segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Gregorio Duvivier

A coluna inútil daquele maconheiro
Venho por meio desta carta pedir que o jornal explique por que é que a maconha não pode ser legalizada
Cara Folha de S.Paulo,
Como vocês sabem, os jovens (e o FHC) estão querendo legalizar a erva. Eu, que nunca fumei nem pretendo fumar, mas sei que ela é danosa, pois só quem fuma é marginal, venho por meio desta carta pedir que o jornal explique ao leitor jovem (e para o FHC) por que é que ela não pode ser legalizada. Para ajudá-los, recolhi alguns argumentos entre meus amigos do clube militar.
1. Se legalizar, vai virar moda. Nos países em que a ditadura gay venceu e as feministas legalizaram o aborto, as pessoas passaram a abortar só para se enturmar. Resultado: os países foram dizimados e hoje em dia nem existem mais.
2. Se legalizar, os jovens que atualmente trabalham no ramo do tráfico de drogas vão ficar desempregados. As ruas vão ser tomadas por jovens roubando, matando e estuprando para sobreviver.
3. A maconha impede os jovens de serem violentos quando eles precisam ser. Enquanto a cocaína os torna mais ativos, a maconha os deixa lesos, uma presa fácil para assaltos e estupros. A legalização da maconha vai gerar uma juventude muito facilmente estuprável.
4. Maconha é crime. Como é proibida, é através dela que os jovens entram no mundo do crime. Sim, se ela for legalizada, o argumento muda. Mas como não é, é melhor não legalizar, porque é crime.
5. Maconha é uma droga tradicionalmente cultivada por negros. Não é à toa que bastou os Estados Unidos terem um presidente mulato para afrouxarem em relação à erva. Liberar a maconha equivale a oficializar que vivemos numa negrocracia, não bastasse o pagode, o funk e aquele programa da Regina Casé.
6. Maconha gera a famosa "larica", fenômeno que faz com que o jovem coma qualquer coisa, comestível ou não, que ele veja à sua frente. O que é que isso gera? Obesidade, indigestão e mortes por engasgamento.
7. A qualidade da maconha vai melhorar e vão começar a surgir sommeliers de beque, pessoas que vão achar na erva sabores que só eles sentem. "Esse baseado tem notas de baunilha". Ou então: "A melhor parte do soltinho da Bahia é o retrogosto". Não, por favor. Já bastam os enochatos. A sociedade não está pronta para o surgimento dos ervochatos.
Peço que a Folha me ajude nessa cruzada elucidativa a favor da família brasileira, de preferência publicando a minha carta no lugar da coluna inútil daquele maconheiro carioca (perdão pela redundância).

    Luiz Felipe POndé

    Uma alma em agonia
    Na realidade, nem só de liberdade vive o desejo, mas também de pecado, medo e vergonha
    Outro dia, dirigindo pelo trânsito de São Paulo, ouvi uma música da Lana del Rey que me chamou atenção, pela ideia que nela se repetia: o medo sentido por uma mulher de ser abandonada por seu amado um dia, quando sua beleza e juventude acabassem e restasse apenas sua "aching soul" (sua alma em dor ou em agonia). Uma letra romântica banal, como todo clichê.
    Mas quem em sã consciência negaria que essa mesma letra banal descreve a dor de todos nós, homens e mulheres que envelhecem e perdem a beleza dia após dia? Acredito mais nessa letra de música do que em inúmeros textos sofisticados sobre "relações entre sexo, afeto e poder".
    Cada dia que passa, temo pela irrelevância dos estudos acadêmicos das chamadas ciências humanas, devido ao que o intelectual americano Thomas Sowell chama de alienação da classe "ungida" que somos nós, os intelectuais.
    Essa música seria facilmente acusada de repetir a "ideologia dominante" (para mim, esse conceito tem a mesma validade de dizer que algo acontece porque Saturno está na casa sete...) e de que esse medo é simplesmente "culpa" da opressão do conceito de beleza capitalista ou sexista. Pensar que cultura pop seja simples sintoma da "ideologia dominante" é ser incapaz de enxergar o óbvio.
    A vida é clichê, por isso, temo, revistas femininas logo serão mais relevantes no debate sobre comportamento e afetos contemporâneos do que estudos acadêmicos. Seria essa, afinal, a vingança do jornalismo, muitas vezes menosprezado por nós, intelectuais, contra a soberba dos ungidos que nada entendem das agonias de carne e osso? Talvez a condição de escrever sob o gosto de sangue e de saliva que tem a trincheira da vida real dê às revistas femininas mais consistência do que as elaborações sem corpo dos especialistas em afetos.
    O filósofo Francis Bacon (séculos 16-17) tirava sarro da "baixa escolástica" e suas questões sobre quem puxava o burro, quando se puxava um burro com uma corda, se era a pessoa ou a corda que puxava o burro... (risadas?). Penso que, em 500 anos, rirão de nós da mesma forma quando se diz hoje em dia que o medo de uma mulher (ou de um homem) de ser abandonada é sintoma de "opressão social", e que pessoas emancipadas não sofrem com isso. O conceito de opressão virou um grande fetiche dos intelectuais.
    Suponho que assim como os textos de Sade (considerado lixo no século 18) hoje são parte do cenário filosófico, em 500 anos as revistas femininas serão mais importantes para a compreensão do que pensamos hoje do que toda a parafernália de teorias sobre "relações de poder".
    Um adendo: vale salientar que Sade não ficou importante porque é o ancestral de toda teoria que relaciona sexo à perversão, mas sim porque ele relaciona sexo, afeto e a crueldade de nossa natureza humana e da natureza biológica como um todo.
    Talvez um dos maiores medos humanos e que move o mundo desde sempre seja justamente o medo de perder a beleza e a juventude, e se restará alguém ao nosso lado quando formos apenas uma alma em agonia. Já que as ciências humanas mentem, a esperança é que as revistas femininas falem a verdade que não quer calar: ao final, temos mesmo é medo de sermos feios e mal-amados.
    Por fim, recomendo vivamente o livro "Não se Pode Amar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo" (Nova Fronteira), de Nelson Rodrigues, escrito sob o pseudônimo de Myrna, sua rápida coluna de 1949 no "Diário da Noite". Esta "mulher" Myrna é uma sábia. Falaremos dela em 500 anos.
    Revistas femininas e autores como Nelson Rodrigues são acusados de moralismo. Antigamente o moralismo relacionava sexo, afeto e demônios. Incrível como não se vê que hoje o verdadeiro moralismo está nas teorias que relacionam as formas comuns (dos meros mortais) de afeto e sexo a "frutos da opressão da mulher".
    Aprendemos a negar nosso medo com teorias sofisticadas, mas o medo sempre aparece. Ficou chique dizer que se é emancipado, quando na realidade nem só de liberdade vive o desejo, mas também de pecado, medo e vergonha. Como dizia Nelson, "o desejo também precisa de seu claustro".

