
Em nossas cidades, isso começa com os processos de loteamento, que em muitos casos sequer exigem a execução de passeios, e suas dimensões mínimas, para serem aprovados. Existem ruas --em bairros nobres da capital paulista!-- com passeios de menos de um metro de largura.
Além disso, são inúmeras as questões não equacionadas em função da implantação de bairros em regiões com topografia acidentada.
Por um lado, é totalmente ilusório achar que o poder público teria capacidade financeira e de gestão de, da noite para o dia, consertar todas as calçadas da cidade e implantá-las onde não existem.
Por outro, calçadas seguras e confortáveis para todos têm que ser parte integrante de um sistema geral de produção da cidade, que historicamente gasta milhões com o asfalto onde andam os veículos e regula milimetricamente o que se pode construir lote adentro, mas jamais priorizou os espaços de circulação dos pedestres.

    Painel - Vera Magalhães

    folha de são paulo
    Antecedentes
    O promotor Edilson Mougenot Bonfim, ex-corregedor-geral da Prefeitura de São Paulo na gestão Gilberto Kassab, afirma que deixou para a equipe de Fernando Haddad investigação em aberto sobre Ronilson Bezerra Rodrigues, ex-subsecretário da Receita acusado de desvio de recursos. No depoimento do auditor, que está gravado, já havia, segundo ele, elementos para que ele não fosse renomeado na atual gestão. "Fui eu que comecei e levantei toda a bola da investigação", afirma.
    Transição Bonfim diz que não é correta a versão de que a corregedoria não levou adiante a apuração. "Fizemos uma investigação preliminar, nos dois meses que tivemos. Superficial, a meu ver, foi a triagem para permitir que Ronilson fosse renomeado, mesmo com um procedimento em andamento contra ele."
    Memória O ex-corregedor lembra que o atual controlador-geral do município, Mário Vinicius Spinelli, manteve boa parte da equipe anterior, inclusive o procurador do município Rodrigo Yokouchi Santos, que participou do depoimento de Ronilson.
    Fumaça Para Bonfim, já havia fortes suspeitas de corrupção na subsecretaria da Receita. Na oitiva, afirma, Ronilson se "esquivou" de explicar a evolução de seu patrimônio. "Ele fazia circunvoluções em torno dos temas", recorda o ex-corregedor.
    Cada um... Integrantes do PSD calculam que Kassab precisa se afastar do PT local para encontrar seu eleitorado-alvo caso leve adiante a candidatura ao governo de São Paulo no ano que vem.
    ... na sua O estremecimento da relação com os petistas após a prisão de ex-auxiliares de Kassab deve acelerar esse descolamento.
    Cabeças Marcio Pochmann, ex-presidente do Ipea hoje à frente da Fundação Perseu Abramo, passou a participar das reuniões que discutem o programa de governo de Alexandre Padilha (Saúde) ao governo paulista.
    Rosa O PSB trabalha para viabilizar a chapa com a senadora Lídice da Mata (governo) e a ministra do STJ Eliana Calmon (Senado) na Bahia. O palanque é visto como um dos mais fortes para Eduardo Campos no Nordeste.
    Calouro Francisco Teixeira, que assumiu o Ministério da Integração Nacional há um mês, saiu da sua primeira reunião ministerial sob pressão. Além da bronca pelo atraso na obra da transposição do rio São Francisco, ouviu queixas sobre a lentidão no programa de cisternas.
    Milhagem Dilma determinou que os ministros iniciem nos próximos meses uma rotina de até duas viagens por semana para lançar ou vistoriar ações das principais pastas, com prioridade para os maiores Estados.
    Vacina "Entrega", termo usado por todos os ministros na saída do Palácio da Alvorada para se referir às cobranças de Dilma, é a palavra-chave de Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) para o que seria uma fragilidade eleitoral da presidente: não ter um leque de realizações para mostrar.
    Chumbo... Se Campos tem dúvidas sobre a determinação de Aécio de concorrer à Presidência em 2014, como revelou no "confessionário" de uma van no Piauí, o tucano também expõe a aliados as fragilidades que vê na postulação do pernambucano.
    ... trocado O mineiro acha que, se num primeiro momento o governador movimentou a cena política ao se aliar a Marina Silva, a médio prazo verá que comprou uma dor de cabeça ao abrigar a ex-senadora, à sua frente nas pesquisas, no partido.
    TIROTEIO
    Com a aliança entre PSB e Rede a discussão tem de ser reiniciada do zero, atualizada a partir dos novos marcos e novos atores.
    DA DEPUTADA LUIZA ERUNDINA (PSB-SP), defendendo que a sigla, que negocia aliança com Geraldo Alckmin, debata se terá candidato próprio em São Paulo.
    CONTRAPONTO
    Novo dia para morrer
    A presidente Dilma Rousseff ignorou o feriado de Finados, no sábado, e reuniu vários ministros para cobrar resultados de suas pastas.
    No meio da prestação de contas, Alexandre Padilha (Saúde) resolveu descontrair o ambiente:
    -Quando eu estava vindo para cá, até meu motorista disse que uma reunião em pleno dia de Finados só poderia ser para anunciar quando ia demitir os ministros...
    Depois que Dilma anunciou que faria a troca dos candidatos em janeiro, um dos presentes arrematou a piada:
    -Vai pra casa, Padilha!

