segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Autor chileno Lemebel critica o preconceito em alto tom, apesar de câncer que afetou a sua voz

folha de são paulo
Grito marginal
Autor chileno Lemebel critica o preconceito em alto tom, apesar de câncer que afetou a sua voz
JULIANA GRAGNANIDE SÃO PAULOFora de cena, o escritor e performer chileno Pedro Lemebel se comunica por meio de gestos. No ano passado, o autor, definido pelo conterrâneo Roberto Bolaño (1953-2003) como o "maior poeta de sua geração", tirou parte das cordas vocais por causa de um câncer na laringe.
Ironicamente, seu maior trunfo como artista talvez tenha sido sua voz. Foi por meio dela que Lemebel, 58, militou a favor da causa gay e contra a ditadura de Augusto Pinochet, que comandou o Chile de 1973 a 1990.
Hoje, a voz que lê o manifesto "Hablo por mi Diferencia" (falo por minha diferença), polêmico texto declamado em um ato político da esquerda em Santiago, em 1986, é um áspero sussurro, entrecortado por tosses secas.
Lemebel é conhecido por suas crônicas, relacionadas pela crítica à estética kitsch e barroca. Ele escreveu apenas um romance, "Tengo Miedo Torero" (2001). Não há obras suas publicadas no Brasil.
Em 1987, fundou, com o poeta e artista Francisco Casas, o coletivo de arte "Las Yeguas del Apocalipsis" (as éguas do apocalipse). A primeira aparição dos dois foi na Faculdade de Artes da Universidade do Chile, onde entraram pelados, montados em um cavalo. O duo fez diversas intervenções políticas.
Quando esteve em São Paulo, na semana retrasada, Lemebel se disse decepcionado ao ver os lugares vazios na plateia do Centro Cultural São Paulo, onde fez uma leitura, parte da Balada Literária e do Festival Mix.
Às cerca de 30 pessoas presentes, contou piadas com a palavra "bicha", recém-descoberta por ele. O termo é equivalente a "maricón", que usa para referir-se a si mesmo e aos "primos". "Porque chamar de irmão é brega", justifica.
Na ocasião, vestia legging e dois lenços: um enrolado pelo pescoço e outro na cabeça, escondendo a ausência de cabelo. O vestuário inteiro era preto, exceto pelos sapatos de salto dourados.
O chileno é desconfiado e avesso a entrevistas. Ao saber que a repórter não acompanharia a sessão de fotos para a reportagem, declarou um alto "No". Mas acabou cedendo e se produziu com três roupas para a fotógrafa (mulher, por exigência sua).
MARGINAIS
Em setembro, o autor, que foi criado em um bairro pobre de Santiago, ganhou o José Donoso, prêmio literário do Chile, por, entre outros motivos, seu caráter de "cronista dos marginais".
Ele rejeita a definição. "Seria tremendamente messiânica [ele alterna o feminino e o masculino para se referir a si] se me definisse assim. Os marginais têm de falar por si. Às vezes faço um gesto de ventriloquismo e nos meus textos saem balbucios que me representam gritando em meio à multidão", diz.
"A palavra de Lemebel é uma barricada de onde ele dispara contra o preconceito e a hipocrisia, sem pudor, imiscuindo-se na vida social pela porta dos fundos, onde moram as bichas, os bêbados, os favelados", diz Laura Hosiasson, professora de literatura hispano-americana da Universidade de São Paulo.
Quando ouviu falar do projeto conhecido no Brasil como "cura gay", Lemebel disse, simplesmente: "Me curar seria tão impossível quanto domar uma anaconda".
    TRECHO
    Não sou Pasolini pedindo explicações / Não sou Ginsberg expulso de Cuba / Não sou uma bicha fantasiada de poeta / Não preciso de fantasia / Aqui está a minha cara / Falo pela minha diferença / Defendo o que sou / E não sou tão estranho / Me aborrece a injustiça / E suspeito desta lenga-lenga democrática / Mas não me fale do proletariado / Porque ser bicha e pobre é pior / É preciso ser ácido para suportá-lo (...) Você sabe que a hombridade / Não a aprendi nos quartéis / Foi a noite quem me ensinou a hombridade

