domingo, 17 de novembro de 2013

Hitler e a poderosa engrenagem nazista de saquear obras de arte

folha de são paulo
2ª- Tesouro descoberto pode chegar a R$ 3 bi
JEEVAN VASAGAR ELIZABETH PATONTRADUÇÃO CLARA ALLAINO advogado alemão Markus Stötzel ficou espantado ao saber que a obra "O Domador de Leões", de Max Beckmann, estava sendo anunciada como um dos destaques de um leilão de arte moderna da casa Lempertz, em Colônia.
Faltavam poucas semanas para a venda da peça em guache e pastel sobre papel. O advogado sabia que a coleção de Alfred Flechtheim --marchand, colecionador e defensor do modernismo alemão perseguido pelos nazistas, cujos herdeiros eram seus clientes-- tinha incluído "O Domador de Leões".
O reaparecimento da pintura oferecia uma chance rara de reparação antes de ela sumir mais uma vez em mãos privadas. O proprietário, Cornelius Gurlitt, um idoso de Munique, admitiu que seu pai comprara a tela de Flechtheim em 1934, numa venda forçada.
"O Domador de Leões" foi arrematada em 2 de dezembro de 2011 por € 720 mil (cerca de R$ 2,2 milhões), e parte do dinheiro foi para os herdeiros de Flecht- heim. Foi uma das últimas vendas feitas por Gurlitt. No dia 28 de fevereiro de 2012, seu apartamento foi invadido e revistado por investigadores e por agentes da Alfândega.
Eles levaram três dias para examinar o tesouro que encontraram: pinturas de Picasso, Renoir e Toulouse-Lautrec, obras até então desconhecidas de Marc Chagall e Otto Dix e trabalhos de artistas que os nazistas tinham vilipendiado --como Beckmann-- numa exposição local de arte degenerada. Algumas das obras eram anteriores ao século 20, sendo uma destas uma gravura em cobre da Crucifixão, de Albrecht Dürer. Havia ao todo 1.406 obras; 121 delas, ainda emolduradas numa estante, como num depósito de museu. As demais ocupavam gavetas.
O tesouro secreto de Gurlitt suscitou, além de assombro, controvérsia. Pelos princípios (aceitos pela Alemanha) da conferência sobre arte confiscada pelos nazistas, realizada em 1998 em Washington, todos os esforços devem ser feitos para difundir descobertas como essas, a fim de que sejam localizados os proprietários das obras antes da guerra ou seus herdeiros.
Mas a maior descoberta feita desde a Segunda Guerra de arte confiscada pelos nazistas veio a público somente no último dia 3, quase dois anos após a batida no apartamento, quando foi divulgada pela revista alemã "Focus".
CAUTELA A relutância das autoridades alemãs de levar o assunto a público tem origem numa cultura legal regida pela cautela.
Os promotores se negam até mesmo a identificar Gurlitt, 80, publicamente. Dizem apenas que "uma pessoa se encontra sob investigação por suspeita de sigilo fiscal e apropriação indébita". Segundo o advogado Stötzel, se as autoridades expuserem detalhadamente a coleção, Gurlitt pode mover uma ação contra elas.
Nem todas as obras foram roubadas pelos nazistas. Meike Hoffman, o historiador de arte que está catalogando a descoberta, disse que é preciso mais tempo para verificar a proveniência das peças.
Não é certo que descendentes de judeus alemães venham a ser compensados. Stötzel, que representa cerca de 50 outros querelantes, diz que, embora a Alemanha tenha aceito os princípios de Washington em nome de instituições públicas, proprietários particulares não são obrigados a segui-los.
Após a descoberta, o mundo da arte ficou siderado por duas perguntas: que impacto um influxo repentino de tesouros --a "Focus" estimou seu valor em € 1 bilhão (cerca de R$ 3 bilhões)-- pode ter sobre os preços no mercado de arte? E, no momento em que as famílias se preparam para uma batalha para definir os proprietários de direito das obras, quanto tempo será preciso esperar para que as obras apareçam numa sala de leilões?
Julian Radcliffe, proprietário e presidente do The Art Loss Register, de Londres, um banco de dados internacional de obras de arte roubadas e perdidas, diz que o tesouro encontrado em Munique não terá grande impacto sobre valores no futuro próximo.
"Para começar, nem todos os trabalhos encontrados vão valer preços altíssimos --as avaliações atuais não passam de palpites. E, mais importante, é improvável que muitos cheguem até leilões ou marchands, considerando que haverá décadas de trabalho até as obras passarem às mãos dos que terão direito legal de vendê-las."
Os marchands e as casas de leilão enfrentam grande pressão para determinar a origem das obras que serão vendidas. Uma "mácula" pública pode dificultar a venda de uma tela, mesmo que sua posição legal se resolva e que um herdeiro abra mão de seus direitos.
TRILHA As autoridades alemãs dizem que a trilha que levou à descoberta extraordinária começou às 21h de 22 de setembro de 2010, quando Gurlitt foi sujeito a uma revista de rotina num trem de alta velocidade de Zurique a Munique.
Segundo a "Focus", Gurlitt afirmou que seu destino tinha sido a galeria Kornfeld, em Berna. A revista diz que ele tirou do bolso um envelope contendo 18 cédulas novas de € 500 (cerca de R$ 1.500). A galeria conta que não teve nada a ver com o dinheiro e que sua última transação com Gurlitt foi feita em 1990.
Gurlitt era um homem que não existia. Embora parecesse estar vivendo em Munique, não estava cadastrado ali. Não tinha número de contribuinte alemão, não pagava seguro-saúde e não recebia aposentadoria. Mas seu sobrenome era famoso nos círculos de arte.
"É claro que sabíamos quem era!", diz Karl-Sax Feddersen, da Lempertz. O pai de Gurlitt, Hildebrand, foi um marchand e historiador de arte e promoveu artistas alemães progressistas. Quando os nazistas chegaram ao poder, ele se tornou dos pouquíssimos autorizados a negociar obras modernistas.
As obras modernas na coleção incluem aquelas pelas quais os nazistas nutriam ódio profundo e ideológico; marchands como Flechtheim eram chamados "agentes do bolchevismo cultural". Mas o Reich não era avesso a negociar obras desprezadas.
Pesquisadores do Projeto de Restituição de Arte do Holocausto encontraram evidências de que algumas das obras de arte que pertenceram a Gurlitt, pai, estiveram em poder dos Aliados após a guerra e foram devolvidas a ele em 1950. Elas vieram a formar o núcleo de uma coleção vasta e oculta herdada por seu filho. A lista de 115 pinturas apreendidas e depois devolvidas inclui "O Domador de Leões".
Feddersen descreve "O Domador de Leões" como "maravilhosa". Na ocasião, curioso, ele perguntou se Gurlitt teria outros trabalhos para vender. "Ele não respondeu", lembra Feddersen.


