domingo, 20 de outubro de 2013

Suzana Singer - Folha Ombudsman

folha de são paulo

Um grande erro, mas só isso

Às vezes, um erro é somente um erro. Não há conspiração, má vontade nem segundas intenções. Parece difícil acreditar, mas foi isso que aconteceu na edição da última pesquisa eleitoral do Datafolha.
No domingo, o jornal informou que, em um cenário sem a candidatura de Marina Silva, a maior parte dos seus votos iria para a presidente Dilma Rousseff. Dois dias depois, a correção: Eduardo Campos, e não Dilma, herda a fatia mais gorda dos eleitores da ex-senadora.
Foi um tremendo erro, que suscitou todo tipo de crítica e dúvida. "Nunca imaginei um engano de interpretação dessa magnitude de um instituto de pesquisa, o que me leva a crer num viés político. Sempre achei a Folha mais inclinada ao petismo", escreveu o empresário Renato Scala, 45.
O professor de geologia da USP Teodoro Isnard Ribeiro de Almeida, 59, disse que respeita tecnicamente o Datafolha, "daí interpretar a releitura da pesquisa [o erramos] como política".
O jornal publicou a correção com visibilidade, inclusive na Primeira Página, como determina o "Manual da Redação" em casos de "gravidade excepcional".
Só que explicou mal o que aconteceu. É importante deixar claro, para o bem da reputação do Datafolha, que não foi um erro do instituto, mas da Redação. "O engano foi provocado por uma leitura apressada de um gráfico preparado pelo Datafolha a partir de cruzamentos que não estavam no relatório principal", explica a editoria Poder.
O Datafolha é uma das unidades de negócios do Grupo Folha, não é parte da Redação. O jornal é um dos clientes do instituto, que faz pesquisas de mercado para agências de publicidade, empresas, ONGs etc.
Na época de eleição, Datafolha e Redação combinam o cronograma dos levantamentos e discutem os itens do questionário. O instituto não faz pesquisa de intenção de voto para partidos políticos nem para candidatos, apenas para a Folha e outras empresas de comunicação.
É indiscutível o peso das pesquisas eleitorais. O erro na edição do primeiro levantamento feito depois do lance mais surpreendente da corrida eleitoral -a aliança Marina-Campos- é o ingrediente perfeito para quem não acredita em imprensa apartidária.
Os céticos precisam levar em conta, entretanto, que erros acontecem. Inclusive alguns lamentáveis, como esse último da Folha.
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NO ESCURO E A SECO
Folha acusou a presidente Dilma de entregar casas sem água nem luz no interior da Bahia. O jornal mostrou, na quarta-feira, que parte das moradias inauguradas em Vitória da Conquista, no programa Minha Casa Minha Vida, estavam no escuro e a seco. Os moradores usavam velas à noite e enchiam baldes nas casas dos vizinhos.
Bastava ler o "outro lado" para concluir que a acusação não fazia sentido. O Ministério das Cidades explicou que as casas foram entregues com instalações elétricas e hidráulicas e que cabia ao beneficiário do programa pedir a ligação dos serviços às empresas de distribuição do Estado.
Acontece o mesmo com quem compra um imóvel sem ajuda federal: é a pessoa que, depois de receber as chaves, aciona o fornecimento de água, luz, gás, telefone.
Os casos relatados indicavam que nem havia um problema exagerado de demora na entrega desses serviços. Apenas uma dona de casa esperava a instalação de luz havia oito dias, três a mais que o prazo dado pela companhia elétrica.
Diante das explicações dadas pelo governo e pelas concessionárias de serviços estaduais, o jornal deveria ter derrubado a reportagem. Não adianta registrar burocraticamente o "outro lado", como prega o "Manual da Redação", mas insistir numa acusação vazia.
A Redação não concorda. "A informação de que as casas foram entregues sem água nem luz é relevante por mostrar a pressa com que o governo tem organizado essas inaugurações, por motivos obviamente eleitorais. O objetivo da reportagem era mostrar isso e não culpar a presidente pela falta de água e luz", diz a editoria Poder.
Se era assim, por que o título dizia "Dilma multiplica viagens e entrega casas sem água e luz"? Em plena campanha (alguém duvida que já começou?), é preciso ser mais rigoroso com as denúncias envolvendo qualquer um dos candidatos. Do contrário, o jornal estará apenas fornecendo matéria-prima para os programas eleitorais de 2014.
suzana singer
Suzana Singer é a ombudsman da Folha desde 24 de abril de 2010. No jornal desde 1987, foi Secretária de Redação na área de edição, diretora de Revistas e editora de "Cotidiano". Escreve aos domingos na versão impressa. E-mail: ombudsman@uol.com.br

