quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Publicitário que já foi vendedor de saco de lixo fala sobre mercado, vida e consumo

KÁTIA LESSA
DE SÃO PAULO
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Top of MindNo início da carreira, Hugo Rodrigues, 43, tinha cabelos quase raspados. Até conseguir o primeiro emprego, bateu tantas vezes à porta de agências consagradas que resolveu deixar as madeixas crescerem para não ser reconhecido pelos diretores que o entrevistariam mais uma vez.
"Quando fui eleito profissional do ano pela ABP [Associação Brasileira dos Publicitários], olhei para aquela plateia cheia de gente bacana do mercado e falei: 'Todos vocês aqui já me negaram emprego'", diverte-se. Os cabelos armados acabaram se tornando a marca registrada do hoje vice-presidente das agências Publicis no Brasil.
"Todo publicitário tem que ser, antes de tudo, um comerciante. A pesquisa é fundamental, nossa área virou uma ciência exata e eu sou obsessivo pelo consumidor."
Helena Peixoto/Folhapress
Hugo Rodrigues na sede da Publicis, em São Paulo
Hugo Rodrigues e seus cabelos armados --marca registrada-- na sede da Publicis, em São Paulo
Folha Top of Mind - Você sempre quis ser publicitário?
Hugo Rodrgieus - Sou de uma família simples de Santos [litoral paulista]. Sempre tive uma visão pragmática das coisas. Eu pensava: "Se eu começar a trabalhar desde cedo, em qualquer área, talvez consiga chegar a algum lugar". Para gente como eu, não tinha isso de escolher uma profissão, o objetivo era sobreviver. Vendi saco de lixo, produtos de limpeza e trabalhei em gráfica. Depois, cursei um ano de engenharia, vi que não era pra mim e mudei para o marketing.
E por que escolheu a área?
Um dia eu li uma entrevista do Washington Olivetto e pensei: "Nossa, que cara 'bon vivant'". Eu achei que poderia ser divertido escrever, fazer com que pessoas se entusiasmassem por um produto e ainda ganhar com isso.
Como era naquela época?
Em 1991, não existia internet e as boas propagandas eram aquelas que divertiam as pessoas. O consumidor lembrava da piada, mas não do produto. Hoje não existe fazer um anuncio só pela ideia.
Então por que o festival de Cannes ainda aceita anúncios fantasmas [feitos só para premiação]?
O consumidor é quem manda na mensagem. Não adianta fazer uma propaganda incrível se ele não for contagiado por ela. Mas os prêmios são uma espécie de feira.
Como assim?
Nem todos os carros do salão do automóvel vão pra rua, nem tudo o que é desfilado na semana de moda de Paris vai para as lojas. É preciso premiar projetos de vanguarda também. Mesmo assim, prefiro sacudir o Brasil e dar resultado para o meu cliente do que ganhar um prêmio em Cannes, que sacudiu só o especialista. Quando virei vice-presidente aqui, só tinha um Leão no currículo, isso não é tão importante quanto parece.
Qual é o seu diferencial no mercado?
Vim do comércio, eu gosto de saber exatamente quem é o meu consumidor. Minha carreira demorou a decolar, por isso eu tive que me dedicar muito ao trabalho sujo, fazer coisas que os jovens do mercado não gostavam muito.
Que tipo de trabalho?
O varejo, as contas públicas e médicas me deram uma boa base para encarar um mercado dinâmico como o que temos agora. A convivência com a pressão do resultado imediato da placa do comércio me fez estar mais preparado quando a era digital chegou. No mercado, sou mais um Zeca Pagodinho do que um Seu Jorge, apesar de o segundo ser mais "cool".
A propaganda brasileira poderia ousar mais?
Vivemos em um país que passa pelo problema do analfabetismo funcional. Ainda estamos em um estágio muito primário de educação. Deveríamos passar uns dez anos com a linguagem simplificada e apostar no crescimento do país. Só assim poderemos ser mais ousados na linguagem e, ainda assim, apresentar resultados aos clientes. Por enquanto, precisamos falar a linguagem do nosso consumidor e respeitá-lo sempre.