    1º - CASSIANO ELEK MACHADO
    ilustração ANA PRATA
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    RESUMO Confiscar obras de arte era para os nazistas tão importante quanto as vitórias militares; artista frustrado, Hitler escondeu em lugares como minas de sal milhares de peças e tinha planos de construir um gigantesco museu. Livro de jornalista porto-riquenho ilumina em detalhe o funcionamento da máquina nazista de espoliação.
    *
    Quando, no início de maio de 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, oficiais do Terceiro Exército norte-americano entraram numa mina de sal da pequena cidade de Altaussee, nos Alpes austríacos, se depararam, depois de uma longa caminhada pelas galerias subterrâneas, com uma curiosa população de esculturas antigas de mármore branco, posicionadas como se estivessem numa reunião.
    As lanternas dos oficiais também iluminaram uma vasta quantidade de pinturas, 6.755 delas, contabilizou-se depois, apoiadas nas pedras de sal, sem nenhum plástico que as protegesse. Mais de 5.000 eram de grandes mestres, incluindo a joia da pintura holandesa "Adoração do Cordeiro Místico" (1425-32), dos irmãos Van Eyck, uma madona de Michelangelo e "O Astrônomo", de Vermeer.
    Anos mais tarde especulou-se que a pintura mais famosa do mundo, a "Mona Lisa", de Da Vinci, tenha estado na mesma mina, no período de três anos em que a sorridente obra-prima ficou realmente escondida. O pesquisador norte-americano Noah Charney, autor de um livro sobre o tema, "The Thefts of the Mona Lisa" [Arca, US$ 18, 162 págs.], concluiu que houve sim uma Gioconda no subsolo de Altaussee, mas que se tratava de uma cópia, que os nazistas acreditaram ser a verdadeira.
    Não havia só quadros pela mina. Em caixotes e cestas, repousavam pilhas de livros e de documentos antigos, e móveis de variados estilos, inclusive tronos, eram vigiados por armaduras de 600 anos.
    Espalhadas por todo o cenário estavam caixas de madeira, de diferentes tamanhos, com a mesma inscrição, que também pôde ser vista nos versos de muitas das melhores pinturas: A.H., Linz.
    Havia mais de 3.000 anos, e ainda hoje, aquela mina tinha sido usada para a extração de sal. Mas naqueles tempos de guerra ela se convertera numa espécie de reserva técnica, um depósito para o gigantesco museu que Adolf Hitler (o A.H.) pretendia construir na cidade austríaca onde passou parte de sua infância e adolescência.
    O ambicioso projeto de Linz, que caso houvesse sido levado a cabo constituiria o maior museu de todos os tempos, implodiria em seguida.
    Pouco antes de se suicidar, em 30 de abril de 1945, o líder nazista ditou um testamento, no qual manifestava o desejo de que o museu fosse continuado por seus seguidores, mas seu delírio não ultrapassou os limites do bunker de Berlim, onde ele mantinha uma maquete do tamanho de um quarto do "Führermuseum".
    Com a fachada desenhada pelo próprio Hitler, como se sabe um pintor e arquiteto frustrado, o museu começou a ser planejado antes do início da guerra. Em junho de 1939, a meses da invasão da Polônia, um historiador da arte designado para montar o acervo da instituição já tinha em mãos um orçamento equivalente a R$ 185 milhões atuais.
    Em fins de 1944, com muitos alemães em debandada, a empreitada ainda ganhava fôlego (e dinheiro). Naquela altura, sua dotação orçamentária era de inacreditáveis R$ 1,38 bilhões.
    Ainda que muitos marcos alemães tenham sido empregados em compras e vendas de obras de arte na Europa, ao longo da Segunda Guerra, não era este o principal expediente do Exército alemão para saciar a fome de arte de Hitler e de outros líderes do Terceiro Reich. Roubar, espoliar e confiscar eram verbos mais conjugáveis.
    Um dos melhores trabalhos já feitos sobre o tema, "O Museu Desaparecido - A Conspiração Nazista para Roubar as Obras-Primas da Arte Mundial" [trad. Silvana Cobucci Leite, WMF Martins Fontes, R$ 47,50, 384 págs.], de Héctor Feliciano, chega enfim às livrarias brasileiras neste final de novembro -18 anos depois de sua edição original, na França.
    Bruno Poletti/Folhapress
    Ilustração de Ana Prata
    Ilustração de Ana Prata
    Não é um capítulo encerrado, este ao qual o premiado jornalista porto-riquenho dedicou muitos anos de pesquisa, desde que topou acidentalmente com o tema, em 1988. Os recentes acontecimentos num apartamento do bairro de Schwabin, em Munique, ilustram isso com vivacidade.
    Feliciano conta à Folha que quase engasgou quando leu a edição digital do "Guardian", há dois domingos, no terraço de sua casa, em San Juan, capital de Porto Rico.
    O diário britânico reproduzia a notícia dada pela revista alemã "Focus" de que mais de 1.400 obras haviam sido encontradas em posse de Cornelius Gurlitt, filho de um dos marchands mais influentes entre os nazistas, Hildebrand Gurlitt.
    Uma das pinturas apreendidas no apartamento do misantropo Gurlitt, "Mulher Sentada em uma Poltrona" (1920), de Henri Matisse, estava inclusive reproduzida no livro do jornalista.
    Era uma obra sem destinação conhecida, que pertencera a uma das principais coleções de arte de marchands judeus franceses confiscadas durante a guerra, a de Paul Rosenberg (1881-1959), que foi galerista de artistas como Matisse, Picasso e Braque.
    Como conta em minúcias "O Museu Desaparecido", em texto fluente e repleto de informações, a coleção Rosenberg integra o conjunto de 100 mil pinturas roubadas, apenas na França, pelos nazistas, que também confiscaram cerca de 500 mil móveis e mais de 1 milhão de livros e manuscritos.
    O trabalho de Feliciano ilumina todas as engrenagens dessa máquina de roubar obras de arte: que estruturas de poder organizavam os butins, de quem confiscavam, que tipos de pinturas eram almejados, como as peças eram transportadas, estocadas, quem saía ganhando com esse vaivém.
    EPICENTRO
    Ainda que muitos tenham sido os cenários dessa história, o epicentro foi o museu conhecido como Jeu de Paume, na place de la Concorde, centro de Paris. Nesse pavilhão, construído em 1861 por Napoleão 3° originalmente como um espaço para o jogo ancestral do tênis, funcionou o maior depósito de obras roubadas pelos nazistas.
    Lá também operou a principal das três estruturas do Reich para roubo de arte, a ERR, abreviação de Einsatzstab Reichsleiters Rosenberg für die Besetzten Gebiete, ou Destacamento Especial do Dirigente do Reich Rosenberg para os Territórios Ocupados, sendo o Rosenberg em questão o ideólogo nazista Alfred Rosenberg.
    Só no período que vai do outono de 1940, quando a França já estava ocupada pela Alemanha, ao inverno de 1941, sabe-se que o ERR teve ao menos 60 funcionários fixos: historiadores, restauradores, fotógrafos. O labor deles era acompanhado pela elite do Reich.
    O número 2 do regime nazista, Hermann Goering, comandante-chefe da Força Aérea alemã, esteve pessoalmente mais de 20 vezes no Jeu de Paume, para supervisionar trabalhos e, sobretudo, para alimentar sua coleção particular.
    Um depoimento do líder nazista Hans Frank durante o Julgamento de Nuremberg, o tribunal militar internacional para julgar os crimes de guerra, entre 1945 e 1946, dá a ideia da afeição do "reischsmarschall" pela arte. "Se Goering tivesse gasto mais tempo na Força Aérea e menos nas bacanais e pilhando obras de arte, talvez a Alemanha estivesse em melhor situação hoje, e eu não estaria preso nesta cela", disse Frank.