Monica Bergamo

folha de são paulo

Norma Bengell disse que queria ver sua vida nas telas antes de morrer

"Acho que fiz tudo o que quis. Se eu voltasse um dia, em outra encarnação, se é que existe, ia fazer tudo diferente. Outros filmes. Se não, é replay, né?" A afirmação é de Norma Bengell, em entrevista inédita para o programa "Elas", que estreia amanhã no canal pago TCM.
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O episódio dedicado à atriz, que morreu aos 78 anos no dia 9, só vai ao ar em dezembro, no bloco dedicado às divas do cinema nacional. A repórter Eliane Trindade assistiu, com exclusividade, à íntegra da gravação. Norma recebeu Luciana Vendramini, apresentadora do "Elas", em maio, no apartamento onde morava em Copacabana.
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De cabelos louros e curtos e numa cadeira de rodas, a estrela de "O Pagador de Promessas" (1962), único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro em Cannes, rememorou momentos gloriosos da carreira iniciada aos 17 anos (com RG falso) como corista.

Norma Bengell deixa depoimento inédito

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Divulgação
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A atriz Norma Bengell, que morreu no último dia 9, concedeu entrevista para a apresentadora Luciana Vendramini, da série "Elas", em maio
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Norma já havia recebido o diagnóstico de câncer no pulmão. "Ela não contou da doença. Mas saí de um dos encontros com a impressão de que iria se matar ou sabia que iria morrer logo", relata o produtor Nelson Foerster, sócio de Vendramini na produtora Mocho. Nesta época, entregou aos dois um projeto antigo que não conseguira tirar até então da gaveta: a sua cinebiografia. Os dois saíram atrás de parceiros e diretor.
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Ao receber a notícia do falecimento, eles entenderam a pressa da atriz em fazer deslanchar o antigo sonho. "Ela me ligava todos os dias para saber se havia novidade", conta Luciana. A perspectiva de finalmente filmar a história era um ânimo. A primeira tentativa foi em 1998, quando Norma anunciou que dirigiria o longa.
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Antes de apostar na Mocho, a atriz entregou o roteiro para o produtor e amigo Luiz Carlos Barreto. Barretão passou a bola para o diretor e produtor Aníbal Massaini, mas o projeto não foi adiante. "É um filme caro, que atravessa épocas, tem cenas na Europa e a história do Brasil como pano de fundo", diz Julia de Abreu, que assina o roteiro com o americano Syd Field, guru em Hollywood.
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Norma nunca desistiu de "Norma", o filme, mas desistiu de lutar pela vida. "Ela não quis tratar do câncer nem prolongar o modo como estava vivendo", diz Barretão.
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A atriz sobrevivia com uma pensão de R$ 3.100 que recebia como anistiada política. Só o plano de saúde era
R$ 1.516. Amigos se cotizavam para ajudá-la. O cantor Milton Nascimento pagava o convênio médico. Carlos Manga, que dirigiu Norma em sua estreia no cinema em "O Homem do Sputnik" (1959), custeou gastos hospitalares.
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Manga foi o primeiro a ver em Norma o "animal cinematográfico". "A lente te desvenda, codifica e transforma a Norminha em Norma Bengell", dizia ele à atriz.
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Quarenta anos depois, a diva do Cinema Novo, com 54 filmes no currículo e uma das líderes da retomada da produção nacional, teve a prestação de contas de um dos longas que dirigiu, "O Guarani" (1996), financiado pela Lei Rouanet, recusada. Seus bens foram bloqueados pela Justiça para que devolvesse R$ 4 milhões aos cofres públicos.
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Declarava-se injustiçada. "Índio não tem CPF e almoço na floresta não é com nota fiscal", diz Fernando Drummond, advogado da atriz. "Ela não cuidava da burocracia."
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Foi também autuada em R$ 700 mil, em 2002, sob acusação de que sua movimentação financeira não era compatível com seus rendimentos. Em agosto, já debilitada, o juiz e o promotor foram até sua casa para uma audiência. "Foi um constrangimento", diz o advogado.