    domingo, 6 de outubro de 2013

    Que a queda da USP sirva de alerta - Henrique Meirelles

    Solidariedade equivocada


     
    FOLHA DE SÃO PAULO
    A saída da USP da relação das 200 melhores universidades do mundo carrega forte conteúdo simbólico. Nosso grande desafio é o aumento da produtividade, e não avançaremos com universidades e escolas que não deem aos estudantes condições de atingir o desempenho das economias mais competitivas.
    Os EUA, maior economia do mundo, têm 77 universidades entre as 200. E não porque o país é rico -o país é rico porque investe em educação. A segunda maior economia do mundo, a China, expandiu o investimento em educação em dimensão sem paralelo na história recente. Mesmo centrando gastos no ensino fundamental, ela conta hoje com 350.000 profissionais com curso de mestrado e doutorado nas melhores universidades do mundo. O Japão, terceira maior economia, tem história de excelência educacional baseada numa cultura que dá enorme valor à educação.
    Os países que valorizam a educação, o professor e o desempenho escolar têm como consequência provada o aumento de produtividade, que gera o crescimento da riqueza.
    O processo de melhora da educação é virtuoso. Não só avança o desempenho de cada profissional, mas a qualidade das decisões em todos os níveis, inclusive na estrutura política, dado o maior acesso à informação. A Coreia do Sul, por exemplo, tinha renda per capita menor que a do Brasil. Hoje, após choque de educação, sai do grupo dos emergentes para entrar no de países desenvolvidos. Disciplina na escola e desempenho acadêmico são parte fundamental da cultura coreana. Em muitos aspectos, o que ocorre na Coreia do Sul é o oposto do que ocorre no Brasil. Aqui, tivemos uma relativização do desempenho escolar que gera até discriminação dos melhores estudantes.
    Participei de experiência sintomática numa universidade brasileira. Um professor estrangeiro deu aos próprios alunos o poder de decidir as notas, repartindo determinado número de pontos entre os com melhor e os com pior desempenho. Ficou chocado quando a decisão do grupo foi dar nota média a todos, reflexo da grande dificuldade de premiar o melhor e penalizar o pior, uma visão errada de solidariedade.
    Para elevar a produtividade, crescer mais e garantir entrada no grupo de países de alta renda, o Brasil precisa perseguir a excelência na educação. Não é só o total do investimento que importa, mas a melhora da qualidade e a busca da excelência acadêmica, que passam pela valorização do professor e do desempenho escolar.
    É fundamental levar a sério a queda da USP, e não só atenuá-la questionando critérios. Que sirva como alerta para a necessidade de mudança de cultura, no sentido de demandar cada vez mais desempenho dos alunos e qualidade dos professores.
    Divulgação
    Henrique Meirelles é presidente do Conselho da J&F (holding brasileira que controla empresas como JBS, Flora e Eldorado) e chairman do Lazard Americas. Ele foi presidente do Banco Central do Brasil de 2003 a 2010 e, antes disso, presidente global do FleetBoston e do BankBoston.

