segunda-feira, 18 de novembro de 2013

É preciso limitar o número de pessoas nas futuras gerações

folha de são paulo
ENTREVISTA DA 2ª ALAN WEISMAN, 66
Para escritor, crescimento populacional desenfreado vai levar a mais problemas ambientais, desastres naturais e fome
REINALDO JOSÉ LOPESCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA
No mundo inteiro, cada vez mais mulheres têm menos filhos ""o suficiente para que, em algum momento até o fim deste século, a população do planeta alcance seu auge e comece a decrescer pela primeira vez na história. Mesmo assim, o escritor americano Alan Weisman acha que não há motivo para complacência em relação aos riscos da superpopulação.
Weisman, 66, está virando um especialista em examinar os efeitos da ação dos bilhões de seres humanos vivos hoje sobre o planeta. Seu best-seller "O Mundo sem Nós", de 2007, é um experimento mental sobre o que aconteceria com a Terra se o Homo sapiens deixasse de existir da noite para o dia.
Recentemente, ele lançou "Countdown: Our Last, Best Hope for a Future on Earth?" ("Contagem Regressiva: Nossa Última e Melhor Esperança para um Futuro na Terra?"), que imagina uma solução menos draconiana para os problemas ambientais e políticos do mundo: um esforço consciente para que todas as famílias do mundo tenham acesso a métodos anticoncepcionais seguros e baratos, o que garantiria uma população máxima de 9 bilhões de pessoas em 2100.
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Folha - Depois de escrever dois livros sobre como seria bom haver menos gente no mundo, o senhor já chegou a ser acusado de ser um misantropo?
Alan Weisman - Eu amo a minha espécie e não acho que estejamos prontos para a extinção. O que fiz no meu livro anterior (O Mundo sem nós) foi retirar os seres humanos do quadro de maneira teórica, para mostrar o tamanho da pressão diária que exercemos sobre o planeta e pensar "bem, e agora, como fazemos para trazer as pessoas de volta a esse quadro sem causar tanto estrago?".
Contudo, no epílogo do livro, tive de mencionar um fato perturbador: a cada quatro dias e meio, estamos trazendo mais 1 milhão de pessoas ao mundo, e isso não é algo sustentável. E é incrível como quase todo mundo entendeu isso muito bem e concordou comigo.
Mas embora todo mundo concorde com isso, as pessoas também são visceralmente contrárias a políticas draconianas como a política chinesa do filho único. Então minha proposta para o novo livro foi: será que há uma maneira de lidarmos com a explosão populacional de maneira que não seja tão dolorosa?
E cada vez ficou mais claro que essa é talvez a única coisa que realmente podemos fazer para diminuir nosso impacto ambiental. Com mais gente no mundo, nossas emissões de carbono vão continuar aumentando; vamos ter mais problemas com eventos climáticos extremos, como os que acabaram de devastar as Filipinas; os níveis dos mares estão aumentando e, mais do que isso, estão alterando a própria química dos oceanos, da qual toda a vida na Terra depende. São coisas perigosíssimas.
Mesmo que fontes abundantes de energia limpa, com emissões de carbono próximas do zero, sejam descobertas --o que é um bocado improvável--, simplesmente não há como aumentar a quantidade de terra disponível para produzir alimentos para toda essa gente --então, a coisa lógica a fazer é limitar o número de pessoas nas próximas duas ou três gerações.
Um elemento interessante do livro é que, fora exceções como as Filipinas, a religião parece não ser a grande barreira antiplanejamento familiar.
Sim, você tem razão. Entrevistei muitos líderes religiosos para o livro, e poucos realmente se opõem a essa necessidade. Todo mundo costuma pensar no catolicismo ou no islamismo como os principais inimigos do planejamento familiar, mas se esquece de que um dos programas mais bem-sucedidos do mundo nessa área foi idealizado por uma teocracia islâmica, o Irã.
As Filipinas são, de fato, uma exceção por conta do poder político da Igreja Católica por lá. Por outro lado, na Itália católica, as mulheres têm uma das taxas de fertilidade mais baixas do mundo [cerca de 1,4 filho por mulher], porque o nível educacional delas é muito elevado, e a educação feminina é o melhor anticoncepcional que existe ­­--em vez de ter sete filhos, a mulher decide terminar a faculdade antes de engravidar.
No livro, discuto o caso da Costa Rica, onde a Igreja Católica tentou pressionar os fiéis a não adotarem métodos anticoncepcionais e acabou perdendo espaço para igrejas evangélicas que incentivavam esses métodos como paternidade responsável.
O Brasil é uma história de sucesso, vocês já estão abaixo da taxa de reposição populacional [calculada como 2,1 filhos por mulher; abaixo disso, a tendência é a população decrescer].
Se não é a religião o principal fator por trás do crescimento populacional, o que é? Seria ligado ao fato de que, em alguns países, as pessoas ainda têm medo de não deixar descendentes por causa da alta mortalidade infantil?
São vários fatores, e um deles é o que você mencionou --em certos países da África, as pessoas continuam tendo filhos atrás de filhos porque muitos bebês acabam morrendo.
Mas ainda há, é claro, a mesma razão cultural pela qual, no livro do Gênesis, os israelitas seguem o mandamento "crescei e multiplicai-vos": se você tem uma família numerosa e poderosa, seus inimigos têm mais dificuldade de vencê-lo. E um dos jeitos de conseguir isso é a poligamia.
Esse tipo de mentalidade ainda é forte mundo afora.
Por outro lado, também no livro do Gênesis, há a história de José [um dos 12 filhos do patriarca israelita Jacó], que pode ser considerado o mais antigo ecologista.
Vivendo no Egito, ele observou os sinais de que a região estava prestes a passar por um ciclo de escassez e aconselhou o faraó e sua família israelita, dizendo que era hora de conservar, e não de continuar a se expandir. E foi graças a isso que José decidiu ter uma única esposa e apenas dois filhos, e ele conseguiu salvar todo mundo da fome que veio depois.
Nossa situação não é muito diferente, porque chegamos a um ponto em que será cada vez mais difícil produzir mais comida. Para cada 1ºC de aumento da temperatura do planeta daqui para a frente, é provável que a produtividade agrícola caia 10%, por exemplo. Continuar na trajetória de crescimento desenfreado é uma receita para o desastre.
Nos anos 1960 e 1970, o desenvolvimento de variedades agrícolas mais produtivas, a chamada Revolução Verde, afastou o fantasma da fome. Não é natural as pessoas esperarem que novos desenvolvimentos tecnológicos também resolvam o problema agora?
O que as pessoas têm de entender é que a Revolução Verde foi só uma solução temporária. Norman Borlaug, o pai da Revolução Verde, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz por isso, usou seu discurso de aceitação do prêmio para chamar a atenção para o problema do crescimento demográfico.
Embora a Revolução Verde tenha evitado a fome, os tipos de plantio que ela preconiza não estão mais sendo suficientes em lugares como a Índia.
Uma das experiências mais terríveis que tive foi entrevistar as viúvas de fazendeiros indianos que se mataram bebendo pesticidas porque suas terras não têm mais água [as variedades agrícolas ligadas à Revolução Verde exigem irrigação], eles não conseguiam produzir e estavam endividados. Mais de 200 mil agricultores indianos se suicidaram.
O senhor também diz que é errada a ideia de que os poucos países com população em declínio, como o Japão, vão sofrer um colapso econômico. Por quê?
Por muitos anos, alguns economistas eram grandes fãs do crescimento populacional, simplesmente porque, com mais gente no mercado de trabalho, mais barata é a mão de obra.
Todo mundo se diz preocupado com o que vai acontecer com o Japão, com esse monte de gente idosa e tão pouca gente jovem para sustentar a aposentadoria deles. O que poucos percebem é que o processo é gradual e, ao longo de no máximo uma geração, conforme os mais idosos morrerem e os filhos dos jovens de hoje crescerem, você vai ter é um equilíbrio demográfico entre as duas parcelas da população de novo.
Com isso, você consegue fazer duas coisas: manter pessoas mais velhas na força de trabalho por mais tempo, e trazer mais mulheres com bom nível educacional para a força de trabalho.
Depois de pesquisar e escrever o livro, o senhor está mais ou menos otimista em relação aos desafios do crescimento populacional?
Estou mais otimista do que me sentia quando comecei a escrever o livro. É difícil para as pessoas aceitarem que a população precisa começar a diminuir porque nós passamos por um século inteiro no qual a população humana quadruplicou.
Só que elas têm de perceber que essa situação é algo anormal, criada por avanços repentinos na tecnologia médica e na produção de alimentos para os quais não estávamos preparados.
A boa notícia é que há um tremendo impulso mundo afora em favor de famílias menores. O planeta está urbanizado, não precisamos mais de tantos braços para a lavoura.
Outra notícia boa é que não precisamos de nenhuma descoberta dramática ""estamos falando de uma tecnologia da qual já dispomos, e que é muito barata.
Precisaríamos de apenas US$ 8 bilhões por ano para disponibilizar anticoncepcionais para todas as pessoas do planeta --isso é o que os EUA gastavam por mês no Iraque e no Afeganistão anos atrás.