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Norma alegou que a conta bancária era de uma ex-sócia. Dois dias antes de sua morte, um ofício do banco informava ao juiz que a atriz não era, de fato, a titular.
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Depois de vender objetos e móveis para comprar comida e remédio, ela alugou a casa de 500 m² na Gávea, de onde se mudou após cair de uma escada. Vivia em pânico de ser "depositada" no Retiro dos Artistas. "Negaram a ela até a aposentadoria do INSS. Quando dona Norma ficou falida, ela passou por muita humilhação", relata Luciene Marques, 31, cuidadora da atriz nos últimos cinco anos.
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A cabeça de Norma estava a mil, mas o corpo não correspondia. "Ela ficava triste por não poder andar e também por não ser mais tão procurada", prossegue a jovem que se mobilizou para conseguir que a Prefeitura do Rio cobrisse os R$ 9.000 do funeral.
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Ney Latorraca foi um dos poucos da classe artística no velório, ao lado de Barretão e dos cineastas Silvio Tendler, Carla Camurati e Roberto Farias. "Mataram um ídolo em vida", afirma Latorraca, que coloca a amiga, com quem falava sempre por telefone, no panteão de Leila Diniz e Cacilda Becker. "Mulheres que vieram para mudar a História com suas histórias."
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O roteiro de "Norma" recria os bastidores de um desses momentos: a sequência de "Os Cafajestes" (1962), em que protagonizou o primeiro nu frontal do cinema brasileiro. O diretor, Ruy Guerra, avisou a atriz: "Se a cena não ficar boa, cortamos". Ela tirou o maiô e, ao grito de "ação", saiu correndo pela praia, protegendo os seios. Fez história.
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As senhoras da TFP (Tradição, Família e Propriedade) protestaram nas ruas. "Norma, uma aNORMALIDADE", diziam os cartazes. "A Igreja exigiu a censura do filme. Se pudessem, me queimavam viva na Cinelândia", dizia ela. O produtor Dino De Laurentiis se encantou com a brasileira no papel controverso. Nascia "La Bengell". Na Itália, estrelou filmes como "Mafioso" (1962) e atuou com astros como Alberto Sordi. Foi vizinha de Brigitte Bardot. Teve um affair com Alain Delon.
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Em meio ao glamour, Norma conhece Gabriele Tinti, ator italiano com quem se casaria no estúdio da Vera Cruz, em SP, durante a filmagem de "Noite Vazia" (1964), de Walter Hugo Khouri. O marido chegou a censurá-la pela cena de lesbianismo, ao lado de Odete Lara, no longa.
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Na cinebiografia, os roteiristas buscam tratar com delicadeza a história de amor da atriz com uma psicanalista, após se separar do italiano. "É um amor entre outros tantos que viveu. O que definia Norma Bengell era o cinema", diz Julia de Abreu.
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Na cena 60 do roteiro, a atriz e a namorada passam por constrangimento em um restaurante. "Dois mulherões. Que desperdício", diz um bêbado. Norma desabafa: "Não quero viver uma vida em que entrar num restaurante seja um ato coragem. Cansei de ser símbolo involuntário disso e daquilo".
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A frase pode ser, em parte, ficção, já que os diálogos do roteiro foram burilados por Millôr Fernandes.
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Na luta contra a ditadura, Norma aparece na linha de frente em passeatas históricas, como a dos 100 mil, em 1968. Foi presa várias vezes. Quando a barra pesou, exilou-se em Paris. "Eu era uma democrata. Não gostava de proibição de nada. Não pode proibir isso ou aquilo", disse Norma a Luciana Vendramini.
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Sem herdeiros diretos (afirmou ter feito 16 abortos), a atriz deixou um testamento que ainda não foi aberto.
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Proibida de produzir por causa das dívidas, Norma fechou o depoimento ao "Elas", no qual não trata das acusações de desvio de dinheiro, com uma declaração de amor à sétima arte. "Cinema para você é?", pergunta Vendramini. "Vital!" Cabe à apresentadora agora achar a atriz para fazer Norma seguir em cena.
Mônica Bergamo
Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