    Calmaria e tempestade - Marcelo Leite

    Calmaria e tempestade

    É balela essa conversa de que o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) não faz política, só ciência. Não há nada mais político -no bom sentido da palavra- do que reunir a melhor informação científica disponível para orientar as decisões e ações coletivas.
    Foi o que o IPCC fez há nove dias, ao lançar o AR5 ("Quinto Relatório de Avaliação"). Reuniu a melhor literatura sobre o tema e avisou: a atmosfera da Terra continua esquentando e o maior responsável por isso é a humanidade, não a variação natural do sistema climático.
    Acredita e aceita quem quiser. O problema todo reside no fato de que muita gente não acredita e não aceita por razões que transcendem a ciência e se enraízam na política -em sua pior acepção, fundada só na ignorância.
    Esse pessoal do contra se agarra a qualquer fiapo de evidência capaz de insuflar dúvida nas conclusões do IPCC. A complexidade do clima, sua variabilidade natural e as margens de incerteza inevitáveis em tais pesquisas trabalham a seu favor.
    A diminuição do ritmo de aquecimento no intervalo arbitrário de 15 anos entre 1998 e 2013 foi comemorado como indício de que a mudança do clima projetada não deve ser levada a sério.
    Se a concentração de CO2 na atmosfera continua aumentando, a temperatura média da atmosfera não deveria seguir em alta linear?
    A resposta é conhecida por qualquer pessoa que tenha acompanhado o assunto com atenção e honestidade nas duas últimas décadas: nada é linear no sistema do clima.
    Em primeiro lugar, desaceleração do aquecimento não implica diminuição, muito menos desaquecimento. Em segundo lugar, os climatologistas têm uma boa hipótese sobre o destino dessa energia que não fica retida na atmosfera -eles têm quase certeza de que ela passou a ser absorvida pelas camadas mais profundas dos oceanos.
    Dá para ficar aliviado com essa capacidade insuspeitada dos mares de amortecer o aquecimento global? Ninguém sabe. Provavelmente não. A temperatura e a evaporação dos oceanos são o maior motor dos ventos, das nuvens e das correntes marinhas. Adicionar energia a essa massa líquida pode trazer transformações ainda mais drásticas no clima global do que se pode prever.
    Um dos efeitos previsíveis de mares mais quentes é a aceleração do derretimento da calota de gelo sobre o oceano Ártico e das geleiras sobre terra firme. Só as últimas teriam efeito sobre a elevação do nível do mar, o que no entanto se somaria ao aumento de volume da água ditado pela temperatura mais alta (expansão térmica).
    O IPCC elevou a previsão de aumento do nível do mar. Quem preferir manter as viseiras, contudo, pode se dar por contente com a "explosão" de gelo sobre o Ártico neste verão do hemisfério Norte.
    O clima sempre produzirá variações temporais e locais -invernos rigorosos, chuvas torrenciais, secas e ondas de calor- para criar a aparência fugaz de verdade às asneiras que se escolha preferir.
    Não se trata de torcer para que o clima piore. Nem de torcer para que a sorte nos desvie da tempestade que se pode prever, apesar da calmaria. Trata-se de agir responsavelmente, com base na melhor informação disponível -algo de que a política se torna cada vez menos capaz.
    marcelo leite
    MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp). Escreve aos domingos.

    Por que ser cientista? - Marcelo Gleiser

    Essa é uma pergunta que escuto frequentemente, quando converso com jovens ainda indecisos com relação a qual carreira seguir. Na verdade, o que vejo, e tenho certeza que meus colegas confirmam isso, é que a maioria absoluta dos jovens não tem a menor ideia do que significa ser um cientista ou como se constitui a carreira. Imagino que nem 5% da população brasileira possa mencionar o nome de três (ou um?) cientista brasileiro da atualidade. A questão não é essa constatação, que é óbvia, mas o que podemos fazer para mudar isso.
    O primeiro obstáculo é o da invisibilidade. Se ninguém conhece um cientista, fora o que se vê na TV ou no cinema, fica difícil contemplar a possibilidade de uma carreira em ciências. Contraste isso com médicos, dentistas, professores, policiais, profissões que fazem parte da vida dos jovens. Quando um jovem imagina um cientista, provavelmente pensa no programa de TV "The Big Bang Theory", ou em uma foto do Einstein de língua de fora.
    A solução é maior visibilidade: é ter cientistas visitando escolas públicas e particulares, incluindo estudantes de pós-graduação que, na maioria absoluta, têm uma bolsa de estudos do governo. Proponho que, como parte da bolsa, estudantes de mestrado e doutorado devam fazer uma visita ao ano (ou mais se desejarem) a uma escola local para conversar com as crianças sobre o seu trabalho de pesquisa e planos para suas carreiras. Sugiro que seus orientadores façam o mesmo.
    Sim, eu faço isso com muita frequência, tanto no Brasil quanto nos EUA. Pelo menos uma visita ou palestra (às vezes via Skype) por mês. Não tira pedaço e é extremamente útil e gratificante.
    O segundo obstáculo é o estigma de nerd. Cientista é o cara bobão, o que não tem nenhum amigo e por isso vira CDF. Grande bobagem. Tem cientista de todo jeito, e alguns são nerds, como são alguns médicos, dentistas e policiais, e outros são "supercool", com suas motocicletas, pranchas de surfe e sintetizadores. Tem nerd que é "cool". Tem cientista ateu e religioso, flamenguista e corintiano, conservador e comunista. A comunidade é tão variada quanto em qualquer outra profissão.
    O terceiro obstáculo é o da motivação. Por que fazer ciência? Esse é o mais importante deles, e o que requer mais cuidado. A primeira razão para se fazer ciência é ter uma paixão declarada pela natureza, um desejo insaciável de desbravar os mistérios do mundo natural. Essa visão, sem dúvida romântica, é essencial para muita gente: fazemos ciência porque nenhuma outra profissão nos permite dedicar a vida a entender como funciona o mundo e como nós humanos nos encaixamos no grande esquema cósmico. Mesmo que o que cada um pode contribuir seja, na maioria dos casos, pouco, é o fazer parte desse processo de busca que nos leva em frente.
    Existe também o lado útil da ciência, ligado diretamente a aplicações tecnológicas, em que novos materiais e novas tecnologias são postos a serviço da criação de produtos e da melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mas dado que a preparação para a carreira é longa --depois da graduação ainda tem a pós com bolsas bem baixas-- sem a paixão fica difícil ver a utilidade da ciência como a única motivação. No meu caso, digo que faço ciência porque não me consigo imaginar fazendo outra coisa que me faça tão feliz. Mesmo com todas as barreiras da profissão, considero um privilégio poder pensar sobre o mundo. E poder dividir com os outros o que vou aprendendo no caminho.
    Marcelo Gleiser
    Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".