      Entrevista da 2ª

      Revolta nas ruas reflete incapacidade do Estado na segurança, diz tenente-coronel


       
      LAURA CAPRIGLIONE
      MARLENE BERGAMO
      FOLHA DE SÃO PAULO
      Ouvir o texto

      O tenente-coronel Adilson Paes de Souza, 49, passou 28 anos na Polícia Militar do Estado de São Paulo. Há um ano, apresentou dissertação de mestrado em direitos humanos na Universidade de São Paulo, elaborada sob orientação do jurista Celso Lafer. A experiência vivida "de dentro" somada ao ferramental acadêmico resultou em um diagnóstico sombrio: "O modelo de segurança existente não funciona mais".
      Na semana que vem, Paes de Souza, na reserva desde 2012, lançará o livro "O Guardião da Cidade -Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares" (Escrituras, 222 páginas, R$ 35), em que expõe sua explicação para os repetidos casos de violações aos direitos humanos cometidos por PMs: "Soldados garantiram que o homicídio do marginal ainda é visto como uma importante arma de trabalho. Eles chegaram a declarar que se fossem impedidos de matar, ficariam sem condições de trabalho".
      *
      Folha - Qual a causa dos violentos protestos contra a atuação da PM, vistos recentemente em São Paulo e no Rio?
      Adilson Paes de Souza - A sociedade, em grande parte, está dizendo: esse modelo que está aí não é eficiente. E está dizendo isso de uma maneira violenta. Ela não tem mais a quem recorrer. Não estou dizendo com isso que a violência seja um modo legítimo de responder à violência [policial], mas sim que esta talvez seja a única maneira de ela se sentir ouvida e notada.
      Como um rapaz de boa índole sai da escola da Polícia Militar e transforma-se em um assassino de grupo de extermínio?
      Entrevistei soldados envolvidos com grupos de extermínio. Eles não acreditam no sistema. Perguntam-se: Por que eu vou levar um sujeito preso para a Polícia Civil se eles serão soltos em seguida mediante o pagamento de propina? Eu me arrisco, levo para delegacia e ele é solto? Eles tomam a decisão de prender, acusar, sentenciar e matar.
      Como esses policiais lidam com o assassinato?
      O homicídio do marginal é visto como uma importante arma de trabalho. Eles chegaram a declarar que se fossem impedidos de matar, ficariam sem condições de trabalho. É a lógica da doutrina da Segurança Nacional, segundo a qual estamos lidando com inimigos. E o inimigo no campo de batalha você tem de aniquilar.
      Como se chega a isso?
      Eles disseram que antes da prisão eram tidos como exemplo de bons policiais. Linha de frente. "Eu era premiado como policial do mês. Ganhei medalha", ouvi de um deles. E, de repente, estavam presos. Eles não entendiam.
      O senhor está dizendo que eles recebiam incentivos para serem violentos?
      Se não se falava abertamente "pode matar que eu seguro, eu acoberto", havia o estímulo por vias indiretas, premiando o policial violento. Mas o governo não admite isso. Toda vez que acontece uma tragédia, e que isso é descoberto (hoje muito mais do que antes, porque todo mundo está gravando e filmando tudo), quando vaza e dá no "Fantástico", por exemplo, a polícia diz que é uma "falha individual".