Mauricio Stycer

folha de são paulo
Piada de publicitário
O que causa desconforto em 'Agora Sim!' é a tentativa de mimetizar uma sitcom americana
Em vigor desde setembro de 2012, a lei que obriga a exibição de conteúdo nacional na TV paga tem dado origem a diferentes experiências em matéria de seriados, algumas mambembes, nitidamente com o objetivo de apenas preencher a cota que a legislação exige, e outras bem-intencionadas, mas ainda em busca do formato ideal.
Nesta segunda categoria, um programa da safra recente que merece menção é "Agora Sim!", sitcom realizada pela produtora brasileira Mixer para o canal Sony sob a supervisão da matriz, em Los Angeles.
O seriado conta a história da Bitt Propaganda, uma agência de publicidade fracassada, cujo dono, o sorridente Maurílio Bittar (Fábio Herford), ignora o tamanho da própria mediocridade e vende entusiasmo para os seus comandados.
O primeiro episódio mostra a chegada da Bitt à nova sede, uma modesta casa térrea localizada em frente ao prédio de uma das maiores agências de publicidade do país. A ideia, explica Bittar à equipe, é buscar inspiração, quem sabe, respirando o mesmo ar da concorrência.
Em suas trapalhadas, o comandante da agência conta com a ajuda de tipos pouco originais, mas sempre úteis em comédias ambientadas dentro de um escritório: a dupla de criação nada criativa, a estagiária inteligente, a secretária gostosa, a diretora administrativa carente e o faz-tudo bajulador do chefe.
Criada por gente do meio publicitário (a ideia original é de Marcello Serpa, da AlmapBBDO), a série tem o grande mérito de rir do próprio mundo. "Minha primeira medalha: bronze na corrida de saco na gincana da escola", exibe Bittar, orgulhoso, aos funcionários.
Fábio Herford é um ótimo ator e está criando um tipo muito bom. O texto, ainda que irregular, é inteligente e provocador. No terceiro episódio, por exemplo, a agência precisa criar a campanha para uma linha de produtos de beleza. Depois de algumas trapalhadas, Bittar decide apostar em uma "ideia revolucionária": uma campanha de produtos de beleza destinada aos velhos.
O que causa maior desconforto em "Agora Sim!" (exibida às quintas-feiras, às 22h) é a sua tentativa de mimetizar uma sitcom americana --na maneira de filmar, enquadrar e editar a série. Quem vê o programa distraído pode achar que está assistindo a um produto estrangeiro dublado.
Num primeiro momento, "Agora Sim!" me lembrou muito "Vida de Estagiário", a boa série criada a partir das tiras de Allan Sieber, cartunista da Folha. O programa, exibido na TV Brasil e na Warner, também se passa em uma pequena agência de publicidade, a Almeida, Bronson & Lewis (AB&L), com personagens tão caricatos e engraçados quanto os da Bitt Propaganda. Uma das diferenças é o acabamento. Para o bem e para o mal, "Vida de Estagiário" não parece um seriado americano.
Falando em piada de publicitário, não poderia deixar de mencionar a novela "Sangue Bom", da Globo, que está chegando ao fim. Um dos melhores núcleos da trama é justamente o que trata, com irreverência e deboche, do universo da publicidade.
Por seis meses, a história de Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari mostrou as aventuras de Natan (Bruno Garcia), um publicitário trapalhão, meio boçal, ladrão de ideias alheias (inclusive da própria mulher) e cujo maior sonho era virar cineasta. Um tipo e tanto.