    O testemunho está recolhido no livro "As Entrevistas de Nuremberg" [trad. Ivo Korytowiski, Companhia das Letras, R$ 68, 552 págs.], de Leon Goldensohn, que traz ainda depoimentos do próprio Goering sobre arte.
    "De todas as acusações lançadas contra mim, a chamada pilhagem de tesouros artísticos foi a que mais me angustiou", disse. Ele também tratou de suas preferências. "Gosto de todo tipo de arte, exceto o negócio futurista, que detesto. Costumo ser bem cético quanto às pinturas modernas. Picasso, por exemplo, me enoja."
    Sabidamente não estava sozinho nestas avaliações. Modernistas em geral eram tratados como "degenerados" e, se eram muito bem guardados pelos nazistas, numa ala do Jeu de Paume batizada de Sala dos Mártires, era para que fossem vendidos ou trocados por outras pinturas consideradas "nobres". "Um mestre da pintura, ou ainda um de seus insossos seguidores,
    vale por seis, sete, oito ou até dez 'petimetres' modernos", contabiliza Héctor Feliciano.
    CONFISCOS
    Hitler não frequentava o Jeu de Paume -só esteve uma vez em Paris em toda a sua vida, numa viagem furtiva logo depois da ocupação-, mas acompanhava com zelo os confiscos na França.
    "De todos os ditadores do século 20, nenhum gostou tanto de arte quanto Hitler", diz Feliciano. "Se não houvesse esse interesse profundo e tão integrado na ideologia nazista, não teria havido um butim deste tamanho. Em pleno esforço de guerra, consideravam cada saque tão importante quanto ganhar uma batalha."
    Prova da importância que dava ao tema dos saques artísticos é um relatório que Hitler encomendou antes da guerra a um historiador alemão chamado Otto Kümmel.
    Ele pediu ao então diretor dos museus nacionais do país para elencar todas as obras de arte roubadas da Alemanha desde o século 16, para que fossem recuperadas.
    O chamado "Relatório de Kümmel" é composto por três volumes, cada um com cem páginas. Na lista, entram desde flâmulas e bandeiras roubadas pela Suécia na Guerra dos Trinta Anos (1618-48) até pinturas da coleção do rei da Inglaterra, como "Cristo e Maria Madalena", de Rembrandt, um dos artistas prediletos do Führer.
    Hitler não teve muito sucesso com as obras listadas por Kümmel, mas sua política de saque de obras de arte pode ser considerada a mais eficiente desde que Roma começou a pilhar peças da Antiguidade Grega.
    O alvo principal eram as grandes coleções. E a que sofreu mais perdas foi a da tradicional família de banqueiros Rothschild, que teve 5.009 obras confiscadas.
    Feliciano dá bastante destaque também às expropriações das obras do colecionador Alphonse Kann, do investidor Fritz Guttmann, dos banqueiros David-Weill e da dinastia Bernheim-Jeune.
    Depois da guerra, uma parte importante das obras foi restituída às famílias. Havia ao menos um destacamento dos Aliados dedicado só a essa tarefa, chamado de Monumentos, Obras de Arte e Arquivos. O grupo, formado em 1943, para ajudar a proteger e detectar obras roubadas (e também devolvê-las), ficou conhecido como "The Monuments Men".
    É este o nome de um livro de Robert M. Edsel, no Brasil lançado como "Caçadores de Obras-Primas" [trad. Talita M. Rodrigues, Rocco, R$ 57, 368 págs.], base de um filme homônimo dirigido e protagonizado por George Clooney, a ser lançado no início do ano que vem, no Festival de Berlim.
    Feliciano diz que o livro é "chauvinismo militar americano", pois, a seu ver, dá a entender que só oficiais daquele país estiveram na elite de resgate de obras de arte, quando havia, entre outros, militares franceses, canadenses e britânicos.
    De qualquer modo, por maiores que tenham sido os esforços dos "Monuments", uma parte substancial dos roubos nunca voltou às famílias originais.
    LEGISLAÇÕES
    A obra de Feliciano, publicada em diversos países do mundo, acelerou o processo de restituição, assim como outra obra importante sobre o tema, "Europa Saqueada" [trad. Carlos Afonso Malferrari, Companhia das Letras, R$ 68, 544 págs.], da historiadora Lynn H. Nicholas, lançada nos Estados Unidos em 1994. Após as publicações dos livros, tiveram lugar mudanças nas legislações de diversos países.
    "O Museu Desaparecido" chama a atenção para o fato de que as instituições francesas detinham, à época do lançamento do livro no país, mais de 2.000 obras de arte recuperadas depois da guerra e não restituídas aos proprietários originais. O jornalista identificou telas importantes em tal condição, como a pintura cubista "Dama em Vermelho e Verde", de Fernand Léger, que estava no Centro Pompidou, ou "O Bosque", do pintor François Boucher, uma das 400 obras "não reclamadas" do acervo do Louvre.
    Em 1997, o presidente Jacques Chirac anunciou a criação de uma comissão para tratar do tema, a qual organizou uma exposição nacional com todas as pinturas, respondendo ao argumento de Feliciano de que os museus nem sempre davam visibilidade às obras não reclamadas e não se esforçavam para encontrar os donos originais.
    O número de obras roubadas e não restituídas foi caindo progressivamente, mas, das 100 mil pilhadas só na França, o autor estima que cerca de 25 mil ainda não tenham sido devolvidas.
    Segundo ele, houve avanços na legislação alemã, que passou a considerar como roubadas também as peças vendidas entre 1933, ano de ascensão de Hitler ao poder, e 1939, já que colecionadores eram forçados a vender. A legislação que menos contribui, para ele, é a da Suíça, que só pune as compras comprovadamente de má fé.
    Houve quem alegasse que Feliciano, mestre em jornalismo pela Universidade Columbia e doutor em literatura pela Universidade de Paris, estivesse agindo de má-fé.
    Em 1998, três descendentes diretos do conhecido marchand Georges Wildenstein o processaram no Tribunal de Grande Instância de Paris, acusando-o de danos morais por conta de passagens do livro que tratavam das ligações do galerista com os nazistas.
    "Mesmo depois do armistício na França e da ocupação alemã desta, Wildenstein parece ter tirado proveito dessa rede de contatos para organizar uma série de contratos e transações com os alemães", diz um trecho do livro.
    Os herdeiros pediam US$ 1 milhão e exigiam que ele não voltasse a mencionar o nome Wildenstein em qualquer de seus escritos. As idas e vindas na Justiça levaram cinco anos, até que a Cour de Cassation (equivalente francês do Supremo Tribunal Federal) indeferiu a demanda dos galeristas.
    Ainda em plena atividade no universo da arte, os Wildenstein têm uma ligação estreita com a história dos museus no Brasil. Eles foram os principais vendedores de pinturas de grandes artistas internacionais para o Museu de Arte de São Paulo, o Masp.
    Segundo levantamento feito pela Folha, ao menos 52 pinturas importantes do museu passaram pelas galerias Wildenstein, entre elas 36 obras francesas, 6 espanholas e 4 italianas.
    CASSIANO ELEK MACHADO, 38, é editor da "Ilustríssima".
    ANA PRATA, 32, é artista plástica. Participa da 18ª edição do Festival Sesc_Videobrasil, que ocorre até 2/2 no Sesc Pompeia.