E qual é essa linguagem?
Vou dar um exemplo prático de uma pesquisa que fizemos na casa: 80% dos brasileiros não faziam "recall" de peças de carros, de eletrônicos etc Fomos pesquisar o motivo e descobrimos que 83% dos brasileiros simplesmente não sabem o que é "recall". A mudança vai ser lenta e gradativa.
A classe C ainda é a bola da vez?
É. E ainda vai demorar muito na ponta. A mulher da classe C gasta R$ 19 bilhões em cosméticos no Brasil, enquanto a da classe A gasta R$ 10 bilhões. Com quem você acha que as pessoas querem falar?
Como é essa mulher?
A mulher da classe C é a mais otimista do mundo. Ela olha para a madame comendo só uma salada no shopping e fala: "Que triste, quero comer melhor, quero ser feliz". Ela se movimenta e faz a economia girar com ela. Hoje somos especialistas nesse mercado, mas garanto que, se o foco de amanhã for a classe A, também seremos, porque o nosso negócio é a obsessão pelo consumidor.
O que você gosta de fazer quando não está trabalhando?
Acho o prazer de não fazer nada importante, mas tenho um sentimento de dívida com Deus por tudo o que aconteceu na minha vida, então não me permito ficar ocioso. Uso esse tempo para contemplar o consumidor. Vou a um shopping ou a um restaurante e me pego reparando nas pessoas. Tiro até fotos, que levo para as reuniões. Faço exercício por obrigação e gosto de sair para comer.
Seu cabelo virou uma marca. Ninguém nunca implicou com ele?
Conheço 25 países e em quase todos noto que as pessoas ainda olham meio torto. Aqui no Brasil isso é mais forte, sofro preconceito no banco, em show Mas a luta continua, eu acho bacana.

Francisco Daudt

folha de são paulo
Momento perigoso
O investimento da paixão é tamanho que sua perda precisa ser negada a qualquer custo
"O inferno não contém fúria igual à de uma mulher rejeitada." A citação de William Congreve, erradamente atribuída a Shakespeare, fala de um dos momentos mais perigosos da convivência humana: a separação, o desprezo dos apaixonados pelo objeto de sua devoção.
É curioso que a história tenha guardado ícones femininos dessa fúria (quem viu "Atração fatal", 1987, Glenn Close e Michael Douglas, nunca mais se esqueceu, homens têm calafrios só de lembrar).
O mesmo vale para o homem rejeitado (as óperas "Carmen", de Bizet, e "Os Palhaços", de Leoncavallo, terminam com homens rejeitados assassinando suas mulheres, enquanto cantam seu amor por elas).
A vingança que se segue à rejeição é tamanha, que dá uma ideia do monumental terremoto psíquico que ela envolve. Homens costumam ser mais diretos, assassinam pessoalmente. Mulheres, mais elaboradas (veneno; contratação de um assassino de aluguel; sequestro de filhos dele; perseguição implacável --"Vou dedicar minha vida a tornar a sua um inferno").
Mas mulheres atiram, e homens perseguem também.
O "stalking" ("perseguição implacável") de outros tempos --telefonemas desligados no meio da noite; lixo revirado; aparições de surpresa; barraco armado na frente do prédio; cartas anônimas; difamação --vai sendo substituído pelo instrumento de perseguição mais diabólico já inventado: a internet.
Ela permite fuçar, não mais o lixo, mas todo o conteúdo de e-mails. Possibilita difamar, não com palavras, mas com filmagens e fotos íntimas postadas na rede. Nas mãos de um bom hacker, a devassa completa da vida do outro. O inferno tornou-se muito pior na era da informática.
Mas, afinal, o que move tamanho investimento maligno? Chico Buarque cantou: "Dei pra maldizer o nosso lar, pra xingar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço, te adorando pelo avesso, pra mostrar que ainda sou sua".
