quarta-feira, 16 de outubro de 2013

José Simão

folha de são paulo
Marina e Dilma! Vai dar jacaré!
Sabe o que o Lula falou quando viu o Ninho de Pássaro? 'Olha, inauguraram ainda com andaimes'
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piada pronta: "Mulher de Carlinhos Cachoeira quer se candidatar a deputada". E os projetos? Legalizar os jogos de azar e combater a corrupção! Rarará!
E outra piada pronta: "Pinto Feliz: projeto quer distribuir remédio contra impotência em Cuiabá!". Pinto Feliz em Cuiabá!
E o predestinado do dia: promotor que pediu a dissolução da torcida do São Paulo: Roberto SENISE! Rarará.
E Brasil x Zâmbia em Pequim! Pequim é bom porque você pode comprar aquele monte de bugiganga tudo original! E adorei a linha de Zâmbia: Kabaso e Mulenga. E o Brasil suou pra ganhar de Kabaso e Mulenga. Aliás, o Brasil só fez gol quando tiraram o Kabaso! É verdade! No estádio Ninho de Pássaro.
Aliás, sabe o que o Lula falou quando viu o Ninho de Pássaro? "Olha, inauguraram ainda com os andaimes." Rarará!
E o Galvão mais rouco que a foca da Disney! Galvanização: corrosão do ouvido humano quando exposto aos comentários do Galvão!
E a Dilma e a Marina batendo boca? Parecem aquelas vizinhas que ficam batendo boca no muro: "Sua porca". "Melhor porca que corna." "Seu marido não vale nada." Briga de muié! Vai dar jacaré! Muié com muié dá jacaré! "Hoje! Luta no gel! Hipopótamo x Ema!" Rarará!
E tá na cara que aí tem perrenga pessoal. E a Marina pra viajar pro exterior tem que pedir permissão pro Ibama? Tráfico de animais silvestres! Rarará!
E o Ceni? O meu anti-herói! E o povo continua zoando com o Ceni! Manchete do Sensacionalista: "Torcedor consegue liminar e impede Ceni de bater novos pênaltis".
E a manchete do Piauí Herald: "Rogério pede marcha fúnebre no Fantástico'". Pior, diz que o Ceni foi pro "Soletrando" do Luciano Huck e errou a palavra pênalti. "Rogério, soletra a palavra pênalti". E o Ceni: "P-E-N-A-U-T-E! PENAUTE!". Rarará. E o tuiteiro Leandro Batas: "Se pênalti é loteria, a do Rogério tá acumulada". Rarará!
É mole? É mole, mas sobe!
O Brasil é Lúdico! Olha essa placa: "Bem-vindos a Osasco! Temos problemas, mas Carapicuíba tem mais". Rarará. Tipo aquele que come banana e joga a casca no vizinho. Tipo aquele que bota o saco do lixo na porta do vizinho!
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