    sábado, 16 de novembro de 2013

    "Do ponto de vista político, o mensalão acabou", diz o filósofo Marcos Nobre

    "Do ponto de vista político, o mensalão acabou", diz o filósofo Marcos Nobre


     
    RICARDO MENDONÇA
    FOLHA DE SÃO PAULO
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    Para o filósofo e cientista político Marcos Nobre, pesquisador do Cebrap e ex-colunista da Folha, o escândalo do mensalão não existe mais como fato político. Acabou só agora, diz, porque ainda havia a equivocada ideia de que a análise dos embargos representaria um novo julgamento.
    Nobre diz que a condenação de figuras políticas de destaque é um evento "excepcional" no Brasil e entende que as penas foram mais duras que o convencional. Mas ele não classifica isso como algo ilegítimo. "O que vai tornar ilegítimo é se, em casos semelhantes, no futuro, aplicarem penas diferentes", analisa.
    O pesquisador também avaliou o papel de alguns dos ministros no processo. Joaquim Barbosa, diz, representou uma novidade "ambígua". Importante porque "deu vazão a um sentimento social de rejeição à política", mas não ofereceu nada como alternativa.
    Para Nobre, Ricardo Lewandowski não representou contraponto ao relator, mas sim Luiz Roberto Barroso, o ministro que, na fase final, se mostrou capaz de "enfrentar midiaticamente a brutalidade de Barbosa". Rosa Weber "deu votos incríveis", mas Celso de Mello, por outro lado, demonstrou "um desequilíbrio flagrante".
    Danilo Verpa/Folhapress
    Marcos Nobre, cientista político e filósofo
    Marcos Nobre, cientista político e filósofo
    Folha - Oito anos após a denúncia original, as prisões começam a sair. O que dá para dizer desse caso agora?
    Marcos Nobre - O que eu diria é que o mensalão terminou como fato político. Ainda não acabou do ponto de vista jurídico. Mas do ponto de vista político, acabou.
    Do ponto de vista político já não estava encerrado antes?
    Não. Porque a impressão era de que o exame dos embargos declaratórios e infringentes havia reaberto o julgamento. Na repercussão, na grande mídia, começaram a usar a expressão "novo julgamento". O que, juridicamente, era um equívoco. Mas foi dando a impressão de que agora iria começar tudo de novo. Então agora parece que todo mundo já entendeu que são recursos, que são embargos, e que, de fato, acabou de ponto de vista político. Não sei se você sentiu isso. Eu senti. Estava todo mundo preparado como se fosse começar um novo julgamento.
    Se fosse descrever de forma sintética para um estrangeiro, como definiria esse caso?
    A primeira coisa que eu diria é: aconteceu uma coisa excepcional, que foi o julgamento de políticos no Brasil com condenação. Para um estrangeiro isso pode parecer assustador. Vão dizer "mas isso não aconteceu no passado?". É difícil comparar com o passado, porque o passado, no caso do Brasil, é muito pouco democrático. A gente teve 19 anos de democracia, entre 1945 e 1964, mas mesmo assim uma democracia mais ou menos, pois analfabeto não votava, tinha partido na ilegalidade, e não teve uma transição de mandato entre um presidente e outro que fosse tranquila. Então é a primeira vez, dentro de uma democracia, que você tem julgamento e condenação de figuras políticas importantes. Isso dá um caráter excepcional para esse julgamento.
    E o que achou das penas?
    Bom, o novo, como eu disse, é o julgamento e a condenação de figuras políticas importantes. Isso explica também a dureza das penas. É muito? É pouco? Eu diria o seguinte: se fosse um julgamento criminal comum, as penas não teriam sido tão altas. Foi alta porque é inédito.
    O Roberto Jefferson lamentou a própria prisão, mas falou que a política pode ser melhor após o julgamento. Há alguma evidência disso?
    Não. Nenhuma chance de melhorar a política por causa disso. Porque não é assim que se melhora a política, né?
    Alguns falam em exemplo de cima, fim da certeza da impunidade.
    Olha, você sabe que eu passei cinco anos estudando direito, né? Depois que entreguei meu doutorado... Eu não acredito nessas teorias do direito penal que acham que a pena tem uma função dissuasória. Não acho que essa seja a função da pena. Mas aí é uma discussão teórica. O que estou querendo dizer é: se fosse comparar com um crime de formação de quadrilha comum, um crime de corrupção comum, e não de figuras públicas destacadas, as penas não seriam tão altas.
    Então foi injusto, é isso?
    Não, não. A questão não é justiça ou injustiça. Justiça ou injustiça, do meu ponto de vista, é um ponto de vista moral e político, não jurídico. Do ponto de vista jurídico, a gente pode dizer se uma questão é legítima ou ilegítima. Vamos lá: Uma determinada decisão judicial é legal ou ilegal; legítima ou ilegítima. Então uma decisão pode ser legal, porém ilegítima. Uma decisão ilegal acontece, por exemplo, durante uma ditadura. Você pode decidir ao arrepio da lei comum, como aconteceu na Alemanha nazista. Eles mantiveram a Constituição de Weimar e decidiam materialmente contra. A questão [do mensalão] é a da legitimidade. Essa se dá no âmbito de uma discussão pública e política mais ampla. Não é uma pessoa que declara uma decisão legítima ou ilegítima. Eu posso achar, mas é só uma opinião. Agora, pode haver uma reação pública de tal ordem que faça com que uma decisão legal fique ilegítima. Tem um bordão na política brasileira que é "decisão judicial não se discute, se cumpre". Isso é o maior absurdo que eu já ouvi. É o contrário. Não existe nenhuma contradição entre cumprir uma decisão judicial e discuti-la. Então você tem uma discussão de uma determinada sentença que pode vir a aparecer para a sociedade como ilegítima dependendo do debate em torno dela e das forças políticas. Hoje, no jogo político atual, com a correlação de forças atual, ela [a sentença do mensalão] está parecendo como uma sentença legítima. Mas poderia não ser. Dependendo da movimentação do debate público e da sociedade.
    Se é assim, o tempo pode eventualmente deslegitimar essas sentenças?
    Pode. Esse é o ponto importante. Quando eu digo que as penas são superiores do que devia se esperar, que é inédito, então daqui para frente pode ser que as penas aplicadas [em novos casos] não sejam tão graves. Ou, ao contrário, pode ser que seja esse o padrão para o futuro. Então, dependendo de como esse padrão vai ser interpretado daqui para frente, você também tem a questão da legitimidade ou ilegitimidade dessa decisão. Se tiver condenações posteriores [mais brandas], vão dizer "olha, isso prova que a sentença do mensalão foi dura demais". E quando dizem "foi dura demais", estarão querendo dizer "ela não foi totalmente legítima". Então a questão da legalidade ou ilegalidade você pode resolver. Já a legitimidade vem da luta política que vem depois. É por isso que é importante fazer as duas coisas: cumprir a decisão e discutir. Eu tenho a impressão de que as penas foram duras demais quando comparadas ao julgamento habitual desses crimes com outras figuras. Mas não necessariamente torna isso ilegítimo. O que vai tornar ilegítimo é se, em casos semelhantes, no futuro, aplicarem penas diferentes.
    E qual é o seu palpite?
    A dureza das penas foi inédita. Isso vai criar jurisprudência e a partir de agora todos os políticos serão julgados a partir dessa métrica? Eu acho que, por um bom tempo, sim. Acho que vai durar. É a questão da legitimação do poder Judiciário. Já que estabeleceu a barra nesta altura, nesta altura ela ficará por um bom tempo. Até que seja alguma coisa comum e normal condenar políticos. Todas as penas foram calculadas no caso mensalão para dar prisão para determinados indivíduos. Elas foram calculadas dessa maneira. Se foram calculadas assim, é porque você estava pensando na dureza da pena, não no sistema Judiciário. Nesse caso, falou-se assim: "não vou pensar no Judiciário como um todo, vou penar apenas neste caso". Então acho que vai manter-se por um bom tempo. Mensalão mineiro? A dureza vai ser igual.
    Mas voltando à fala do Jefferson. Na sua opinião, não vai melhorar a política. O que a melhoraria?
    Acredito que é importante que isso tudo tenha acontecido para o poder Judiciário. E para legitimidade e legitimação do poder Judiciário. Bom, o Judiciário faz parte do sistema político. É importante que ele seja entendido como parte do sistema político, embora tenha linguagem e códigos específicos. Então, nesse sentido, você tem de fato um Judiciário que cumpre o seu papel. Sem querer discutir o mérito da sentença.
    E que lição fica para o Supremo?
    A outra coisa é o seguinte: é um absurdo o STF (Supremo Tribunal Federal) ser, ao mesmo tempo, a última instância do Judiciário e uma corte constitucional. Não é possível. Esse julgamento demonstra, de maneira cabal, que a Constituição deveria ser cumprida e que deveria ser criada uma corte constitucional separada, só constitucional. O Supremo não pode ter essa dupla função. É impossível a corte conseguir dar conta disso tudo.
    O Supremo fez alguns movimentos para reduzir os processos.
    Fez. A história da repercussão geral. A súmula vinculante, que não vincula ninguém. Mas nenhum resultado estrondoso. Não resolveu. Mas, voltando, o julgamento foi muito importante para incluir o Supremo no sistema político. Ficou claro que, embora tenha um código específico, é um membro integrante do sistema político.
    Explique isso.
    Se você for olhar do ponto de vista da transição brasileira, o primeiro órgão que apareceu como membro do sistema político, por excelência, foi o Poder Legislativo, que foi por onde entraram as primeiras forças de oposição etc. O Executivo veio depois. Faltava o Judiciário. Neste momento então completa-se essa ampliação do sistema político. O Judiciário passa a visto como um órgão do sistema político onde a sociedade tem de tentar influir também. Claro, tentar influir usando o código que é próprio do direito. Mas não dizer "o Judiciário julga e pronto", como se fosse simplesmente uma máquina em que você põe lá as moedas e a saem as sentenças por baixo. Então isso foi importante. Ao mesmo tempo, mostrou que a cultura jurídica pública no país é baixíssima. Por que isso seria importante? Porque em toda democracia que se aprofunda, aprofunda-se também uma certa cultura jurídica pública.
    Como dá para perceber isso?
    Um exemplo: basta você olhar a importância que tem as séries de TV sobre o Judiciário em países democráticos. De uma certa maneira, você aprende até com a TV como funciona o Judiciário, aprende que aquilo tem uma certa lógica, uma lógica democrática, que tem problemas também. No Brasil não tem séries sobre o Judiciário, certo? O que você viu [no caso do mensalão]? Viu uma cobertura da grande mídia importantíssima, mas também uma dificuldade enorme das pessoas de entender aquela linguagem totalmente obtusa. Ok, entraram alguns elementos que não entravam antes, embargo isso, embargo aquilo, as pessoas aprenderam algum vocabulário. Isso mostra que o Judiciário finalmente entrou no sistema político, mas continua encastelado na sua linguagem, no seu jargão. E valendo-se disso para legitimar sua autoridade. Todas as tentativas de comentários, análises e divulgação foram importantes. Mas mostrou também que a academia brasileira no direito não está conseguindo traduzir os conceitos para a esfera pública de maneira adequada. E aprofundar a democracia é aprofundar a cultura jurídica geral.