Aí mora a chave: o investimento da paixão é tamanho que sua perda precisa ser negada a qualquer custo. Eis porque o "amor" precisa ser afirmado mesmo com seu objeto morto: o cadáver é a posse definitiva.
"Se ela já estava separada dele havia tempos, por que ele foi matá-la quando ela arranjou um namorado novo?" São truques da paixão: imaginar a mulher com outro homem é capaz de reacendê-la, pois dá um enorme tesão (vide "swings", "ménages").
Há duas espécies de ciúme: o sexual (dos homens, que sempre correram o risco de criar o filho de outro) e o de prestígio (das mulheres, que detectam desinvestimento nelas, mesmo que seja em favor do futebol, do computador ou dos amigos do marido). Isso fala só do mais frequente. O de praxe é haver sempre uma mistura dos dois.
Mas como o momento perigoso é o do crime passional, precisamos entender que a paixão (do latim "passio", cuja única tradução é "sofrimento") é um programa de loucura transitória, um investimento de toda nossa vida, não numa pessoa, mas na idealização de alguém. Por isso, ela pode prosseguir depois da perda, mesmo depois da morte.
Quem ama, não mata. Quem está apaixonado, sim.

Extremistas holandeses usam gays e mulheres no combate ao islamismo

EL PAIS
Ana Carbajosa
A extrema-direita holandesa encontrou a fôrma de seu sapato em Almere, uma cidade-dormitório próxima a Amsterdã, que foi construída do nada em 1976 e na qual hoje dormem 200 mil pessoas que votam majoritariamente nos populistas do PVV (Partido da Liberdade) de Geert Wilders.
Ali, os moradores falam em imigração, identidade e fobia da UE, os três pilares ideológicos das correntes radicais que ganham força na Europa e que agora aspiram a fazer frente comum diante das eleições europeias. O eixo é promovido por Marine Le Pen junto com o PVV holandês, o FPO austríaco, o Vlaams Belang belga ou os Democratas da Suécia.
Famílias jovens em busca de casas espaçosas por preços acessíveis se instalaram nessas terras conquistadas do mar e hoje transformadas em uma meca da arquitetura moderna, rodeada por quilômetros de chalés vizinhos e ajardinados. Fugiam da multiculturalidade das grandes cidades holandesas, o que ali chamam com surpreendente naturalidade de "a fuga dos brancos".
Mas quase 40 anos depois em Almere há tantos imigrantes ou mais que no resto do país, o que incomoda os primeiros povoadores. Também não agrada ao PVV, para o qual o islã é uma praga a ser erradicada. "Não queremos que construam mais mesquitas nem que tragam sua cultura. O islã é uma ameaça para a sociedade e para as liberdades das mulheres e dos homossexuais." É o que diz Toon van Dijk, chefe de fileiras do PVV de Almere, um advogado atraente e eloquente, em um café do centro.
Continua com um discurso que dificilmente poderia ser mais claro. "A Europa? Nós defendemos sair da UE e do euro. No máximo, deveria haver acordos bilaterais, mas cada país deve ser soberano para decidir sobre as leis migratórias e sobre sua economia."
Os resgates financeiros contribuíram para expandir o antieuropeísmo pegajoso que hoje circula com fluidez pela UE, inclusive em países como a Holanda, nos quais era algo que nem se imaginava há alguns anos. "Não queremos dinheiro para os gregos, e sim para nossos doentes", é uma frase que em holandês rima e que Wilders transformou em um de seus slogans. O dirigente holandês visitou seus colegas na França, Bélgica, Suécia e Áustria para sondá-los sobre uma potencial coalizão. Em meados de novembro, Le Pen viajará a Haia para reforçar sua cruzada particular contra a UE.
