sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Barbara Gancia

folha de são paulo

OMS vai varrer "cura" gay do mapa

DE SÃO PAULO
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No primeiro feriado do Dia da Consciência Negra, eu zoei do nome: "Taí. Um dia pra comemorar meu estado de espíri­to". Realmente não entendi porque parar de trabalhar para celebrar a diferença entre tapuias que somos todos debaixo do mesmo céu de anil.
Mesma coisa quando veio a Lei Maria da Penha. Custei a entender que a mulher precisava de um habi­tat só para ela, que os órgãos dispo­níveis não davam conta.
Demorei a entender a importân­cia da simbologia. Só neste ano fui perceber o tamanho do absurdo de o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná, composto na maioria por juízes brancos, ter proibido liminarmente a própria existência do Dia da Consciência Negra em Curitiba. Mas, pela graça do Todo Poderoso, uma distorção dessas hoje não passa mais desper­cebida, e logo os 25 magistrados que bateram o martelo serão forçados a mudar de ideia com o rabinho entre as pernas.
Pela Constituição, estão assegu­rados direitos de mulheres, negros, crianças e judeus (lembra do caso do neonazista que negou a exis­tência do Holocausto em livro e acabou condenado pelo STF?)
É verdade que muitos continuam cegos. O que importa é que leis de proteção aos mais vulneráveis não foram feitas para mudar burro ve­lho. Servem para educar as próxi­mas gerações. Na marra. Não res­peitou? Então engula aqui uma sanção bem salgada.
Só que, daí, como ficam aqueles que precisam metabolizar o ódio ou quem vive de explorar o precon­ceito e a dor? Mas é claro! Ainda so­bram os gays, essa corja de anor­mais, vamos todos cair de pau ne­les. Por pressão da bancada evan­gélica, a PLC 122, projeto que pro­põe a Lei Anti-Homofobia, acaba de ser retirada da pauta pela Co­missão de Direitos Humanos (CDH) do Senado.
Mas como tem muito querubim se mexendo no céu e agitando com o Lá de Cima ­--dá-lhe Cazuza, Santos Dumont, Lota de Macedo Soares, Cássia Eller!-- nos próximos dias 25, 26 e 27, a Psiquiatria da Escola Pau­lista de Medicina da Unifesp, junta­mente com a Organização Mundial da Saúde, promoverà debate públi­co em SP sobre as revisões que se­rão feitas na Classificação Interna­cional de Doenças (CID-11), no que diz respeito à sexualidade.
Em outros sistemas classificató­rios de doenças mentais, a homos­sexualidade já deixou de ser doença há tempo. Mas lembra daquela psi­quiatra do Rio que se baseava no ar­tigo F66 do CID-10, que tratava co­mo transtorno do ego-distônico, ou seja, o indivíduo que sofre por não aceitar sua sexualidade? E lembra que ela insistia que "cura" gay deve­ria continuar sendo prática legali­zada por conta disso? Pois na nova edição da CID, listagem que orienta a Saúde do mundo inteiro, essa dis­crepância acabou.
No entender da OMS, qualquer orientação sexual deve ser encara­da como parte natural do desenvol­vimento. Está fora de questão pato­logizar. Um dia, quando for­mos todos menos ogros, conseguiremos entender o que gente como a filósofa Márcia Tiburi já diz há muito: que não existe sexo. Todos somos humanos com doses maiores ou menores de hormônios masculino ou femini­no. Nesse quadro, encaixa-se um amplo espectro que mistura não só hormônios como influências externas de toda sorte, não há estudo que de­termine exatamente de onde vem a orientação sexual. Como também não há estudo que diga por que eu gosto de picolé de limão, mas odeio coentro. Só não venha pegar no meu pé por isso!
barbara gancia
Barbara Gancia, mito vivo do jornalismo tapuia e torcedora do Santos FC, detesta se envolver em polêmica. E já chegou na idade de ter de recusar alimentos contendo gordura animal. É colunista do caderno "Cotidiano" e da revista "sãopaulo".

De olho no Oscar, 'O Som ao Redor' é exibido nos EUA

folha de são paulo

FERNANDA EZABELLA

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LOS ANGELES

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Kleber Mendonça Filho achou que tinha na mão um filme "extremamente local" e que seria "difícil de ser decifrado por estrangeiros". Não poderia estar mais enganado. "O Som ao Redor" está há quase dois anos rodando festivais mundo afora e colecionando prêmios.
A última parada é Los Angeles, aonde o diretor chegou nesta semana para divulgar seu trabalho, de olho nas cinco vagas do Oscar de filme estrangeiro.
O longa sobre a classe média da capital pernambucana teve exibição gratuita anteontem, organizada pelo site "Deadline.com".