    Gregorio Duvivier

    folha de são paulo
    Divisão de bens
    O problema que a gente teve foi pra dividir os amigos; a gente ficou na dúvida de que amigo ficava com quem
    Reunião de amigos. Carlos e Madalena estão de pé. Jorge, César, Max, Irene e Telma estão sentados. Eles bebem cerveja. Jorge já está bêbado.
    CARLOS A gente chamou vocês aqui porque, como vocês sabem, eu e a Madalena nos separamos.
    JORGE Era só por isso? Eu já sabia. Posso ir pra casa? (As pessoas riem constrangidas. Ele não tem graça.)
    MADALENA Não, Jorge. O negócio é que a gente tá com uns problemas na divisão de bens.
    JORGE Entra na Justiça! Processa ele, Madá.
    CARLOS Não, Jorge. A gente não teve problema com nenhuma das nossas posses.
    JORGE Até porque não são muitas! (As pessoas riem um pouco menos.)
    MADALENA O problema que a gente teve foi pra dividir os amigos.
    CARLOS Vocês. (Silêncio constrangedor.)
    MADALENA A gente ficou na dúvida de que amigo ficava com quem.
    CARLOS Por exemplo: Irene. Você era minha amiga antes de eu conhecer a Madalena, né?
    IRENE Era.
    CARLOS Iaaau.
    MADALENA Mas depois ficou muito mais próxima de mim, né?
    IRENE Fiquei.
    MADALENA Toma.
    CARLOS Tá bom, fica com a Irene. (As duas se abraçam, comemorando.)
    CARLOS Mas aí eu vou ter que ficar com o César.
    MADALENA O César é meu irmão.
    CARLOS Mas você gosta dele?
    MADALENA Não muito.
    CARLOS Então pronto. Tá comigo, César.
    CÉSAR Graças a deus. (Eles comemoram, se abraçam.)
    MADALENA E Max e Telma? O que é que faz? Separa?
    CARLOS Acho que é melhor cada um ficar com um.
    MADALENA Vocês se importam? (Eles fazem que não.)
    MADALENA (e CARLOS muito pouco depois) Eu fico com Max!
    CARLOS Merda! Por um segundo.
    MADALENA Se fodeu.
    CARLOS Eu faço o que com a Telma? Nem o Max tem assunto com ela. (Telma faz cara de "foi mal". Madalena e Max se abraçam, comemorando.)
    MAX Ela adora comida mexicana. Leva ela num mexicano. Ela vai gostar. Não é, Telminha?
    (Ela faz que sim.)
    MAX (cochichando) Ela gosta tanto de comida mexicana que vocês nem vão perceber que não têm assunto. É tiro e queda.
    CARLOS Obrigado.
    JORGE E eu? Quem vai ficar comigo?
    CARLOS Então, a gente chamou você aqui porque não faz mais muito sentido.
    MADALENA A gente só era seu amigo ironicamente.
    JORGE Ironicamente?
    CARLOS É, você bebia, falava merda, aí depois a gente depois ficava lembrando das merdas que você tinha falado...
    MADALENA Você era uma piada interna do casal.
    CARLOS A gente tendo terminado, não faz mais sentido você existir na nossa vida. (Constrangimento.)
    JORGE Bom, gente, alguém me quer?
    (Telminha sorri pra ele.)
    JORGE Ah, não, a Telminha não.

      Luiz Felipe Pondé

      folha de são paulo
      O crítico de bolso bacana
      Em jantares inteligentes, a sobremesa é sempre leve, porque essa gente é muito crítica
      Um dos traços essenciais de nossa psicologia é que queremos ser aceitos. Muitos filósofos, entre eles Adam Smith (1723-1790), diziam que nossa imaginação é constantemente presa à inquietação de como somos vistos pelos outros, fato este que é parte saudável da vida moral social, mas que também facilmente degenera numa angústia de dependência afetiva destruidora da autonomia.
      Uma das formas mais seguras de se sentir aceito pelo grupo é desenvolver opiniões de rebanho. No fundo, temos horror a sermos recusados pelo bando, mas, hoje em dia, esse desejo de agradar é avassalador.
      As redes sociais e sua mesmice brega, espaço de repetição do irrelevante, são prova de nossa condição de rebanho como pilar da (in)segurança psicológica.
      As redes sociais criaram um novo perfil, o do crítico de bolso em versão pós-moderninha. O sonho dessa moçada, que se afoga na irrelevância e no desespero do anonimato cotidiano (que assola todos nós), é ter opiniões sobre as coisas, mas acaba mesmo falando da pizza que comeu ontem ou xingando os inimigos de plantão. O sonho de muitas dessas pessoas é frequentar jantares inteligentes nos quais gente bacana emite opiniões bacanas.
      A forma mais fácil de frequentar jantares inteligentes é atacar a igreja, os EUA e a polícia. Mais sofisticado, mas que também garante acesso aos jantares inteligentes das zonas oeste e sul de São Paulo, é dizer que "o modelo social está ultrapassado". Esta frase leva algumas pessoas ao orgasmo (risadas?).
      "O modelo social está ultrapassado" é a típica frase de quem quer se passar por crítico (mas, na realidade, é crítico de bolso), porque é a sociedade de mercado (ou como dizia Adam Smith, "commercial society"), a mesma que os comunistas chamam de "capitalismo", que nos retirou da miséria que é o estado natural da vida (e à qual voltamos rapidinho se o Brasil virar a Venezuela de Chávez e Maduro).
      Toda riqueza que sustenta esse povo de jantares inteligentes, a começar pelo "bom vinho em conta", é fruto do mesmo modelo que consideram ultrapassado.
      Aqui e ali, faça uma caricatura de quem você não consegue enfrentar porque lhe falta repertório conceitual. Diga que são racistas, "sequicistas" e homófobos. Conte, fingindo segredo, que seu filho é do círculo íntimo dos "maravilhosos" meninos do MPL e que sua filha é (incrível!!) black bloc, mas nunca bateu em ninguém.
      Assim você chegará à sobremesa (leve, pois em jantares inteligentes ninguém quer engordar, porque sabe que os parceiros de jantares inteligentes são pessoas muito críticas) com segurança, sem dizer nada que ponha em risco sua cidadania de gente bacana.
      Mas o que marca essa gente bacana é que na verdade nunca fala, nem tem contato real, com as pessoas fora das escolas de R$ 3.000 que paga para os seus filhos críticos desde os cinco anos de idade frequentarem, ou do seu círculo profissional chique e/ou da praia chique onde tem sua casa de praia típica de praias chiques.
      O problema, quando você é um cidadão de jantares inteligentes, é que você acaba mesmo alienado e acreditando nas suas próprias críticas de bolso. Mas vamos ao que interessa. Vamos falar de um dos tópicos que autorizam você a se achar bacana e a frequentar jantares inteligentes: a polícia.
      Outro dia, por acaso, conversei por cerca de três horas com um policial militar aposentado do Estado de São Paulo. Muito instrutivo, uma vez que sou egresso do mundo de gente bacana, que, portanto, nada sabe acerca do mundo real.
      Ele definia sua classe como aquela que vive com a "mão no lixo" que essa gente bacana nunca vê de fato --a não ser quando resolve fazer ensaios fotográficos sobre "injustiça social". Reclama de como eles são invisíveis e de como a sociedade, na sua maioria, os considera parte do lixo. Um sofrimento profundo, devido a essa invisibilidade, marcava seu rosto de solitário. A polícia é um dos setores mais maltratados da sociedade, apesar de essencial.
      Essa gente bacana sai correndo do jantar inteligente para o carro, com medo, sonhando com um baseado e uma bike em Amsterdã nas férias.