Wilders é provavelmente o político mais eficaz desse movimento. Além disso, conseguiu diluir, pelo menos em parte, a pátina rançosa que tradicionalmente envolvia os movimentos de extrema-direita na Europa. Wilders é o espelho em que se olham alguns populistas europeus. "Ele aspira a ser o líder ideológico desses movimentos. Deixa de lado o antissemitismo da extrema-direita tradicional e combate o islamismo em nome dos direitos dos gays e das mulheres", explica Koen Vossen, cientista político da Universidade de Nijmegen e autor do livro "Rondom Wilders", que analisa a figura do político e seu partido.
De sua parte, Le Pen sofreu sua transformação particular, sobretudo nas formas, dando pé a novas alianças. Por aí vão as coisas: por mudar de pele e revestir-se de um halo centrista - pelo menos em certas questões - que torne a mensagem digerível.
A anti-imigração seduz, culpar Bruxelas de todos os males também, mas há uma terceira cartada que os populistas europeus manipulam como ninguém: a do nacionalismo entendido como sistema de valores ameaçado pela chegada de imigrantes e como o direito a que o governo do Estado-nação seja o único a decidir sobre seus habitantes.
Em Almere, a cidade do desenraizamento, o PVV toca bem essa tecla. Oferece altas doses de identidade fácil e triunfal. Porque nem a estátua da vagem gigante azul-metálica no centro comercial-fortaleza com jardins no telhado conseguiu despertar em seus habitantes o sentimento de pertencer à cidade. "Isto foi vendido como a cidade prometida. As pessoas pensaram que viriam para cá e seriam felizes, mas não são, e hoje votam no partido do descontentamento", interpreta Mario Withoud, que é conhecido como o poeta oficial da cidade.
Um bom representante desse descontentamento e do apoio incondicional ao PVV é Peter Aggenbach, um designer de sites da web que vive entrincheirado em um subúrbio de Almere. Uma câmera de vídeo vigia o que entra e sai da casa e um pastor alemão que late muito dá as boas-vindas aos visitantes. "É que a situação não permite ficar sem proteção." Ele se queixa do índice de criminalidade entre a população imigrante e acredita que o grande problema é que "vêm impor sua cultura sobre a nossa. A ONU, Bruxelas... temos de lutar para conservar nossa cultura".
E cita o caso de são Nicolau e os acompanhantes negros com lábios vermelhos que desfilam tradicionalmente na Holanda em novembro e que agora a ONU estuda se poderia tratar-se de um ato racista. "A correção política fede", diz.
Aggenbach, 58 anos, indica uma quarta questão, mais metodológica talvez, mas que sem dúvida explica boa parte do êxito dos partidos populistas na Europa. "Estamos cansados da elite política que se dedica a tergiversar. O PVV é o único partido que se atreve a chamar as coisas pelo nome, que se atreve a tocar em temas como a imigração ou o desperdício que representam os inúteis subsídios europeus para a sustentabilidade, por exemplo."
A dose de frescor político que esses líderes vendem diante dos tradicionais, com uma linguagem e uma correção política que engessam sua mensagem, constitui um dos grandes ativos dos extremistas.
A história de Almere se repete por toda a Europa. Muda a fisionomia das cidades, claro, e mudam também algumas preocupações. Mas seus clichês ideológicos soam tremendamente familiares na planície flamenga belga, nos vales suíços ou em bairros periféricos da Finlândia. O coquetel ideológico populista se estende como uma mancha de óleo no continente.
Conscientes de que o vento sopra muito a seu favor, os dirigentes populistas se esforçam para aproximar suas posições da ideia de fazer frente comum nas eleições europeias de maio. Foi o que Le Pen anunciou esta semana. As famílias políticas afins da Frente Nacional, tradicionalmente pouco dadas à cooperação, preparam agora um manifesto e um projeto comuns.
O partido de Wilders, o austríaco, o sueco e o belga são os que até o momento alcançaram um consenso mínimo, segundo explica em seu escritório no Parlamento Europeu Philip Claeys, do Vlaams Belang. Claeys aspira a que muitos partidos radicais subam no carro pan-europeu na medida em que se aproxime a data. Precisam de 25 deputados de pelo menos sete países para formar um grupo parlamentar que reforce seu poder e gere mais financiamento.
