quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Julia Sweig

folha de são paulo
JFK e os anos 1960
Costumamos ignorar as correntes conservadoras que foram uma parte importante da era Kennedy
Os americanos amam a sua realeza e reservam em seus corações lugar especial à mais real de todas as famílias reais, o clã Kennedy.
Nesta semana acontece o cinquentenário do assassinato de John Fitzgerald Kennedy, 35º presidente dos EUA. Por isso estamos nos empanturrando com uma seleção assombrosa de edições especiais de revistas e jornais, documentários de TV, livros e editoriais sobre o homem, sua Presidência, sua glamorosa mulher, sua grande família e, certamente, as muitas perguntas ainda em aberto sobre seu assassinato, quem o cometeu e por quê.
A maioria das imagens e textos me deixa incerta sobre o tipo de presidente ou líder que ele foi de fato.
A maioria de suas realizações grandiosas, ao menos segundo a versão da elite política intelectual que forjou e protegeu sua imagem, é do domínio da política externa: aquele discurso no Muro de Berlim ou o fato de ter desafiado Nikita Kruschev em relação aos mísseis soviéticos em Cuba. Mesmo a baía dos Porcos ganha um "bravo!", porque Kennedy assumiu a responsabilidade pelo fracasso da invasão.
Não está claro seu legado doméstico: ele deitou as bases para a lei de 1964 dos Direitos Civis, mas críticos indagam se JFK estava de fato disposto a apoiar a igualdade racial com a força plena da Presidência.
A década de JFK, a de 1960, é corretamente associada a grandes transformações sociais nos EUA.
Mas à época, como agora, o país estava altamente polarizado. A era McCarthy, nos anos 1950, pôs americanos contra americanos. Esse veneno se infiltrou nos anos 1960, que, não obstante, foram uma década de amor livre, protestos por paz, direitos civis e liberdade de expressão.
Os americanos não gostam de encarar a história recente de seu país como tendo sido marcada por assassinatos políticos: primeiro JFK, depois, em 1968, Martin Luther King Jr., e, nesse mesmo ano, Bobby Kennedy, então candidato presidencial.
A mitologia e o martírio desses três homens obscureceram de algumas maneiras a discussão pública da década como tendo sido não apenas de violência da Guerra Fria fora do país, no Vietnã, mas de violência polarizadora, amarga, irada e revoltante em casa.
O que me deixa perplexa no assassinato de JFK é que, à diferença da coragem e visão moral ousada de MLK ou do chamado à ação social progressista lançado por RFK, sua agenda política não era especialmente controversa. Sim, ele foi o primeiro presidente americano católico. Mas seu anticomunismo liberal, o serviço patriótico e as sensibilidades políticas moderadas de sua família, o carisma pessoal de JFK, tudo isso somado não constituía extremismo de nenhuma espécie.
O efeito cumulativo de refletir sobre numerosas teorias que buscam explicar seu assassinato --o atirador agindo por conta própria, a CIA, Castro, interesses petrolíferos do Texas, LBJ, a Máfia etc.-- me conduz a uma conclusão muito menos satisfatória: a de que, quando pensamos naquele dia em Dallas e adoramos JFK e Jackie, paradoxalmente ignoramos correntes da cultura política conservadora que foram uma parte integral da era Kennedy.
@JuliaSweig