    Quando os filhos não são como se espera - Raquel Cozer

    ENTREVISTA ANDREW SOLOMON
    Estranhos no ninho
    Quando os filhos não são como se espera
    RAQUEL COZERRESUMO Em "Longe da Árvore", recém-lançado no Brasil, o autor americano estuda a relação de pais com filhos que, por questões físicas, psíquicas ou sociais, não corresponderam a seus anseios. Aqui, Solomon comenta os desafios enfrentados por pais que lutaram para se adaptar aos filhos e os dilemas dos que desistiram deles.
    O SONHO de maternidade e paternidade carrega uma dose inegável de egoísmo. O que se espera, no geral, é uma criança que se assemelhe a seus criadores na fisionomia, no jeito, na cultura de vida. A prova dos nove acontece quando esse esperado fruto cai longe da árvore, com características que os pais não reconhecem como suas.
    O assunto interessa ao escritor americano Andrew Solomon, 49, desde que se conhece por gente. "A percepção de que o que eu queria era exótico e fora de sintonia com a maioria veio tão cedo que não me lembro de um tempo que a precedesse", ele escreve, a respeito de sua homossexualidade, na abertura de "Longe da Árvore" [trad. Donaldson M. Garschagen, Luiz A. de Araújo e Pedro Maia Soares; Companhia das Letras; R$ 79,50; 1.056 págs.].
    A noção de que seus próprios pais nunca aceitaram ter um filho gay norteou a pesquisa do volume recém-lançado no Brasil, embora a homossexualidade não seja, em si, um dos temas pesquisados.
    Autor de elogiadíssimo estudo sobre a depressão ("O Demônio do Meio-Dia", vencedor do National Book Award 2001) e de reportagens para publicações como o "New York Times" e a "New Yorker", Solomon passou 20 anos conversando com centenas de famílias nas quais os filhos não se encaixavam nos anseios iniciais dos pais --fosse por deficiências, como a síndrome de Down; fosse por distúrbios psiquiátricos, como a esquizofrenia; fosse por implicações sociais, como a gravidez indesejada após um estupro.
    O resultado é um compêndio sobre disfunções pouco compreendidas e sobre a tentativa dos pais de lidar com o indesejado na criação dos filhos. Leia entrevista que o autor concedeu à Folha, por telefone, de Nova York, onde vive.
    Folha - O sr. aborda no livro questões tão distintas quanto a relação de pais com crianças surdas, com síndrome de Down, vistas como prodígio e com propensão ao crime. Como selecionou os temas?
    Andrew Solomon - Entrevistei mais de 300 famílias; ao fim, tinha 40 mil páginas transcritas, inclusive com entrevistas para capítulos que não escrevi. Escolhi os temas para mostrar uma ampla gama de relações de pais com filhos considerados diferentes.
    Procurei tópicos representativos. Concluí, entre outras coisas, que as experiências de pais de surdos e cegos poderiam ser diferentes entre si, mas não tanto que exigisse um capítulo para cada caso. Comecei a ouvir as famílias e deixei isso guiar minhas pesquisas, o que ajudou a definir a estrutura.
    No capítulo sobre prodígios, por exemplo, quis escrever primeiro sobre o lado positivo e depois sobre crianças que sofreram com a incompreensão dos pais. Abri o capítulo sobre autismo com casos traumáticos e depois tratei do movimento dos direitos dos autistas.
    Tentei balancear a visão dos distúrbios vistos como doença e como identidade, falando com famílias que lutaram e famílias que se sentiram incapazes de ir em frente.
    Embora chame de identidades distúrbios como o autismo e a esquizofrenia, o sr. diz que outros problemas, como a bulimia e a anorexia, não passam de doenças. Pode explicar essa distinção?
    Quase todos os distúrbios podem ser descritos tanto como doenças quanto como identidades. Foi curioso notar como as pessoas veem cada caso de forma diferente. Isso ocorreu inclusive entre entrevistados para o livro --houve, por exemplo, surdos que não gostaram de se ver numa obra que também trata de esquizofrênicos. No caso da anorexia e da bulimia, que não abordei na pesquisa, há quem as descreva como identidade, mas também há quem morra por essa condição, então não é algo que possa ser celebrado.
    Para a maioria da população, ser surdo parece uma tragédia, mas muitos surdos, extremamente ligados à linguagem e à cultura que desenvolveram, nunca viram isso como problema. Eu não gostaria de perder a audição, mas acredito que seja possível, se você tem uma diferença, mesmo que não seja algo que ambicione, tornar isso central em sua identidade.
    Vivi a experiência de nascer gay numa época em que a homossexualidade era considerada doença e amadurecer num mundo onde a homossexualidade faz parte da identidade. Queria entender como esses modelos podem ser estendidos, como se dá a mudança de percepção entre o que é doença ou deficiência e o que é identidade.
    O sr. iniciou a pesquisa para lidar com a incompreensão de seus pais sobre sua homossexualidade e, no livro, cita casos de pais que desistiram dos filhos que lhes traziam dificuldades. Como isso o fez sentir?
    Há uma variável grande que envolve crianças mais fáceis ou difíceis de lidar e há também a habilidade dos pais para lidar com elas. Meu propósito foi observar modelos de resiliência das famílias.