    Não temos essas séries, mas uma parte do Judiciário aparece na TV, sim, com Datena, Marcelo Rezende. A delegacia e o "prendo e arrebento" aparecem.
    É tudo penal. Essa é a medida do baixo teor democrático da democracia brasileira. Porque o único ramo do direito que é realmente universal é o penal. Esse sim atinge todo mundo. Agora, direito social, direito civil, direitos trabalhistas, esses não atingem todo mundo. Isso é importante notar: você teve [no julgamento do mensalão] televisionamento direto, ao vivo, e uma incompreensão radical do outro lado sobre o que estavam falando. O televisionamento direto dá a impressão de uma função democratizante, mas o que faz mesmo é mostrar o abismo entre o bacharelismo do Judiciário e a baixa cultura jurídica do país. E não é tornando os cidadãos bacharéis que nós vamos melhorar isso. Os bacharéis é que precisam falar língua de gente. Por que você consegue isso nos EUA, na França, na Alemanha? Por que lá as pessoas entendem mais [do assunto] e as séries têm excelente audiência?
    Por que o escândalo do mensalão nunca gerou o impacto eleitoral desejado pelos opositores do PT?
    A resposta é o pemedebismo (¹). Do ponto de vista da sociedade, todo mundo faz, o sistema político inteiro faz. Então a questão é a seguinte: Dado que todo mundo faz, por que eu iria punir exatamente o Lula? Punir aqueles que se apresentavam como representantes por excelência da ética na política passa a ser algo que é suficiente. Então não é necessário mais. Por que punir aquele que não se tem provas objetivas suficientes de que tenha sido o responsável? E de fato ali [naquela época] já estava começando a aparecer políticas sociais importantes para uma enorme parte da população. Já em 2004 tem um crescimento [da economia]. Então, veja, o sistema político é visto como uma pasta homogênea em que todo mundo vale a mesma coisa. Se é assim, por que eu vou punir o sujeito que está diminuindo a desigualdade? Fora o seguinte: você sabe que o PT tem uma base de 30% nesse país que não desce e não sobe. Apoio mesmo. Tem um núcleo duro, um núcleo que segurou o Lula mesmo. São essas as razões. As pessoas não são cínicas, não são hipócritas. Elas pensam: "eu vou punir um cara que está fazendo uma política correta porque eu acho que ele é corrupto igual aos outros?" Claro que se um desses diretamente acusados fosse candidato a presidente, a governador, aí sim seria punido. Mas não é o caso. Eles [os acusados] se retiraram. Alguns ainda foram eleitos deputados, mas para cargo majoritário jamais seriam.
    Na defesa política dos acusados, consolidou-se o discurso de que tudo isso é culpa do sistema eleitoral e do modelo de financiamento de campanha, cada ano pior. Isso sensibiliza o senhor?
    Não é que os temas não sejam importantes. Mas, que fique claro, que isso [que foi proposto] não é uma reforma política, é uma reforma eleitoral. E restrita. Uma reforma política teria que ter uma reforma profunda do Judiciário, que não enfrentou ainda o problema da corrupção no seu interior, teria que discutir cargo comissionado, esses 22 mil cargos. O que é isso? Não se sabe nem ao certo quantos são. Outra coisa: por que precisa ter uma centralização orçamentária, um poder do governo federal, dessa maneira? São exemplos. Isso tudo seria uma reforma radical da cultura política. Dito isso, é importante discutir reforma eleitoral? É importante. Vai acontecer? Não vai. Não vai acontecer nada relevante. Só tem sentido uma reforma eleitoral no bojo de uma reforma política, no contexto de uma reforma mais ampla.
    Mas existe sentido nas propostas de reforma eleitoral? Voto distrital ou em lista, financiamento público?
    Existe sentido. O grande sentido é: você vai ou não vai restringir o número de partidos? No fundo, é isso que está em discussão. O pemedebismo tem funcionado assim: há uma ampliação cada vez maior de partidos. Quando abre demais, fecha. Quando fecha demais, abre. Então tem uma lógica de fragmentação e fragmentária. Existe lógica [na reforma eleitoral]. Mas só isso não vai resolver os problemas reais. Seria uma forma muito limitada de resolver.
    Voltando ao mensalão, o que achou do comportamento do ministro Joaquim Barbosa, o protagonista do julgamento? Como personagem, ele é uma novidade?
    Joaquim Barbosa... Difícil formular sobre esse cara... Ele foi um canal de expressão de uma rejeição difusa do sistema político tal qual ele funciona. Então ele é uma novidade, sim. Um sentimento difuso de rejeição, que não tem conteúdo, não tem conteúdo nenhum, é pouco politizado. No sentido ruim da expressão mesmo. Ao mesmo tempo, ele expressa uma raiva social muito interessante. Uma raiva social contra o sistema político, contra a discriminação histórica da sociedade brasileira. Fico tentando entender como ele virou esse fenômeno de massa... Ao mesmo tempo, essa rejeição difusa da política enquanto tal, porque no fundo é isso, uma rejeição da política, ela se expressa de maneira brutal e grosseira. É mesmo muito interessante. Porque isso introduz um elemento no Judiciário que é novo, pois o Judiciário gosta de se entender, de uma maneira bem machista, num clube de cavalheiros. Coisa que está longe de ser. E não deve ser mesmo numa democracia. Ele rompe com isso. Então o Joaquim Barbosa consegue expressar um sentimento social difuso pela sua brutalidade. E uma brutalidade calculada. Ele sabe exatamente o que está fazendo a cada momento.
    Diria que é um avanço?
    Do ponto de vista do avanço democrático, isso é ambíguo. De um lado é importantíssimo dar vazão a um sentimento social de rejeição à política tal qual ela é feita. De outro lado, essa expressão bárbara, bruta, não ajuda a construir uma linguagem alternativa ao bacharelismo. Então você tem ou o bacharelismo ou a brutalidade. Em algum lugar entre essas duas coisas a gente tem de encontrar uma cultura jurídica que possa ser partilhada por mais pessoas, a compreensão de que o direito faz parte da democracia, a ideia de que o STF não é o "big brother", certo? O Joaquim Barbosa introduziu o "big brother" no Supremo Tribunal. O lado bom é que [Barbosa] desorganiza a coisa tradicional, rançosa. O lado regressivo é que não constrói uma coisa nova. E foi uma figura que não enfrentou um contraponto. O [ministro Ricardo] Lewandowski é um juiz de carreira. E, note, era um [ex-]promotor [Barbosa] contra um juiz de carreira. O promotor tem um cálculo muito grande do efeito midiático, retórico de sua ação. Então não tinha o contraponto. Ficou o bacharelismo do Lewandowski e a brutalidade do Barbosa, sem nada no meio.
    Quem poderia ser esse contraponto ao ministro Barbosa?
    Quem de fato fez o contraponto ao Joaquim Barbosa foi o [Luiz Roberto] Barroso, que entrou depois. O Barroso é claramente contraponto ao Joaquim Barbosa porque, primeiro, é advogado. Segundo: de fato, ele tem uma noção de como articular o pensamento e enfrentar midiaticamente a brutalidade do Barbosa, coisa que o Lewandowski não tinha. E ele consegue falar a língua de gente, não é a língua dos seus pares apenas. Ele é uma enorme novidade.
    Quem mais te impressionou positivamente?
    A Rosa Weber. Acho que ela deu votos incríveis. Pode representar aquilo que possa ser uma nova cultura jurídica, que possa falar para os outros tirando as tecnicalidades. Uma juíza muito impressionante. Mas ela tem de dar o passo da comunicação.
    E quem foi o oposto, a decepção?
    Teve o desequilíbrio do decano. Celso de Mello foi um dos votos mais lamentáveis que já se deu. Por quê? Celso de Mello, julgando crimes de corrupção, julgando crimes de lavagem de dinheiro, julgando crimes de formação de quadrilha, fundamentou sua decisão com a expressão "atentado à democracia". Isso é de um desequilíbrio flagrante. É algo que considero inadmissível para um ministro do Supremo. Não só ele usou isso. Mas ele foi o grande exemplo de uso do "atentado à democracia". Ora, se existe um atentado à democracia, existe um atentado à Constituição. Então ele estava chamando as pessoas que estavam sendo julgadas de terroristas. Isso é muito grave. Quer fundamentar a sua sentença e se quer dizer algo realmente inovador? Diga qual é o sentido social da pena. Agora, confundir crime de corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha com atentado à democracia é algo inaceitável. O que me espanta é que o decano tenha dado o voto mais inaceitável de todos. Achei lamentável. Quem está sendo julgado são indivíduos. Não é o sistema político que está sendo julgado, não são partidos e não é o crime de terrorismo que está sendo julgado. Atentado à democracia? Como a gente interpreta isso? É contra a Constituição: terrorismo. Então as pessoas cometeram mais crimes do que aqueles que elas estavam sendo julgadas? Absurdo flagrante.
    E os ministros que são muito identificados com os presidentes que os indicaram, especialmente Gilmar Mendes, indicado por Fernando Henrique, e Dias Tóffoli, por Lula?
    Ah, sobre eles eu gostaria agora que todas aquelas pessoas que disseram que o sistema de indicação de ministros para o STF era um sistema que favorecia quem estava no poder, que venham a público agora para dizer que erraram. Todas essas pessoas desapareceram. [O julgamento] mostrou que não existe uma relação direta entre a indicação e o voto. Bom, nesses dois casos, Gilmar e Tóffoli, existe. Essa é a identificação do ponto de vista da opinião pública. Então, de qualquer maneira, são 2 de 11. E o ministro Gilmar que, notoriamente, tem bate-boca público com o Joaquim Barbosa, o acompanhou em todos os votos. Então, na hora do jogo não é bem assim. Mas não só. O Gilmar Mendes foi "low profile" porque o Joaquim Barbosa tomou todo o espaço. Quem conseguiu ficar num espaço entre o Joaquim Barbosa e o Lewandowski foi o Marco Aurélio [Mello], que ficou jogando entre os dois. Tanto é que, quando Barroso se pronuncia, quem vai contra ele é justamente o Marco Aurélio, como se estivesse falando "olha, esse lugar aqui é meu". Já o Dias Tóffoli, veja o último voto dele. Indicado pelo Lula, tudo isso, agora dá um voto contra [os acusados]. Então prova que não tem relação.
    (1) A expressão "pemedebismo" foi desenvolvida pelo próprio Marcos Nobre para descrever um certo comportamento político conservador que, na sua interpretação, tornou-se dominante a partir dos anos 80 e, a partir do PMDB, teria alastrado-se para quase todos os partidos. Diz respeito ao adesismo a qualquer governo, à falta de enfrentamentos diretos, a forma dissimulada de sabotar iniciativas de transformação social, entre outras coisas