      Veja as manchetes dos principais jornais desta segunda-feira

      folha de são paulo

      Ouvir o texto
      DE SÃO PAULO
      *
      Jornais nacionais
      O Estado de S.Paulo
      Pacto com Irã dá a Obama maior triunfo diplomático
      O Globo
      Diplomacia atômica - Acordo freia programa do Irã mas gera desconfianças
      Correio Braziliense
      Terror no hospital
      Estado de Minas
      A caixa-preta das emendas parlamentares
      Zero Hora
      Uso de veneno cresce três vezes mais do que lavoura
      Brasil Econômico
      "A oposição cria uma espécie de terrorismo econômico"
      *
      Jornais internacionais
      The New York Times (EUA)
      Acordo de longo prazo com Irã enfrenta grandes desafios
      The Washington Post (EUA)
      Acordo nuclear com Irã é fechado, mas próximos passos são incertos
      El País (Espanha)
      Irã congela sua ameaça nuclear
      Clarín (Argentina)
      Homem mata mulher e filha em brutal caso de violência familiar

      domingo, 24 de novembro de 2013

      Leia poema inédito de Manoel de Barros

      folha de são paulo

      Ouvir o texto
      DE SÃO PAULO

      A TURMA
      A gente foi criado no ermo igual ser pedra.
      Nossa voz tinha nível de fonte.
      A gente passeava nas origens.Bernardo conversava pedrinhas
      com as rãs de tarde.
      Sebastião fez um martelo de pregar água
      na parede.
      A gente não sabia botar comportamento
      nas palavras.
      Para nós obedecer a desordem das falas
      Infantis gerava mais poesia do que obedecer
      as regras gramaticais.
      Bernardo fez um ferro de engomar gelo.
      Eu gostava das águas indormidas.
      A gente queria encontrar a raiz das
      palavras.
      Vimos um afeto de aves no olhar de
      Bernardo.
      Logo vimos um sapo com olhar de árvore!
      Ele queria mudar a Natureza?
      Vimos depois um lagarto de olhos garços beijar as pernas da Manhã!
      Ele queria mudar a Natureza?
      Mas o que nós queríamos é que a nossa
      palavra poemasse.

      Medicos acusam OMS de negligência em surto de poliomielite na Síria

      Jornais Internacionais - Der Spiegel

      Christoph Reuter
      • Valentina Petrova/AP
        As condições precárias de higiene em bairros controlados pelos rebeldes e centros de refugiados fazem do surto de poliomelite uma "bomba relógio" na região
        As condições precárias de higiene em bairros controlados pelos rebeldes e centros de refugiados fazem do surto de poliomelite uma "bomba relógio" na região
      A poliomielite está ensaiando seu retorno em uma região dizimada da Síria, mas as delicadas políticas vigentes durante a guerra estão dificultando a realização de campanhas de vacinação. E enquanto a ameaça de uma epidemia da doença paira sobre a região, a raiva em relação à inércia da OMS (Organização Mundial de Saúde) vem crescendo.

      O médico sírio Khalid Milaji está muito irritado com a entidade. "Eles sabiam que isso ia acontecer!", afirma ele. "Faz mais de um mês que nós estamos alertando o pessoal da OMS, dizendo que a pólio está se espalhando, mas eles se recusam a enviar a vacina!" Milaji faz parte da Força Tarefa de Controle da Poliomielite, um grupo que tenta conter uma nova epidemia de poliomielite na Síria com a ajuda do Ocidente – e ele está furioso com o fato de a organização estar resistindo a seus pedidos de ajuda.