    Centrei em famílias que seguiram em frente, não sem grande e doloroso esforço. É claro que foi mais fácil falar com essas pessoas, porque quem sabe que fez um bom trabalho tem mais propensão a falar do que quem não conseguiu.
    Não quis que o livro sugerisse que a resposta natural a situações como essas é cooperar. Nem que parecesse fácil. É difícil. Há pais para quem a luta é impossível, e não posso julgar isso. Pessoas diferentes têm diferentes habilidades.
    Um trecho surpreendente do livro lista histórias de pais que acabaram matando filhos autistas. O filicídio é mais comum nesses casos que nos de outras deficiências?
    Há filicídios relativos a outras condições debilitadoras, mas a taxa envolvendo autismo é particularmente alta. Acredito que isso ocorra com maior frequência no autismo por envolver um número expressivo de desafios.
    Se o seu filho tem nanismo, você tem que aceitar que ele nunca terá mais de 1,20 m e tirar o melhor dessa situação. Se tem síndrome de Down, há intervenções efetivas para ajudá-lo a progredir.
    No autismo, os tratamentos funcionam até certo ponto, para algumas pessoas. Lidar com autistas exige muita energia nos casos mais graves, e é comum não haver progresso. Além disso, crianças com autismo grave são incapazes de comunicar afeição como os pais esperariam. Muitos parecem não sentir afeição pelos pais, que se sacrificam tanto por eles. Tentar ajudar alguém que não melhora e não parece se importar com a tentativa de fazê-lo melhorar é uma combinação particularmente difícil.
    Outro caso curioso é o da mulher que, prestes a sofrer um "aborto trágico" aos cinco meses de gestação, se viu obrigada pelo hospital a aceitar um procedimento que deixaria sua filha viva, mas gravemente afetada. A criança nasceu cega, nunca andou nem falou. O sr. escreve: "A política oficial impediu a filha de morrer; a política oficial disse que era problema dos pais passar o resto da vida atendendo às necessidades da menina". Os pais deveriam ter a opção de deixar a criança morrer, na sua opinião?
    O sistema hospitalar americano é obcecado por manter todo mundo vivo, com ou sem dor, felizes ou infelizes com isso. Ninguém pode deduzir que uma criança com deficiência grave terá necessariamente uma vida de miséria, mas intervenções severas como essa são opressoras. A família deveria ser autorizada a tomar algumas decisões, como o quanto de intervenção médica vai aceitar para seu filho, já que o natural para a criança, nesse caso, seria morrer.
    Tendo dito isso, há uma percepção geral de que ter múltiplas deficiências significa viver uma vida de agonia e dor, mas muitos pais de crianças com deficiências severas que entrevistei tinham a convicção de que elas eram felizes.
    Como concilia sua posição sobre o direito ao aborto com casos em que as mulheres se viram impedidas de abortar e hoje agradecem por isso?
    Todas as mulheres deveriam ter acesso ao aborto. Mas espero que algumas pessoas leiam o livro e decidam ter uma criança que em outra circunstâncias prefeririam não ter, que encontrem modelos que lhes sejam significativos.
    Recebi uma carta raivosa outro dia, dizendo: "Você diz que as mulheres têm o direito de abortar, mas como se sentiria se alguém começasse a abortar fetos gays?". Falei: "Eu ficaria triste, mas também diria que cabe a elas decidir". Ninguém deve ser forçado a dar à luz uma criança que não quer ter.
    Numa das centenas de histórias que o sr. conta, uma mãe cega, Deborah, se magoa quando o marido comemora o fato de o filho deles não ter herdado a cegueira. O livro mostra vários casos de pessoas com deficiência que se orgulham de sua condição. Isso o surpreendeu?
    Esse caso em particular é poderoso e desconcertante. Sofri depressão, assunto do meu livro anterior, e de certo modo a depressão faz parte da minha identidade, mas não quero que meus filhos sejam deprimidos e farei o que puder para que não experimentem isso.
    Deborah escreveu esse ensaio em que dizia que "não ansiava pela visão mais do que por um par de asas". Ela vive bem como cega e não imagina por que alguém preferiria uma criança que enxergasse. Pensei como me sentiria se tivesse um filho com uma mulher que falasse: "Ainda bem que ele não é gay". Muitos temem a ideia, mas seria triste ouvir isso de alguém próximo. Entendo alguém se magoar com outra pessoa descrevendo uma característica sua como indesejável, porque, ao rejeitar isso, você rejeita quem eu sou. Mas, como não sou cego, acho a ideia da cegueira aterrorizante, e esse tipo de reação me surpreendeu muito.
    A culpa que muitos pais sentem por deficiências ou distúrbios dos filhos pode afetar a relação familiar?
    Já foi muito comum a ideia de que pais tinham filhos gays por serem superprotetores ou porque o pai era passivo em relação à mãe. Acreditava-se que a esquizofrenia e o autismo eram causados por pais muito frios. Os pais historicamente se sentem culpados.
    Começamos a deixar de pensar isso nesses casos e é preciso abandonar a sensação de culpa em outros casos também. Pode ser verdade que pais que abusam de seus filhos os levam ao crime, mas muitos que não fizeram nada errado passam pela mesma situação.