"O Som ao Redor"

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Cinemascópio/Divulgação
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Cena do filme "O Som ao Redor", dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho Leia mais
"O filme tem que ser forte o suficiente para poder perder 15% da sua magia. Se for uma obra bem boa, entendemos ao menos 85%", respondeu Mendonça Filho ao ser questionado, no final da sessão, se o público estrangeiro deixava de entender muitas referências locais.
Cerca de 30 pessoas participaram do evento, como o publicitário americano Kevin Sandavol, 42. "Gostei bastante. Tenho sangue hispânico e me identifiquei com as histórias das famílias, da interação das comunidades", disse Sandavol na saída do cinema. "Recife é uma cidade bem específica, achei legal ver os bairros, as casas."
"O Som ao Redor" concorre com mais de 70 filmes pelas indicações ao Oscar, a serem anunciadas em 16/01.
Mendonça Filho, que deu 15 entrevistas à mídia internacional em dois dias na cidade, disse à Folha que já pensa em seus próximos trabalhos, um deles no exterior.
Ele deve dirigir um roteiro que Mark Peploe escreveu nos anos 1970 baseado em história de Michelangelo Antonioni (1912-2007).
Peploe, corroteirista de "Profissão: Repórter" (1975) e ganhador do Oscar por "O Último Imperador" (1987), convidou o brasileiro para dirigir "The Crew" ao conhecê-lo e ver seu longa no Festival de Locarno em 2012.
"É um drama que vira thriller, falado em inglês, algo meio Polanski dos anos 60", disse Mendonça Filho à reportagem. "Mark pediu para eu ler o roteiro, e agora estamos arregimentando interesses."

Michel Laub

folha de são paulo
Fukushima e Nescau geladinho
Mesmo que existam fome, pobreza, dor e violência, o instinto nos presenteou com o otimismo da ação
Há uns 15 anos era mais fácil manter a privacidade. O trânsito era melhor. Fukushima era só o nome de uma usina nuclear no Japão. Também era possível telefonar a um serviço qualquer de atendimento, de bancos a operadoras de cabo e telefonia, e não ser moído existencialmente por pedidos de autenticação, prolixidade dos menus e analfabetismo dos atendentes.
A tecnologia é o uso que se faz dela, e seus efeitos são experimentados apenas quando transcendem a pureza dos laboratórios. A pergunta é se a melhora que a ciência traz para o cotidiano, projetando nossa percepção do futuro, é uma constante. Num dos ensaios de "Os Limites do Possível" (Portfolio-Penguin), André Lara Resende toca no tema ao fazer um apanhado das teorias econômicas, históricas e culturais que justificam a noção moderna de otimismo.
Citando autores como Matt Ridley, John Stuart Mill, John Gray e Stefan Zweig, o texto reflete sobre o que há de concreto ou apenas ideológico nessas correntes de pensamento. No sistema econômico de hoje, ser otimista ajuda no sucesso financeiro. Ninguém cria um produto se não acreditar, às vezes baseado apenas em intuição, que aquilo se tornará necessário e valioso.
O problema, escreve André Lara, é que os resultados dessas iniciativas nem sempre são de interesse coletivo. O mercado não serve para regular o uso que fazemos do que não tem preço individual e imediato, como os recursos naturais cuja escassez põe o planeta em risco. O mundo terminará em desastre se continuar na marcha atual. Um otimista como Ridley faria o contraponto dizendo que a tecnologia cria novos problemas e novas soluções.
Como sempre em debates do gênero, há argumentos para todos os lados. O cristianismo, com sua narrativa de redenção final, opõe-se à noção amedrontadora de que a história não tem sentido. Já o positivismo substitui o pensamento mágico por outro mito: o de que o progresso mudaria o fato de sermos "apenas mais um animal sobre a Terra". A religião sozinha deu na Inquisição e nas teocracias islâmicas. A ciência era muito prezada nos regimes de Hitler e Stálin.
Em termos menos extremos, não dá para endossar acriticamente o culto à razão surgido com o Iluminismo. Isso significaria ignorar o efeito colateral desumanizante de avanços tecnológicos como os da Revolução Industrial, sem falar nas guerras cujo número massivo de vítimas se deve à maior eficiência das armas.
Ao mesmo tempo, se aplicado de forma literal, o romantismo derivado que atribui ao meio ambiente uma pureza oposta à perversão da vida moderna impediria a existência de antibióticos, anestesia e --para enfrentar o aquecimento global-- ar-condicionado e Nescau geladinho.
Talvez a resposta do dilema esteja na esfera do indivíduo, cujos humores não são determinados apenas por história e cultura. Dois fatores que pesam aí, entre outros: sexualidade e equilíbrio químico que determina ou não ansiedade e depressão.
De minha parte, tenho implicância com o catastrofismo e sua presunção de superioridade intelectual (porque nos sentimos mais informados que os tolos crédulos) e moral (porque nos sentimos menos cúmplices das injustiças). Mesmo que existam fome, pobreza, dor e violência, sem falar na consciência do fim que nos acompanha desde sempre (em paralelo com a expectativa de vida que só aumenta), o instinto nos presenteou com o otimismo da ação.
Ou seja, ir em frente sem nos deixar intimidar ou paralisar pelo horror indiferente do universo. O que não significa forçar a barra argumentativa para transformá-lo em algo positivo. "É preciso ter esperança", escreve André Lara, "sem procurar razões para ter esperança".
Aceitar o paradoxo entre o impulso de sobrevivência, que é cândido e irracional, e a razão sombria, que nos informa o tempo todo sobre o vazio de tudo, é um bom meio-termo para quem não quer ter os passos guiados pelo Coelho da Páscoa --ponha ele os ovos ideológicos que puser.
O erro, conclui o autor do ensaio, seria misturar os conceitos: "Quando pretendemos (...) explicar o otimismo pela razão, traímos a razão. Quando a esperança se torna arrogante, traímos a esperança".