      A OMS é a mesma entidade da ONU (Organização das Nações Unidas) que vem realizando uma campanha extremamente bem sucedida contra a paralisia infantil, ou poliomielite, desde 1988. Nesse período, os casos de pólio foram reduzidos em 99% e o número de países afetados diminuiu de 125 para meia dúzia.
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      A crise na Síria em fotos200 fotos

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      22.nov.2013 - Sírios tentam se manter aquecidos com fogueiras em campo de refugiados na cidade de Harmanli, na Bulgária Valentina Petrova/AP
      E, no entanto, durante várias semanas a OMS impediu a realização de uma campanha de vacinação destinada a conter o surto atual – que provavelmente é o mais perigoso dos últimos anos –, registrado na província síria de Deir ez-Zor. A OMS até tentou barrar a análise de amostras de vírus.

      O motivo: a OMS tem uma política de cooperar exclusivamente com o governo de Damasco, mesmo em tempos de guerra, apesar do fato de o governo central ter desistido há muito de Deir ez-Zor. O exército do presidente Bashar al-Assad controla apenas dois distritos da capital provincial, enquanto o restante da província está nas mãos dos rebeldes.
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      Armas da guerra civil são transformadas em "playground" na Síria7 fotos

      3 / 7
      Crianças brincam com instrumentos improvisados com restos de bombas russas em um porão no bairro de Duma, em Damasco, na Síria. O sírio Abou Ali al-Bitar tem usado restos de armas da guerra civil no país, incluindo foguetes e morteiros, para criar objetos decorativos, instrumentos musicais e brinquedos para entreter as crianças durante o feriado muçulmano Eid al-Adha Leia mais Bassam Khabieh/Reuters

      Um novo e perigoso surto

      Nos últimos dois anos, a província tem sido dizimada pelos bombardeios. Não há mais energia elétrica, assistência médica, rede de telefonia nem estação de tratamento de esgoto. Cerca de meio milhão de refugiados estão abarrotando as cidades ao longo do rio Eufrates, que é onde os primeiros casos de pólio foram registrados, em setembro passado. Mais casos foram detectados nas províncias Idlib e Aleppo no meio da semana passada, o que elevou a contagem total de novos casos registrados para 48 até sexta-feira passada – e novos casos têm aparecido diariamente.

      A poliomielite tornou-se um novo ponto de discórdia em meio à guerra síria, colocando os CDCs (Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos, os médicos sírios e o Ministério da Saúde da Turquia contra a OMS e o governo de Damasco.

      No verão, especialistas em doenças infecciosas dos CDCs – que estavam cooperando com os médicos sírios de províncias do norte e do leste do país, das quais as forças de Assad foram expulsas – começaram a desenvolver o sistema de alerta precoce EWARN. As equipes de hospitais improvisados receberam telefones com conexão via satélite e foram instruídas a relatar, o mais cedo possível, quaisquer casos suspeitos de cólera, tifo, poliomielite e de outras doenças infecciosas para que a propagação não detectada dessas moléstias possa ser evitada. "Temos monitorado 10 doenças desde julho passado", disse o doutor Mohammed Alsaad, diretor do EWARN, "para que possamos reagir imediatamente".
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      Garoto de 10 anos trabalha em fabricação de armas para rebeldes na Síria15 fotos

      4 / 15
      Issa, 10, mede o diâmetro de um morteiro durante dia de trabalho em uma fábrica de armas do Exército Livre da Síria em Aleppo, reduto da revolta contra o regime de Bashar Assad. Ele trabalha com o pai na fábrica por dez horas todos os dias, exceto às sextas-feiras Leia mais Hamid Khatib/Reuters

      Uma batalha envolvendo testes clínicos

      Os médicos que fazem parte dessa cadeia de alerta precoce detectaram um surto de poliomielite na cidade de Sbichan, na região sul da província, em setembro e, no início de outubro, levaram as primeiras amostras de fezes para a Turquia. "Durante o percurso até a Turquia, nós contatamos os CDCs para descobrir qual laboratório de Gaziantep (a cidade grande mais próxima) poderia analisar as amostras", disse o dr. Haytham Shaqla, que acompanhou o transporte do material. Mas, ao chegarem ao hospital que havia sido recomendado, eles foram impedidos de entrar. "A administração nos disse que a OMS havia proibido expressamente o laboratório de aceitar e testar nossas amostras".

      Um dos médicos da equipe, no entanto, tinha boas conexões com o governo provincial de Gaziantep e ligou para o governador, que, por sua vez, contatou as autoridades da capital, Ancara. O Ministério da Saúde turco enviou imediatamente uma equipe para o sul da Turquia para pegar as amostras.

      A OMS disse que, ao transportarem a poliomielite para a Turquia, os sírios tinham retirado as amostras da jurisdição da divisão da OMS no Oriente Médio, que inclui a Síria, e as transportado para a área pertencente à divisão europeia, que inclui a Turquia. O governo turco, no entanto, estava interessado em resolver a situação rapidamente e testou as amostras de fezes das crianças doentes.