    'Roberto Carlos é censor nato e hereditário', diz Ruy Castro em festival de biografias

    'Roberto Carlos é censor nato e hereditário', diz Ruy Castro em festival de biografias

    FABIO VICTOR
    ENVIADO ESPECIAL A FORTALEZA.
    Enquanto revelava seus segredos e métodos de biógrafo consagrado, Ruy Castro criticou Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano Veloso durante debate na tarde/noite desta sexta (15/11), durante o 1º FIB (Festival Internacional de Biografias), em Fortaleza.
    O colunista da Folha chamou Roberto de "censor nato e hereditário", disse que Chico é "uma péssima fonte de informação sobre si mesmo" e lembrou que Caetano, defensor com os colegas do direito à privacidade, já apareceu nu ao lado da mulher e do filho na capa de um disco ("Jóia").
    Ruy é um dos pontas de lança do movimento de biógrafos, editores e intelectuais para a alteração dos artigos do Código Civil que abrem a biografados e seus herdeiros a possibilidade de barrar na Justiça a publicação de biografias que não tenham sido previamente autorizadas.

    Festival Internacional de Biografias

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    Henrique Kardozo/Estúdio Pã/Divulgação
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    Ruy Castro (esq., com microfone) ao lado de Mário Magalhães no Festival Internacional de Biografias, em Fortaleza
    O grupo tenta, no Supremo Tribunal Federal e no Congresso, alterar a legislação, mas enfrenta a resistência de artistas de peso da MPB, como Chico, Caetano, Roberto e Gilberto Gil, para quem a liberdade de expressão deve ser conciliada com o direito à privacidade.
    O autor de "O Anjo Pornográfico" (biografia de Nelson Rodrigues), "Estrela Solitária" (biografia de Garrincha) e "Carmen: Uma Biografia" (Carmen Miranda), entre outras obras, conversou sobre o tema "Ciência e arte da biografia" com o jornalista Mário Magalhães, autor de "Marighella - O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo" e curador da programação literária do FIB.
    ATAQUE A ROBERTO
    Quando Magalhães recordou que Roberto Carlos já havia processado o colega de mesa por causa de um perfil publicado nos anos 1980 na revista "Status", ação na qual Ruy acabaria condenado, o escritor atacou o cantor.
    "Roberto Carlos é um censor nato e hereditário, ele censura até a si próprio. Censurou o primeiro LP que ele gravou, censurou o "inferno" [em "Quero que Vá Tudo pro Inferno"]. Na Nova República, quando o governo Sarney proibiu o filme "Je vous Salue, Marie", de Godard, Roberto Carlos disse que tinham feito muito bem."
    O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que defende Roberto Carlos, disse à Folha que não responderia a Ruy.
    "Pregamos o direito à liberdade de expressão e à intimidade. Ele [Ruy] tem todo o direito de se expressar. Não vou entrar em debate com ele", afirmou Kakay.
    Ruy criticou o artigo publicado por Chico no jornal "O Globo" em defesa do direito de preservação da privacidade dos artistas e que continha erros (ele disse que não deu uma entrevista que havia dado e confundiu episódios históricos).
    "Do Roberto Carlos espera-se qualquer coisa, mas nunca imaginei que Chico Buarque fosse fazer o que fez. O artigo dele é lamentável, cheio de erros. Chico Buarque é uma péssima fonte de informação sobre si mesmo."
    Ruy criticou Caetano quando Magalhães perguntou qual era o limite de invasão de privacidade do colega.
    "Eu não tiro foto pelado com minha mulher e meu filho e ponho na capa de disco. Caetano fez isso."
    Em seguida, fez menção a uma reportagem da revista "Caras" com Caetano e sua então mulher Paula Lavigne.
    "Estão nos confundindo com revistas de fofocas, revistas essas para as quais eles já abriram inúmeras vezes as portas das suas casas para serem fotografadas, deixaram à mostra sua intimidade, descreveram os tratamentos físicos de suas mulheres para se tornarem as sereias que elas são. Durante várias ocasiões, não tiveram nada contra essas revistas, talvez não tenham, porque essas revistas lhes ajudam a vender discos, fazerem shows etc. Agora, uma biografia que leva três, cinco anos para ser feita, não pode."
    DESAFIO A DJAVAN
    Questionado como Chico, Caetano e Gil adotaram tal posição, Ruy afirmou:
    "Eles foram vítimas de um acordo entre Paula Lavigne e Roberto Carlos: se Roberto Carlos os apoiasse na questão do Ecad [na criação de um lei para o controle externo da arrecadação de direitos autorais], eles o apoiariam na questão das biografias não autorizadas."
    "Mas eles não contavam que pudéssemos ser eficientes no uso da única arma que temos, que é a palavra. Eles não contavam que a opinião pública, que eles dominam e manipulam há décadas, se voltaria contra eles pela primeira vez."
    O biógrafo ainda fez um desafio a Djavan, outro integrante da causa dos artistas, que disse que biógrafos ganham "fortunas": "Eu trocaria os direitos autorais de todos os meus livros pelos de uma música de sucesso do Djavan".
    CIÊNCIA E ARTE
    Segundo Ruy, ciência e arte são duas palavras que resumem bem o fazer biográfico.
    "Uma pessoa pode se tornar um biógrafo aprendendo a parte mecânica da coisa. Mas só essa ciência não basta. Não é qualquer pessoa que tem fixação pela informação e não desiste enquanto não localiza uma fonte. Ou você nasce com isso ou não poderá ser um biógrafo."
    Disse que, se houvesse curso de biografia na universidade brasileira, o aspirante a biógrafo teria de ter aulas nas faculdades de jornalismo, de história e de letras.
    Indagado se um biógrafo pode imaginar cenas e flertar com a ficção, respondeu: "Sou absolutamente radical nesse ponto. Se tiver um pingo de imaginação, já fecho o livro. Biógrafo tem de trabalhar com informação. Sem informação não há biografia. Não há necessidade de inventar. A graça para o biógrafo é descobrir a informação."
    CAUSA GANHA
    Antes do início do debate, Ruy Castro afirmou que a disputa para modificar a lei que permite censura prévia a biografias no Brasil está resolvida em favor da liberdade de expressão.
    "A tese da liberdade de expressão, da biografia independente, está ganha. A opinião pública já se manifestou favorável [à tese]. O que falta definir agora são as filigranas jurídicas", disse o escritor.
    Tanto o Supremo quanto o Congresso analisam a alteração da lei.
    Embora afirme que poderá assinar uma carta-manifesto endereçada aos ministros do Supremo, ao Congresso e à sociedade --sugerida por Fernando Morais e por ele batizada de "Carta de Fortaleza"--, Ruy diverge do colega sobre a necessidade do documento, justamente por considerar que o principal da disputa está resolvido.
    "Não sei se precisa de mais carta, mais manifesto [já houve alguns de intelectuais e acadêmicos desde o início da controvérsia]."
    "Mas se tiver uma carta, você assina?"
    "Assino."