    Elio Gaspari

    folha de são paulo
    A escolinha da doutora Dilma
    Desqualificando os outros, ela pode acabar colocando Ismael Silva no lugar de patrono de sua campanha
    A doutora Dilma entrou pela borda no debate da própria sucessão, mandando um recado às pessoas que pretendem ocupar sua cadeira: "Elas têm que estudar muito".
    É o velho discurso da competência. Quem está no governo desqualifica quem não está sob o argumento do eu-sei-do-que-estou-falando. Foi usado à exaustão para desqualificar um torneiro mecânico monoglota, mal relacionado com a gramática, cuja biblioteca cabia numa mochila escolar. É a ele que a doutora deve a Presidência.
    Todos os governos prometem coisas que não cumprem ou metem-se em projetos fracassados. Até aí, tudo bem. O que a doutora não precisa é recorrer à desqualificação como alavanca mistificadora. Se é assim, conviria arrolar dois temas que os candidatos deveriam estudar. Tendo sido insuficiente o estudo da doutora, poderiam desatar os seguintes nós.
    1) Trem-bala
    Trata-se de um projeto que desde 2007 está debaixo da asa da então chefe do Gabinete Civil. Já torrou R$ 65 milhões em planos, leilões adiados e modelagens arquivadas. A primeira estatal a tratar do projeto foi a Valec. Seu presidente, Doutor Juquinha, deixou o cargo e passou pelo cárcere por conta de outros malfeitos.
    2) Enem
    Em 2009, quando o ministro da Educação, Fernando Haddad, anunciou a criação de um exame federal que substituiria o vestibular, o coração da iniciativa estava em oferecer aos jovens dois exames anuais. Isso acabaria com uma seleção selvagem que obriga um garoto de 18 anos a jogar um ano de sua vida numa manhã de prova. A cada ano a promessa foi descumprida e renovada, inclusive pela doutora Dilma. Haddad foi ser poste em São Paulo, Lula elegeu-o prefeito, e seu substituto, Aloizio Mercadante, disse que prefere fazer creches. Tem até o ano que vem para dizer quantas creches fez e explicar por que dois presidentes da República prometeram algo que não entregaram.
    Nos dois casos, a questão é de estudo, mas quem não estudou foi a doutora. No do trem-bala, se tivesse estudado, não teria perfilhado a proposta da Valec, que era uma maluquice em estado puro. O trem-bala sairia do Rio e chegaria a São Paulo sem parar em lugar algum. Já no caso do Enem, deu-se o contrário. Prometeu-se algo factível, mas não se cumpriu por falta de estudo e, sobretudo, de trabalho.
    A essa lista de incapacidades poderiam ser somados os leilões das concessões de portos, estradas e aeroportos. Isso para não falar da promiscuidade que resulta no financiamento público da medicina privada. Em todos os casos, paira sobre as nomeações para as agências reguladoras o espírito da porta giratória condenada pelo comissariado quando estava na oposição e estimulada quando chegou ao governo.
    Desse jeito, a campanha pela reeleição da doutora pode ter um samba de Ismael Silva como fundo musical:
    "Foi tanto bis que eu já não podia atender.
    No entretanto, o que a plateia queria
    era que eu cantasse, cantasse até aprender."