      Damasco muda de opinião

      A pedido da OMS, outras amostras de Sbichan foram enviadas para Damasco. Os médicos sírios receberam os resultados oficiais do Ministério da Saúde da Síria quando se encontraram em Gaziantep, em 14 de outubro passado, para discutir o que fazer em relação ao surto. O ministério alegou que as amostras não continham vírus da poliomielite, mas, em vez disso, continham evidências de envenenamento por água contaminada com petróleo e da síndrome de Guillain-Barré, uma rara doença neurológica.

      Quatro dias depois, funcionários dos CDCs em Atlanta, nos EUA, informaram os médicos Gaziantep sobre os resultados de Ancara. Todos os três casos haviam testado positivo para poliomielite. Testes adicionais, realizados em um laboratório de referência holandês, demonstraram que o vírus da pólio detectado nas amostras era do "tipo 1", que também tinha sido detectado recentemente ou sido repetidamente registrado em Israel, no Egito e no Paquistão.

      "A OMS já sabia disso, mas não nos disse nada", disse Milaji. "Por que eles estão nos ignorando? Eles nem sequer falavam com a gente até recentemente, apesar de as câmaras municipais locais e os rebeldes constituírem a única forma de ordem governamental em Deir ez-Zor. E fomos nós, no final das contas, que descobrimos todos os casos".

      Perto do final de outubro passado, só depois de casos adicionais terem vindo à tona, impedindo que a epidemia continuasse sendo mantida em segredo, o Ministério da Saúde de Damasco descobriu, de repente, o vírus da poliomielite nas amostras. Finalmente, em 29 de outubro, a OMS anunciou oficialmente o início da epidemia. Ainda é um mistério por que isso levou semanas para acontecer. Os médicos consideram o comportamento da OMS absolutamente negligente.

      "A ponta do iceberg"

      Isso porque a poliomielite, uma vez contraída, é incurável. Mas uma simples vacina oral é o suficiente para prevenir a infecção. Embora apenas uma em cada 200 crianças infectadas, em média, desenvolva o sintoma mais grave da doença, que é a paralisia permanente, e outras experimentem apenas sintomas leves ou até mesmo nenhum sintoma, qualquer pessoa infectada pode transmitir o vírus. É por isso que uma taxa de vacinação mínima de 95% é considerada necessária para evitar a propagação da doença.

      O surto sírio contém todos os ingredientes para se transformar em uma epidemia desastrosa: guerra, cerca de 5 milhões de desalojados domésticos que vivem abarrotados e em condições sanitárias deploráveis, um grande grupo de pessoas em constante movimentação e até 4.000 pessoas por dia fugindo através das fronteiras para países vizinhos. Em grandes partes da Síria não há atendimento médico e campanhas de vacinação não são realizadas nesses locais há dois anos.

      O médico Bruce Aylward, diretor-geral assistente da OMS e desde 1998 chefe da campanha de combate à poliomielite da organização, diz que o surto é uma bomba-relógio. Para ele, os casos confirmados são "apenas a ponta do iceberg", e todo o Oriente Médio corre o risco de sofrer uma epidemia maciça. Agora a OMS planeja vacinar todas as crianças em círculos concêntricos ao redor do epicentro do surto, o que equivale a 20 milhões de crianças que vivem na Jordânia, Líbano, Turquia e em outros países vizinhos.

      Crise no epicentro

      Mas pouco está acontecendo no próprio epicentro da epidemia. Todas as manhãs centenas de mães se aglomeram em frente das enfermarias improvisadas aguardando por uma vacina que não chega. Em turnos quinzenais, uma equipe de médicos da Força Tarefa de Controle da Poliomielite vão à região para acompanhar o desenvolvimento da epidemia e realizar uma campanha de informação utilizando o rádio, as mesquitas e folhetos para espalhar sua mensagem. Os médicos aconselham os moradores a lavar as mãos após usarem o banheiro e antes de comer. "Mas a coisa toda vira uma piada quando você diz às pessoas para que bebam apenas água limpa", diz o doutor Bashir, diretor da força-tarefa. "Oitenta por cento das pessoas que vivem aqui obtêm sua água potável do Eufrates, onde todo o esgoto não tratado é despejado. Estamos agora aconselhando as pessoas a desinfectarem a água, adicionando duas colheres de água sanitária para cada mil litros. A prática não é exatamente saudável, mas o que podemos fazer?"

      A força-tarefa criará uma cadeia de refrigeração para possibilitar o transporte e o armazenamento das vacinas, diz Bashir, mas a OMS primeiro precisa liberar as doses. "Nós temos um plano completo, temos os centros de saúde e nós podemos recrutar os mil voluntários necessários para realizarmos uma campanha porta-a-porta – mas temos que esperar". Embora Bashir reconheça o dilema vivido pela OMS, ele não concorda com a decisão da organização. "Se eles nos aceitarem", diz ele, "eles estarão quebrando regras internacionais. Se eles não nos aceitarem, ninguém vai brecar a epidemia. O regime não tem interesse em fazê-lo, pois as crianças foram vacinadas nas áreas que ele controla".

      "O governo nunca mentiu"

      Mas a OMS continua insistindo em cooperar apenas com o governo Assad e mais ninguém.