Veja as manchetes dos principais jornais desta sexta-feira

folha de são paulo

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DE SÃO PAULO
*
Jornais nacionais
O Estado de S.Paulo
Genoino poderá se tratar em casa; Câmara adia cassação
O Globo
Mensalão - Genoino é autorizado a se tratar em casa ou hospital
Valor Econômico
Mantega confirma contenção de gasto e frustra São Paulo
Correio Braziliense
Barbosa libera Genoíno para tratamento em casa ou hospital
Zero Hora
Resultado histórico - Emprego em alta no Estado
*
Jornais internacionais
The Guardian (Reino Unido)
Libertado depois de 30 anos: Mulheres eram mantidas como escravas em casa em Londres
The New York Times (EUA)
Pacto pode estender permanência de tropas dos EUA no Afeganistão
El País (Espanha)
Tribunal Nacional desencadeou uma crise diplomática com a China
Clarín (Argentina)
Em meia cidade, você vai pagar para estacionar o seu carro na rua

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Nina Horta

folha de são paulo
Atala erótico
As descobertas de Alex Atala transformam o cotidiano em gostosura, em beleza; têm erotismo
Só não comprei o livro do Alex Atala na Amazon porque achei ridículo, afinal o cara é nosso, tudo nele é nosso, queria ir na livraria daqui, ler aqui, pagar com reais, sair com ele embrulhado na mão. (E teria feito uma grande bobagem se comprasse fora, pois achei que a edição era bilíngue, no mesmo livro, e não é; o que está aqui na minha mão é em português, inteiro. E a editora Melhoramentos me mandou de presente o "D.O.M. - Redescobrindo Ingredientes Brasileiros".)
Me deu uma vontade de rir ao pensar num estrangeiro pegando o livro, sem acesso aos nossos ingredientes. Porque nós pegamos livros assim o tempo todo. Comidas coreanas, de Burma, de Trás-os-Montes, e ficamos lá quebrando a cabeça. Aquele primeiro livro do Noma, valha-me Deus, nem uma couvinha tronchuda.
E todos vão ter interesse em comprar por ser do Atala. Nós mesmos, até outro dia, não conhecíamos priprioca, nem maçã do coco, nem formigas, nem batatas-árias. Agora, já conhecemos só de cumprimentar batendo o chapéu, barretadas, por influência desses abnegados catadores de matinhos e matões, desses pesquisadores sérios que querem trazer à mesa o que se come aqui, dos nossos rios, dos nossos grotões. O povo que cresce perto dos ingredientes desconhecidos para a maioria nem leva em conta. Come e pronto. É novidade para nós, os "voyeurs" das mesas alheias, os que chamam de gourmets. Bem feito. Estamos dando o troco com o livro do Alex.
Os estrangeiros nos mandam aves estranhas, rebatemos com uma formiga. Ah, tem filé no sul dos Estados Unidos? Temos bacuri e pequi. Dá lá, toma cá. Ele escreveu o que quis, sem intenção de exaurir o assunto. Despretensioso, até. Lindas fotos de apresentação da "cosa nostra".
Acho erótico esse livro dele e todos os outros de cozinheiros excepcionais dessa geração. As fotos e os textos não querem nos mandar para o fogão, ter função útil. Estão em torno do prazer em si mesmo, exigem delicadeza, um certo conhecimento, uma invenção, um ritual e, especialmente, a beleza, a imaginação, o desejo. Alguém se alimenta do palmito desfiado com pó de pipoca? Não. São diferenças pensadas por alguém, descobertas que transformam o cotidiano em beleza e variedade e gostosura, podem mesmo ser até chamadas de eróticas, que tal? Mais um adjetivo para usarmos quando formos a um bom restaurante. "Esse risoto de caramujo marinho com tangerina foi bom para você também?"
Uma erotização da linguagem culinária? A essas alturas não estou falando mais do livro, mas da cozinha do Atala. Pois se não for uma aproximação do sagrado, uma busca de essência, a comida desses novos cozinheiros não quer dizer nada. Ela não flui como um rio de águas claras, não se faz entender à primeira vista, não tem elos que a explicam, não é fácil: ora é gel, ora é balão, desfaz-se em lago, levanta-se em torre, vira espuma. É poesia. Poética, fico com "poética".
O livro deu umas paradas por mercados, prédios, cenas de pesca, o profano, diríamos. Ou melhor, ao mundo dos livros de presente de fim de ano de banco. Mas a vida é assim, tem erotismo, poesia e tem horas prosaicas demais. Na mesma vida, no mesmo livro.
ninahorta@uol.com.br
Leia o blog da colunista
ninahorta.blogfolha.uol.com.br

    Qual a culpa de Genoino? - Marcelo Coelho

    folha de são paulo

    Questões de Ordem: 


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    MARCELO COELHO
    DE SÃO PAULO