    Ferreira Gullar

    folha de são paulo
    A magia da imagem
    O vínculo entre a imagem e a realidade deu origem às artes visuais, que nasceram com o homem das cavernas
    Quando o homem do Paleolítico encontrou um pedaço de sílex, que parecia a cabeça de um bisão, pensou que aquele era um outro modo de o animal existir. E esse vínculo, para ele, entre a imagem e a realidade, parecia-lhe tão forte que, se atingisse a imagem do animal, atingiria o próprio animal.
    Essa será possivelmente a razão pela qual o corpo dos bisões pintados nas cavernas esteja cravejado de setas. É que isso asseguraria o êxito da caçada. Essa crença sobrevive até hoje no que se conhece como "magia simpática", praticada por feiticeiros. No Brasil mesmo, é conhecida essa prática, que consiste em fazer o boneco da pessoa e espetá-lo no coração, na certeza de que, desse modo, levará à morte a pessoa ali representada.
    Esse vínculo entre a imagem e a realidade deu origem às artes visuais, que nasceram precisamente com o homem das cavernas e se mantêm até hoje como um dos principais meios de que dispomos para inventar o nosso mundo humano.
    Como se viu, desde o primeiro momento, a imagem já não é mera representação do real, mas um meio de transformá-lo: a arte existe porque a realidade não nos basta.
    E, não por acaso, após milênios, a arte das imagens acompanha a aventura do homem, seja como expressão de seus desejos e representação de seus valores, seja como a criação de momentos de beleza e deslumbramento. Das paredes de Lascaux a dos mosteiros medievais, das primeiras telas renascentistas às imagens fotográficas de hoje, das xilogravuras quinhentistas à litografia e aos processos eletrônicos de agora, o universo imagístico tornou-se parte essencial da história humana, a ponto de ser impossível separarmos imagem e realidade.
    Esse universo de significações, no entanto, não se contenta com a expressão visual das formas, das imagens. Ele necessita decifrá-las, entendê-las, traduzi-las na linguagem das palavras. Mas, como disse Ernst Cassirer, as linguagens são intraduzíveis entre si, ou seja, o que a imagem diz, a palavra não consegue dizer.
    É que os significados só existem nas linguagens e são, portanto, criações delas. Certamente, podemos, com palavras, referirmo-nos, por exemplo, a uma gravura de Oswaldo Goeldi, em que vemos, na noite escura, um homem com um guarda-chuva vermelho. Podemos, mesmo, não apenas descrevê-la --os elementos figurativos que a compõem-- como tentar evocar a atmosfera de solidão ali presente. Não obstante, essa será sempre uma formulação verbal que jamais equivalerá, nem muito menos substituirá, a expressão que a imagem visual nos proporciona.
    Isso não significa, porém, que a expressão vocabular seja um exercício descabido e inútil. Pelo contrário, por ser também uma linguagem autônoma, a palavra cria significações --leituras-- que se somam à expressão visual das imagens. Nesse sentido, o texto crítico, analítico ou poético sobre uma obra de arte pode de certo modo incorporar-se a ela, não como tradução da obra, mas como interpretação que a enriquece. Exemplo disso é o soneto de Rainer Maria Rilke sobre o torso de Apolo, traduzido para o português por Manuel Bandeira e que termina com este verso: "Força é mudares de vida".
    E isso não apenas com respeito à arte. Na verdade, a realidade em que vivemos é, de fato, inventada por nós. Não simplesmente a realidade material --os instrumentos, as casas, os veículos etc.-- como também a realidade espiritual, constituída pelos valores éticos, estéticos, religiosos, científico.
    Essa relação entre imagem e a palavra, no mundo da arte, ganha um significado muito peculiar, já que, neste campo, a interatividade das duas linguagens contribui para o enriquecimento de ambas, que assim descobrem novas possibilidades de reinventar-se.
    Acredito que estas considerações evidenciam a importância que a criação artística desempenha na permanente reinvenção de nossa realidade. Refiro-me à realidade do homem como ser cultural. A permanência das obras de arte, criadas há séculos e mesmo há milênios, é a demonstração cabal do que a arte significa para o homem. É que se de fato, como creio, a vida é inventada, nada a torna mais fascinante do que a arte.