      "Se nós entregássemos vacinas através da fronteira turca, esse seria o limite para Damasco", disse Aylward. "E o governo sírio não aceitará os resultados de outros laboratórios. Na semana passada, eu conheci o ministro da Saúde da Síria, e o governo nos assegurou que vai vacinar todas as crianças do país. Eles disseram que vão fazer isso. Então nós precisamos pressioná-los o máximo possível. Eles disseram que vão fazer, por isso vamos responsabilizá-los. O governo nunca mentiu para nós".

      Esta é uma hipótese estranha, considerando-se o fato de que o regime vem bombardeando hospitais há mais de dois anos, proibiu equipes médicas de tratar vítimas de ataques aéreos em hospitais do governo e realizou assassinatos seletivos de médicos e farmacêuticos que tratam e fornecem medicamentos para pessoas que vivem em áreas controladas pelos rebeldes.

      Em 4 de novembro passado, o vice-ministro das Relações Exteriores da Síria, Faisal Muqdad, disse que o governo concede acesso humanitário aos cidadãos sírios em todas as regiões do país e que nunca impediu a entrada das remessas de ajuda. Mas já faz alguns meses, por exemplo, que mais de 600 mil pessoas que vivem nos subúrbios do nordeste de Damasco estão completamente desconectadas do mundo externo. Forças do regime não estão sequer permitindo que alimentos, para não falar de medicamentos e vacinas, sejam levados para essas áreas. Em setembro as crianças começaram a morrer de fome em dois outros bairros sitiados localizados ao sul da capital síria.

      "O vírus é apolítico"

      "É idiotice ou crime – dependendo de sua posição e responsabilidade – aceitar as mentiras sistemáticas do regime de Damasco", diz um diplomata ocidental em Gaziantep. "A ONU deve parar de fechar os olhos para o que está acontecendo à vista de todos. Caso contrário a organização não estará desempenhando o papel que lhe cabe".

      Durante a semana passada, os especialistas da OMS e de outras organizações internacionais realizaram reuniões em Gaziantep com médicos e representantes locais das províncias para saber quantas pessoas vivem em cada região. A campanha de vacinação poderia começar dentro de alguns dias se a OMS liberasse a vacina. Mas a situação não parece promissora. O doutor Milaji tem uma visão cínica e sóbria sobre a questão: "Assad tem suas armas químicas. Nós temos a nossa arma biológica. Embora ela afete principalmente a nós mesmos em primeiro lugar, ela acabará por se espalhar por toda a região. E, quando se trata de contágio, o vírus é apolítico".
      Tradutor: Cláudia Gonçalves

      O "Trem das Onze" uniu Haddad e Alckmin num palco em Paris

      folha de são paulo
      REPORTAGEM
      Quando os políticos sambam miudinho

      RESUMO Enquanto os protestos que varreriam o país tinham início em São Paulo, o governador do Estado, Geraldo Alckmin, e o prefeito da cidade, Fernando Haddad, foram à França promover a capital paulista como sede da Expo 2020. Vídeo inédito, obtido pela Folha, mostra a dupla em ação, cantando Adoniran Barbosa em Paris.
      FERNANDO MELLO