    Dói muito ver a prisão de uma pessoa com o passado de José Genoino. Está muito acima, pelo caráter, pela coerência, pela simplicidade, da grande maioria dos políticos brasileiros.
    Não enriqueceu, nem quis enriquecer, com os cargos que ocupou. Fica difícil aplicar nele o rótulo de "corrupto". Na linguagem de todos os dias, corrupto é aquele que recebe propinas ou favores. Com toda certeza, Genoino não é dessa laia.
    Mas foi condenado no julgamento do mensalão, e vale lembrar o que aconteceu. Genoino foi condenado a 6 anos e 11 meses de prisão por formação de quadrilha e corrupção ativa. Tire-se do debate o crime da formação de quadrilha, ainda a ser reexaminado nos embargos infringentes.
    José Genoino foi condenado de forma praticamente unânime no STF. Dos dez ministros, somente Ricardo Lewandowski o absolveu. Até Dias Toffoli, um dos mais enfáticos em favor de José Dirceu, condenou Genoino sem nenhuma hesitação. Qual o crime? Corrupção. Pela lei, não se pune somente quem recebe dinheiro, mas também quem oferece.
    José Genoino ofereceu dinheiro a deputados e líderes partidários do mensalão? Sabia o que estava fazendo quando assinou um empréstimo junto ao Banco Rural, para irrigar as finanças do esquema? Ou foi tudo responsabilidade de Delúbio Soares e de José Dirceu, sendo claro que Genoino nunca entendeu muito de contabilidade, de orçamento, de economia?
    Os ministros se basearam nos testemunhos dos autos. Primeiro, é bom recordar, rejeitaram os argumentos do Ministério Público, que acusava Genoino de ter corrompido parlamentares do PMDB e do PL. Não havia nenhuma menção concreta a tratativas de Genoino com esses partidos. Até por isso, Delúbio terminou com uma pena maior do que ele.
    Houve, entretanto, encontros de Genoino com líderes do PTB e do PP. Políticos como José Janene, Pedro Henry, Emerson Palmieri e Pedro Corrêa admitem esses encontros. Nem precisamos falar de Roberto Jefferson, cujos depoimentos são sempre postos em dúvida pela defesa. Se tudo se baseasse apenas nas declarações de Jefferson, dificilmente algum ministro condenaria quem quer que fosse.
    Ricardo Lewandowski absolveu José Genoino afirmando que, afinal de contas, todos esses testemunhos vinham de réus do processo também. Em tese, esse tipo de depoimento vale pouco, porque é plausível que um réu acuse outro para livrar a própria pele. Os outros nove ministros levaram em conta, todavia, o que esses petebistas e pepistas disseram sobre Genoino. E também levaram em conta outro depoimento, de Vadão Gomes, também político do PP, mas que não era réu do mensalão.
    Todas essas testemunhas confirmam que José Genoino, junto com Delúbio e José Dirceu, mas também sozinho ao menos uma vez, participava dos encontros em que se discutia o apoio do PP e do PTB ao governo. Tanto Genoino quanto os demais envolvidos seguem a mesma linha de argumentação. Havia encontros, sim, mas tudo se resumia a tratar de acordos políticos, não se discutiu ajuda financeira. Essa versão dos acontecimentos foi sendo elaborada ao longo do processo; no início, os pepistas dizem que o apoio financeiro foi combinado, sim.
    Quando a história é contada mais detalhadamente, vê-se que o problema financeiro estava o tempo todo em pauta. Vadão Gomes conta que, numa conversa com Genoino, Delúbio, Pedro Henry e Pedro Corrêa, discutiu-se a necessidade de ajuda em dinheiro para o PP, com vistas às eleições de 2004. Outro parlamentar do PP, o falecido José Janene, testemunhou sobre reunião em que Genoino, e apenas ele, representava o PT.