    Crianças do Xingu brincam de caçar antas e outros animais na floresta

    GABRIELA ROMEU

    COLABORAÇÂO PARA A FOLHA de são paulo, EM ALTAMIRA (PA)
    Ouvir o texto

    Ao lado de um barco, uma anta caçada há pouco era cortada em pedaços. Algumas crianças espiavam os dentões do animal, outras carregavam sua porção do bicho para casa.
    A cena ocorreu na aldeia Koatinemo, do povo asurini do Xingu, que fica a algumas horas de barco da cidade de Altamira, no Pará. Na região, vivem diversos grupos indígenas -xicrin, arara, juruna e outros.
    Arauari é um dos meninos que estavam por ali, brincando de mergulhar como flecha no rio e de cruzar as corredeiras. O garoto, que não sabe ao certo sua idade, mas calcula ter uns 11 anos, contou que é também um caçador.

    Quintais - Infância no Xingu

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    Samuel Macedo/Projeto Infâncias
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    Menina mostra panelinha de barro que fez ao lado das mulheres da aldeia asurini
    Desde pequeno, Arauari acompanha o pai e o irmão em caçadas na floresta. Saber andar na mata, capturar a caça e trazer o animal para casa fazem parte de seu aprendizado.
    A hora de sair para caçar é à tardinha, quando entram na mata e esperam num lugar até anoitecer. "A gente vai aonde está a comida do bicho", disse.
    Um dia foi assim: "Ficamos bem quietos. Deu oito horas, e a anta apareceu -'tuc, tuc, tuc'", imita o som da pisada do animal. "Meu irmão deu três tiros." O bicho caiu. "Foi pesado para carregar para a aldeia."
    Também caçam paca, porcão e jabuti. "Um dia peguei três jabutis", disse orgulhoso. Ele já conhece os perigos na mata. "Quando o bicho está com filhote, fica bravo." O jeito é subir rapidinho no açaizeiro para se proteger.
    De volta à aldeia, "quando a caça é grande", é repartida. Nos dias em que estive lá, caçaram uma paca e três antas. E até os visitantes ganharam um bom pedaço. Concordo com Arauari: carne de paca é a melhor. E bem mais gostosa do que as latinhas de atum que eu havia levado na bagagem e me esperavam para o jantar.
    GENTE DE VERDADE
    Os asurinis são uma população indígena tupi contatada pelo homem branco em 1971, quando começou a construção da rodovia Transamazônica.
    Nessa época, o grupo foi batizado de asurini, que quer dizer "vermelho", devido ao uso do urucum (fruto) para pintura do corpo. Ficou conhecido como asurini do Xingu, pois no Tocantins vivem outros asurinis. Mas o grupo se chama de awaeté, que quer dizer "gente de verdade".
    Os asurinis são conhecidos pelos bonitos desenhos geométricos pintados nos corpos e em panelas de cerâmica.
    MAPA DO QUINTAL
    Um grupo de 150 asurinis vive na Terra Indígena Koatinemo, na cidade de Altamira (PA), localizada no Médio Xingu. Em Altamira, há mais de 3.700 índios em 12 terras indígenas
    Nos anos 1970, os indígenas da região passaram por transformações provocadas pela abertura da rodovia Transamazônica. Agora, têm de lidar com a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, que pode dificultar a pesca e o transporte no rio Xingu.

    Preocupação ambiental eleva valor de empresas, diz presidente de ONG internacional Scott Poynton - RICARDO MIOTO

     FOLHA DE SÃO PAULO
    Muitas empresas procuram ONGs da área ambiental apenas para fazer "greenwashing" -marketing verde e do bem sem efeitos práticos maiores-, critica o australiano Scott Poynton, presidente da ONG internacional The Forest Trust.
    A entidade ajuda empresas a "limpar" a sua cadeia de produção, selecionando, por exemplo, fornecedores que não causam desmatamento.

    Scott Poynton, presidente da ONG The Forest Trust
    Scott Poynton, presidente da ONG The Forest Trust
    Poynton comenta ainda as dificuldades de ao mesmo tempo certificar as boas práticas ambientais das empresas e depender dos recursos oferecidos por elas.
    No Brasil, a ONG trabalha com empresas como Natura, Grupo Pão de Açúcar e Camargo Corrêa.
    *
    Folha - Como a organização se banca? Vocês recebem dinheiro das empresas?
    Scott Poynton - Sim. Cerca de 90% da nossa receita vem daí. Outros 10% são de fundações que nos apoiam.

    *
    Como vocês avaliam as empresas cujo dinheiro mantém a ONG, não pode surgir um conflito de interesses?
    Você tem de ter valores. E é importante deixar claro que você não quer parceiros a qualquer custo. Nós falamos: "Não trabalhe conosco se você não quer mudar".

    Nosso trabalho é ajudar as empresas a limpar a sua cadeia de produção, tanto pelo aspecto ambiental quanto pelo social.
    Ajudamos a implementar novas políticas, por exemplo, na gestão ambiental de fazendas e de florestas. Quem são os fornecedores? Como eles trabalham?
    Nosso objetivo não é dizer à empresa "vocês têm de salvar o mundo", mas "ser sustentável aumenta o valor da sua marca, reduz seu risco, aumenta a receita". Se a empresa entende isso, tudo muda.
    Tivemos experiências ruins com empresas que não queriam mudar -mudar é desconfortável para muitas. Em geral, as empresas não reagem bem a críticas. E nós tentamos ser muito transparentes no que estamos fazendo.
    *
    Mas não há muitas empresas que procuram apenas "greenwashing"[propaganda verde, sem que existam ações ambientais de fato]? A sustentabilidade não acaba sendo um conceito mais ligado ao marketing do que às operações?
    Sim, há muito "greenwashing", uma busca por melhorar a imagem. E acho que muitas empresas procuram ONGs para isso.

    *
    O que vocês fazem quando a empresa não muda? Falam para ela ir embora?
    Nós somos mais cuidadosos com relação a com quem trabalhamos agora. No começo, há 15 anos, tivemos dificuldades com algumas empresas. Uma grande empresa nos ofereceu uma doação generosa para que continuássemos como parceiros. Não aceitamos, claro, e terminamos a parceria.

    Embora as empresas com que deixamos de trabalhar saiam da nossa lista de parceiros no site, evitamos um anúncio público, pois um dia elas podem mudar e voltar a buscar uma cadeia de produção sustentável.
    *
    Nos últimos anos a sustentabilidade, especialmente no que se refere a aquecimento global, parece ter perdido algum apelo na opinião pública e entre os políticos. Nos EUA, muitos parlamentares questionam o aquecimento global, por exemplo. A agenda ambiental anda meio fora de moda?
    Por um lado, eventos como o tufão das Filipinas, com milhares de pessoas mortas, mostram que devemos ter cuidado com a mudança climática. Por outro, há essa tendência política da qual a Austrália é um exemplo.