      E não é?
      O problema é que temos muitas "falhas individuais". Várias por dia. A partir do momento em que eu digo que é uma "falha individual", estou admitindo que o sistema é perfeito. E isso gera um descrédito enorme na polícia. A sociedade diz: "Mais uma falha individual?" E a quem interessa o crescente descrédito da polícia? A gente perdeu o referencial histórico do que vem a ser autoridade.
      Exercer a autoridade virou ser truculento, arbitrário, brutal. Isso é uma forma totalmente errada de traduzir o que significa a verdadeira autoridade. E o problema é que quando se sedimenta essa incompreensão da autoridade, entramos na fase do "todos contra todos".
      O que o senhor acha dos programas policiais vespertinos?
      Longe de querer fazer censura à mídia, eles carecem de responsabilidade. Associam truculência e arbitrariedade com o exercício de autoridade. Eu queria que fôssemos capazes de ficar transparentes. E assim, transparentes, entrássemos nos quartéis. Em qual canal todas as televisões estão ligadas? Nos canais desses senhores. O efeito terapêutico dessas falas nos policiais militares é terrível. A ponto de a população temer a polícia e não respeitá-la.
      Por que não se consegue resolver a crise da segurança pública? Bogotá, com problemas de guerrilha e narcotráfico parece ter solucionado o problema...
      Porque falta vontade política. É um assunto que num primeiro momento não vai render muito voto, já que os resultados demoram um ou dois anos para aparecer. Agrava a situação o fato de mexer com lobbies poderosíssimos, como o lobby das empresas de segurança privada -quanto mais grave for a situação da segurança pública, mais eu faturo na segurança privada.
      Muitas organizações sociais defendem a desmilitarização da PM. O que o senhor acha disso?
      É um tema que provoca reações bem fortes. Os fatos comprovam que o modelo de segurança existente não funciona mais. Dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que apenas três em cada cem inquéritos de crimes violentos resultam em condenação. De outro lado, a PM de São Paulo matou em cinco anos mais do que todas as forças policiais de segurança norte-americanas. Se eu tenho de um lado uma comprovada ineficiência e do outro lado uma comprovada brutalidade, eu tenho de mudar. Mas isso não pode ser feito pela mera subordinação da PM à Polícia Civil, como se esta fosse modelo de respeito aos direitos humanos.
      O ministro Gilberto Carvalho disse que os "black blocs" têm de ser entendidos e ouvidos. Qual a sua opinião?
      Eles têm de ser entendidos, sim. Não quer dizer que não devam ser reprimidos. Mas o que leva um grupo de pessoas a se reunir e praticar esse tipo de ato? Será que ao não prover os direitos sociais básicos previstos na Constituição o Estado também não auxiliou esses grupos a surgirem? Foi com esse tipo de diálogo que se avançou na Colômbia. E isso não é coisa de esquerda. Quem fez isso na Colômbia foi um governo de direita com forte apoio norte-americano. Eles viram que o modelo de repressão pura e simples não estava dando certo. Era morte para tudo quanto é lado. Quando se cansaram da mortandade, a solução começou a surgir.