    O PP tinha problemas para pagar a conta de advogados, contratados para defender parlamentares do partido. Entre eles, Ronivon Santiago, que confessara ter recebido propina para votar a favor da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. O bom PT prontificou-se a resolver isso. Pode-se chamar esse tipo de combinação um "acordo meramente político"? Foi o que fizeram todos os réus. Mas prometer dinheiro em troca de apoio pode ser chamado de corrupção, e foi isso o que concluíram todos os ministros do STF, menos Lewandowski.
    Também as necessidades do PTB, com relação aos gastos na campanha que se aproximava em 2004, foram discutidas com José Genoino presente. A promessa, antiga, era de R$ 20 milhões para que o PTB apoiasse Lula. O PT, entretanto, estava demorando para entregar as parcelas prometidas. Jefferson conta ter avisado Genoino: uma quantia dessas seria alta demais para ser considerada apenas "caixa 2" --doações de empresários por baixo do pano. Entenda-se: mesmo empresários dispostos a ajudar não dariam tanto dinheiro assim. Genoino teria respondido que o repasse seria feito de partido a partido, ou como contribuição de empresas ao fundo partidário.
    Estava tão por fora assim dos entendimentos financeiros? Convenhamos que é dificílimo de acreditar. Qualquer pessoa, mesmo com menos experiência política de José Genoino, e com convicções de esquerda menos arraigadas, saberia perfeitamente que, numa conversa "política" com o partido de Maluf ou de Roberto Jefferson, programas e ideologias não são exatamente o prato principal.
    A ministra Cármen Lúcia, em seu voto, começa manifestando seu pesar pela condenação de Genoino. Mas não estamos julgando histórias pessoais, disse ela. Estamos julgando as provas dos autos. Ela reexamina os fatos. Todos os depoimentos concordam: as finanças do PT estavam "em frangalhos" em 2002. Como é possível, pergunta ela, que do início de 2003 até meados de 2005 o PT passasse a ter tanto dinheiro para distribuir para tanta gente, e essa súbita facilidade não levasse José Genoino a perguntar "de onde vem esse dinheiro? O que é isso? Como se conseguiu isso?"
    Cerca de R$ 3 milhões vinham do Banco Rural, como se sabe, através de um empréstimo inicialmente avalizado por Marcos Valério e Delúbio Soares. O empréstimo foi considerado fictício, apenas uma maneira de Marcos Valério esquentar o dinheiro que recebera do Banco do Brasil.
    Lewandowski foi à carga. Consta dos autos que pelo menos uma parcela desse empréstimo foi de fato paga pelo PT; não era uma fraude. Naquela sessão do STF, Ayres Britto desmontou o argumento. Sim, uma parcela foi paga... mas em 2012! Quando o processo do mensalão já corria com mais ritmo, interessando a todos dar credibilidade às teses da defesa.
    Pois bem, José Genoino foi avalista desse empréstimo do PT com o Banco Rural, quando ocorriam as renovações do crédito, a cada três meses. Certo, não entendia de finanças. Como presidente do PT, tinha de cumprir, pelo estatuto, o dever de assinar aquele tipo de coisa.
    Observo, entretanto, que não é à toa que o estatuto exige a assinatura do presidente do partido. Um nome como o de José Genoino não se construiu aos poucos; está lá, justamente, para dar credibilidade e honradez aos atos partidários. Quantos não se deixaram enganar, vendo que "até o José Genoino" endossava as opções do PT no tocante a seus acordos "políticos" -que na verdade, mas isso nunca enganou ninguém, eram negociados no balcão de Jefferson, Janene e companhia?
    O crime maior, que o PT cometeu contra a própria credibilidade, mas em favor de reformas econômicas que negavam o seu programa, foi ter-se envolvido em acordos com a escória da política brasileira. Há quem ache que valeu a pena, pensando no desempenho do governo Lula, há quem ache que não.
    Quem resolve dar festa num chiqueiro termina sujo também. José Genoino não roubou, José Genoino fez o que lhe pareceu mais certo, sem pensar em vantagens financeiras pessoais. Mas inocente não era.