    O que tem de ser levado em conta é outra coisa. Os pais podem não causar o autismo, mas podem fazer o filho ter uma relação boa ou terrível com a condição. O pai não faz o filho surdo, mas pode levá-lo a se adaptar ou se sentir inadequado. O que me interessava era como pais podem ajudar os filhos a crescer psicologicamente saudáveis.
    De que modo prodígios, filhos de estupro e adolescentes com tendência ao crime, assuntos de capítulos na segunda metade do livro, podem ser comparados a pessoas que têm deficiências e distúrbios?
    Queria mostrar como os pais lidam com o que é diferente. É claro que o pai de um prodígio não se sentirá triste como o de uma criança com deficiências múltiplas, mas não é muito mais fácil lidar com o prodígio. Também será preciso imergir no mundo estranho que o filho vai conhecer e garantir que ele cresça com um grau mínimo de ajuste emocional. Quis mostrar, de forma provocativa, como um prodígio se assemelha a um doente.
    Filhos de estupro lidam com mães que acham difícil expressar amor e lutam contra os instintos para se desconectar dessas crianças. O estupro faz com que crianças sem deficiências sejam recebidas como filhos que têm deficiência.
    Sobre a tendência ao crime, notei que muitas pessoas que entrevistei tinham um senso de identidade em suas comunidades devido à forma como se comportavam. Claro, o imperativo social é de batalhar contra essa identidade. Mas tentei entender o que se passa na mente de quem comete crimes, como muitos acreditam encontrar sua identidade ao cometer crimes.
    O sr. defende uma distinção entre os cérebros de adolescentes e adultos para justificar punições diferentes para crimes cometidos por uns e outros. Como ser preso com adultos pode afetar o comportamento juvenil? Pergunto porque há uma discussão no Brasil sobre a redução da maioridade penal.
    Há interesses conflitantes na acusação de adolescentes. Queremos limitar o crime, mas sabemos que adolescentes podem cometer erros por falta de maturidade.
    Se falamos em reduzir a maioridade penal, a primeira pergunta é o que se alcança com isso. Será que a perspectiva de receber penas mais duras pode impedir um adolescente de cometer crimes que cometeria tendo em vista penas mais brandas? Não conheço pesquisa sobre isso no Brasil, mas os estudos nos EUA mostram que o efeito dissuasor de sentenças mais duras é praticamente nulo. A estratégia é ineficaz porque adolescentes não têm sistemas de controle maduros e, portanto, cometem com mais constância erros de julgamento.
    Se continuarmos a dar sentenças mais leves a adolescentes, alguns podem amadurecer e deixar de ser criminosos? Sim: programas de reabilitação que não funcionam para adultos podem ser úteis a adolescentes. Sentenças mais duras são ineficazes. É fato que ninguém comete crimes nas ruas estando na cadeia; assim, poderíamos estipular a prisão perpétua a todos os criminosos. Isso talvez reduzisse a criminalidade, mas a um custo terrível: vidas desperdiçadas e um imenso gasto público.
    O sr. cita algumas vezes no livro a reação de seus pais ao fato de o sr. ser gay. Acha comparável o grau de aceitação da sociedade à homossexualidade e a deficiências como a síndrome de Down e o nanismo?
    Há vários grupos que batalham por seus direitos, conseguem-nos e então excluem outros grupos. Quando os gays começaram a dizer que se inspiravam na luta pelos direitos civis, alguns ativistas negros disseram: "Vocês não são como nós. Somos uma minoria racial, vocês têm essa doença de ser gays".
    Moro em Nova York, numa casa que pertenceu a Emma Lazarus (1849-87), poeta mais famosa por ter um poema na Estátua da Liberdade, mas que também escreveu: "Até sermos todos livres, nenhum de nós será livre". Pensei que, em vez de me colocar na posição de negros ou mulheres no passado, era mais generoso ir na direção de quem ainda não tem reconhecimento, não tem nada a não ser o que os outros veem como doença.
    Após anos escrevendo sobre nanismo, ao falar com filhos anões de pais comuns, senti que sua experiência se parece à de filhos gays de pais heterossexuais. São famílias que se sentem normais, mas têm crianças diferentes. Parece artificial a ideia de que umas diferenças são aceitáveis e outras não.
    Recentemente discutiu-se no Brasil projeto de lei que propunha a "cura gay" por meio de atendimento psicológico. Como vê a ideia?
    Tratamentos assim são inúteis, imorais e exploradores. São inúteis porque não podem trazer a mudança prometida. Gays não se tornam heterossexuais mediante terapia, isso é risível do ponto de vista médico. São imorais porque estigmatizam os gays, fortalecem a homofobia e o auto-ódio, e sustentam a mensagem de que ser gay é tragédia ou pecado, quando é, na verdade, parte do espectro da identidade humana. E são exploradores porque despendem enormes quantidades de tempo e dinheiro sem nenhum resultado.
    Será que endossaríamos um médico que desenvolvesse uma prática baseada na noção de que é desvantajoso ser baixo e criasse um tratamento para esticar as pessoas até elas ficarem altas? Não, nós diríamos que isso é ultrajante, doloroso e sem propósito.
    Tentar converter gays pode causar danos psíquicos permanentes. Permitir esse tipo de terapia é passar uma mensagem que os prejudica e os torna menos capazes de participar da sociedade.