      Joaquim Falcão

      folha de são paulo
      Em favor da liberdade acadêmica
      Eis aí, ao lado da defesa da liberdade acadêmica, uma boa campanha para nossos artistas: a exigência de uma Justiça responsabilizante
      Vetar biografias não autorizadas por herdeiros dos retratados é proibição de múltiplas inconstitucionalidades. Muito além da violação da liberdade de expressão. Fere gravemente a liberdade acadêmica, a liberdade de ensinar e de pesquisar.
      A Constituição Federal é clara no seu artigo 206. O ensino será ministrado com base na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Em seu artigo 218, determina que a pesquisa científica e tecnológica é prioritária e é obrigação do Estado incentivá-la.
      A posição de alguns artistas de exigir seu consentimento aos livros publicados sobre suas vidas fere gravemente programas e projetos de inúmeros centros, cursos, institutos e faculdades de história.
      Atinge professores, pesquisadores e historiadores profissionais. E todos os que usam do método histórico para fazer avançar o conhecimento em suas áreas de atuação não históricas.
      Não se pode pesquisar a vida das instituições sem conhecer a vida dos que fizeram essas instituições. Não se pode melhor saber do Supremo sem conhecer seus ministros. Sem pesquisar, explicar e aplaudir a coragem cívica de ministros como Adauto Lúcio Cardoso, Evandro Lins e Silva e Aliomar Baleeiro. Teríamos que pedir permissão aos seus herdeiros? E se negassem? Reduzir-se-ia o Brasil?
      Não se pode saber a história da advocacia sem conhecer a vida de Sobral Pinto ou Rui Barbosa. Nem conhecer nosso patrimônio arquitetônico e cultural sem conhecer as vidas de Lúcio Costa, Mário de Andrade ou Aloísio Magalhães.
      Pesquisar é formar profissionais, investir em instituições, tecnologias, bibliotecas. Custa recursos, talento e sonhos. Quem irá pesquisar se os herdeiros é que vão decidir o destino do trabalho acadêmico? Não devemos transformar nossa história em capitanias hereditárias.
      Ensino sem ampla liberdade de pesquisar não é ensino. É doutrinação. Pesquisa sem erros e acertos, debate e experimentação não é pesquisa. É idolatria.
      Não posso ser professor nem pesquisador --o que a Constituição Federal de 1988 me assegura-- se a liberdade de publicar minhas pesquisas, inclusive comercialmente, não me for assegurada.
      Defender a privacidade é necessário. Mas quem abre para revistas de celebridades sua casa, seu quarto, sua festa, sua intimidade já fez juridicamente uma opção: abriu mão voluntariamente de um conceito mais amplo de seu direito à privacidade. Assim tem entendido a nossa Justiça.
      Há consenso em quase todas as democracias. Proibir antes de publicar, jamais. Responsabilizar depois por injúrias, difamações, calúnia e má-fé, sempre. Ser um país democraticamente maduro não é repetir rezas e ladainhas sobre ou privacidade ou liberdade de expressão. É ambos, e o debate é outro.
      Primeiro, como criar mecanismos legais que desestimulem a má-fé, a infâmia, a difamação e a injúria? Punir apenas o autor? O editor também, como fazem alguns países? Os financiadores da má-fé também?
      Segundo, como conquistar uma Justiça ágil e eficaz? A eficácia judiciária é o melhor desestímulo às violações de privacidade. A atual lentidão é seu maior estímulo.
      Eis aí, ao lado da defesa da liberdade acadêmica, uma boa campanha para nossos artistas: a exigência de uma Justiça de critérios uniformes, nítidos, fundamentados, e eficazmente responsabilizantes.

      Aécio Neves

      folha de são paulo
      Futuro
      Ao lado do Plano Real, nenhuma outra política de governança foi mais transformadora da realidade brasileira que os programas de transferência de renda gestados e instituídos nos anos 90 e continuados e adensados nos anos 2000.
      A inútil e reincidente discussão sobre paternidade e protagonismo desses programas deixou de lado desafios importantes, sobre como aperfeiçoá-los ou acrescentar-lhes ativos ainda mais inovadores.
      Nos últimos anos, o governo se conformou em fazer a gestão diária da pobreza, como se ela se reduzisse ao universo da renda e não alcançasse um elenco extenso e complexo de carências sociais.
      Poucas inovações ocorreram neste tempo. Nem sequer foi tomada a iniciativa de institucionalizar o Bolsa Família, o que acabou por reforçar o seu aspecto de benemerência política de alto valor eleitoral.
      Em perspectiva histórica, cabe lembrar a trajetória inversa percorrida por aquele que é o maior programa de transferência de renda em vigor no país, o Beneficio de Prestação Continuada (BPC), previsto pela Constituição de 1988, e implantado pelo governo do presidente Fernando Henrique.
      Regulado pela Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), o BPC paga um salário mínimo a cada idoso e deficiente que tenha renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo. Nos últimos 10 anos, ele transferiu mais de R$ 180 bilhões à população. O Bolsa Família transferiu R$ 124 bilhões.
      Na última semana, apresentei projeto de lei propondo a incorporação do Bolsa Família à Loas, para que ele deixe de ser ação de governo e se transforme em política de Estado, permanecendo como instrumento a favor dos brasileiros seja qual for o partido que esteja no Palácio do Planalto.
      Com isso, podemos dar um passo importante: deixamos para trás, a cada quatro anos, a discussão se o Bolsa Família vai ou não permanecer e podemos avançar com confiança no debate sobre como aprimorá-lo. Nesse sentido, defendo uma primeira proposta que visa superar a insegurança de quem evita tentar o mercado de trabalho com medo de perder o benefício. Para eles, o BF deveria ser continuado por até seis meses.
      É preciso também que seja reforçado o acompanhamento dos beneficiários, com especial atenção à educação e qualificação. É inexplicável que não haja acompanhamento a cerca de dois milhões de crianças atendidas pelo programa. A responsabilidade do Estado não pode terminar com a transferência do benefício.
      Precisamos ter coragem de avançar. É preciso reconhecer que a pobreza é um conjunto de privações de renda, serviços e oportunidades. E é nessa abordagem multidimensional que precisa ser enfrentada e superada. Só assim faremos a travessia na direção da verdadeira inclusão social.