    Elio Gaspari

    folha de são paulo
    Para um bom domingo: Banksy
    O grafiteiro inglês faz do anonimato suprema forma de celebrização, indicando a grande arte que está nas ruas
    Banksy desceu em Nova York. O misterioso grafiteiro inglês, que foi saudado por um editorial do "Times", está alegrando a cidade. Na capital do dinheiro, brincou com ele. No domingo passado botou uma mesinha impessoal no Central Park, oferecendo por 60 dólares gravuras assinadas que, no mercado, valem até US$ 30 mil. Só três pessoas compraram as peças, e uma senhora conseguiu 50% de desconto. As gravuras valiam US$ 225 mil.
    Van Gogh pintou 900 quadros e só vendeu um, mas todos têm o direito de achar que seriam capazes de comprá-los, teria faltado apenas a oportunidade. Na tarde de domingo umas mil pessoas passaram batidas pela mesinha dos Banksys. Isso na cidade em que, em 1956, o Museu de Arte Moderna mandou uma carta a um artista pedindo que não lhe mandasse mais quadros, pois não os queria. Chamava-se Andy Warhol, e hoje a Marilyn Dourada é uma das principais peças do seu acervo.
    O misterioso Banksy faz do anonimato a suprema forma de estudada celebrização. Não se sabe ao certo quem ele é. Tem cerca de 40 anos, não se deixa fotografar, raramente dá entrevistas (sem mostrar o rosto) e tanto pode dizer uma coisa como o seu contrário. Cultiva essa imagem com advogados e até mesmo uma agência de relações públicas. Banksy solta seus grafites na rua e num deles, deixado no Bronx, a vizinhança pobre está cobrando US$ 20 para quem quiser tirar fotos. Chamá-lo de grafiteiro é uma imprecisão, pois o que deixa nos muros são imagens feitas com moldes e sprays. Há nele poesia, delicadeza e um humor militante que ecoam Warhol. Copia-lhe alguns truques, mas falta-lhe a faísca. Suas raízes estão no francês Blek Le Rat, um tipo oposto no comportamento. É um parisense convencional que fez um poderoso David de metralhadora em defesa de Israel, enquanto Banksy fez do mesmo David um homem-bomba.
    Banksy é acima de tudo uma boa discussão. Gênio? Espertalhão? O lance do Central Park ajuda a vender suas obras nas galerias por centenas de milhares de dólares, mas também desmistifica o fetiche dos originais. Uma reprodução de um desenho de Banksy não tem por que valer US$ 30 mil, a menos que a pessoa queira pagar pelo autógrafo. (Por US$ 9.750 compra-se um bilhete assinado de Matisse e por US$ 9.500 leva-se uma carta manuscrita de Winston Churchill.) Como Banksy já grafitou: "Eu não entendo por que idiotas compram essas merdas". (Dois deles: Brad Pitt, Angelina Jolie.) As três esculturas mais contempladas do mundo (o David de Michelangelo e as portas do Batistério de Florença, bem como os cavalos da Basílica de São Marcos, de Veneza) são cópias. Os originais estão por perto, em locais que deturpam o ambiente em que devem ser vistos.
    Mesmo tendo parado de correr da polícia há tempo, Banksy, como todos os grafiteiros, tem uma aura de marginal. Ele não é um verdadeiro vândalo, dizem seus críticos. Banksy é hoje o mais conhecido artista plástico inglês. Ocupa o lugar deixado por Francis Bacon, morto em 1992. Nem de longe tem sua genialidade, muito menos sua essência verdadeiramente marginal. Prostituto na juventude e gay da pesada (vestia couros por cima e lingerie por baixo), quando lhe deram um atelier em área chique, fugiu. (Essas informações estão numa ótima biografia, que horrorizaria Roberto Carlos.) Banksy é o símbolo de uma grande arte, que há décadas é deixada nas ruas. Por elas passou Jean-Michel Basquiat, que tinha a faísca.
    De graça, estão na rede 18 trabalhos que o grafiteiro espalhou por Nova York desde o dia 1º, alguns deles com vídeo e áudio. Para um bom domingo, basta ir a eles em banksy.co.uk.
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    MADAME NATASHA
    A doutora Dilma lançou o "Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica". Madame Natasha acredita que se deve lançar o Plano Nacional de Compreensão dos Planos do Planalto.
    Em junho foi criado o cargo de diretor do Departamento de Racionalização das Exigências Estatais da Secretaria de Racionalização e Simplificação da Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República.
    FALTA EXPLICAR
    Se os cidadãos declararem suas rendas à Receita Federal da mesma forma que seu Secretário, Carlos Alberto Barreto, explica o pedido de demissão do seu xerife da fiscalização, o Brasil quebra.
    Caio Cândido foi-se embora reclamando da "influência externa em algumas decisões, com prevalência (...) de posições menos técnicas e divorciadas do melhor interesse."
    Barreto fez que não leu e atribuiu a decisão a um "natural desgaste". Dias depois retificou a declaração e disse que Cândido foi embora por causa de uma divergência legal. Cadê a "influência externa"?
    Fiscais da Receita queriam criar uma força tarefa para investigar as conexões da empreiteira Delta. A iniciativa foi abatida em voo.
    CHAMEM O EXÉRCITO
    O comissariado chamou o Exército para garantir o leilão do campo de Libra.
    No comício do dia 13 de março de 1964, João Goulart garantiu-se com a tropa. Deu no que deu.
    Há dois meses o vice Michel Temer e o ministro da Defesa, Celso Amorim, chegaram à Academia Militar das Agulhas Negras com duas horas de atraso para a cerimônia de entrega dos espadins aos cadetes. Tomaram uma tremenda vaia. Está no Youtube.
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    COMO SE ACOBERTOU A MORTE DE AMARILDO?
    A Polícia Civil do Rio parece ter desvendado o caso do pedreiro Amarildo. Ele teria sido assassinado na UPP da Rocinha. Já estão presos um major e nove PMs.
    Falta a PM explicar como seu deu a tentativa de acobertamento do crime. Como pifaram as câmeras que teriam registrado a saída do cidadão? Com que frequência elas pifam? Como e por que surgiu a versão segundo a qual traficantes puseram seu cadáver num carro de lixo? Como prosperou a história segundo a qual o traficante "Catatau" contou que Amarildo fora morto por bandidos?
    Policiais asfixiando um preso com o saco de plástico da aplaudida cena de "Tropa de Elite" é um crime praticado por poucas pessoas. O acobertamento precisa de mais gente e da compreensão dos superiores. Ele corrói a instituição. A disciplina militar não pode impedir que se mate um preso, mas a instituição não pode carregar a fraude. Em 1971 o Exército acobertou o assassinato de Rubens Paiva no DOI do Rio. Inventaram um sequestro implausível, durante o qual ele teria fugido. O assassino de Paiva pode estar morto. Um dos oficiais que teriam tirado o cadáver do DOI já morreu, mas a fraude permanece, intacta, encravada na instituição.

