domingo, 17 de novembro de 2013

Carlos Heitor Cony

folha de são paulo
A morte de Jango
RIO DE JANEIRO - Em 2003, a editora Objetiva lançou o livro "O beijo da Morte", escrito por mim e Anna Lee, sobre as mortes de JK, João Goulart e Carlos Lacerda. Ganhamos o Prêmio Jabuti de Reportagem daquele ano, o livro ficou vários meses na lista dos mais vendidos e não sofreu nenhuma contestação até agora.
Não chegamos a nenhuma conclusão historicamente final, mas levantamos todas as hipóteses que cercaram o desaparecimento, em pouquíssimos meses, das nossas lideranças mais expressivas: Lacerda, pela direita, Jango, pela esquerda, e Juscelino, pelo centro.
Agora, o governo brasileiro solicitou a exumação do corpo de João Goulart e providenciou honras de chefe de Estado para o ex-presidente, morto no exílio. São muitas as interrogações que cercam a morte de Jango. Contrariando uma prática internacional, o governo argentino não providenciou a autópsia de um estrangeiro morto em seu território. Tampouco o governo brasileiro daquela época fez algo nesse sentido, pelo contrário, ordenou a todas as forças militares e policiais do Brasil que o prendessem tão logo chegasse ao território brasileiro.
Os jornais estão noticiando que Jango morreu de infarto, uma vez que era cardíaco e estava se tratando com médicos ingleses. Essa versão atual da mídia contraria o atestado de óbito do ex-presidente, emitido por um médico pediatra, chamado por dona Thereza Goulart. O atestado declara que a morte foi causada por uma "enfermedad".
Para escrevermos o livro, Anna Lee e eu tivemos financiamento da editora e viajamos repetidas vezes à Argentina, ao Uruguai e ao Rio Grande do Sul. Entrevistamos mais de 50 pessoas, inclusive o cidadão Mario Neira Barreiro, agente do serviço secreto uruguaio, e Enrique Foch Diaz, que não só confirmou o assassinato de Jango, mas escreveu um livro chamado "João Goulart - El Crimen Perfecto".

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    Não matarás?
    SÃO PAULO - Concordo com meu amigo Leão Serva quando escreveu, em sua coluna de segunda-feira, que leis simples são preferíveis às que exigem regulamentação muito complexa e que este é um dos fatores que fizeram com que a Lei Cidade Limpa "pegasse". Discordo, porém, da afirmação de que o "Não matarás", dos Dez Mandamentos, se enquadre nessa categoria de legislação.
    A lei mosaica, afinal, não se resume às duas tábuas, mas a um conjunto de comandos --que chegam a 613 nas contas dos rabinos-- dispersos pelos cinco livros do Pentateuco. E, em alguns deles, matar não só é permissível, como, por vezes, obrigatório.
    Em Deuteronômio 7:2, por exemplo, Deus ordena aos israelitas que varram do mapa todas as nações que habitavam a terra prometida: "Destruam-nos completamente. Não façam, de maneira nenhuma, qualquer espécie de alianças com eles; não tenham misericórdia deles. Devem liquidá-los completamente".
    Leis de guerra, alguém poderia alegar. E guerras são sempre um período de exceção. Bem, no mesmo Deuteronômio (deveria ser um livro proibido para menores), agora no capítulo 13, Deus diz o que os israelitas devem fazer com seus irmãos, filhos, esposas e amigos que decidam servir a outros deuses: "Deverás matá-lo! Tua mão será a primeira a matá-lo e, a seguir, a mão de todo o povo. Apedreja-o até que morra, pois tentou afastar-te de Iahweh, teu Deus".
    E, é claro, há muito mais. Philip Jenkins, em "Laying Down the Sword", faz um rol completo das passagens mais brutais do Antigo Testamento e sustenta que a Bíblia é muito mais sanguinária do que o Alcorão. Jenkins, que é cristão devoto e contribui para publicações conservadoras dos EUA, diz que é preciso reconhecer a violência das Escrituras e compreendê-la em seu contexto histórico como parte integral das tradições judaica e cristã. É só assim, diz ele, que se poderá cultivar uma religiosidade mais pacífica.