    Consciência Negra: a discrepância continua - Samy Dana

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    Uma publicação de 5 de novembro de 2013 do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e da Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados) revela que as desigualdades, ainda que lentamente, têm se reduzido nos últimos anos.
    A diferença entre as taxas de desemprego da região metropolitana de São Paulo em 2012 foi a menor desde o início da série histórica.
    No ano passado, estavam desempregados 10% da PEA (população economicamente ativa) de não negros; entre os negros, a taxa era de 12,4%. Em 2003, por exemplo, a diferença era de 6,9 pontos percentuais. Ou seja, ainda que a discrepância entre negros e brancos continue no que diz respeito a emprego, há sinais de que ela tem se reduzido.
    Em termos salariais, entretanto, a discrepância continua grande. Os negros ganham, em média, 63,2% do que ganham os não negros. Ou seja, enquanto negros com ensino médio ganham cerca de R$ 7,3 por hora, os não-negros ganham, em média, R$ 11,56.
    Para aqueles que têm ensino superior, o salário de não-negros foi de cerca de R$ 29,03, enquanto o de negros na mesma condição foi de R$ 17,39.
    Essa diferença acentuada pode ser resultado de distintas qualificações de trabalhos, já que, com o preconceito, a ascensão de negros a trabalhos mais qualificados, que oferecem maior remuneração, fica dificultada. A porcentagem de negros que ocupam cargos gerenciais é de aproximadamente 5,7%, ante 18,1% dos não negros.
    Post em parceria com Giovana Carvalho, graduanda em economia na EESP-FGV.
    caro dinheiro
    Samy Dana possui Ph.D em Business, doutorado em administração, mestrado e bacharelado em economia. Atualmente é professor de carreira na Escola de Economia de São Paulo da FGV, criador e coordenador de do Núcleo de Cultura, Criatividade e Comportamento - GVcult. É consultor de empresas nacionais e internacionais dos setores real e financeiro e de órgãos governamentais. Dana é autor dos livros "10x Sem Juros" (Saraiva), em coautoria com Marcos Cordeiro Pires, "Como Passar de Devedor Para Investidor" (Cengage), em coautoria com Fabio Sousa e "Estatística Aplicada" (Saraiva), em coautoria com Abraham Laredo Sicsú.
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    Elio Gaspari

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    Roma, setembro de 1944: 'Bem feito'

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    18 de setembro de 1944: Roma estava sob controle das tropas americanas, Mussolini já havia sido passado nas armas. No Palácio da Justiça, o ex-prefeito da cidade esperava a audiência do processo que respondia por ter entregue aos alemães uma lista de cinquenta presos para completar a lista de 330 italianos que seriam executados em represália a um atentado em que a Resistência matara 33 soldados alemães. No prédio, como testemunha, estava Donato Carretta, diretor da prisão de Regina Coeli, de onde saíram muitos dos presos. Uma mulher reconheceu-o e gritou: "Assassino, você entregou meu filho aos alemães".
    Ele começou a apanhar no tribunal. Levaram-no para a rua e pediram que um motorneiro passasse com o bonde por cima dele. O homem recusou-se. Chamaram-no de fascista, mostrou sua carteirinha do Partido Comunista e foi em frente. Mataram Carretta a pauladas e penduraram seu corpo da porta da prisão que dirigira. Seu linchamento lavou a alma de muita gente. Havia sete mil pessoas na cena. Quem foi o culpado? O outro.
    Novembro de 1944: Carretta foi inocentado da cumplicidade com os crimes alemães. Em sua defesa apresentaram-se três presos cuja fuga ele facilitara: Giuseppe Saragat e Sandro Pertini (que viriam a presidir a Itália), bem como o líder socialista Pietro Nenni.
    Linchamentos deixam lembranças amargas. Lula diz que presenciou o de um empresário do ABC que atirara num trabalhador. Quando narrou o episódio, foi econômico nas palavras. Eles são disparados por dois sentimentos. O primeiro, selvagem, é o da Justiça com as próprias mãos. O segundo é produto de uma racionalização que, trocada em miúdos, cabe num simples "bem feito". Essa modalidade aplica-se não só para casos de violência física, mas até mesmo para tolerar constrangimentos humilhantes. Por exemplo: obrigar o o caixão de João Goulart a seguir, sem paradas, de Uruguaiana até São Borja. Ou ainda: manter o ex-deputado José Genoino durante três dias em regime fechado.
    Houve algo de teatral nas cenas das prisões dos mensaleiros e houve algo de irracional trancando-se em celas cidadãos condenados a regimes semiabertos. Isso vai para a conta do ministro Joaquim Barbosa. Na conta dele e de todos está a situação de Genoino. Trata-se de um homem de 67 anos que em julho passou por uma cirurgia cardíaca de emergência e alto risco que durou seis horas. Trocaram-lhe um pedaço da aorta por um tubo de um palmo de extensão. Sem diagnóstico, estaria morto no dia seguinte. Ele ficou internado durante 26 dias e sofreu uma leve isquemia cerebral. Desde o momento de sua prisão Genoino teve picos de hipertensão que, no seu quadro, podem matá-lo ou mesmo incapacitá-lo. Isso tanto pode acontecer jogando bola em Ubatuba ou numa cela em Brasília.
    Na segunda-feira Joaquim Barbosa pediu um parecer ao procurador-geral para decidir se ele pode ficar preso em casa, bem como a duração desse benefício. Podia ter feito isso antes, pois a cirurgia de Genoino foi amplamente noticiada. É prerrogativa do Judiciário atender ou negar o pedido de prisão domiciliar, baseando-se em pareceres médicos credenciados pelo Estado. Passará algum tempo e todos os participantes do jogo do "bem feito" acharão que o malfeito, quando comprovado, foi responsabilidade do "outro".
    elio gaspari
    Elio Gaspari, nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por "As Ilusões Armadas". Escreve às quartas-feiras e domingos na versão impressa de "Poder".