    O primeiro-ministro que acaba de assumir [o conservador Tony Abbott] basicamente não acredita no aquecimento global e cortou todo o financiamento de programas de redução das emissões de carbono.
    No fim das contas, de maneira geral os governos que têm sido eleitos não encaram o problema de forma enfática. Há uma falta de ação. O problema é que o desafio do aquecimento global tem de ser enfrentado, não se pode deixar a conta para os nossos netos.
    *
    Está começando agora a 19ª Conferência do Clima da ONU. O senhor está pessimista?
    Acho que o mais importante sobre isso é perceber que dificilmente uma solução de cima para baixo vai ajudar contra o aquecimento global.

    Creio que consumidores mais conscientes exigirão das empresas uma nova atitude, uma maior consciência sobre as suas cadeias de produção. 

    Marcelo Gleiser

    folha de são paulo

    Físico paulista conta em livro como a ciência desvendou o que é a matéria

     
    MARCELO GLEISER
    COLUNISTA DA FOLHA



    Em julho do ano passado, o mundo da ciência foi sacudido por uma incrível descoberta: uma partícula de matéria, conhecida na mídia como a "partícula de Deus", foi descoberta por cientistas no Centro Europeu de Física Nuclear, ou Cern, em Genebra.
    Claro, a menção de caráter teológico a uma descoberta científica amplificaria qualquer achado. Teriam cientistas encontrado Deus?
    No caso, Deus tem pouco a ver com a história. O nome vem do livro do prêmio Nobel Leon Lederman "A Partícula Deus". Segundo ele, um conhecido piadista, a ideia era dar o título "A Partícula Desgraçada" (do inglês "The Goddamn Particle"), mas seu editor sugeriu tirar o "desgraçado" (damn) do título.
    Como resultado, pessoas de fé se iludiram com a descoberta, achando que finalmente a ciência tinha obtido prova da existência de Deus.
    Felizmente, Rogério Rosenfeld, professor do Instituto de Física Teórica da Unesp, trabalhava no Cern na época da descoberta e decidiu escrever um livro explicando-a de forma acessível.
    O resultado, "O Cerne da Matéria", é um exemplar notável de divulgação científica, escrito por um brasileiro de renome internacional.
    É comum, quando falamos de ciência para o público não especializado, esquecer que, para a maioria das pessoas, os achados científicos, especialmente os da ciência mais afastada do nosso dia a dia, têm um ar de mistério e impenetrabilidade não tão diferente de pronunciamentos religiosos. Escuto com frequência: "Por que devo acreditar no que me diz um cientista?".
    A resposta é que, em ciência, descobertas são anunciadas com tremendo cuidado e declaradas corretas apenas após receber o apoio da comunidade. São obtidas por meio de medidas extremamente precisas, verificadas por grupos independentes.
    No Grande Colisor de Hádrons (LHC), a gigantesca máquina usada no Cern para estudar os menores componentes da matéria, há dois grupos que medem de forma diferente os mesmos eventos de colisão entre partículas. Com isso, um pode verificar se o seu resultado coincide ou não com o do outro.
    No livro, Rosenfeld conta de forma clara e energética a história do Cern, da física de partículas nos séculos 20 e 21, culminando com a descoberta do bóson de Higgs, que nada tem a ver com Deus. Ele é a partícula elementar que faz as outras adquirirem massa.
    O autor conta também como essas descobertas são feitas, e porque são motivo de orgulho dos físicos. Mostra como se faz ciência de ponta e porque deve ser feita, mesmo que não leve diretamente a aplicações tecnológicas.
    Vale lembrar que a World Wide Web foi criada no Cern, para facilitar a comunicação entre físicos e engenheiros trabalhando nesses experimentos. Muitas das descobertas mais essenciais da ciência não foram antecipadas.
    Com lucidez, Rogério discorre sobre a importância da descoberta do Higgs e das outras partículas que o LHC procura, mostrando que o trabalho dos cientistas está só começando. Mostra o que sabemos sobre a composição da matéria e indica quais ideias permanecem especulativas, ao mapear o campo da física das altas energias.
    Sabemos que resta muito a aprender, visto que as partículas conhecidas respondem por apenas 5% da matéria que preenche o Cosmo. Os outros 95% permanecem um mistério, algo que o LHC pode ajudar a investigar.
    De qualquer forma, é sorte nossa termos cientistas como Rogério Rosenfeld, com a generosidade de dividir conosco um pouco do que sabem. Sua obra é leitura essencial.

    O CERNE DA MATÉRIA
    AUTOR Rogério Rosenfeld
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 39,50 (208 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo 

    Jornal pessoal de cronista ganha reedição - Raquel Cozer

    Jornal pessoal de cronista ganha reedição
    'Diário da Tarde', de Paulo Mendes Campos, publicado em livro há três décadas, sai agora em formato tabloide
    Publicação do IMS segue o formato idealizado pelo autor, com seções literárias, esportivas e de frases
    RAQUEL COZER COLUNISTA DA FOLHA
    Paulo Mendes Campos foi fundador, diretor de Redação e revisor do "Diário da Tarde", conforme se lia no expediente da publicação. Era ainda colunista, repórter e editor, espécie de funcionário dos sonhos de todo dono de jornal. No caso, dele mesmo.
    O projeto não durou. Suas 20 edições vieram a público em uma só ocasião, em 1981, reunidas em livro da editora Massao Ohno, em parceria com a Civilização Brasileira.
    Mas ganhou status de preciosidade para os admiradores da obra do cronista e poeta mineiro (1922-1991), sem nunca ter chegado aos leitores no formato que o autor imaginava, de tabloide.
    Essa lacuna histórica é reparada pelo Instituto Moreira Salles, que lança edição especial com projeto gráfico de Daniel Trench e ilustrações de Veridiana Scarpelli. O evento será na segunda, no Rio, com debate de Renato Terra, da revista "piauí", e Xico Sá, colunista da Folha.
    É verdade que, como dono e senhor do "Diário da Tarde", Mendes Campos se deu a liberdades como reutilizar material veiculado em jornais de verdade, por assim dizer.
    É o caso, em especial, dos textos das duas principais seções de cada uma das edições, "Artigo Indefinido", de ensaios literários, e "O Gol É Necessário", de crônicas.
    A parte literária trazia recortes variados como uma interpretação do "Cântico dos Cânticos" bíblico, um perfil de Virginia Woolf e um bate-papo imaginado entre Cecília Meireles e Emílio Moura.
    Este, sem tirar nem pôr uma vírgula em versos de um e outro poeta, resultou em um extenso diálogo com falas como "Ele: Teu sorriso é tão puro que te ilumina toda. Ela: Quero apenas parecer bela".
    Já as crônicas de futebol desde a primeira edição lamentavam: "Vai-se tornando avaro esse esporte, pois, vivendo às custas do consumidor, nega a mercadoria pela qual este paga, não à vista, mas antes de ver: gols".
    CAUSOS E FRASES
    Cada uma das edições incluía ainda a seção "Poeta do Dia", com versos dos criadores preferidos de Mendes Campos, como Paul Verlaine, Dylan Thomas e T.S. Eliot.
    E, para completar, cinco seções divertidas, com causos e frases de efeito, "Bar do Ponto", "Pipiripau", "Grafite", "Suplemento Infantil" e "Coriscos". Ao leitor que folhear o "Diário da Tarde", estes certamente ressaltarão.
    No "Bar do Ponto" da edição nº 5, por exemplo, o autor determina: "O poeta é a criança; o romancista é o adolescente; o ensaísta é a madureza; o crítico é a velhice".
    Na mesma página, a seção "Pipiripau" parece feita dia desses: "Nunca se imprimiu tanto. E nunca se aproveitou tão pouco [...]. A livralhada sexual é idiota; a violenta é pueril; a de terror não chega a impressionar crianças; a esotérica é de dar pena; a fofoqueira ainda pode distrair, mas mente pelos dedos".