    Dez questões de ordem

    folha de são paulo
    Dez questões de ordem
    1 Foi o maior escândalo político da história do país?
    Não, se considerarmos só o total das somas envolvidas. O escândalo recente dos fiscais da Prefeitura de São Paulo trouxe prejuízos calculados em R$ 500 milhões aos cofres públicos. O dinheiro desviado por Henrique Pizzolato do Fundo Visanet, e por extensão do Banco do Brasil, corresponde, em valores corrigidos, a cerca de um terço disso, e foi a principal fonte do mensalão.
    Sim, se considerarmos que envolveu, num mesmo esquema, o primeiro escalão de três partidos (PT, PL e PTB), além de membros do PMDB, o presidente da Câmara dos Deputados, três ministros, entre os quais o homem forte do governo Lula, banqueiros e parlamentares.
    2 O mensalão existiu? Não era só caixa dois?
    No começo, negou-se até a existência de saques em dinheiro. Houve quem dissesse ter ido ao banco só para pagar TV a cabo. Descoberta a mentira, veio a tese de que o dinheiro não visava comprar deputados: distribuíram-se só recursos não-declarados de campanha para parlamentares, que em seguida os repassaram a diretórios.
    Pela lei, não importa o destino dado ao dinheiro "extra". Pode ser para comprar objetos de luxo ou... para garantir mais votos, cabos eleitorais e crédito na compra de material publicitário para a próxima eleição. Sobrou a tese ridícula de que o mensalão "nunca existiu" porque a propina não era mensal.
    3 Qual a lógica de comprar votos de deputados da própria base?
    Argumentou-se que não havia corrupção porque o apoio de deputados petistas e de partidos aliados já estava garantido, mesmo antes de votações polêmicas no Congresso, como a da reforma previdenciária.
    Dizer isso é ignorar as célebres "rebeliões" de deputados às vésperas de qualquer votação. Tanto mais no caso da reforma da Previdência proposta por Lula, que negava compromissos do partido, e motivou a saída, por exemplo, de Heloísa Helena e outros do PT.
    Ademais, por que não enviar o suposto dinheiro de "caixa 2" diretamente aos diretórios regionais, em vez de fazê-lo passar pelos deputados?
    4 Os envolvidos no esquema formaram uma quadrilha?
    Sim, se se considera que eles estiveram associados durante muito tempo para manter em funcionamento o esquema. Não, se se considera que uma coisa é participar em conjunto de uma série de crimes, outra é cometer um crime particular, específico, o da "formação de quadrilha".
    Neste caso, o que a legislação proíbe não é praticar crimes em grupo, mas criar um grupo que, mesmo sem cometer crime, constitui ameaça à paz pública. Um bando armado de porretes, gritando palavras ameaçadoras, não comete crime -exceto o de formar quadrilha, trazendo inquietação.
    O STF voltará a debater o assunto em 2014.
    5 O mensalão representou uma ameaça à democracia?
    Na medida em que pressupunha pagamento direto a deputados, o esquema dissolvia as próprias instâncias internas dos partidos. Dinheiro público foi usado para ajudar as contas do partido no poder.
    Mas quando se sabe que parlamentares podiam ser eleitos por um partido e em seguida aderir ao partido do governo, é difícil considerar a compra de votos, em dinheiro vivo, pior que a compra de um deputado por inteiro, em troca de cargos ainda mais lucrativos.
    O sistema do mensalão terá parecido, talvez, mais econômico para o governo do que a negociação de emendas no Orçamento para aliados.
    Houve mais rigor neste caso do que com outros escândalos?
    Sim, o que não quer dizer que as denúncias ocorreram por se tratar de um governo petista.
    Notícias gravíssimas foram veiculadas contra Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. A confissão de dois deputados, segundo a qual receberam dinheiro para votar a emenda da reeleição, foi noticiada pela Folha; a denúncia não foi levada adiante pelas autoridades, que impediram uma CPI.
    Também por falha nas acusações do Ministério Público, as acusações contra o presidente Fernando Collor -que lhe custaram o mandato- não foram aceitas pelo Supremo Tribunal Federal.
    7 O supremo tribunal federal decidiu pressionado pela mídia?
    Se fosse assim, a maioria não teria votado pela aceitação dos embargos infringentes. Petistas como Luiz Gushiken, professor Luizinho, Paulo Rocha, e o ex-ministro Anderson Adauto (PMDB) estariam condenados. As penas contra os banqueiros não teriam sido as mais altas.
    A opinião pública, de modo geral, lamentou a condenação de Genoino; mesmo no STF houve quem afirmasse estar tendo de condená-lo contra a vontade.
    Se a vontade de "sair-se bem" tornava-se visível nos pronunciamentos de alguns ministros, cabe lembrar que o autor dos mais furiosos discursos contra os mensaleiros, Gilmar Mendes, é o mesmo que suscitou ira popular ao conceder liberdade para Daniel Dantas, em 2008.
    8 As penas impostas pelo supremo foram desproporcionais ou exageradas?
    Pelo menos num caso, o de Jacinto Lamas, sim: ele terminou sendo condenado de forma mais severa do que o seu superior no PL, Valdemar Costa Neto, por um número praticamente igual de crimes de lavagem de dinheiro.
    O cálculo das penas foi muito confuso, pois às vezes prevaleciam os critérios mais brandos de Ricardo Lewandowski, outras vezes os de Joaquim Barbosa.
    De modo geral, a lei é muito mais severa no caso de crimes financeiros, levando a penas altíssimas contra os banqueiros do esquema. Como se repetem ao longo de uma mesma armação delitiva, nem um homicídio dá tantos anos de cadeia.
    9 O ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas?
    Não há gravação ou e-mail mostrando claramente que Dirceu dava ordens a cada reunião em que Delúbio Soares, dirigentes partidários e Marcos Valério faziam acertos sobre pagamentos.
    Houve testemunho, não só de Roberto Jefferson, de que ele era consultado pelo celular e dava seu "ok". A defesa colheu testemunhos supostamente em contrário, junto a dirigentes regionais do PT, segundo os quais Dirceu não participava dos assuntos financeiros.
    Mas isso não desmente a acusação de que ele chefiava politicamente o esquema, nem explica sua participação em encontros com Valério e dirigentes do Banco Rural. A tese de que simplesmente conversaram sobre assuntos gerais simplesmente não convenceu a maioria do STF.
    10 O julgamento foi uma vitória contra a corrupção?
    O problema é saber se, com as condenações obtidas, algum político vai pensar em modificar seus comportamentos. Provavelmente não.
    Mesmo quem não pretende enriquecer com suas atividades -e certamente José Genoino sempre se pautou por uma vida simples, por exemplo- depende de campanhas cada vez mais caras para se eleger.
    A possibilidade de obter recursos só via fundo partidário e contribuições de simpatizantes é pouco realista; gastos com viagens, marqueteiros e propaganda são financiados por bancos, construtoras e empresas, que esperam vantagens em troca, seja em contratos com o setor público, seja em atos de governo ou votos no Legislativo. Há muitas maneiras de comprar deputados; o mensalão foi apenas explícito demais.

      Elio Gaspari

      folha de são paulo
      Dirceu, os comissários e a Du Barry

      VIVA O BRASIL
      Jango voltou a Brasília na última quinta-feira e foi recebido com uma salva de 21 tiros de canhão. Trapaça da História: foram disparados mais tiros de armas pesadas nessa cerimônia do que nas 48 horas do levante militar que o depôs, em 1964.
      João Goulart asilou-se no Uruguai voando num teco-teco, voltou a Brasília num Hércules da FAB e desceu nos ombros de dez soldados. Enquanto viveu, seria preso se pusesse os pés no seu país. Durante muitos anos, nem passaporte teve.
      Foi uma cerimônia oficial, com banda e cornetas, nada a ver com o dia de 1976, quando 400 mil pessoas levaram o caixão de Juscelino Kubitschek pelas avenidas do Rio e de Brasília cantando a modinha "Peixe Vivo". Essa foi a primeira manifestação popular desde que a ditadura baixou a noite do AI-5, em dezembro de 1968. JK teve direito a luto oficial, Jango, nem isso.
      Nessa hora, alguém pode olhar para o céu e lembrar a figura da escritora gaúcha Mila Cauduro, morta em 2011, aos 95 anos.
      A ditadura exigiu que o cortejo fúnebre de Jango viajasse até São Borja sem parar na estrada, pois queria evitar a repetição das cenas ocorridas meses antes com JK. Mila saiu de Porto Alegre levando uma faixa branca, na qual estava escrita, em letras vermelhas, a palavra "Anistia". No velório, com a ajuda da filha de Jango e a concordância da viúva Maria Thereza, colocou-a sobre o caixão. No dia seguinte, pela primeira vez, a palavra maldita estava na primeira página dos jornais.
      Militava no comitê gaúcho pela anistia uma jovem que saíra da cadeia em 1972. Chamava-se Dilma Rousseff.