      Janio de Freitas

      folha de são paulo
      Debates que se perdem
      Todos os que defendem a exigência de autorização aos biógrafos dizem não estar defendendo a censura. Mas censura é isso
      REAÇÃO DE última hora, e exacerbada, contra o leilão da área de Libra no pré-sal vem de uma aberração brasileira que encontra, neste episódio, o papel de exemplo perfeito. Tanto de si mesma, como do seu agravamento ameaçador.
      Protesto é sempre cabível: assim caminha o regime democrático para o seu aprimoramento, aos solavancos das reafirmações e das reconsiderações. Mas a hora dos atuais protestos contra o leilão de Libra era lá atrás, quando o governo Lula projetou o modelo de exploração do pré-sal por petrolíferas privadas, com associação minoritária do Estado brasileiro.
      A causa do protesto era e é perfeitamente defensável em nome de múltiplas razões nacionais. O seu confronto com os interesses empresariais, alheios às questões nacionais, por certo seria proveitoso em muitos sentidos. Não ocorreu, porém. Não pôde haver mais do que manifestações anêmicas. Por quê?
      Só para lembrar um caso a mais, na mesma linha: dá-se igual com a multibilionária Copa, já presente em protestos públicos e promessa de reações maiores na hora final. Por que a reação não se deu quando podia suscitar alguma reflexão sobre o ímpeto, pouco ou nada responsável, com que Lula buscava essa inutilidade esbanjadora?
      É a falta de partidos representativos. Os segmentos da sociedade estão órfãos, entregues a si mesmos. Ou, no máximo, a associações que até podem ter representatividade, mas solta no espaço, sem a necessária extensão na arena adequada que seria o Congresso.
      Aos partidos compete serem as vozes da sociedade, organizá-las para serem forças, opô-las para chegar à composição de posições ou à prevalência de um lado. Mas não há partidos: são organizações comerciais, todos interessados em manter o afortunado poder ou em tomá-lo.
      A aberração arrasadora e crescente. O que equivale a dizer que assim são os seus efeitos. Até quando e até onde, cada um de nós que imagine.
      OUTRO NÃO DEBATE
      A polêmica das biografias degringola depressa para o gaiato. Chico Buarque escreve contra a hipótese de difamação em livro praticando horrível difamação de um escrito. No mais, só deu fora: mal informado, os outros exemplos que cita como comprovações de sua opinião são inverdadeiros, e comprovam a tese contrária à sua.
      No retorno, Chico Buarque engrossou: "Se for levar isso ao extremo [o direito de escrever biografia sem depender de autorização do biografado ou de parentes], o sujeito é obrigado a deixar invadir sua casa, fazerem fotografia de cueca, exporem sua mulher em trajes mínimos, sem poder recorrer". São mesmos os riscos e a tendência que uma pessoa séria vê?
      O compositor, cantor e escritor Jorge Mautner compara os biógrafos com agentes da KGB, a polícia política de Stálin, personagens do que ele disse ser uma piada em que disputam quem mais inventaria para prender duas turistas inocentes. Exposta a comparação, a graça Mautner guardou para si. Um outro, jornalista cultural, encontra "situação análoga" entre a defesa de censura a biografias e a defesa de diploma universitário para jornalistas.
      E todos os que defendem a exigência de autorização aos biógrafos dizem não estar defendendo censura. Querem o predomínio, sobre a liberdade constitucional de expressão e informação, dos artigos do Código Civil que permitem impedir biografias contrárias à honra ou à imagem. Para sabê-lo, porém, só lendo a biografia antes, para aceitá-la ou vetar a publicação. E censura é precisamente isso, nem mais nem menos.
      Os defensores da biografia necessariamente autorizada estão pondo todos os biógrafos no papel de difamadores potenciais, quando não contumazes. Os biógrafos já podem processá-los criminalmente por calúnia, injúria e difamação. E cobrar em indenizações, já que os acusadores falam também em dinheiro, o que as biografias não lhes rendem.