    Painel Vera Magalhães

    folha de são paulo
    Carga pesada
    O Palácio do Planalto identificou nas críticas de Eduardo Campos (PSB) a Dilma Rousseff a radicalização de um discurso de oposição. A avaliação é que o governador de Pernambuco desistiu de tentar se firmar como terceira via. "Campos anuncia cortes de gastos e faz promessas de ganhos maiores a concessionários, banqueiros e empresários em geral. Vamos aguardar para saber o que ele reserva para o povo nessa equação", rebate a ministra Gleisi Hoffmann (Casa Civil).
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    Versus Campos anuncia hoje a reforma administrativa em seu governo, com o corte de cargos comissionados e a redução de secretarias a 21. A ideia é fazer um contraponto aos 39 ministérios de Dilma.
    Bronca Roseana Sarney (PMDB-MA) telefonou para Rui Falcão para reclamar de comentário do presidente do PT de que o partido poderia apoiá-la para o Senado e a seu adversário Flávio Dino (PC do B) para governo. Roseana disse que o PMDB não aceita que o PT se divida em dois palanques no Estado.
    Recado Há cerca de duas semanas, um ministro de Dilma teria dito a José Sarney (PMDB-AP) que o PT não lhe faltaria nas eleições de 2014.
    Chamego A presença de Dilma em evento de associações comerciais, em Campinas, foi um afago a Gilberto Kassab, que hoje anuncia apoio antecipado do PSD à sua reeleição. A presidente e o ex-prefeito de São Paulo voaram juntos para Brasília.
    Só love No ato, Kassab disse que a crise entre ele e Fernando Haddad pela investigação de esquema de fraude na arrecadação de impostos em sua gestão estava "superada" e que tinha dado a resposta que julgou necessária.
    Leilão O PMDB paulista ofereceu a vice de Paulo Skaf ou a vaga da chapa ao Senado para o PTB, de Campos Machado, tradicional aliado de Geraldo Alckmin (PSDB). As siglas voltarão a conversar.
    Data venia 1 Márcio Thomaz Bastos protocolou reclamação no STF para que seu cliente, José Roberto Salgado, condenado no mensalão, tenha a prisão revogada até que a corte julgue seus embargos infringentes.
    Data venia 2 O ex-ministro da Justiça apresentou embargos sobre todas as condenações e penas dadas ao ex-diretor do Banco Rural. Ele quer que o plenário decida sobre os recursos. Seu pedido foi distribuído para o ministro Luís Roberto Barroso.
    Fla x Flu Um grupo de ministros do STF reclama que Joaquim Barbosa não poderia ter expedido mandados de prisão para condenados que apresentaram embargos infringentes sem quatro votos divergentes. Essa prerrogativa, segundo eles, é do relator dos recursos, Luiz Fux.
    Eu sozinho Um desses ministros se disse "enganado" com a decisão de Barbosa de descartar esses embargos de forma monocrática, já que, na semana passada, o consenso era de que seria necessário debate em plenário.
    Como assim? Diante da crítica de dirigentes do PT à adesão do governo de São Paulo ao Bilhete Único Mensal, auxiliares de Geraldo Alckmin (PSDB) dizem que foi a Prefeitura de São Paulo que convidou o Bandeirantes para se juntar à iniciativa.
    Visitas à Folha Aloizio Mercadante, ministro da Educação, visitou ontem a Folha. Estava com Rodrigo Dindo e Marcus Sérgio Martins Aguiar, assessores.
    Luiz Maurício Souza Blazeck, delegado geral da Polícia Civil de São Paulo, visitou ontem a Folha. Estava com Fernanda Herbella, delegada, e Antonio Carlos Silveira, assessor de imprensa.
    com BRUNO BOGHOSSIAN e PAULO GAMA
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    TIROTEIO
    "A pesquisa é clara: os brasileiros querem mudanças no governo, e não mudança de governo. A magia está na preposição."
    DE JOÃO SANTANA, marqueteiro de Dilma Rousseff, sobre o levantamento do Ibope que indicou que a presidente tem de 41% a 43% das intenções de voto.
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    CONTRAPONTO
    Nem me viu
    Durante as saudações da presidente Dilma Rousseff no discurso que proferiu no congresso do PC do B, as deputadas comunistas Manuela d'Ávila (RS) e Luciana Santos (PE) se levantaram para tietar a petista. Deram a volta no púlpito em que Dilma falava e começaram a tirar fotos com seus telefones, sem que ela se desse conta.
    No momento em que Dilma dirigiu o cumprimento às duas, olhou para a mesa e encontrou as cadeiras vazias. Sem entender, desabafou, arrancando risos da plateia:
    -- São as surpresas da vida. Você pensa que a pessoa está lá, mas ela está aqui.