      "TODO HOMEM cria sem saber/Como respira", diz o primeiro verso de um dos poemas que o francês Paul Valéry (1871-1945) escreveu especialmente para a fachada do Palácio de Chaillot, em Paris. Foi ali que, em 10 de junho de 2013, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e o governador do Estado, Geraldo Alckmin (PSDB), lançaram a candidatura paulistana para sediar a Expo 2020.
      A presença da dupla na França procurava transmitir a imagem de um esforço conjunto e apartidário pela disputa ao direito de sediar a principal feira de eventos do mundo, inferior em tamanho apenas à Olimpíada e à Copa do Mundo.
      O coquetel começou com garrafas de champanhe, enquanto garçons passeavam pelo salão com quitutes de salmão, carne e vegetais. Alckmin e Haddad estavam acompanhados de suas mulheres, Lu e Ana Estela.
      O evento transcorria de maneira protocolar, quando, às 19h, os dois políticos foram convidados a subir ao palco onde se apresentava a cantora Daniela Mercury.
      Microfones em punho, o tucano, à direita da artista baiana, e o petista, à esquerda dela, entoaram "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa (1910-82), uma espécie de hino dos paulistas.
      Pode-se dizer que o estilo de cada político em cena mimetizou o que se sabe, ou o que transparece, de suas personalidades, como mostra vídeo inédito da apresentação ao qual a Folha teve acesso.
      Geraldo Alckmin vestia um terno escuro e gravata alaranjada. Ora cruzava os braços sobre o corpo, como se estivesse em posição de respeito ao hino nacional, ora arriscava passos de samba marcados por meneios de cabeça. Sorriso contido, manteve o padrão "competente" e "correto", bem de acordo com a forma como foi apresentado no jingle de sua campanha vitoriosa em 2010.
      Fernando Haddad usava um terno cinza e algo amassado com gravata vermelha e roxa, balançando o corpo a todo momento. Empolgado, arriscou voo solo no verso "só amanhã de manhã", provocando reação da cantora: "O prefeito está sozinho, tá vendo?". Confiante, o político tentou comandar a banda, puxando o "eu não posso ficar" que reconhecidamente chama a recomeçar a música.
      O grito, no entanto, entrou na hora errada, merecendo pronta reprimenda da cantora, que seguiu trinando o refrão, acompanhada por piano, contrabaixo, bateria e percussão. Sorriso largo, Haddad resguardava a postura jovial de "homem novo", mote da campanha que o elegeu em 2012.
      Enquanto a luz arroxeada dos refletores iluminava o trio canoro, convidados vestindo trajes "passeio completo" sambavam em frente ao palco, celulares em riste, registrando a performance.
      Mesmo diante do questionável brilhantismo musical de seus parceiros, Daniela Mercury intercalou os versos do compositor paulista com comentários como "a dupla é boa" e, ao final da apresentação, sentenciou: "O PSDB e o PT estão bem, né, gente?".
      FALTA DE RITMO Por trás do "pascalingundum" daquela noite havia mais do que falta de ritmo e de entonação dos governantes.
      Nos dias anteriores à viagem, em 6 e 7 de junho, protestos em São Paulo, convocados pela organização Movimento Passe Livre, cobrando a redução de tarifas de transporte público, tinham evoluído para confrontos com a Polícia Militar e quebra-quebra.
      Numa foto na capa da Folha, no dia 8 de junho, integrantes da manifestação ocupavam as pistas da via que margeia o rio Pinheiros e voltavam-se para aqueles que tomavam o trem na estação ao lado. Entre os muitos motes levados às ruas em cartazes e faixas naqueles dias, um avisava: "Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar".
      Folha apurou que a conveniência de ir a Paris naquele momento de tensão foi sopesada por Alckmin, Haddad e assessores. As equipes preferiram manter a agenda, em vista dos potenciais benefícios da Expo 2020 para São Paulo. Antes de embarcar para a Europa, afinados, os dois defenderam a ação da Polícia Militar.
      Procurada pela reportagem,a Prefeitura de São Paulo informou, por meio de sua assessoria, que a decisão da viagem foi tomada pela importância da Expo 2020 e porque, até então, os protestos tinham magnitude considerada normal e compatível com outros atos que ocorrem pela cidade. Segundo a assessoria, o convite para cantar foi feito espontaneamente por Daniela Mercury. O governo do Estado não respondeu à reportagem até a conclusão desta edição.
      Em 11 de junho, no entanto, os protestos pela diminuição das tarifas explodiriam. A avenida Paulista, onde o ato daquele dia tinha tido início, parou: dois ônibus foram parcialmente incendiados, e cinco agências bancárias, quebradas.
      A manifestação durou até quase as onze da noite --a hora cantada por Adoniran Barbosa, que fizera não muito longe dali, no começo de 1964, numa boate da rua Augusta, a "première" da canção, com os Demônios da Garoa.
      DISCURSOS Na véspera, no Palácio de Chaillot, sob o lema "poder da diversidade e harmonia do crescimento", prefeito e governador de São Paulo faziam seus discursos em defesa da candidatura da capital paulista. Foram acompanhados, na fala a empresários e convidados franceses e brasileiros, pelo vice-presidente da República, Michel Temer (PMDB), que não participou do número musical.
      O evento teve por cenário a torre Eiffel, vista através das grandes vidraças do palácio, considerado um dos melhores pontos da cidade para a observação da atração.
      Construído para a Exposição Universal de 1937 no mesmo local onde se erguera, para a Expo de 1878, o antigo Palácio de Trocadéro, o Chaillot abrigou a Assembleia Geral das Nações Unidas que sagrou a Declaração Universal dos Direitos Humanos no dia 10 de dezembro de 1948.
      O documento foi recordado durante a onda de protestos que varreu o Brasil, marcada pela atuação violenta da polícia, muitas vezes arbitrária, contra manifestantes.
      DISTANCIAMENTO Uma das explicações mais adotadas para a onda de protestos irradiada de São Paulo para todo o país a partir de junho é a de que ela seria fruto do distanciamento entre os políticos, principais alvos das ruas, e a população que representam.