      O FUTURO DE BARBOSA

      Na sessão de quarta-feira do STF Joaquim Barbosa disse que até dezembro haverá um pedido de aposentadoria de ministro da corte. Pelo calendário, não haveria. O decano Celso de Mello só completará 70 anos em novembro de 2015. Se Barbosa se referia à própria aposentadoria precoce, o calendário eleitoral informa que até abril ele poderá decidir se entra na disputa da eleição presidencial, pois os juízes têm um prazo especial para desincompatibilizações. Se não disputar o Planalto, estará preso à lei que exige um ano de domicílio eleitoral no Estado onde pretende disputar um cargo. Como seu domicílio está no Rio, só poderá concorrer no Rio. Joaquim Barbosa disputando o Palácio Guanabara ou uma cadeira de senador animaria a campanha do Estado.
      MISTÉRIO
      Há alguns meses, quando havia uma vaga no STF, um conhecido advogado recebeu uma inesperada visita de um amigo. Ele lhe perguntou qual seria seu voto no embargo relacionado com a formação de quadrilha dos réus do mensalão. Ouvindo que o advogado mandaria todos para a cadeia, em regime fechado, o amigo retornou a Brasília. O sujeito oculto da pergunta era o comissário José Dirceu. Se essa conversa foi a única, ou se o amigo tinha alguma credencial, não se sabe.
      AVISO AMIGO
      O repórter Diego Escosteguy denunciou um nicho de propinas montado entre a empresa que presta assessoria de imprensa ao ministro Guido Mantega e alguns de seus colaboradores. Não existe ministro, governador ou prefeito bobo. Eles sabem quando usam dinheiro da Viúva em gambiarras injustificáveis.
      A BRUXA WARREN ASSUSTA WALL STREET
      Um ano depois de ter chegado ao Senado americano, Elizabeth Warren confirma os piores receios da banca. Ela surge como possível candidata à Presidência dos Estados Unidos. Tem 63 anos, foi professora de Harvard e conhece o avesso do andar de cima. O companheiro Obama nomeou-a para dirigir a Agência de Proteção Financeira do Consumidor e, em seguida, desidratou-a. É uma crítica feroz dos privilégios de Wall Street e da mitologia dos milionários: "Neste país ninguém ficou rico à sua custa -ninguém. Você transporta seus produtos em estradas que nós pagamos; você contrata pessoas que foram educadas pelo sistema público, sua fábrica está segura porque nós pagamos a polícia e os bombeiros. (...) Nosso contrato social pressupõe que você receba uma parte dos benefícios e pague para que um garoto seja beneficiado por ele".
      Warren surge como uma adversária da máquina de Hillary Clinton, impulsionada pelo êxito de Bill de Blasio, um candidato que saiu do nada e arrastou a Prefeitura de Nova York. Ambos são chamados de populistas. No vocabulário político americano essa palavra não tem a carga demófoba que adquiriu no Brasil. Theodore Roosevelt foi um presidente populista, com muita honra.
      As chances de Elizabeth Warren são poucas, como eram as de Obama quando foi para o Senado, em 2005. Mesmo assim, começaram a influenciar a campanha.
        Dirceu, os comissários e a Du Barry




      Madame du Barry, a namorada de Luís 15, tornou-se um exemplo da cegueira dos poderosos. Cheia de dinheiro e joias, vivia em seu castelo quando começou a Revolução Francesa. Foi várias vezes a Londres e sempre retornou a Paris. Em 1793 ela foi presa e passada na lâmina. A madame sabia o que estava acontecendo, até porque um dia deixaram a cabeça de seu novo namorado na janela de sua casa. Perdera a capacidade de entender seu país.
      Só a síndrome da Madame Du Barry pode explicar que o comissário José Dirceu tenha resolvido passar num resort de endinheirados o dia (útil) da sessão do Supremo que o mandou dormir na cadeia. Se ele acreditava que ninguém saberia e que celulares não fazem vídeos, a Du Barry também achava que tinha amigos na nova ordem.
      A alma da bela senhora influencia outros comissários. O PT paulista quer pacificar a ofensiva contra a máfia de fiscais de renda que mordiam empresários. O governador de Brasília, Agnelo Queiroz, quer contratar por R$ 1,4 milhão anuais um serviço de jatinhos que lhe permita fazer até mesmo voos internacionais. A repórter Patrícia Campos Mello revelou que Robson Andrade, presidente da Confederação Nacional da Indústria, defendeu nos Estados Unidos a negociação de um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos. Direito dele, mas poderia ter levantado o assunto em Pindorama, pois um acordo desse tipo provocaria uma mudança radical na economia do país. Um dos triunfos da diplomacia de Lula foi o enterro da proposta americana de criação da Alca. Semelhante iniciativa, vinda do presidente da CNI, recebeu uma resposta burocrática do Ministério do Desenvolvimento: "O governo está focado na troca de ofertas com os europeus para um futuro acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia". É pouco, até porque se a CNI quer um acordo de livre-comércio com os americanos, o ministério teria a obrigação de rediscutir o foco. Quando o doutor Robson Andrade presidia a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, concedeu ao comissário Fernando Pimentel, atual ministro do Desenvolvimento, uma Bolsa Consultoria de R$ 1 milhão por nove meses de serviço.