      Oded Grajew

      folha de são paulo
      Felicidade sustentável
      Só teremos um modelo de desenvolvimento sustentável, se houver ampla reflexão sobre a felicidade e do que precisamos para sermos felizes
      A maioria dos cientistas e dos indicadores nos mostra que o atual modelo de desenvolvimento está esgotando os recursos naturais, aquecendo o planeta, dizimando a biodiversidade, derrubando nossas florestas, transformando terras férteis em desertos, poluindo o ar e as águas, aumentando a desigualdade, incentivando o desemprego e os empregos precários, fomentando a competição e a violência, solapando a democracia e a confiança nas instituições e nos governos e piorando a qualidade de vida, no campo e nas cidades.
      Foi vendida a ideia de que o caminho da felicidade passa pelo consumo, pela aquisição da roupa de grife, do carro do ano, do último modelo de celular ou do eletrodoméstico. É o consumo e o acúmulo de bens sem limites e nunca saciados que propulsionam esse modelo suicida de desenvolvimento.
      A Rede Nossa São Paulo desenvolveu o Irbem (Indicadores de Referência de Bem-Estar nos Municípios) para avaliar a qualidade de vida nas cidades. Para montar os indicadores, perguntou aos habitantes quais seriam os itens importantes para sua qualidade de vida.
      A maioria respondeu que a felicidade é ter uma boa, carinhosa e fraterna convivência com a família, os amigos e a comunidade; uma relação amorosa saudável; equilíbrio entre trabalho e vida pessoal; acesso à educação e transporte público de qualidade; proximidade da natureza; frequentar cinema, espetáculos, teatros e museus; hospital e posto de saúde perto de casa; melhor convivência com animais; vida espiritual rica; prática de atividades físicas; ações comunitárias e a chance de viver numa sociedade solidária e segura (veja a pesquisa completa em www.nossasaopaulo.org.br).
      É claro que condições materiais razoáveis de vida são importantes, e é fundamental que as políticas públicas objetivem proporcionar essa realidade para todos. Mas centrar a felicidade no consumo e no acúmulo de bens é insustentável.
      Ao olhar todos os apelos que hoje relacionam consumo à felicidade, é de se perguntar: como fizeram antigas gerações, antes de todas essas invenções, para serem felizes? Como fazem as pessoas sem carros ou sem últimos modelos para serem felizes? Por que muitas pessoas que têm todos esses bens são infelizes?
      Em vez de promovermos investimentos e empregos em atividades artísticas, culturais e educacionais que favoreçam a saúde e o bem-estar; apoiem idosos, pessoas com deficiência, crianças e populações menos favorecidas; priorizem o transporte público de qualidade; preservem a natureza e apostem na pesquisa médica e no desenvolvimento de energias sustentáveis, concentramos nossos esforços em produzir bens de consumo que rapidamente tornamos obsoletos para podermos, enfim, consumir suas novas versões.
      Só teremos um modelo de desenvolvimento sustentável que preserve o planeta, reduza a desigualdade e promova a paz, a solidariedade e a qualidade de vida das pessoas e das futuras gerações, se houver uma ampla reflexão pessoal e coletiva sobre a felicidade, sobre o que realmente precisamos para sermos felizes. E se essa reflexão pautar a vida das pessoas, empresas, instituições e governos.

