Calmaria e tempestade
É balela essa conversa de que o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) não faz política, só ciência. Não há nada mais político -no bom sentido da palavra- do que reunir a melhor informação científica disponível para orientar as decisões e ações coletivas.
Foi o que o IPCC fez há nove dias, ao lançar o AR5 ("Quinto Relatório de Avaliação"). Reuniu a melhor literatura sobre o tema e avisou: a atmosfera da Terra continua esquentando e o maior responsável por isso é a humanidade, não a variação natural do sistema climático.
Acredita e aceita quem quiser. O problema todo reside no fato de que muita gente não acredita e não aceita por razões que transcendem a ciência e se enraízam na política -em sua pior acepção, fundada só na ignorância.
Esse pessoal do contra se agarra a qualquer fiapo de evidência capaz de insuflar dúvida nas conclusões do IPCC. A complexidade do clima, sua variabilidade natural e as margens de incerteza inevitáveis em tais pesquisas trabalham a seu favor.
A diminuição do ritmo de aquecimento no intervalo arbitrário de 15 anos entre 1998 e 2013 foi comemorado como indício de que a mudança do clima projetada não deve ser levada a sério.
Se a concentração de CO2 na atmosfera continua aumentando, a temperatura média da atmosfera não deveria seguir em alta linear?
A resposta é conhecida por qualquer pessoa que tenha acompanhado o assunto com atenção e honestidade nas duas últimas décadas: nada é linear no sistema do clima.
Em primeiro lugar, desaceleração do aquecimento não implica diminuição, muito menos desaquecimento. Em segundo lugar, os climatologistas têm uma boa hipótese sobre o destino dessa energia que não fica retida na atmosfera -eles têm quase certeza de que ela passou a ser absorvida pelas camadas mais profundas dos oceanos.
Dá para ficar aliviado com essa capacidade insuspeitada dos mares de amortecer o aquecimento global? Ninguém sabe. Provavelmente não. A temperatura e a evaporação dos oceanos são o maior motor dos ventos, das nuvens e das correntes marinhas. Adicionar energia a essa massa líquida pode trazer transformações ainda mais drásticas no clima global do que se pode prever.
Um dos efeitos previsíveis de mares mais quentes é a aceleração do derretimento da calota de gelo sobre o oceano Ártico e das geleiras sobre terra firme. Só as últimas teriam efeito sobre a elevação do nível do mar, o que no entanto se somaria ao aumento de volume da água ditado pela temperatura mais alta (expansão térmica).
O IPCC elevou a previsão de aumento do nível do mar. Quem preferir manter as viseiras, contudo, pode se dar por contente com a "explosão" de gelo sobre o Ártico neste verão do hemisfério Norte.
O clima sempre produzirá variações temporais e locais -invernos rigorosos, chuvas torrenciais, secas e ondas de calor- para criar a aparência fugaz de verdade às asneiras que se escolha preferir.
Não se trata de torcer para que o clima piore. Nem de torcer para que a sorte nos desvie da tempestade que se pode prever, apesar da calmaria. Trata-se de agir responsavelmente, com base na melhor informação disponível -algo de que a política se torna cada vez menos capaz.
MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp). Escreve aos domingos.
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