      Janio de Freitas

      folha de são paulo
      Um nome guardado
      Dirceu, Genoino e Delúbio estão levando para a prisão o segredo de um nome que não quiseram mencionar
      No dia em que for contada a história verdadeira dos fatos cuja versão predominante prestou-se ao chamado julgamento do mensalão, entre outros possíveis personagens novos estará ao menos um que, por si só, muda a configuração e a essência da história conhecida.
      Duas observações urgentes aqui. A primeira é de que não me refiro a Lula, como o personagem de relevância especial.
      A outra é a de que não conheço os fatos completos. A partir de duas inserções breves e bastante sutis, que me foram dirigidas em conversas diferentes há poucos meses, passei a rever muitas anotações feitas desde o começo do caso mensalão, interrogatórios, depoimentos e conversas memorizadas ou com pontos focais por mim registrados. Nada de excepcional no trabalho de jornalismo.
      Como também consigo ser sutil às vezes, foi desse modo que testei minha constatação com um dos que poderiam derrubá-la. Sobreviveu. E, se não posso expô-la por motivo legal, basicamente falta de prova objetiva e firme, posso dizer com convicção: a cada vez que cruzarem a porta de sua reclusão, José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares estarão levando o segredo de um nome e de fatos que não quiseram mencionar. Ou, na linguagem vulgarizada pela ditadura, não quiseram entregar ou dedurar.
      Os ministros do Supremo, como todos os juízes, julgaram o que foi submetido ao seu conhecimento jurídico e, mais ainda, às suas consciências. O mesmo não pode ser dito sobre a Procuradoria-Geral da República, que teve a responsabilidade de reunir e passar ao STF as informações e comprovações apuradas, as conclusões e suas acusações no caso. Ficou muito por apurar e muito por provar. A quem tiver curiosidade e paciência, sugiro começar pela leitura dos interrogatórios da CPI dos Correios, onde se encontra, ligeira e não explorada, uma pista (a primeira, creio) do que veio a ser um segredo por amizade, ou por companheirismo, ou por ética pessoal, com os mesmos ônus nas três hipóteses.
      CIVILIZAÇÃO
      Por falar no Supremo, sua sessão da semana passada sobre o mensalão não foi apenas uma das mais tensas nesse processo de divergências tensionantes. Voltou a ter ocasiões de hostilidade que desmoralizam o Judiciário e sobretudo o próprio Supremo. Além de não menos desmoralizantes posições como a recusa, com o argumento de que "é preciso acabar com este julgamento", a reexaminar um erro grave: o réu Jacinto Lamas foi condenado a pena maior do que o chefe dos seus atos, este também autor de maior número das condenadas lavagens de dinheiro. Isso pode ser justiça emanada do Supremo? E aquele é à altura de ministros do Supremo?
      Tão grande foi a balbúrdia da sessão do outrora dito "vetusto tribunal" que ao fim o ministro Joaquim Barbosa não conseguiu dizer o que fora decidido, e precisou adiar a proclamação. Impossibilidade e causa, provavelmente, sem ocorrência, jamais, no velho Supremo.
      Nada disso sequer motivado por questões relativas a petistas, como em tantas vezes. Foi só desinteligência mesmo, em qualquer sentido da palavra. Com os níveis de civilidade, entre a melhor educação e o seu oposto absoluto.
      OLÍMPICA
      Uma exibição de eficiência real no Supremo. Na quarta-feira, a ministra Cármen Lúcia movimentou o processo penal movido contra Fernando Collor, passando-o ao revisor Dias Toffoli. Era um recorde. Na manhã daquele dia, o "Globo" publicara a manchete "Collor está próximo de se livrar da última ação no STF". Isto porque "o processo está parado no gabinete da ministra Cármen Lúcia desde outubro de 2009 sem qualquer movimentação". De quatro anos a algumas horas.
      Tofolli não precisou de manchete, liberando prontamente o processo para votação. Mas a verdade é que a sem-cerimônia com que alguns ministros guardam determinados projetos, bem determinados, só é proporcional à rapidez com que as manchetes os apressam.
      (A manchete do "Globo" por certo contrariou um terceiro ministro).
      IMPUNES
      Os comentaristas que veem, no caso mensalão, "o fim da impunidade" e outras maravilhas nacionais poderiam explicar o que se passa, então, com o mensalão do PSDB, que se espreguiça desde 1998, já com prescrições havidas e outras iminentes para seus réus. Também serve uma explicação sobre o jornalismo e aquele processo.

        Suzana Singer [folha ombudsman]