      Deborah Duprat

      folha de são paulo
      Luta contra a lentidão
      Se persistir o atual ritmo de regularização fundiária, os 2.007 quilombos terão que aguardar 175 anos para terem seus processos concluídos
      Em 20 de novembro, comemorado como o Dia da Consciência Negra, costuma-se repetir um ritual: o governo federal anuncia medidas dirigidas à população negra voltadas à correção das desigualdades raciais e à promoção da equidade de oportunidades.
      Espera-se que, neste 2013, algo ocorra em relação às comunidades de remanescentes de quilombos, apesar de o tema ainda estar cercado de um misto de preconceito, desconhecimento e resistência.
      Não obstante haja um consenso relativamente tranquilo quanto ao caráter emancipatório e libertador da Constituição de 1988, e se avancem, ainda que com percalços, as lutas das mulheres, das pessoas com deficiência, da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), dos povos indígenas e mesmo da população negra, as comunidades quilombolas, aparentemente, são vistas fora desse contexto.
      É bem verdade que o sistema hegemônico do período anterior foi bastante eficaz na invisibilidade dessas comunidades. A menção a quilombos fazia evocar Palmares e os remetia a um passado condenado aos livros de história.
      Excluídas da sociedade de grande formato, ausentes dos mapas e dos censos, essas comunidades, que nada tinham a perder, transformaram sua tragédia em um capital formidavelmente poderoso no processo constituinte: foram reconhecidas como sujeitos de direito e proprietárias das terras que tradicionalmente ocupavam. Inseriam-se, assim como outros atores, no espaço agora plural da sociedade nacional.
      Aparentemente, também se tornaram visíveis. Dados oficiais fornecidos pela Fundação Cultural Palmares e atualizados até 25 de outubro de 2013, dão conta da existência de 2.007 comunidades certificadas desde 2004 até o momento.
      Volta e meia, no entanto, veem impugnadas essas certificações, o que revela resquício ainda presente de práticas hegemônicas, principalmente aquela das classificações/oposições binárias: nós/eles.
      Convém lembrar que, nesses dualismos, um dos termos é sempre valorizado: um é a norma, o normal; o outro, o desviante, de fora. Por isso, é intuitivo que, numa sociedade plural, nenhum grupo tenha o poder das designações, das definições. Não há um centro determinado que produza identidades fixas, mas identidades afirmadas pelos próprios atores sociais, singular e/ou coletivamente, e mobilizadas politicamente.
      Mas o quadro realmente desalentador é o da regularização fundiária. Passados 25 anos da atual Constituição e dez anos do decreto nº 4.887 --que regulamenta o processo de titulação das áreas quilombolas--, tem-se, segundo dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), de 2004 a 2012, 92 áreas tituladas: 23 pelo governo federal; 69 pelo estadual.
      Se persistir esse ritmo, as 2.007 comunidades certificadas pela Palmares terão que aguardar aproximadamente 175 anos para que todos os processos a elas pertinentes estejam concluídos.
      Concede-se, como dito acima, que parte dos problemas, situados especialmente no início dessa política, é resultado de desconhecimento. Não se passa de uma sociedade hegemônica para uma sociedade plural sem perplexidades e dúvidas.
      Mas não é mais possível se valer desse discurso. Há estruturas administrativas voltadas ao tema que se presumem capazes de realizar o direito previsto na Constituição.
      Terry Eagleton lembra que "a morte nos mostra a natureza essencialmente indomável de nossas vidas e, consequentemente, algo de equívoco de tentar dominar a vida de outros". Pierre Bourdieu, por sua vez, adverte que uma das formas mais eficazes de controle do outro é a do seu tempo.
      Por isso, a luta que se faz necessária é por uma administração mais célere, curiosa e atenta à novidade do que nostálgica de suas certezas.

