terça-feira, 5 de novembro de 2013

Helio Schwartsman

folha de são paulo
Limites
SÃO PAULO - O retrato devastador que o repórter Fabiano Maisonnave traçou de algumas escolas médicas da Bolívia fala por si só. Não obstante, cerca de 25 mil estudantes brasileiros estão matriculados nessas instituições --o equivalente a 23% do total de alunos que fazem graduação em medicina por aqui.
Como a maioria não deve ter planos de migrar em definitivo para o país vizinho, esses jovens apostam que o mercado por médicos no Brasil seguirá atraente e que, em algum momento, conseguirão validar seus diplomas e voltar para casa. Os dados empíricos, porém, não recomendam otimismo. Em 2012, só 2,1% dos graduados na Bolívia passaram no Revalida, contra uma média de 8,7%.
Esse descompasso entre sonhos e competência mostra o que está acontecendo no setor. De um lado, faltam médicos no sistema público. As escalas de postos de saúde e hospitais aparecem com brancos. O envelhecimento da população também aponta para um mercado em expansão. O governo, portanto, tem interesse legítimo em ampliar a oferta de vagas em medicina e, emergencialmente, até em importar profissionais.
Há, é claro, um outro lado, que é o da qualidade. Garantir que todo brasileiro seja atendido sempre por um profissional preparado e atualizado exigiria mudanças fortes no processo de certificação, com a introdução de um exame de proficiência ao final da graduação, nos moldes da prova da OAB, e avaliações periódicas.
O problema é que esses dois objetivos são contraditórios. Se mais jovens cursarem medicina, iremos necessariamente recrutá-los entre candidatos menos preparados, o que fará com que a qualidade média dos graduados caia. E, se instituirmos testes mais rigorosos, formaremos ainda menos profissionais.
Uma alternativa seria redesenhar todo o sistema, reservando as visitas a médicos para casos mais graves. Mas esse é um assunto que todo o mundo prefere evitar.
helio@uol.com.br
    Médicos a granel
    Impressiona o enorme contingente de brasileiros que estudam medicina na Bolívia. São 25 mil, quase um quarto do total de alunos desse curso no Brasil.
    Mais incríveis ainda são as péssimas condições de ensino ali oferecidas, conforme mostrou reportagem desta Folha. Faltam hospitais associados às universidades, a carga teórica é baixa e os professores são pouco qualificados ou ministram aulas em disciplinas distantes de suas especialidades.
    Muitas instituições parecem pouco preocupadas com a qualidade dos médicos que formam; o que lhes importa é a quantidade de estudantes. Quanto mais alunos, mais dinheiro --sobretudo se brasileiros, com poder aquisitivo relativamente alto para aquele país.
    Os próprios professores lucram com a multiplicação estudantil. Comercializam notas por R$ 450, o equivalente a 41 horas de trabalho. Negociam diplomas falsificados. E vendem ossos humanos.
    A prática é proibida, mas corrente. Alunos compram ossos para estudar em casa, pois as universidades, com vagas ilimitadas, não dispõem de material para todos. Professores dão pontos adicionais a quem recorrer a fornecedores indicados por eles.
    Apesar dos problemas, a presença de brasileiros nas faculdades de medicina da Bolívia é antiga (pelo menos duas décadas) e crescente. Em Santa Cruz de la Sierra, o número de alunos dobrou em três anos, segundo estimativa do consulado do Brasil na cidade.
    O principal atrativo é o preço. Os cinco anos de curso podem sair por apenas R$ 10.500. No Brasil, onde a graduação leva seis anos, esse valor seria suficiente para pagar poucos meses de faculdade privada.
    Quando retornam ao país, os médicos formados na Bolívia têm dificuldade de trabalhar. No Revalida (exame para validação de diploma estrangeiro) passado, só 5 dos 244 inscritos passaram, ou 2% do total --o pior percentual em comparação com outras localidades.
    A precariedade do ensino é particularmente preocupante em época de Mais Médicos. O governo federal, como se sabe, pretende contar com até 13 mil profissionais no programa --menos para ampliar o atual contingente de 388 mil do que para levá-los às áreas mais desassistidas do país.
    Verdade que, pelas regras do programa, os bolivianos não podem ser admitidos, pois seu país tem proporção de médicos inferior à brasileira (1,2 por mil habitantes lá, 1,8 por mil aqui). Mas o governo deveria ter em mente esse tipo de situação ao fiscalizar os profissionais que tem atraído ao Brasil.

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