      Das dificuldades de traduzir "Os Persas" - Nelson De Sá

      Outros 300
      NELSON DE SÁRESUMO Lançamento de duas novas traduções da tragédia de Ésquilo, primeira peça ocidental que de que se tem notícia, traz à luz as dificuldades para traduzir e montar um texto clássico. Especialistas debatem questões inerentes ao trabalho com um texto antigo, como a manutenção da métrica e a adaptação do léxico à atualidade.
      Quando preparava a montagem de "Os Persas" no ano passado, parte de um projeto maior voltado ao teatro de Ésquilo, o diretor Roberto Alvim buscou as traduções existentes e não gostou do que viu. Acabou por construir um texto próprio, que levou ao palco do Club Noir em São Paulo. É a prática corrente nas encenações de tragédia grega --e de outras peças clássicas-- nos palcos brasileiros.
      Os atores se exasperam diante dos diálogos que não cabem na boca --no jargão teatral, traduções que não parecem ter sido feitas para a cena. "É importante perceber que se trata da fala, não da palavra", cobra o diretor. "Que o texto foi escrito por Ésquilo para ser falado por atores. E que é preciso não azeitar o texto, que tem característica propositalmente torta, da ordem do ruído, da dissonância."
      Uma das questões mal resolvidas nas traduções do texto de Ésquilo, aponta Alvim, é que muitas delas tentam reproduzir em prosa, longamente, os múltiplos sentidos contidos em poucas palavras no original. Outro equívoco comum que o encenador diz notar nas traduções da peça é a adoção de linguagem anacrônica, o que ele classifica como "um erro brutal".
      "A gente tem de se colocar hoje no lugar em que Ésquilo estava quando escreveu. Não tem sentido empregar português arcaico porque o texto data do século 5 a.C."
      REMANESCENTE "Os Persas" é a mais antiga tragédia grega a sobreviver até os nossos dias --mais que isso, é o mais antigo texto remanescente do teatro ocidental.
      A peça estreou em Atenas no festival de Dioniso de 472 a.C., quando Ésquilo já contava perto de 50 anos de vida e 27 como autor. Isto foi oito anos após a batalha de Salamina, em que as tropas gregas, comandadas por Temístocles, venceram o contingente persa sob o comando de Xerxes.
      A tragédia retrata a derrota dos invasores, mas não do ponto de vista dos vitoriosos gregos, e sim segundo a visão dos persas. O próprio Ésquilo teria sido um combatente de Salamina, lutando ao lado de um irmão. O autor também estava em Atenas quando a cidade foi saqueada e destruída.
      Embora reafirme a importância de "Os Persas" como documento "estético", José Antonio Alves Torrano, professor de língua e literatura gregas na USP e tradutor da peça (Iluminuras, 2009), ressalta sua importância sob o ponto de vista historiográfico, "inclusive porque é fonte de Heródoto", que dele teria se servido em suas "Histórias", obra posterior à tragédia de Ésquilo e mais difundida que ela.
      "Heródoto tem uma dívida com relação à descrição que Ésquilo faz da batalha de Salamina", afirma Torrano. "O quadro geral é de Ésquilo. A forma da batalha, as principais referências, os elementos da narrativa: todos foram tirados por Heródoto do texto de Ésquilo. Não temos outra documentação mais importante do que esta."
      É consenso que a imagem que a cultura ocidental carrega até hoje de Xerxes, até mesmo em filmes como "300" (2006), se deve mais a Heródoto. Mas outros trechos da peça, além da batalha, seguem ecoando no presente. "Quando surge da tumba o pai de Xerxes, Dario, e diz que o filho cometeu um grande erro ao ligar o Oriente com o Ocidente, é extremamente atual", opina Trajano Vieira.
      Vieira, que é professor de língua e literatura gregas na Unicamp, assina uma nova tradução de "Os Persas". Ele destaca o pano de fundo histórico entre as peculiaridades da tragédia de Ésquilo.
      "Diferentemente de boa parte do teatro grego, o núcleo de Os Persas' não é mítico, e sim histórico. Foi a história, da qual Ésquilo participou ativamente, que o levou a escrever". E lembra: "Em sua lápide não há referência à atividade como teatrólogo, mas à participação na guerra contra os persas".
      Se, ao procurar textos para sua montagem, o encenador Roberto Alvim tivesse esperado mais um pouco, teria tido à sua disposição não só a opção oferecida por Trajano Vieira [Perspectiva, R$ 34,90, 144 págs.] mas também uma de Junito Brandão (1924-95), que o helenista deixou inédita ao morrer [Mameluco, R$ 54, 360 págs.].