      De acordo com o mais recente "Latinobarómetro" --pesquisa de opinião pública realizada anualmente desde 1995 em 18 países latino-americanos, pelo instituto chileno de mesmo nome--, divulgado no começo deste mês, a confiança dos brasileiros na democracia representativa e nos políticos é uma das menores do continente.
      Segundo os dados (referentes a 2011), 26% dos brasileiros se dizem "muito" ou "algo" satisfeitos com o funcionamento da democracia no país --índice próximo à menor média de satisfação com o regime jamais registrada no continente (25%, em 2001).
      Além disso, a democracia está longe de ser consenso no país. Enquanto a preferência por ela é expressiva em países como Venezuela (87%), Argentina (73%) e Bolívia (61%), no Brasil ela é considerada a melhor opção por 49% dos entrevistados para o estudo.
      Para a diretora do instituto Latinobarómetro, Marta Lagos, a população de diferentes países da América Latina está enviando um recado aos políticos: "Não importa como, mas alguém vai ter que me ouvir". "Os brasileiros aprenderam que mobilidade social é possível. Agora muitos a almejam", diz Lagos à Folha.
      LENTES Na opinião de Charles King, professor de relações internacionais da Universidade de Georgetown, é importante que os analistas políticos não se valham de lentes ultrapassadas para observar os protestos atuais.
      Falando no âmbito de um debate, em Washington, no qual as revoltas brasileiras foram comparadas por professores de diversas áreas às ocorridas na Turquia e no Egito, King afirmou que as categorias já conhecidas "não se encaixam perfeitamente ao que está acontecendo nas ruas".
      Segundo o professor, conceitos como transição entre regimes ou consolidação da democracia estão ligados mais à década de 1990 e não explicam os acontecimentos mundiais nos últimos anos. "Não temos um jeito muito bom para falar sobre como as democracias se comportam", resume King.
      Para Diana Kapiszewski, especialista em política brasileira, os protestos no Brasil ganharam força por terem mobilizado grupos ansiosos por governos melhores e com menos corrupção.
      Na sua opinião, o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo e outras capitais foi apenas uma faísca, mas a causa principal dos protestos pode ser achada na "desigualdade financeira brasileira e no desgosto dos cidadãos com os políticos". Entre os alvos populares, estavam o governador e o prefeito de São Paulo.
      No Palácio de Chaillot, Alckmin e Haddad se mantiveram conectados aos celulares, segundo assessores ouvidos pela Folha, e trocavam informações sobre o que acontecia em São Paulo. Para aliviar a tensão, entre um e outro canapé, chegaram a contar piadas, de acordo com relatos de convidados do evento.
      A resposta inicial aos protestos foi articulada entre petista e tucano. Ainda em Paris, o governador chamou os manifestantes de "baderneiros" e "vândalos", acionou a Tropa de Choque da Polícia Militar e disse que iria cobrar o ressarcimento dos prejuízos aos cofres públicos. Fernando Haddad fez coro, dizendo que os manifestantes não usavam de forma adequada a liberdade de expressão e que seus métodos não eram "aprovados pela sociedade".
      No dia 19 de junho, Alckmin e Haddad anunciaram em conjunto que as tarifas de transporte cairiam, voltando aos valores anteriores ao reajuste.
      COQUETEL O coquetel no palácio foi um evento privado. Na ocasião, o governo paulista tornou pública uma foto de Geraldo Alckmin e sua mulher sorridentes em frente à Torre Eiffel.
      O vídeo do show daquela noite não foi divulgado. Não é difícil imaginar que o "Trem das Onze" dos governantes poderia ter jogado gasolina nos protestos.
      Uma mostra em cartaz até janeiro no Newseum, em Washington, compila bons exemplos de como as imagens são poderosas na constituição de ideias políticas.
      "Creating Camelot" destrincha a longa história do fotógrafo Jacques Lowe ao lado da família Kennedy. Iniciada quando John Fitzgerald Kennedy era candidato à reeleição no Senado (1958), a parceria perdurou até os primeiros anos de presidência do democrata.
      A família harmônica e o líder vigoroso registrados naquelas fotografias ajudaram a criar o que se conheceu como mito de Camelot, que aproxima a figura de JFK e seus anos à frente dos EUA à corte do lendário rei Arthur, com um soberano sábio, sua bela rainha e seus valentes cavaleiros.
      Porém, como nos recorda o poema de Valéry inscrito nas paredes do Chaillot, muitas vezes a criação nos escapa ao controle racional, e seus produtos, palavras ou imagens, ganham força espontânea.
      Três dias após a gravação da cantoria de Alckmin e Haddad, a Folha publicou em sua primeira página a foto do policial militar Wanderlei Vignoli, ferido e apontando a arma para um manifestante. A imagem, feita pelo fotógrafo Drago, do coletivo SelvaSP, ganhou neste mês o Prêmio Esso de Jornalismo de 2013.
      O contraste entre a violência das imagens publicadas e a despretensiosa apresentação musical causa, agora, um imponderável estranhamento.
      Vistos lado a lado, o policial sangrando e o trio sobre o palco parecem tão distantes quanto os versos do simbolista Vale?ry, sempre em busca de um "eu puro" por meio do "culto ao intelecto", imortalizado nas paredes do palácio, e os do popular Adoniran, com sua prosódia peculiar, entoados naquela noite no interior do edifício.
      O anúncio sobre a cidade escolhida para sediar a Expo 2020 está previsto para os próximos dias. São Paulo está no páreo, mesmo que as imagens que ganharam mundo durante os protestos não tenham contribuído para a campanha. Músicas de Adoniran Barbosa são esperadas em uma eventual festa de comemoração.
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      Microfones em punho, o tucano, à direita de Daniela Mercury, e o petista, à esquerda dela, entoaram "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa, uma espécie de hino dos paulistas
      A conveniência da viagem foi sopesada por Alckmin, Haddad e assessores. Optaram por manter a agenda, em vista dos potenciais benefícios da Expo 2020 para São Paulo
      No evento, Alckmin e Haddad se mantiveram conectados e trocavam informações sobre o que acontecia em São Paulo. A resposta inicial aos protestos foi articulada entre ambos