        folha de são paulo
        OMBUDSMAN
        Edição Frankenstein
        Repleto de anúncios, jornal de sábado está bagunçado, com assuntos esticados e acabamento ruim
        Quem pega um exemplar de sábado da Folha começa a duvidar de que o jornalismo impresso esteja mesmo em crise. São cadernos que não acabam mais, suplementos extras, reportagens especiais, que deveriam fazer a delícia do leitor, mas têm provocado muita reclamação.
        "É irritante ter de organizar os cadernos 1, 2, 3 de cada assunto, todos com anúncios enormes. Não quero ser obrigado a folhear todo o jornal para achar o que me interessa", diz José Luiz Dias, 62, gerente de vendas em São Paulo.
        De fato, os cadernos chegam fora de ordem. "Poder 2" aparece depois de "Esporte", "Cotidiano 2" está a léguas de distância do "Cotidiano 1" e deveria ganhar um pirulito de recompensa quem consegue encontrar a "Folhinha".
        O encarte dos cadernos tem relação com os horários de fechamento. Não há capacidade na gráfica para rodar todo o jornal à noite. A "Ilustrada" e os suplementos são impressos no começo da tarde -é por isso que, se um artista morre às 16h, seu obituário sai em "Cotidiano" ou em "Mundo".
        "Primeiro Caderno", "Mercado", "Cotidiano" e "Esporte" são os produtos quentes, fechados no horário final (às 21h para a edição nacional, à meia-noite para a São Paulo), e neles é possível trocar notícias até a madrugada. Só que há um limite de páginas para a última rodagem. Quando o volume de publicidade é grande, criam-se os cadernos 2, que são impressos às 19h.
        A montagem do exemplar é manual: "Mercado 2", "Cotidiano 2", "Mundo 2", impressos em conjunto, formam um bloco. Colocar cada um na sequência ideal, ou seja, depois de "Mercado 1", "Cotidiano 1", "Mundo 1", respectivamente, atrasaria demais a entrega do jornal.
        Além de dificultar a leitura, a divisão artificial de assuntos propicia erros de edição. Temas correlatos, que deveriam estar na mesma página, vão parar em cadernos diferentes. Acontece também de assuntos menores serem esticados para preencher as páginas que fecham cedo, enquanto notícias mais importantes são subestimadas.
        Para o leitor, resta ainda a dificuldade de encontrar os textos num mar de publicidade. Contando apenas os anúncios que ocupam páginas inteiras, havia, no último dia 26, 82 páginas de propaganda de um total de 154 (53%, sem contar o "Guia de Livros"). No "Primeiro Caderno", definido por um leitor como a "alma do jornal", havia 17 anúncios inteiros em apenas 24 páginas.
        "A quantidade de propaganda está abusiva, o que desmerece o jornal. Parece que estão mais preocupados com o financeiro do que com o leitor. Falta bom senso", critica o médico Hélio Teixeira, 69, que recebe a Folha em Uberlândia (MG).
        Hélio, como outros leitores, sugere que se concentre a publicidade de imóveis e veículos nos cadernos "Classificados", mas o fato é que os anunciantes buscam colocações que consideram mais nobres no chamado produto principal.
        A edição de ontem estava menor por causa do feriado, mas a do sábado retrasado era um bom exemplo de "jornal Frankenstein", que, gigantesco e mal-acabado, pode virar um problema para o seu criador.
        As reportagens de economia se espalhavam por três cadernos. Apesar de um deles ser dedicado à China, a notícia de que as exportações do país estavam se recuperando ficou em outro caderno. Uma fotografia enorme, de uma ciclista solitária em Guangzhou, ilustrava o texto, embora a venda de bicicletas não fosse citada no texto.
        "Mundo 2" tinha grandes reportagens sobre temas irrelevantes, como fabricantes de manequins da Venezuela apostando em versões com mais curvas, os problemas dos criadores de cavalos em Fukushima e a Força Aérea do Peru reativando pesquisas sobre óvnis.
        "Poder 2" fez um levantamento sobre o programa Luz para Todos, repetindo praticamente tudo o que havia sido publicado em março.
        É ingênuo imaginar que um jornal vá recusar publicidade num momento em que o futuro do impresso é tão sombrio. Mas é necessário discutir alguns limites e, ao mesmo tempo, investir na Redação a fim de lhe dar fôlego para melhorar a qualidade dos "monstrinhos" produzidos aos sábados.

          Hitler e a poderosa engrenagem nazista de saquear obras de arte

          folha de são paulo
          2ª- Tesouro descoberto pode chegar a R$ 3 bi
          JEEVAN VASAGAR ELIZABETH PATONTRADUÇÃO CLARA ALLAINO advogado alemão Markus Stötzel ficou espantado ao saber que a obra "O Domador de Leões", de Max Beckmann, estava sendo anunciada como um dos destaques de um leilão de arte moderna da casa Lempertz, em Colônia.
          Faltavam poucas semanas para a venda da peça em guache e pastel sobre papel. O advogado sabia que a coleção de Alfred Flechtheim --marchand, colecionador e defensor do modernismo alemão perseguido pelos nazistas, cujos herdeiros eram seus clientes-- tinha incluído "O Domador de Leões".
          O reaparecimento da pintura oferecia uma chance rara de reparação antes de ela sumir mais uma vez em mãos privadas. O proprietário, Cornelius Gurlitt, um idoso de Munique, admitiu que seu pai comprara a tela de Flechtheim em 1934, numa venda forçada.
          "O Domador de Leões" foi arrematada em 2 de dezembro de 2011 por € 720 mil (cerca de R$ 2,2 milhões), e parte do dinheiro foi para os herdeiros de Flecht- heim. Foi uma das últimas vendas feitas por Gurlitt. No dia 28 de fevereiro de 2012, seu apartamento foi invadido e revistado por investigadores e por agentes da Alfândega.