    América foi povoada por dois grupos, mostra DNA

    folha de são paulo

    América foi povoada por dois grupos, mostra DNA

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    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
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    O DNA de um menino da Sibéria, que morreu aos três ou quatro anos de idade, na fase mais severa da Era do Gelo, pode ser uma das pistas mais importantes para entender como o ser humano colonizou as Américas.
    Segundo os cientistas que "leram" seu genoma, o garoto tem semelhanças genéticas tanto com europeus quanto com os indígenas atuais.
    E a recíproca é verdadeira. Os pesquisadores calculam que a antiga população à qual o menino pertencia seria responsável por algo entre 15% e 40% da herança genética dos índios. Esse povo misterioso teria se misturado a outro, oriundo do leste da Ásia, para dar origem aos habitantes do continente americano.
    Há décadas alguns antropólogos argumentam que o povoamento da América pode ter envolvido dois grupos geneticamente distintos.
    Uma das vozes mais importantes desse grupo é o brasileiro Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP. O principal indício desse fato é a variedade no formato dos crânios dos mais antigos americanos, os paleoíndios --o exemplo mais famoso é "Luzia", fóssil achado em Minas Gerais, com mais de 11 mil anos.
    Editoria de arte/Folhapress
    SEGUNDA LEVA
    Neves e seus colaboradores afirmam que o crânio de Luzia e de outros paleoíndios lembra mais o de aborígines australianos, melanésios e africanos do que o da maioria dos índios atuais, normalmente comparados a grupos do nordeste da Ásia.
    A ideia é que a maioria dos ancestrais dos índios modernos teria integrado uma segunda leva migratória, que teria exterminado os paleoíndios ou se misturado a eles.
    "Nossos achados não apoiam diretamente o trabalho dos brasileiros", disse Eske Willerslev, biólogo do Museu de História Natural da Dinamarca que coordenou o estudo, publicado na "Nature". "Parte do material genético da criança tem afinidades com grupos do sul da Ásia [região de origem dos paleoíndios, segundo Neves]. Então o artigo se alinha parcialmente à ideia deles."
    Neves reagiu com cautela e ironia aos achados. "Eu podia estar comemorando, dizendo 'olha, finalmente alguém fala de herança dual'. Mas vai depender da estabilidade dos trabalhos deles. Se os achados desse tipo continuarem, vou poder dizer que estive certo por 25 anos."
    MISTURA
    Seria o caso, então, de pensar nos índios atuais como uma mistura de europeus com asiáticos? Não exatamente. Europeus e asiáticos dessa época eram bem diferentes dos de hoje. Eles estavam mais próximos de um padrão genético e morfológico "genérico", resultado da expansão inicial dos humanos modernos da África para o resto do mundo, diz Fabrício Santos, geneticista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
    "Características mongólicas [a "cara" asiática de alguns índios atuais] teriam sido adquiridas mais tarde a partir de populações do leste asiático", afirma Santos.
    Rolando González-José, biólogo do Centro Nacional Patagônico, na Argentina, diz que nem é necessário postular duas "ondas" de migração para entender os dados do genoma do novo estudo.
    Ele argumenta que é mais natural pensar que a população "genérica" à qual pertencia o menino teria se diferenciado cada vez mais ao se expandir para os quatro cantos da Ásia e das Américas.