Na extrema-direita austríaca, o FPO, que na época foi liderado pelo falecido Jörg Haider, é outro dos promotores da iniciativa, junto com o VB, o partido flamengo independentista de extrema-direita belga. Os grupos extremistas da Hungria ou da Grécia parecem inicialmente excluídos por seu antissemitismo e viés criminoso. Os eurocéticos britânicos do Ukip compartilham o euroceticismo, mas não querem ser associados à extrema-direita.
Os demais grupos de extrema-direita estão se farejando e tentando discernir até que ponto seriam capazes de coabitar. "Sentimos que desta vez é diferente, que temos posições mais próximas e que há um clima na Europa que nos favorece", estima Claeys.
Pode ser que, como em ocasiões anteriores, as brigas entre os próprios extremistas levem o experimento de coalizão a nada, mas no momento o Tea Party europeu conseguiu provocar um clima de ansiedade em Bruxelas e sobretudo na Eurocâmara, onde os cálculos indicam que poderiam controlar 20% dos assentos depois das eleições. "Isto é muito sério", estima Guy Verhofstadt, ex-primeiro-ministro belga e atual presidente dos liberais no Parlamento Europeu.
O problema, diz ele, é que, além do poder concreto que conquistarem, esses grupos já ganharam porque conseguiram de alguma maneira impor sua agenda antieuropeia. "Os líderes da UE caíram na armadilha eurocética. Em vez de oferecer alternativas para sair da crise, os políticos tradicionais copiam o discurso e a linguagem dos radicais. Não se atrevem a decidir. O processo de decisões está parado."
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Cresce número de artigos científicos 'despublicados' por fraude ou erro - Reinaldo José Lopes

folha de são paulo

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
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Nunca tantos artigos científicos foram publicados e nunca foi tão fácil ter acesso a eles de graça. São notícias aparentemente ótimas, mas dois levantamentos recentes indicam que o efeito colateral desses avanços é uma explosão no número de estudos fraudados, plagiados ou simplesmente muito ruins.
Uma das maneiras de medir isso é a análise das "retratações", nome dado às pesquisas "despublicadas" por problemas éticos ou erros.
Em artigo na revista científica "PLoS ONE", pesquisadores nos EUA apontam que, de 2003 a 2012, o número de artigos retratados (1.333 numa das principais bases de dados do setor, a PubMed) foi quase o dobro do que se viu entre 1973 e 2002 (só 714).
Dos anos 1970 para cá, a produção científica cadastrada na PubMed praticamente quadruplicou, mas os artigos "retratados" cresceram em ritmo ainda mais forte, chegando perto de ficar seis vezes mais comuns.
O outro levantamento foi feito de forma mais rocambolesca. O jornalista americano John Bohannon, da "Science" (um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo), enviou diversas versões de um estudo fajuto para mais de 300 revistas de acesso livre (que não cobram pela leitura de seus artigos).
Resultado: metade delas topou publicar a pseudopesquisa. Entre essas revistas está uma publicação brasileira, a "Genetics and Molecular Research", cujo editor-chefe diz ter havido erro de interpretação.
Alex Argozino/Editoria de Arte/Folhapress
FÓRMULA
Os estudos enviados por Bohannon seguiam uma fórmula simples, mas crível: a molécula X, extraída de um líquen Y, inibe o crescimento de células de câncer do tipo Z (um programa de computador foi usado para criar variações desse tema).
O objetivo do "trote", segundo a "Science", foi mostrar que existe um submundo de revistas científicas de acesso livre "predatórias". Em geral sediadas fora da Europa e dos EUA, essas revistas usariam o pretexto do acesso livre para ganhar dinheiro. Nesse tipo de publicação, o cientista paga os custos de impressão do artigo, diferentemente das revistas tradicionais, que cobram assinatura dos leitores.