          Eles levaram três dias para examinar o tesouro que encontraram: pinturas de Picasso, Renoir e Toulouse-Lautrec, obras até então desconhecidas de Marc Chagall e Otto Dix e trabalhos de artistas que os nazistas tinham vilipendiado --como Beckmann-- numa exposição local de arte degenerada. Algumas das obras eram anteriores ao século 20, sendo uma destas uma gravura em cobre da Crucifixão, de Albrecht Dürer. Havia ao todo 1.406 obras; 121 delas, ainda emolduradas numa estante, como num depósito de museu. As demais ocupavam gavetas.
          O tesouro secreto de Gurlitt suscitou, além de assombro, controvérsia. Pelos princípios (aceitos pela Alemanha) da conferência sobre arte confiscada pelos nazistas, realizada em 1998 em Washington, todos os esforços devem ser feitos para difundir descobertas como essas, a fim de que sejam localizados os proprietários das obras antes da guerra ou seus herdeiros.
          Mas a maior descoberta feita desde a Segunda Guerra de arte confiscada pelos nazistas veio a público somente no último dia 3, quase dois anos após a batida no apartamento, quando foi divulgada pela revista alemã "Focus".
          CAUTELA A relutância das autoridades alemãs de levar o assunto a público tem origem numa cultura legal regida pela cautela.
          Os promotores se negam até mesmo a identificar Gurlitt, 80, publicamente. Dizem apenas que "uma pessoa se encontra sob investigação por suspeita de sigilo fiscal e apropriação indébita". Segundo o advogado Stötzel, se as autoridades expuserem detalhadamente a coleção, Gurlitt pode mover uma ação contra elas.
          Nem todas as obras foram roubadas pelos nazistas. Meike Hoffman, o historiador de arte que está catalogando a descoberta, disse que é preciso mais tempo para verificar a proveniência das peças.
          Não é certo que descendentes de judeus alemães venham a ser compensados. Stötzel, que representa cerca de 50 outros querelantes, diz que, embora a Alemanha tenha aceito os princípios de Washington em nome de instituições públicas, proprietários particulares não são obrigados a segui-los.
          Após a descoberta, o mundo da arte ficou siderado por duas perguntas: que impacto um influxo repentino de tesouros --a "Focus" estimou seu valor em € 1 bilhão (cerca de R$ 3 bilhões)-- pode ter sobre os preços no mercado de arte? E, no momento em que as famílias se preparam para uma batalha para definir os proprietários de direito das obras, quanto tempo será preciso esperar para que as obras apareçam numa sala de leilões?
          Julian Radcliffe, proprietário e presidente do The Art Loss Register, de Londres, um banco de dados internacional de obras de arte roubadas e perdidas, diz que o tesouro encontrado em Munique não terá grande impacto sobre valores no futuro próximo.
          "Para começar, nem todos os trabalhos encontrados vão valer preços altíssimos --as avaliações atuais não passam de palpites. E, mais importante, é improvável que muitos cheguem até leilões ou marchands, considerando que haverá décadas de trabalho até as obras passarem às mãos dos que terão direito legal de vendê-las."
          Os marchands e as casas de leilão enfrentam grande pressão para determinar a origem das obras que serão vendidas. Uma "mácula" pública pode dificultar a venda de uma tela, mesmo que sua posição legal se resolva e que um herdeiro abra mão de seus direitos.
          TRILHA As autoridades alemãs dizem que a trilha que levou à descoberta extraordinária começou às 21h de 22 de setembro de 2010, quando Gurlitt foi sujeito a uma revista de rotina num trem de alta velocidade de Zurique a Munique.
          Segundo a "Focus", Gurlitt afirmou que seu destino tinha sido a galeria Kornfeld, em Berna. A revista diz que ele tirou do bolso um envelope contendo 18 cédulas novas de € 500 (cerca de R$ 1.500). A galeria conta que não teve nada a ver com o dinheiro e que sua última transação com Gurlitt foi feita em 1990.
          Gurlitt era um homem que não existia. Embora parecesse estar vivendo em Munique, não estava cadastrado ali. Não tinha número de contribuinte alemão, não pagava seguro-saúde e não recebia aposentadoria. Mas seu sobrenome era famoso nos círculos de arte.
          "É claro que sabíamos quem era!", diz Karl-Sax Feddersen, da Lempertz. O pai de Gurlitt, Hildebrand, foi um marchand e historiador de arte e promoveu artistas alemães progressistas. Quando os nazistas chegaram ao poder, ele se tornou dos pouquíssimos autorizados a negociar obras modernistas.
          As obras modernas na coleção incluem aquelas pelas quais os nazistas nutriam ódio profundo e ideológico; marchands como Flechtheim eram chamados "agentes do bolchevismo cultural". Mas o Reich não era avesso a negociar obras desprezadas.
          Pesquisadores do Projeto de Restituição de Arte do Holocausto encontraram evidências de que algumas das obras de arte que pertenceram a Gurlitt, pai, estiveram em poder dos Aliados após a guerra e foram devolvidas a ele em 1950. Elas vieram a formar o núcleo de uma coleção vasta e oculta herdada por seu filho. A lista de 115 pinturas apreendidas e depois devolvidas inclui "O Domador de Leões".
          Feddersen descreve "O Domador de Leões" como "maravilhosa". Na ocasião, curioso, ele perguntou se Gurlitt teria outros trabalhos para vender. "Ele não respondeu", lembra Feddersen.


