domingo, 6 de outubro de 2013

Antonio Prata

Dente por dente
Se ficarem em silêncio, terão de atravessar os infinitos minutos lendo Atlas, Atlas, Atlas, Atlas
Eu estava escovando os dentes no banheiro do Sesc, depois do almoço e antes de uma reunião, quando um cara entrou. Confesso que ao ser flagrado ali, naquele momento mezzo íntimo, fiquei um pouco envergonhado. Um pouco só, mas o suficiente para abaixar a cabeça e diminuir o ímpeto da escovação --passando de espadachim a enfrentar dois inimigos, simultaneamente, a um inglês no metrô falando ao celular.
Talvez você, que tem um emprego de verdade e fica o dia todo fora de casa, ache este reflexo pudibundo uma frescura de moçoila da belle époque. É, é meio ridículo, mesmo, mas a gente que trabalha em casa e tem como único colega de batente um pombo cinza que vez ou outra pousa na janela vai ficando aos poucos com umas manias de filho único: muito cioso do próprio espaço, sem saber brincar em turma, de modo que, quando o cara entrou, como eu já disse, abaixei a cabeça e assumi aquela circunspecção de mictório.
Meu casulo, contudo, se desfez bem rápido, pois o sujeito parou ao meu lado, tirou da mochila uma necessaire e começou, ele também, a escovar os dentes. O leve constrangimento se foi e deixou em seu lugar uma pequena felicidade. Pequena, mas suficiente para me fazer levantar a cabeça e, pelo espelho, acenar com uma sobrancelha ao meu parceiro de escovação. Foi um gesto discreto, da mesma envergadura do meu constrangimento e do meu alívio, só um meneio cúmplice, de boas-vindas, como uma pessoa que, abrigando-se da chuva sob uma marquise, vê chegar outro cidadão ensopado. O cidadão, contudo, não era muito de dividir marquises: fingiu que não me viu, pregou os olhos no espelho, franziu as sobrancelhas e deu início aos trabalhos com uma fúria de enceradeira.
Veja, não sou uma pessoa carente. Minto, sou carente, somos todos carentes, mas não sou um chato. Eu não ia, caso ele respondesse a meu aceno, puxar um papo sobre pasta de dentes e logo em seguida alugá-lo por meia hora com minhas queixas sobre o trânsito, a dor no ciático e os embargos infringentes. Era só um "Vai, Corintcha!", um "Que chuva, hein?!", uma dessas microparcerias que deixam a vida na cidade menos desoladora.
Fala-se muito mal de papos sobre o tempo: pois eu acho uma grande conquista da civilização. Você entra no elevador, o senhor do 903 entra no elevador: se ficarem em silêncio, terão de atravessar os infinitos minutos olhando pro teto, pro chão, lendo ininterruptamente Atlas, Atlas, Atlas, Atlas ou mexendo no celular --sem sinal. Mas basta um dos dois dizer "Que calor, hein?" e o outro responder "Dos infernos..." e, pronto, uma brisa refresca aquele mormaço.
Infelizmente, meu vizinho de pia não compartilhava do mesmo protocolo de civilidade: seguiu fechado em sua bravurinha escovatória. Infelizmente pra ele, pois saindo dali o cara descobriu que era comigo a reunião das duas e ambos sabíamos muito bem o que tinha acabado de acontecer e ele aceitou o orçamento que havia me dito por e-mail que não dava pra aceitar e topou o prazo que havia jurado que não conseguia me dar e eu só não levei pra casa sua mesa, sua cadeira, seu computador e sua carteira porque sou um homem honesto e não gosto de me aproveitar dos outros nos momentos de fraqueza.

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