        Ruy Castro

        folha de são paulo
        Formações rochosas
        RIO DE JANEIRO - Você ainda recebe ou manda beijos no coração? Até há pouco, para alguns, não havia maneira mais poética de se despedir: "Um beijo no coração!". A mim, sempre pareceu que um beijo no coração deve ter algo de viscoso e grudento, mesmo que aplicado numa mesa de cirurgia por uma enfermeira loura e decotada. Outra mania é a das pessoas que dizem "Inté!" em vez de "Tchau!". Conheço uma socióloga paulista que diz "Inté!". Tem pós-doutorado em Harvard.
        Se alguém lhe prometer "Vou dar o meu melhor", pode saber que o melhor do cavalheiro não será suficiente e você fará bem em procurar outro. Idem se ele lhe contar que "apostou todas as fichas" em alguma coisa. Claro que ele vai se dar mal --só um bobo aposta todas as fichas de uma vez. E, se o mesmo sujeito disser que "ligou o sinal de alerta", é porque a vaca dele já foi para o brejo e ele está apenas querendo ganhar tempo.
        E a nova praga "Como se não houvesse amanhã"? Rezam os sites de fofocas: "Entre um capítulo e outro das gravações da novela, Maricotinha foi vista tomando sol no Leblon, como se não houvesse amanhã". É mentira --sempre haverá amanhã, e ai de Maricotinha se não voltar ao Projac para trabalhar. E o projeto do Fulano que conta com o "auxílio luxuoso" do Beltrano? Se alguém está prestando um "auxílio luxuoso", é porque está sem projeto próprio e precisando aparecer.
        "Beijo no coração", "Inté!", "Vou dar o meu melhor", "Apostar todas as fichas", "Ligar o sinal de alerta", "Como se não houvesse amanhã" e "Auxílio luxuoso" são apenas clichês --expressões que surgem frescas, mas adquirem consistência rochosa e se pregam à língua.
        Um dia, desgastam-se e somem, e já vão tarde.

          Vinicius Mota

          folha de são paulo
          Perderam
          SÃO PAULO - Quem passou da infância à vida adulta nas décadas de 1980 e 1990 acostumou-se ao padrão. Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil nunca perdiam. Alinhados às boas causas, eram reputados como reserva de sabedoria de nossa vida pública corrompida.
          Tratava-se, obviamente, de uma fábula. O primeiro compromisso desses artistas sempre foi com seus legítimos interesses profissionais e empresariais. A qualidade intrínseca de suas intervenções na política e no debate de ideias jamais se aproximou do seu desempenho como letristas.
          A influência que exerciam nos palanques nacionais indicava a rarefação de nossa esfera pública. A conversão de capital cultural em capital político não é certa nem imediata nas democracias consolidadas, que separam muito bem esses campos.
          Celebre-se, portanto, como sinal de amadurecimento do país a derrota esmagadora do (ex-)grupo Procure Saber, encabeçado pelo trio de ouro da MPB, no debate das biografias não autorizadas.
          A causa era decerto ingrata. O grupo propunha-se a convencer a opinião pública de que biografias só poderiam circular mediante autorização do biografado ou de seus familiares. Não há meio de aceitar essa cláusula sem ferir a liberdade de expressão, consagrada na Carta de 88.
          Sim, a liberdade de expressão é também a liberdade de injuriar, caluniar e difamar. Para esses males, a lei determina remédios. Mas é sobretudo a liberdade de criticar e contar histórias e versões menos abonadoras sobre quem quer que seja. E de oferecê-las ao crivo do debate público.
          Habituados a despertar solidariedade automática nos círculos intelectuais e políticos, Chico, Caetano e Gil talvez pensassem que iriam levar mais esta. O tempo passou na janela, mas eles não notaram.
          O Brasil começa a descobrir que, como políticos e intelectuais, eles são apenas bons compositores e empresários.