            1º - CASSIANO ELEK MACHADO
            ilustração ANA PRATA
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            RESUMO Confiscar obras de arte era para os nazistas tão importante quanto as vitórias militares; artista frustrado, Hitler escondeu em lugares como minas de sal milhares de peças e tinha planos de construir um gigantesco museu. Livro de jornalista porto-riquenho ilumina em detalhe o funcionamento da máquina nazista de espoliação.
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            Quando, no início de maio de 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, oficiais do Terceiro Exército norte-americano entraram numa mina de sal da pequena cidade de Altaussee, nos Alpes austríacos, se depararam, depois de uma longa caminhada pelas galerias subterrâneas, com uma curiosa população de esculturas antigas de mármore branco, posicionadas como se estivessem numa reunião.
            As lanternas dos oficiais também iluminaram uma vasta quantidade de pinturas, 6.755 delas, contabilizou-se depois, apoiadas nas pedras de sal, sem nenhum plástico que as protegesse. Mais de 5.000 eram de grandes mestres, incluindo a joia da pintura holandesa "Adoração do Cordeiro Místico" (1425-32), dos irmãos Van Eyck, uma madona de Michelangelo e "O Astrônomo", de Vermeer.
            Anos mais tarde especulou-se que a pintura mais famosa do mundo, a "Mona Lisa", de Da Vinci, tenha estado na mesma mina, no período de três anos em que a sorridente obra-prima ficou realmente escondida. O pesquisador norte-americano Noah Charney, autor de um livro sobre o tema, "The Thefts of the Mona Lisa" [Arca, US$ 18, 162 págs.], concluiu que houve sim uma Gioconda no subsolo de Altaussee, mas que se tratava de uma cópia, que os nazistas acreditaram ser a verdadeira.
            Não havia só quadros pela mina. Em caixotes e cestas, repousavam pilhas de livros e de documentos antigos, e móveis de variados estilos, inclusive tronos, eram vigiados por armaduras de 600 anos.
            Espalhadas por todo o cenário estavam caixas de madeira, de diferentes tamanhos, com a mesma inscrição, que também pôde ser vista nos versos de muitas das melhores pinturas: A.H., Linz.
            Havia mais de 3.000 anos, e ainda hoje, aquela mina tinha sido usada para a extração de sal. Mas naqueles tempos de guerra ela se convertera numa espécie de reserva técnica, um depósito para o gigantesco museu que Adolf Hitler (o A.H.) pretendia construir na cidade austríaca onde passou parte de sua infância e adolescência.
            O ambicioso projeto de Linz, que caso houvesse sido levado a cabo constituiria o maior museu de todos os tempos, implodiria em seguida.
            Pouco antes de se suicidar, em 30 de abril de 1945, o líder nazista ditou um testamento, no qual manifestava o desejo de que o museu fosse continuado por seus seguidores, mas seu delírio não ultrapassou os limites do bunker de Berlim, onde ele mantinha uma maquete do tamanho de um quarto do "Führermuseum".
            Com a fachada desenhada pelo próprio Hitler, como se sabe um pintor e arquiteto frustrado, o museu começou a ser planejado antes do início da guerra. Em junho de 1939, a meses da invasão da Polônia, um historiador da arte designado para montar o acervo da instituição já tinha em mãos um orçamento equivalente a R$ 185 milhões atuais.
            Em fins de 1944, com muitos alemães em debandada, a empreitada ainda ganhava fôlego (e dinheiro). Naquela altura, sua dotação orçamentária era de inacreditáveis R$ 1,38 bilhões.
            Ainda que muitos marcos alemães tenham sido empregados em compras e vendas de obras de arte na Europa, ao longo da Segunda Guerra, não era este o principal expediente do Exército alemão para saciar a fome de arte de Hitler e de outros líderes do Terceiro Reich. Roubar, espoliar e confiscar eram verbos mais conjugáveis.
            Um dos melhores trabalhos já feitos sobre o tema, "O Museu Desaparecido - A Conspiração Nazista para Roubar as Obras-Primas da Arte Mundial" [trad. Silvana Cobucci Leite, WMF Martins Fontes, R$ 47,50, 384 págs.], de Héctor Feliciano, chega enfim às livrarias brasileiras neste final de novembro -18 anos depois de sua edição original, na França.
            Bruno Poletti/Folhapress
            Ilustração de Ana Prata
            Ilustração de Ana Prata
            Não é um capítulo encerrado, este ao qual o premiado jornalista porto-riquenho dedicou muitos anos de pesquisa, desde que topou acidentalmente com o tema, em 1988. Os recentes acontecimentos num apartamento do bairro de Schwabin, em Munique, ilustram isso com vivacidade.
            Feliciano conta à Folha que quase engasgou quando leu a edição digital do "Guardian", há dois domingos, no terraço de sua casa, em San Juan, capital de Porto Rico.
            O diário britânico reproduzia a notícia dada pela revista alemã "Focus" de que mais de 1.400 obras haviam sido encontradas em posse de Cornelius Gurlitt, filho de um dos marchands mais influentes entre os nazistas, Hildebrand Gurlitt.
            Uma das pinturas apreendidas no apartamento do misantropo Gurlitt, "Mulher Sentada em uma Poltrona" (1920), de Henri Matisse, estava inclusive reproduzida no livro do jornalista.
            Era uma obra sem destinação conhecida, que pertencera a uma das principais coleções de arte de marchands judeus franceses confiscadas durante a guerra, a de Paul Rosenberg (1881-1959), que foi galerista de artistas como Matisse, Picasso e Braque.
            Como conta em minúcias "O Museu Desaparecido", em texto fluente e repleto de informações, a coleção Rosenberg integra o conjunto de 100 mil pinturas roubadas, apenas na França, pelos nazistas, que também confiscaram cerca de 500 mil móveis e mais de 1 milhão de livros e manuscritos.
            O trabalho de Feliciano ilumina todas as engrenagens dessa máquina de roubar obras de arte: que estruturas de poder organizavam os butins, de quem confiscavam, que tipos de pinturas eram almejados, como as peças eram transportadas, estocadas, quem saía ganhando com esse vaivém.
            EPICENTRO
            Ainda que muitos tenham sido os cenários dessa história, o epicentro foi o museu conhecido como Jeu de Paume, na place de la Concorde, centro de Paris. Nesse pavilhão, construído em 1861 por Napoleão 3° originalmente como um espaço para o jogo ancestral do tênis, funcionou o maior depósito de obras roubadas pelos nazistas.
            Lá também operou a principal das três estruturas do Reich para roubo de arte, a ERR, abreviação de Einsatzstab Reichsleiters Rosenberg für die Besetzten Gebiete, ou Destacamento Especial do Dirigente do Reich Rosenberg para os Territórios Ocupados, sendo o Rosenberg em questão o ideólogo nazista Alfred Rosenberg.
            Só no período que vai do outono de 1940, quando a França já estava ocupada pela Alemanha, ao inverno de 1941, sabe-se que o ERR teve ao menos 60 funcionários fixos: historiadores, restauradores, fotógrafos. O labor deles era acompanhado pela elite do Reich.
            O número 2 do regime nazista, Hermann Goering, comandante-chefe da Força Aérea alemã, esteve pessoalmente mais de 20 vezes no Jeu de Paume, para supervisionar trabalhos e, sobretudo, para alimentar sua coleção particular.