      Alice Munro - Marcelo Coelho

      Alice Munro
      Os contos da escritora prêmio Nobel são como piadas de humor negro, só que sem humor nenhum
      Coisas horríveis podem acontecer na vida de qualquer pessoa, como sabemos. Sabemos também que, depois de um tempo, uma tragédia termina sendo "metabolizada" (para usar um termo da moda), ainda que nunca se supere de fato.
      Parece ser esta a matéria-prima dos contos de Alice Munro, que acaba de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Vou lendo seu livro mais recente, "Dear Life", a ser lançado em português pela Companhia das Letras.
      É preciso ter bons nervos. Uma jovem mãe cede ao impulso de fazer amor durante uma viagem de trem. Deixa a filhinha num vagão, dormindo, bem quietinha, claro, e vai ao encontro do rapaz em outro vagão. Quando ela volta para ver a filha... xiii... O leitor já sabia, é claro, que boa coisa não iria acontecer.
      Em outro conto, a personagem principal é uma menina pequena. Ah, ela tem uma irmã mais velha. A mãe se separou há pouco do marido, e vive num trailer, a meio caminho entre a cidade e o mato. Estamos no Canadá. Há lobos no lugar. Também faz frio. O degelo cobre de água uma cratera, de onde se extraem pedregulhos de construção.
      Uns 20 pés de profundidade, especifica Alice Munro. A cachorrinha da família parece que entrou na água; não sabe nadar direito. A menina mais velha acha que sabe. Vai tirar a cachorrinha do poço. Hum, a menina está com roupas de inverno. Xiii...
      Não estrago as surpresas da história, se é que existem, porque de qualquer modo outras coisas acontecerão, e nem todas acabam acontecendo. Mas com isso já se tem ideia do tipo de visão que Alice Munro pretende transmitir.
      A ideia é explorar o passado como trauma. Para evitar a violência extrema das situações narradas, a autora recorre a uma estratégia de velamento. Ou seja, as pessoas não se lembram direito do que aconteceu, as coisas são contadas muito aos poucos, a aparente "ininteligência" do narrador infantil é reproduzida na escrita.
      Evita-se, corretamente, que o leitor receba o impacto direto de uma revelação trágica; vai deduzindo por si mesmo tudo o que aconteceu.
      Com isso, embora a narrativa se estenda por poucas páginas, o tempo subjetivo da história se torna lentíssimo, angustiante.
      É uma espécie de câmera lenta emocional. Enquanto a dona de casa vai de um vagão a outro, cenas de seu casamento anterior, problemas profissionais ou domésticos vão sendo rememorados --como se a autora estivesse pronta a escrever um romance inteiro.
      Só que, debaixo da largueza, da ociosidade desse fluxo de associações e memórias, os fatos reais estão acontecendo, e a tragédia se tece para os personagens.
      São em geral mulheres a caminho da meia-idade, vivendo a vida sem graça de alguma cidadezinha canadense depois da Segunda Guerra Mundial, vagamente a par das tensões entre Estados Unidos e Rússia.
      A ameaça nuclear já sumiu do horizonte contemporâneo, sem dúvida, mas o trauma dos atentados de 11 de Setembro justifica mal ou bem o clima sinistro.
      Para este leitor brasileiro, entretanto, saltam aos olhos os sinais de artificialidade na escrita. Parece aqueles filmes baseados em histórias de Stephen King: num agradável bairro suburbano, com suas calçadas limpíssimas e gramados perfeitos, uma criança passeia de bicicleta.
      Sol, primavera, "tudo normal". A trilha sonora, entretanto, já está produzindo seus zumbidos graves e inquietantes. Estamos avisados.
      O sentido do trágico se perde, e é substituído por outra coisa: o aziago, o agourento, o ominoso. Os contos de Alice Munro são como piadas de humor negro, só que sem humor nenhum. Assume-se, para efeito de profundidade e desencanto, que tudo ocorre num universo sem Deus. Várias denominações religiosas protestantes voejam, como moscas, em volta dos personagens mais mortos do que vivos.
      A falta do Pai, do Filho e do Espírito Santo não ganha muito, todavia, quando a autora apela ao simples Espírito de Porco. "Naquela época nós morávamos perto de um buraco de pedregulhos..."
      Depois de meia dúzia de mortes e acidentes, o leitor sabe que essa descrição não está ali por acaso, e a suposta inocência de quem narra a história se compromete duplamente.
      Tem de ser criança para que o horror apareça de forma velada. Tem de ser bastante adulta para reorganizar a experiência. O resultado é que muitas vezes os personagens de Alice Munro parecem pouquíssimo inteligentes; propostas de casamento, ameaças de chantagem, negócios imobiliários se sucedem com o óbvio intuito de produzir sofrimento. E de dar ao leitor a imagem de uma escritora desencantada e profunda.
      Alice Munro ganhou o Prêmio Nobel. Bem, não é caso para maiores alarmes. Coisas bem piores podem acontecer.