Além de identificar o crescimento dos artigos "despublicados", a pesquisa na "PLoS ONE", liderada pelo neurofisiologista americano Grant Steen, identificou outras tendências significativas.
O perfil de quem tem artigos retratados mudou. Até os anos 1990, a maioria era gente que fazia isso várias vezes, espécie de mentirosos contumazes. Hoje, mais de 60% das "retratações" está ligada a pesquisadores que nunca tinham sofrido isso antes.
"Cientistas mais jovens podem não ter sido integrados corretamente à maneira como a ciência funciona, seja por falta de mentores cuidadosos, seja por excesso de pressão para publicar. Mas não conseguiria provar essa ideia", ressalta ele.
Um ponto que pode ser positivo, segundo ele, é que o tempo para que um artigo seja retratado encolheu: de mais de quatro anos antes de 2002 para dois anos hoje.
"Isso pode ser visto como um sinal de saúde do sistema científico. Temos de esperar para ver se a taxa de retratações vai aumentar mais. Se isso acontecer, é o caso de ficarmos mais preocupados."
Revista brasileira que aceitou estudo falso se defende
COLABORAÇÃO PARA A FOLHADe acordo com Francisco Moura Duarte, editor-chefe da revista brasileira "Genetics and Molecular Research" --a única do país a ser apontada pela "Science" entre as que aceitaram o artigo científico fajuto criado pela publicação americana--, a repercussão do artigo foi pequena, "quase nenhuma".
Duarte afirma que o estudo falso foi aceito "preliminarmente", para cobrir os custos da revisão e da publicação.
"Fazemos isso porque muitas vezes, depois de todo o trabalho de revisão, o autor acaba retirando o artigo e publicando o material em outra revista, então isso é uma forma de segurá-lo' e evitar o desperdício dos nossos recursos", explicou. "Se o artigo acaba não sendo aceito, nós devolvemos o dinheiro."
O editor da revista brasileira diz que foi aos EUA para consultar advogados sobre uma possível ação legal contra a "Science", mas acabou desistindo.
"Esse pessoal é muito poderoso, e a lei americana é frouxa nesse sentido."
Em carta enviada por ele à publicação americana, o pesquisador diz que outras revistas sérias também poderiam ter sido prejudicadas pela maneira como o "trote" foi conduzido.
"Nós não publicamos artigos fraudulentos, enquanto a própria Science' andou fazendo isso."
Em comunicado, a "Science" disse que o objetivo era avaliar se os periódicos honram o compromisso de avaliar rigorosamente os artigos e encaminhou o e-mail enviado pela revista brasileira que dizia que o artigo havia sido aceito e seria avaliado após o pagamento.

    Matias Spektor

    Conselho pra quê?
    Seria um equívoco definir a participação no organismo das Nações Unidas em termos de custo-benefício
    O grito de Angela Merkel contra a espionagem norte-americana abriu a caixa de Pandora em Washington, alimentando uma crise cujo desfecho é imprevisível. A fúria dela ainda movimentou as águas na ONU, de onde poderá sair uma resolução ao gosto do Planalto. Note-se, contudo, o detalhe da reação alemã. Merkel foi dura com Obama, mas não impôs condições para o diálogo. Quando políticos aliados pediram que ela cancelasse negociações comerciais com os EUA, deram com os burros n'água. Merkel gostaria de pedido de desculpas e busca concessões da Casa Branca, mas deixa a porta aberta para o acordo.
    Hélio Schwartsman pergunta o que ganha a sociedade brasileira quando o país ocupa um assento no Conselho de Segurança da ONU (folha.com/no1360590). A indagação é excelente. Segundo ele, não haveria ali vantagens materiais para a população, só novos gastos e encrencas desnecessárias.
    Esse raciocínio, acredito, precisa de ajustes.
    Passagens pelo Conselho têm impacto econômico positivo, como revelam os estudos empíricos dedicados ao tema. Elas também ajudam a modernizar e profissionalizar as Forças Armadas, que tendem a participar de mais operações de paz.