            Um depoimento do líder nazista Hans Frank durante o Julgamento de Nuremberg, o tribunal militar internacional para julgar os crimes de guerra, entre 1945 e 1946, dá a ideia da afeição do "reischsmarschall" pela arte. "Se Goering tivesse gasto mais tempo na Força Aérea e menos nas bacanais e pilhando obras de arte, talvez a Alemanha estivesse em melhor situação hoje, e eu não estaria preso nesta cela", disse Frank.
            O testemunho está recolhido no livro "As Entrevistas de Nuremberg" [trad. Ivo Korytowiski, Companhia das Letras, R$ 68, 552 págs.], de Leon Goldensohn, que traz ainda depoimentos do próprio Goering sobre arte.
            "De todas as acusações lançadas contra mim, a chamada pilhagem de tesouros artísticos foi a que mais me angustiou", disse. Ele também tratou de suas preferências. "Gosto de todo tipo de arte, exceto o negócio futurista, que detesto. Costumo ser bem cético quanto às pinturas modernas. Picasso, por exemplo, me enoja."
            Sabidamente não estava sozinho nestas avaliações. Modernistas em geral eram tratados como "degenerados" e, se eram muito bem guardados pelos nazistas, numa ala do Jeu de Paume batizada de Sala dos Mártires, era para que fossem vendidos ou trocados por outras pinturas consideradas "nobres". "Um mestre da pintura, ou ainda um de seus insossos seguidores,
            vale por seis, sete, oito ou até dez 'petimetres' modernos", contabiliza Héctor Feliciano.
            CONFISCOS
            Hitler não frequentava o Jeu de Paume -só esteve uma vez em Paris em toda a sua vida, numa viagem furtiva logo depois da ocupação-, mas acompanhava com zelo os confiscos na França.
            "De todos os ditadores do século 20, nenhum gostou tanto de arte quanto Hitler", diz Feliciano. "Se não houvesse esse interesse profundo e tão integrado na ideologia nazista, não teria havido um butim deste tamanho. Em pleno esforço de guerra, consideravam cada saque tão importante quanto ganhar uma batalha."
            Prova da importância que dava ao tema dos saques artísticos é um relatório que Hitler encomendou antes da guerra a um historiador alemão chamado Otto Kümmel.
            Ele pediu ao então diretor dos museus nacionais do país para elencar todas as obras de arte roubadas da Alemanha desde o século 16, para que fossem recuperadas.
            O chamado "Relatório de Kümmel" é composto por três volumes, cada um com cem páginas. Na lista, entram desde flâmulas e bandeiras roubadas pela Suécia na Guerra dos Trinta Anos (1618-48) até pinturas da coleção do rei da Inglaterra, como "Cristo e Maria Madalena", de Rembrandt, um dos artistas prediletos do Führer.
            Hitler não teve muito sucesso com as obras listadas por Kümmel, mas sua política de saque de obras de arte pode ser considerada a mais eficiente desde que Roma começou a pilhar peças da Antiguidade Grega.
            O alvo principal eram as grandes coleções. E a que sofreu mais perdas foi a da tradicional família de banqueiros Rothschild, que teve 5.009 obras confiscadas.
            Feliciano dá bastante destaque também às expropriações das obras do colecionador Alphonse Kann, do investidor Fritz Guttmann, dos banqueiros David-Weill e da dinastia Bernheim-Jeune.
            Depois da guerra, uma parte importante das obras foi restituída às famílias. Havia ao menos um destacamento dos Aliados dedicado só a essa tarefa, chamado de Monumentos, Obras de Arte e Arquivos. O grupo, formado em 1943, para ajudar a proteger e detectar obras roubadas (e também devolvê-las), ficou conhecido como "The Monuments Men".
            É este o nome de um livro de Robert M. Edsel, no Brasil lançado como "Caçadores de Obras-Primas" [trad. Talita M. Rodrigues, Rocco, R$ 57, 368 págs.], base de um filme homônimo dirigido e protagonizado por George Clooney, a ser lançado no início do ano que vem, no Festival de Berlim.
            Feliciano diz que o livro é "chauvinismo militar americano", pois, a seu ver, dá a entender que só oficiais daquele país estiveram na elite de resgate de obras de arte, quando havia, entre outros, militares franceses, canadenses e britânicos.
            De qualquer modo, por maiores que tenham sido os esforços dos "Monuments", uma parte substancial dos roubos nunca voltou às famílias originais.
            LEGISLAÇÕES
            A obra de Feliciano, publicada em diversos países do mundo, acelerou o processo de restituição, assim como outra obra importante sobre o tema, "Europa Saqueada" [trad. Carlos Afonso Malferrari, Companhia das Letras, R$ 68, 544 págs.], da historiadora Lynn H. Nicholas, lançada nos Estados Unidos em 1994. Após as publicações dos livros, tiveram lugar mudanças nas legislações de diversos países.
            "O Museu Desaparecido" chama a atenção para o fato de que as instituições francesas detinham, à época do lançamento do livro no país, mais de 2.000 obras de arte recuperadas depois da guerra e não restituídas aos proprietários originais. O jornalista identificou telas importantes em tal condição, como a pintura cubista "Dama em Vermelho e Verde", de Fernand Léger, que estava no Centro Pompidou, ou "O Bosque", do pintor François Boucher, uma das 400 obras "não reclamadas" do acervo do Louvre.
            Em 1997, o presidente Jacques Chirac anunciou a criação de uma comissão para tratar do tema, a qual organizou uma exposição nacional com todas as pinturas, respondendo ao argumento de Feliciano de que os museus nem sempre davam visibilidade às obras não reclamadas e não se esforçavam para encontrar os donos originais.
            O número de obras roubadas e não restituídas foi caindo progressivamente, mas, das 100 mil pilhadas só na França, o autor estima que cerca de 25 mil ainda não tenham sido devolvidas.
            Segundo ele, houve avanços na legislação alemã, que passou a considerar como roubadas também as peças vendidas entre 1933, ano de ascensão de Hitler ao poder, e 1939, já que colecionadores eram forçados a vender. A legislação que menos contribui, para ele, é a da Suíça, que só pune as compras comprovadamente de má fé.
            Houve quem alegasse que Feliciano, mestre em jornalismo pela Universidade Columbia e doutor em literatura pela Universidade de Paris, estivesse agindo de má-fé.
            Em 1998, três descendentes diretos do conhecido marchand Georges Wildenstein o processaram no Tribunal de Grande Instância de Paris, acusando-o de danos morais por conta de passagens do livro que tratavam das ligações do galerista com os nazistas.
            "Mesmo depois do armistício na França e da ocupação alemã desta, Wildenstein parece ter tirado proveito dessa rede de contatos para organizar uma série de contratos e transações com os alemães", diz um trecho do livro.
            Os herdeiros pediam US$ 1 milhão e exigiam que ele não voltasse a mencionar o nome Wildenstein em qualquer de seus escritos. As idas e vindas na Justiça levaram cinco anos, até que a Cour de Cassation (equivalente francês do Supremo Tribunal Federal) indeferiu a demanda dos galeristas.
            Ainda em plena atividade no universo da arte, os Wildenstein têm uma ligação estreita com a história dos museus no Brasil. Eles foram os principais vendedores de pinturas de grandes artistas internacionais para o Museu de Arte de São Paulo, o Masp.
            Segundo levantamento feito pela Folha, ao menos 52 pinturas importantes do museu passaram pelas galerias Wildenstein, entre elas 36 obras francesas, 6 espanholas e 4 italianas.
            CASSIANO ELEK MACHADO, 38, é editor da "Ilustríssima".
            ANA PRATA, 32, é artista plástica. Participa da 18ª edição do Festival Sesc_Videobrasil, que ocorre até 2/2 no Sesc Pompeia.