      As duas edições são bilíngues e contam com textos de apoio. No caso de Brandão, o livro é uma homenagem ao tradutor. Antonio Medina Rodrigues, professor de grego da USP, morto em maio passado, assina um dos textos. No ensaio "Junito, o Meio-termo Radical", elogia no tradutor "o simples, isento de qualquer afetação", ou ainda, "sem ornatos".
      CONFRONTO Nas duas novas versões de "Os Persas", percebe-se um confronto subterrâneo entre simplicidade e complexidade.
      "É uma peça com enorme preocupação formal, é sua particularidade maior", define Vieira. "Nela, os jogos verbais e a complexidade da linguagem são muito grandes."
      O professor sublinha uma das dificuldades que o autor teve de superar e que se reapresentam ao tradutor: "Mais de 75% dos nomes do contingente persa citados são de origem oriental. Você imagina a maestria do Ésquilo para adaptar à métrica grega. E é apenas um exemplo da estrutura poética. Meu interesse maior foi dar conta, de algum modo, dessa complexidade".
      Ele ilustra a riqueza formal com um exemplo: "Existe o verbo destruir, persai', que aparece em algumas passagens e que tem a sonoridade da palavra persa, persai'. Ele surge também como epíteto do Xerxes, o adjetivo que o qualifica num certo momento, perseptolis', quer dizer, destruidor de cidades. É um jogo que o Ésquilo faz com a palavra".
      O tradutor Torrano tem uma abordagem distinta quanto à complexidade do texto. Para ele, sua linguagem "não oferece dificuldade especial". "Apenas a de ser religiosa, com um caráter oracular. Ela interpreta, ela não descreve."
      As especificidades da linguagem, defende Trajano Vieira, devem ser levadas em conta na transposição ao palco. Para ele, é fundamental que o diretor não perca de vista a "estrutura poética da linguagem" --o que vale não só para "Os Persas" mas para todo o teatro grego. "Cada um dos três grandes que restaram tem características muito diferentes. Por exemplo, nos casos de Sófocles e Eurípides, há as incorporações da linguagem científica."
      Por outro lado, diz Vieira, a fidedignidade ao texto original (quesito muito frequentemente associado à qualidade, quando se fala de traduções e adaptações) não pode ser um limitador da criação. "O diretor também não pode ser servil ao texto, deve sempre buscar uma reinvenção pessoal, necessária para a sua concepção".
      De qualquer maneira, não faltam atrativos para levar "Os Persas" ao palco. "A peça segue o esquema das outras tragédias de Ésquilo", diz Torrano, que traduziu as sete. "É o mesmo para todas, esta não foge à regra: um crescente de expectativa, de angústia e de medo que está por vir. E toda a expectativa, a angústia e o medo se cumprem no final."
      PALCO Uma boa tradução não necessariamente se presta facilmente ao palco. Foi o que aconteceu com a versão de "Hécuba", de Eurípides, feita por Christian Werner, professor de língua e literatura gregas na USP, para a Martins Fontes, em 2005. Gabriel Villela a considerou e descartou para encenação da peça que dirigiu em 2011.
      "Quando o diretor resolveu montar a tragédia, deu uma olhada na minha tradução e achou muito complicada para o cronograma deles, um texto que teriam de trabalhar muito", recorda.
      A opção da montagem recaiu sobre uma versão anterior do mesmo texto feita por Mário da Gama Kury (Zahar, 1992), talvez o maior tradutor brasileiro de obras clássicas, em volume.
      Segundo Werner, que lista a "Hécuba" de Villela entre as encenações mais bem-sucedidas do gênero no país, o texto de Gama Cury era "bem mais fluido, bem mais fácil de, sem muito trabalho, adaptar para uma encenação".
      A questão é que simplicidade ou complexidade não definem necessariamente qualidade. Werner trata de desmistificar algumas premissas correntes sobre o ofício.
      Uma delas diz respeito à preservação do metro. Para o tradutor "adotar ou não métrica não significa rigor maior, não torna o texto mais denso ou mais próximo de especificidades do original".
      Entre desafios mais relevantes, ele vê o de "trazer para a tradução um certo vocabulário polivalente, ambíguo, sem criar estranhamento muito grande no espectador".
      E cita o modelo de Friedrich Hölderlin, poeta alemão contemporâneo de Goethe e Schiller.
      "Foi um dos tradutores mais radicais. Suas traduções de Antígona' e Édipo Rei', de Sófocles, foram muito criticadas na época, por se distanciarem de um alemão canônico. Mas até hoje recebem encenações, embora sejam extremamente difíceis para o público contemporâneo."