      terça-feira, 15 de outubro de 2013

      Rosely Sayão

      Casa perfeita. Com crianças?
      A palavra lar -- que evoca família, uso da casa, afetividade-- caiu em desuso: foi substituída por casa
      Você já reparou, caro leitor, que em cenas de novelas e filmes em que há a presença de personagens infantis, nunca há vestígios da presença de crianças nas casas? Sofás claros sem nenhuma mancha, vasos com plantas lindas e viçosas, enfeites delicados feitos com material muito vulnerável, como cristal ou vidro, por exemplo. Tudo intacto. Diferentemente das casas em que moramos, em que crianças fazem a maior bagunça, não é verdade?
      Assim tem sido já há um bom tempo. Talvez, desde que o mundo do espetáculo tomou conta de nossas vidas e que famosos mostram, com orgulho, fotos de suas casas. Impecáveis, por sinal.
      O corpo e a casa dos famosos têm sido uma pedra no sapato de quem vive a vida como ela é. A aparência é tudo, não é? Por isso, queremos, a todo custo, uma casa semelhante às fotos que vemos em revistas.
      O problema que nos impede: temos crianças em casa. E crianças querem ver o que há embaixo da planta que a sustenta firme e forte em pé no vaso, querem saber o que acontece quando um enfeite cai no chão, desabam no sofá quando querem assistir à televisão ou, apenas, descansar. Aliás, como nós, quando chegamos em casa. A diferença é que eles não sabem controlar o corpo, ainda.
      Não é à toa que a palavra lar caiu em desuso. Lar --que evoca família, uso da casa, convivência, afetividade-- foi substituída por casa. Queremos uma casa bonita, perfeita. Ou quase.
      Drummond já antevia esse movimento e, em seu poema "Casa Arrumada", diz: "...casa, para mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.... Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa". Sem criança, acrescento.
      Por conta desse anseio do mundo contemporâneo, muitas mães e pais estão às voltas com a questão de como ensinar o filho a arrumar as suas coisas. Ensinar talvez não seja a palavra certa. Exigir cai melhor.
      Em uma rede social da qual participo, um post fez sucesso nos últimos dias. Uma tabela, feita por um pai, mostra os descontos de mesada que o filho sofre ao deixar de fazer o que ele considera necessário. Além das questões escolares, prioridade dos pais na atualidade, a mesada será descontada se o filho deixar a casa desarrumada.
      Então, vamos lembrar: crianças com menos de cinco anos, mais ou menos, não são capazes de organizar suas coisas. Aprendem ajudando --ajudando!-- seus pais, que são os responsáveis pela arrumação. Dos brinquedos, inclusive.
      Elas também não conseguem se conter quando querem explorar o mundo. E a casa em que moram é seu mundo! Por isso, com criança pequena em casa, é melhor recolher enfeites preciosos e plantas. E esquecer do sofá claro todo limpo.
      Depois dos cinco anos, ela já consegue se organizar, mas com a ajuda de seus pais, e não com tabelas punitivas. Ela arruma, e seus pais ajudam.
      Finalmente, na adolescência: os filhos podem ser responsabilizados pela própria organização e pelo respeito aos ambientes comuns da casa, mas ainda com a tutela dos pais. Não adianta querer que eles se comportem como adultos!
      Você já tinha se dado conta, caro leitor, de como nosso estilo de vida afeta a educação que damos aos filhos e a convivência com eles?

