domingo, 6 de outubro de 2013

Das dificuldades de traduzir "Os Persas" - Nelson De Sá

Outros 300
NELSON DE SÁRESUMO Lançamento de duas novas traduções da tragédia de Ésquilo, primeira peça ocidental que de que se tem notícia, traz à luz as dificuldades para traduzir e montar um texto clássico. Especialistas debatem questões inerentes ao trabalho com um texto antigo, como a manutenção da métrica e a adaptação do léxico à atualidade.
Quando preparava a montagem de "Os Persas" no ano passado, parte de um projeto maior voltado ao teatro de Ésquilo, o diretor Roberto Alvim buscou as traduções existentes e não gostou do que viu. Acabou por construir um texto próprio, que levou ao palco do Club Noir em São Paulo. É a prática corrente nas encenações de tragédia grega --e de outras peças clássicas-- nos palcos brasileiros.
Os atores se exasperam diante dos diálogos que não cabem na boca --no jargão teatral, traduções que não parecem ter sido feitas para a cena. "É importante perceber que se trata da fala, não da palavra", cobra o diretor. "Que o texto foi escrito por Ésquilo para ser falado por atores. E que é preciso não azeitar o texto, que tem característica propositalmente torta, da ordem do ruído, da dissonância."
Uma das questões mal resolvidas nas traduções do texto de Ésquilo, aponta Alvim, é que muitas delas tentam reproduzir em prosa, longamente, os múltiplos sentidos contidos em poucas palavras no original. Outro equívoco comum que o encenador diz notar nas traduções da peça é a adoção de linguagem anacrônica, o que ele classifica como "um erro brutal".
"A gente tem de se colocar hoje no lugar em que Ésquilo estava quando escreveu. Não tem sentido empregar português arcaico porque o texto data do século 5 a.C."
REMANESCENTE "Os Persas" é a mais antiga tragédia grega a sobreviver até os nossos dias --mais que isso, é o mais antigo texto remanescente do teatro ocidental.
A peça estreou em Atenas no festival de Dioniso de 472 a.C., quando Ésquilo já contava perto de 50 anos de vida e 27 como autor. Isto foi oito anos após a batalha de Salamina, em que as tropas gregas, comandadas por Temístocles, venceram o contingente persa sob o comando de Xerxes.
A tragédia retrata a derrota dos invasores, mas não do ponto de vista dos vitoriosos gregos, e sim segundo a visão dos persas. O próprio Ésquilo teria sido um combatente de Salamina, lutando ao lado de um irmão. O autor também estava em Atenas quando a cidade foi saqueada e destruída.
Embora reafirme a importância de "Os Persas" como documento "estético", José Antonio Alves Torrano, professor de língua e literatura gregas na USP e tradutor da peça (Iluminuras, 2009), ressalta sua importância sob o ponto de vista historiográfico, "inclusive porque é fonte de Heródoto", que dele teria se servido em suas "Histórias", obra posterior à tragédia de Ésquilo e mais difundida que ela.
"Heródoto tem uma dívida com relação à descrição que Ésquilo faz da batalha de Salamina", afirma Torrano. "O quadro geral é de Ésquilo. A forma da batalha, as principais referências, os elementos da narrativa: todos foram tirados por Heródoto do texto de Ésquilo. Não temos outra documentação mais importante do que esta."
É consenso que a imagem que a cultura ocidental carrega até hoje de Xerxes, até mesmo em filmes como "300" (2006), se deve mais a Heródoto. Mas outros trechos da peça, além da batalha, seguem ecoando no presente. "Quando surge da tumba o pai de Xerxes, Dario, e diz que o filho cometeu um grande erro ao ligar o Oriente com o Ocidente, é extremamente atual", opina Trajano Vieira.
Vieira, que é professor de língua e literatura gregas na Unicamp, assina uma nova tradução de "Os Persas". Ele destaca o pano de fundo histórico entre as peculiaridades da tragédia de Ésquilo.
"Diferentemente de boa parte do teatro grego, o núcleo de Os Persas' não é mítico, e sim histórico. Foi a história, da qual Ésquilo participou ativamente, que o levou a escrever". E lembra: "Em sua lápide não há referência à atividade como teatrólogo, mas à participação na guerra contra os persas".
Se, ao procurar textos para sua montagem, o encenador Roberto Alvim tivesse esperado mais um pouco, teria tido à sua disposição não só a opção oferecida por Trajano Vieira [Perspectiva, R$ 34,90, 144 págs.] mas também uma de Junito Brandão (1924-95), que o helenista deixou inédita ao morrer [Mameluco, R$ 54, 360 págs.].