    Além disso, como o Conselho define as regras de conduta às quais o Brasil se submete, é vantajoso para o país ter voz e voto na hora de defini-las.
    Mas seria um equívoco definir a participação em termos de custo-benefício, pois a natureza de muito do que está em jogo é intangível.
    O Conselho de Segurança limita a capacidade de grandes potências fazerem o que bem entendem, tornando-se foro útil para países que não podem ou não querem expressar suas preferências à força.
    Por ser um clube restrito, o Conselho também aufere ganhos de posição aos países que lá operam, dotando-os de influência, moeda valiosa para avançar seus interesses.
    O governo de um país no Conselho vê-se forçado a tomar posição em temas politicamente delicados. No processo, a sociedade informa-se, debate e participa das coisas do mundo. Também define e adapta seus valores.
    O governo que participa do Conselho também se expõe a críticas dentro e fora das fronteiras, revisando as suas crenças e reajustando as suas ideias.
    É claro que a sociedade brasileira pode viver bem sem Conselho. Mas é uma ilusão acreditar que, ficando de fora, o isolamento será esplêndido, pois a política internacional desafia interesses e valores básicos da sociedade brasileira todo dia.
    Ficar longe tampouco livrará nossa diplomacia de fazer escolhas morais difíceis: com dez vizinhos contíguos, uma economia dependente de fluxos globais e 200 milhões de cidadãos que demandam direitos em um mundo interligado, elas são inescapáveis.
    Esse debate quase não figura nas preocupações dos poderes que nos governam, dos acadêmicos que nos educam e dos intelectuais que nos provocam. A falta de discussão nos empobrece --estando no Conselho ou não.

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    De ratos e cães
    SÃO PAULO - "O coração tem suas razões que a razão desconhece", escreveu Pascal. O pensamento do filósofo se aplica bem aos paulistanos e seu amor pelos animais.
    Segundo o Datafolha, 66% dos entrevistados se opõem ao uso de cães em pesquisas científicas. O índice baixa para 59% quando as cobaias são macacos, 57% caso sejam coelhos e apenas 29% se forem ratos.
    Esses resultados, embora não surpreendentes, contrastam com o discurso dos ativistas, para os quais infligir sofrimento a bichos constitui um caso de especismo, delito moral que os militantes mais radicais equiparam ao racismo e ao escravagismo.
    Em termos puramente filosóficos, esse é um raciocínio consistente, se aceitarmos as premissas consequencialistas de pensadores como Peter Singer, para o qual todos os seres sencientes são dignos de igual consideração. Se há uma hierarquia entre eles, ela é dada pela capacidade de sentir dor e prazer de cada espécie e indivíduo. Um ser humano vale mais que uma lesma; o problema é que os mamíferos, em geral, estão todos mais ou menos no mesmo plano.
    Sob essa chave interpretativa, proteger cães em detrimento dos ratos constituiria especismo. Seria o equivalente de, na escravidão, defender a libertação dos nagôs e jejes, mas não dos hauçás e axantis, para citar alguns dos grupos étnicos entre os quais o Brasil fez mais vítimas.
    O que a pesquisa Datafolha mostra, no fim das contas, é que as pessoas definitivamente não pensam por meio de categorias filosóficas.
    Ao rejeitar a lógica consequencialista com base em emoções, o paulistano revela a principal dificuldade dessa matriz ética, que é exigir um igualitarismo tão forte que se torna desumano. Um consequencialista consequente, afinal, precisaria atribuir ao próprio filho o mesmo valor que dá ao filho de um desconhecido.
    Não importa o que digam Singer e a filosofia, nos corações dos paulistanos um cão vale mais do que um rato.

    José Dirceu

    folha de são paulo
    Entre tapas e beijos
    A crítica feroz ao Procure Saber se traduz, na prática, como o medo atávico de nossa mídia a qualquer proposta que signifique regulação
    Fiquei estarrecido --e sei que não deveria-- com a agressividade da resposta de grande parte da mídia e mesmo de alguns biógrafos às propostas apresentadas por artistas do Procure Saber no debate sobre as biografias sem autorização.