      Suzana Herculano-Houzel

      Grudados no Facebook
      Aqueles que mais usam a plataforma são os que mais sentem prazer em ser avaliados pelos outros
      Eu resisti o quanto pude, mas acabei sucumbindo no ano passado, por necessidade profissional e também para "conhecer o inimigo", já que meus filhos inevitavelmente usariam a plataforma.
      Logo em um dos primeiros posts, uma provocação aos jovens chamada "Você quer mesmo ser cientista?", descobri o poder do Facebook: através de compartilhamentos, foram centenas de curtidas em um dia só --e eu me descobri grudada na tela, acompanhando as curtidas e os comentários que chegavam.
      Por que o Facebook tem o poder de transfixar o usuário em sua frente? Um grupo de neurocientistas alemães suspeitou que a resposta estivesse no retorno positivo que a plataforma oferece por meio das curtidas públicas aos posts dos usuários.
      As curtidas servem como uma indicação da reputação social do usuário, e ter boa reputação é algo valioso por aumentar a chance de ser alvo de boa vontade e cooperação dos outros.
      Mas nem sequer é preciso pensar a respeito para apreciar o valor da boa reputação: descobrir que gostam da gente ou receber outras formas de avaliação positiva são estímulos fortes para o estriado ventral, estrutura do sistema de recompensa do cérebro que nos premia com uma sensação de prazer quando algo positivo acontece. Mais tarde, a lembrança desse reforço positivo serve como motivação para repetir o que deu certo --e assim a causa da boa reputação se afirma.
      Os pesquisadores da Universidade Livre de Berlim examinaram a relação entre a intensidade de uso da plataforma e a sensibilidade do cérebro dos usuários a recompensas de dois tipos: monetárias e sociais.
      O resultado foi uma correlação clara entre a intensidade com que o estriado ventral de cada voluntário respondia a avaliações sociais positivas de boa reputação, na forma de adjetivos associados à sua pessoa, e a frequência de uso do Facebook por cada voluntário. A sensibilidade a retorno monetário não importa: aqueles que mais usam a plataforma são as pessoas que sentem mais prazer em ser avaliados positivamente pelos outros.
      A descoberta explica por que o Facebook é um sistema tão poderoso quanto um video game: justamente porque funciona como um video game, onde você aperta alguns botões e descobre imediatamente, pelas opiniões dos outros, se o resultado foi positivo. Como esse é um videogame de adultos que se leva no bolso, é difícil resistir a "jogar" o tempo todo...

        Fernando Haddad e Eduardo Paes

        O reequilíbrio das dívidas com a União
        É preciso sanear as finanças e aumentar a capacidade de investimento dos entes que estão mais próximos da população: os municípios
        Está em discussão neste momento no Congresso Nacional o projeto de lei nº 238/2013, que reequilibra os termos contratuais das dívidas entre a União e os Estados e os municípios brasileiros, sem ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal.
        Na década de 1990, o governo federal assumiu e refinanciou as dívidas dos entes federativos. Em contrapartida, celebrou contratos com os entes da Federação, refinanciando o saldo dessas dívidas em 360 meses, com encargos de 6% a 9% ao ano, acrescidos de atualização monetária pelo IGP-DI.
        À época, tais encargos eram inferiores às taxas com que a própria União se financiava, e essa diferença era intencional, como forma de colaborar para o saneamento fiscal dos Estados e municípios.
        Isso pode ser comprovado pela própria mensagem presidencial 154, de 3 de agosto de 2000, que acompanhou o projeto: "Como a taxa de juros paga sobre a dívida renegociada é menor que o custo de captação da União, existe um subsídio...".
        Entretanto, com a redução significativa dos juros reais no país e do custo de captação da União, acabou ocorrendo uma inversão desse cenário. A taxa Selic passou a ser mais baixa que o IGP-DI, o que quer dizer um diferencial de taxas favorável à União.
        Enquanto a Selic acumulada entre julho de 1999 e dezembro de 2012 foi de 649%, os encargos acumulados aplicados à cidade do Rio de Janeiro foram de 940%.
        Outra evidência da distorção do espírito do contrato é que a penalização contratual por eventual inadimplência é a substituição do encargo pela Selic mais 1% ao ano.
        Ou seja, nos termos atuais, São Paulo paga aproximadamente 16% ao ano de encargos (IGP-DI + 9% de juros). Mas, se ficasse inadimplente, o contrato mudaria para aproximadamente 10%.
        O PL 238 permite a readequação dos saldos devedores dos entes que tiveram encargos acumulados superiores ao custo básico de captação de recursos da União (Selic) e muda os encargos futuros para IPCA mais juros reais de 4%, limitado ao teto da Selic.
        É importante frisar que não estão sendo concedidos novos benefícios aos Estados e municípios, e sim apenas readequando os existentes para que, ao menos, não sejam instrumentos de geração de lucro por parte da União.
        No caso do município de São Paulo, nos termos atuais, a cidade continuará sem capacidade de investimento pelos próximos 20 anos (hoje a parcela devida anualmente da divida é mais que o dobro dos investimentos feitos) e, mesmo assim, não conseguirá pagar sua dívida até o final do contrato em 2030.
        A recomposição das condições originais não é favor, refinanciamento, anistia ou remissão. E não conflita, portanto, com o princípio expresso no artigo 35 da LRF que veda refinanciamentos a entes da Federação. Não se pode homenagear a forma em detrimento do conteúdo. Não se está alterando a substância dos contratos.
        Por último, vale a pena mencionar que não existe risco de descontrole em decorrência dessa proposta. Estados e municípios continuarão proibidos de emitir valores mobiliários e os montantes de empréstimos permanecerão subordinados a programas de acompanhamento fiscal rígidos.
        Em resumo, a aprovação desse projeto de lei permitirá o reequilíbrio de contratos que há tempos destoam dos objetivos que nortearam sua celebração, readequando-os ao objetivo primordial da Lei de Responsabilidade Fiscal, buscando sanear no longo prazo as finanças e aumentando a capacidade de investimento dos entes que estão mais próximos das demandas cotidianas da população: os municípios.