      Cotas raciais podem ser insuficientes no Brasil, diz diretor da Casa Branca

      folha de são paulo

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      SABINE RIGHETTI
      DE SÃO PAULO

      O Brasil não pode copiar o modelo de inclusão racial no ensino superior dos Estados Unidos porque os contextos desses países são muito diferentes. A opinião é de Meldon Hollis, diretor da Iniciativa da Casa Branca para Universidades e Faculdades Historicamente Negras.
      Nos EUA, os negros criaram suas próprias instituições de ensino porque não podiam frequentar as escolas dos brancos. Hoje há 110 escolas para negros. Depois, vieram as cotas para incluir aqueles que eram uma minoria (10% da população).
      No Brasil, não faz sentido incentivar a criação, agora, de escolas negras. E as cotas podem ser insuficientes, diz ele, porque os negros são, aqui, metade da população.
      Hollis esteve no Brasil para participar do festival Flink Sampa Afroétnica, da Faculdade Zumbi dos Palmares. Enquanto passou por aqui, ele conversou com a Folha.
      *
      Folha - O governo dos EUA tem a intenção de receber mais jovens negros do ensino superior do Brasil?
      Meldon Hollis - Sim. A ideia é estreitar relações e estimular o intercâmbio de jovens afrodescendentes do Brasil às cerca de 110 universidades negras americanas.
      A maioria dos estudantes negros brasileiros estudou em escolas públicas, que são mais fracas e tem inglês muito ruim. Então, esses alunos precisam de um suporte adicional. A ideia é enviar esses estudantes no verão [em maio] para que eles passem de dois a três meses estudando inglês e, depois, comecem as aulas regularmente [em setembro, início do ano letivo].
      Zé Carlos Barretta/Folhapress
      Meldon Hollis, diretor da Iniciativa da Casa Branca para Universidades e Faculdades Historicamente Negras
      Meldon Hollis, diretor da Iniciativa da Casa Branca para Universidades e Faculdades Historicamente Negras
      O que o senhor acha do modelo de cotas do Brasil?
      Não saberemos se as cotas vão funcionar até que passe um tempo mínimo para que seja feita uma avaliação. Sabemos que esse modelo trará algum progresso. Mas não sabemos se trará a solução para o problema de divisão racial.
      O Brasil não é os EUA. Nos Estados Unidos, apenas 10% da população é negra, enquanto no Brasil 50% são afrodescendentes.
      Não é possível que metade da população fique fora da economia do país. Precisamos ter um progresso imediato no sentido de reduzir a desigualdade racial por aqui.
      Uma coisa diferente nos EUA é que as pessoas negras têm suas próprias instituições desenvolvidas por eles próprios porque a educação era totalmente segregada. Essas instituições existem há cerca de 150 anos. Muitos líderes negros saíram dessas escolas, como Martin Luther King. No Brasil, é diferente.
      No Brasil, há só uma instituição de ensino superior negra, a Faculdade Zumbi dos Palmares. Por que o modelo não pegou?
      A história dos EUA é diferente. As escolas para negros foram criadas para educar os negros que não podiam frequentar as escolas após a abolição. No Brasil, há boas instituições de ensino superior e a sociedade nunca foi segregada. Não foi preciso criar novas instituições.
      Como um aluno negro nos EUA escolhe entre uma escola para negros ou uma "regular"?
      Hoje, somente 10% da população negra escolhe escolas de negros, assim como há quem escolha escolas católicas ou para judeus.
      Minha filha escolheu uma faculdade para negros e meu filho escolheu uma escola regular. Ele não gosta da escola para negros, mas ela se sente muito confortável na instituição. Eu gosto da experiência que os dois estão tendo.
      Evento em SP reuniu líderes da cultura negra
      DE SÃO PAULO
      O festival Flink Sampa Afroétnica, promovido pela Faculdade Zumbi dos Palmares e pelo Memorial da América Latina, ocorreu de 14 a 17 de novembro.
      O evento trouxe debates sobre a questão do negro no Brasil e contou com líderes internacionais como Meldon Hollis. Também promoveu um encontro internacional de alunos cotistas.