    Embora me espante com o ataque, sou contra a bandeira levantada pelo grupo porque acredito que o direito à liberdade de expressão e o veto a qualquer forma de censura de natureza política, ideológica ou artística, como diz claramente o artigo 220 da Constituição, é um bem maior que se sobrepõe à interpretação de proteção à privacidade do cidadão comum estabelecida pela reforma do Código Civil, em 2001.
    Sabemos que artistas e políticos, ao assumirem tais papeis de destaque em sociedades democráticas, abdicam de seu direito à privacidade absoluta.
    A crítica à causa do Procure Saber deve, portanto, ficar restrita à saudável esfera do debate das ideias. O que se viu nos últimos dias foi uma reação de intolerância e, como se dizia antigamente, de muita patrulha ideológica, na imprensa e nas redes sociais.
    Exemplo maior é a reportagem de capa da revista "Veja" sobre o tema na semana passada.
    Fui vítima --isso mesmo, vítima-- de uma das piores biografias recentemente publicadas. Mas nada me anima a ser favorável à atual proibição inscrita no nosso Código Civil que exige autorização do retratado e da família.
    A "biografia" escrita sobre mim é um bom exemplo para o debate em questão. Não foi autorizada, porém o mais grave não é o fato de ter sido produzida à revelia, mas sim o de oferecer aos leitores um livro repleto de erros --graves e em dezenas--, inverdades, impropriedades e com trechos de pura ficção.
    Do primeiro ao último capítulo, lê-se uma história que não condiz com a verdade. Jornalistas e críticos a debateram, alguns enaltecendo, outros criticando.
    Em nenhum momento cogitei proibir sua publicação porque acredito e aposto na liberdade de expressão em regime democrático. Por ela lutei toda a minha vida e ainda luto. Acredito no debate de ideias e no contraditório. Acredito na lei e na justiça. Por ela luto e lutarei sempre.
    Mas é preciso garantir tanto a liberdade de expressão quanto a reparação em caso de ofensa. Deve-se garantir plena isonomia entre o direito de publicar biografias e o direito de resposta e proteção à honra --o que em boa hora a Câmara dos Deputados parece fazer no debate do projeto do deputado do meu partido Newton Lima (SP) que libera biografias sem autorização.
    No Brasil, a Justiça não é nada cega em se tratando de mídia e é raro se observar a garantia ao direito de resposta. O receio do Judiciário de colocar uma empresa de comunicação no banco dos réus se torna ainda mais latente em tempos de exibição pela TV dos julgamentos da suprema corte. Os processos de reparação não andam e raramente um jornal ou uma revista é condenado, assegurando o direito de resposta a quem teve sua honra ameaçada em reportagens tendenciosas.
    Mais uma vez cito o meu próprio caso, na invasão de meu apartamento residencial em um hotel de Brasília por um jornalista de "Veja". Ele não foi acusado formalmente, apesar de réu confesso, sob o argumento de que a camareira impediu que o crime se consumasse. Imagine se fosse o contrário: eu tentando invadir o apartamento de um jornalista?
    No caso das biografias não autorizadas, é preciso deixar a patrulha ideológica de lado e privilegiar o debate com o objetivo de assegurar o pleno cumprimento do Estado democrático de Direito.
    O veto às biografias é, antes da defesa da privacidade do biografado, uma censura velada à liberdade de expressão, conquista que a sociedade brasileira alcançou depois de anos de regime militar.
    Esse é o debate que deve ser feito. É preciso entender que a crítica feroz ao Procure Saber se traduz, na prática, como o medo atávico de nossa mídia a qualquer proposta que signifique regulação, sob o argumento falso de que seria censura e controle da informação. Dessa forma, ela fica livre para atacar a honra alheia, sem direito de resposta e proteção da imagem, como manda a Constituição de 1988, no mesmo nível de proteção da liberdade de imprensa e de informação.