        Janio de Freitas

        Palavras sem algemas
        Se há biografias que traçam versões difamatórias, também a biografia correta é apenas uma versão
        O debate em torno de biografias não autorizadas pelo biografado, ou por parente ainda que distante, começou por maus motivos e tomou impulso por motivos ainda piores.
        Uma ação coletiva de gente da música popular por direitos autorais, já razão de desavença na classe, absorveu o problema pessoal de um cantor que fez recolher e proibir sua biografia, e de repente sua tese passou a ser a do grupo amparado em nomes estelares.
        Quase automaticamente, o encobrimento de assuntos pessoais transformou-se em interesse financeiro, com propostas de participação do biografado nos pretensos ganhos de editoras e nos direitos autorais de escritores biográficos.
        Discutir liberdades e direitos com dinheiro como argumento, mesmo que fosse simples ingrediente, não dá. É medíocre demais e imoral demais. Ou um assunto ou outro. A menos que se queira discutir o sistema ocidental de vida, com a presença do dinheiro em absolutamente tudo. Não é o caso.
        Liberdades e direitos são fatores de construção e de exercício da democracia. Sem distinção de sua importância entre níveis culturais, classes econômicas, linhas políticas e indivíduos. O assunto de que se ocupam os cantores e compositores contrários a biografias não autorizadas, portanto, não se limita a biografias, e muito menos a eles e suas conveniências pessoais.
        Se há biografias que traçam versões difamatórias, também a biografia correta é apenas uma versão, dada a impossibilidade definitiva de ser onisciente nos enredos de toda uma vida. A diferença, para as correntes que se opõem contra e a favor de biografias não autorizadas, é que os cerceadores caracterizam-se por duas peculiaridades: a negação da prevalência da lei sobre a calúnia, a injúria e a difamação, e a prepotência da pretendida eliminação a priori das liberdades autorais, mesmo que praticadas com cuidado e ética. Muito mais do que autorização e participações financeiras, trata-se de uma forma de negação da própria liberdade de palavra.
        Para fazê-los livres ou aprisionados em censuras oficiais ou particulares, do livro ao jornal o pulo é tão pequeno quanto --já vimos-- do jornal ao livro. E do jornal e do livro ao teatro, ao cinema, e, se os experimentados mas esquecidos me permitem a lembrança, também à música popular. É sempre assim.
        Se consagrada a proibição não autorizada, em livro, do que uma celebridade julgue inconveniente a seu respeito, por que continuaria permitida a mesma publicação, sem prévio consentimento, em jornal e em revista? Ambos com tiragens e repercussão muito mais imediatas e maiores que as do livro. Os vitoriosos da primeira prepotência por certo passariam ao ataque à contradição. E assim em diante, mudando-se apenas as levas de interessados.
        A democracia tem dois defeitos básicos, entre inúmeros outros: não é perfeita e não admite brechas. Nela, todo mau passo se multiplica em outros maiores. E jamais são precisos muitos: o precipício nunca é distante.