As duas edições são bilíngues e contam com textos de apoio. No caso de Brandão, o livro é uma homenagem ao tradutor. Antonio Medina Rodrigues, professor de grego da USP, morto em maio passado, assina um dos textos. No ensaio "Junito, o Meio-termo Radical", elogia no tradutor "o simples, isento de qualquer afetação", ou ainda, "sem ornatos".
CONFRONTO Nas duas novas versões de "Os Persas", percebe-se um confronto subterrâneo entre simplicidade e complexidade.
"É uma peça com enorme preocupação formal, é sua particularidade maior", define Vieira. "Nela, os jogos verbais e a complexidade da linguagem são muito grandes."
O professor sublinha uma das dificuldades que o autor teve de superar e que se reapresentam ao tradutor: "Mais de 75% dos nomes do contingente persa citados são de origem oriental. Você imagina a maestria do Ésquilo para adaptar à métrica grega. E é apenas um exemplo da estrutura poética. Meu interesse maior foi dar conta, de algum modo, dessa complexidade".
Ele ilustra a riqueza formal com um exemplo: "Existe o verbo destruir, persai', que aparece em algumas passagens e que tem a sonoridade da palavra persa, persai'. Ele surge também como epíteto do Xerxes, o adjetivo que o qualifica num certo momento, perseptolis', quer dizer, destruidor de cidades. É um jogo que o Ésquilo faz com a palavra".
O tradutor Torrano tem uma abordagem distinta quanto à complexidade do texto. Para ele, sua linguagem "não oferece dificuldade especial". "Apenas a de ser religiosa, com um caráter oracular. Ela interpreta, ela não descreve."
As especificidades da linguagem, defende Trajano Vieira, devem ser levadas em conta na transposição ao palco. Para ele, é fundamental que o diretor não perca de vista a "estrutura poética da linguagem" --o que vale não só para "Os Persas" mas para todo o teatro grego. "Cada um dos três grandes que restaram tem características muito diferentes. Por exemplo, nos casos de Sófocles e Eurípides, há as incorporações da linguagem científica."
Por outro lado, diz Vieira, a fidedignidade ao texto original (quesito muito frequentemente associado à qualidade, quando se fala de traduções e adaptações) não pode ser um limitador da criação. "O diretor também não pode ser servil ao texto, deve sempre buscar uma reinvenção pessoal, necessária para a sua concepção".
De qualquer maneira, não faltam atrativos para levar "Os Persas" ao palco. "A peça segue o esquema das outras tragédias de Ésquilo", diz Torrano, que traduziu as sete. "É o mesmo para todas, esta não foge à regra: um crescente de expectativa, de angústia e de medo que está por vir. E toda a expectativa, a angústia e o medo se cumprem no final."
PALCO Uma boa tradução não necessariamente se presta facilmente ao palco. Foi o que aconteceu com a versão de "Hécuba", de Eurípides, feita por Christian Werner, professor de língua e literatura gregas na USP, para a Martins Fontes, em 2005. Gabriel Villela a considerou e descartou para encenação da peça que dirigiu em 2011.
"Quando o diretor resolveu montar a tragédia, deu uma olhada na minha tradução e achou muito complicada para o cronograma deles, um texto que teriam de trabalhar muito", recorda.
A opção da montagem recaiu sobre uma versão anterior do mesmo texto feita por Mário da Gama Kury (Zahar, 1992), talvez o maior tradutor brasileiro de obras clássicas, em volume.
Segundo Werner, que lista a "Hécuba" de Villela entre as encenações mais bem-sucedidas do gênero no país, o texto de Gama Cury era "bem mais fluido, bem mais fácil de, sem muito trabalho, adaptar para uma encenação".
A questão é que simplicidade ou complexidade não definem necessariamente qualidade. Werner trata de desmistificar algumas premissas correntes sobre o ofício.
Uma delas diz respeito à preservação do metro. Para o tradutor "adotar ou não métrica não significa rigor maior, não torna o texto mais denso ou mais próximo de especificidades do original".
Entre desafios mais relevantes, ele vê o de "trazer para a tradução um certo vocabulário polivalente, ambíguo, sem criar estranhamento muito grande no espectador".
E cita o modelo de Friedrich Hölderlin, poeta alemão contemporâneo de Goethe e Schiller.
"Foi um dos tradutores mais radicais. Suas traduções de Antígona' e Édipo Rei', de Sófocles, foram muito criticadas na época, por se distanciarem de um alemão canônico. Mas até hoje recebem encenações, embora sejam extremamente difíceis para o público contemporâneo."

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