        sábado, 19 de outubro de 2013

        André Singer

        folha de são paulo
        Ideologia e voto
        Na segunda-feira passada, o Datafolha divulgou pesquisa que mede a orientação ideológica dos brasileiros. Os resultados, apontando para a prevalência da direita sobre a esquerda, confirmam, em linhas gerais, a série que o instituto vem realizando desde 1989. Porém, a metodologia utilizada desta feita pode levar a visões equívocas sobre a relação entre ideologia e voto.
        Diferentemente do que sempre fez, o Datafolha decidiu, neste ano, atribuir a localização entre direita e esquerda a partir das respostas a um conjunto de questões adaptado de formulário norte-americano. Embora traga resultados parciais de interesse, o questionário mistura indagações de alta relevância política, como, por exemplo, se os sindicatos são importantes para defender os interesses dos trabalhadores, com outras de baixo impacto no debate nacional, como a que pergunta se "acreditar em Deus torna as pessoas melhores".
        Nos trabalhos que realizei a partir de 1990, pude constatar que os assuntos que mais dividem a esquerda da direita no Brasil são os que dizem respeito à ordem. Enquanto a esquerda apoia posições que implicam contestação do ordenamento estabelecido, a direita tende a reforçá-lo. Por isso, o item referente aos sindicatos é importante. Por meio dele pode-se medir como o indivíduo se coloca perante a organização de base para a defesa de interesses que, na ordenação capitalista, são subordinados.
        Não é casual que, entre os dez temas elencados pelo Datafolha, este seja o que mais divide o público, com metade considerando negativa a instituição sindical. Já o problema religioso é o que menos polariza. Quase todos (85%) acham que "acreditar em Deus torna as pessoas melhores", indicando que tal opinião vale tanto para os de esquerda quanto os de direita.
        Entre 1989 e 2010, o Datafolha pedia ao eleitor que se autoposicionasse na escala esquerda-direita, apresentando-lhe cartela de sete pontos. Os resultados chamam a atenção pela enorme estabilidade das preferências em mais de duas décadas. Com poucas exceções, as variações estão dentro da margem de erro, isto é, são estatisticamente irrelevantes, e apontam para um campo de esquerda com cerca de 20%, um de centro idem e um de direita com o dobro das escolhas (40%). Pouco mais de 20% não sabem se posicionar.
        Como o lulismo embaralhou as cartas, propondo um programa de mudança dentro da ordem, passou a ter votos também da direita, sobretudo a popular, o que ocorria menos antes de 2006. Em decorrência, não é que a ideologia interfira pouco no voto, mas, sim, que houve uma importante alteração no plano dos atores políticos, à qual o eleitorado respondeu de maneira coerente com as suas próprias inclinações ideológicas.