Veja as manchetes dos principais jornais desta segunda-feira

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*
Jornais nacionais
O Estado de S.Paulo
Dirceu fala em 'ilegalidade' e cobra regime semiaberto
O Globo
Barbosa deve ordenar prisão de mais sete réus
Correio Braziliense
A prisão oferece risco para o doente Genoino?
Brasil Econômico
"Orçamento impositivo é porta aberta para a corrupção"
*
Jornais internacionais
The Washington Post (EUA)
Batalha sobre apostas na internet aquece
The Guardian (Reino Unido)
Chefes de segurança "exageraram" no temor com vazamentos da NSA
El País (Espanha)
Socialistas catalães se descolam do plano soberanista

domingo, 17 de novembro de 2013

Hoje suspeitos, fiscais e vereadores fizeram parte da CPI do IPTU

MÁFIA DO ISS
Ronilson Rodrigues, investigado no esquema de desvio de ISS, ajudou a 'elucidar' falhas, afirma relatório de 2009
Quatro anos depois, auditores sugerem em escutas que pagaram propina aos vereadores que os interrogaram
GIBA BERGAMIM JR.FOLHA DE SÃO PAULOOs auditores fiscais suspeitos de integrar a máfia do ISS ajudaram a "elucidar" as falhas na arrecadação de impostos na cidade.
A conclusão é da CPI do IPTU, comandada em 2009 pelos vereadores Antonio Donato (PT) e Aurélio Miguel (PR).
São esses mesmos auditores, suspeitos de causar um rombo de R$ 500 milhões aos cofres públicos, que agora dizem ter dado dinheiro aos respectivos parlamentares, segundo investigação da Promotoria e da prefeitura.
Donato --que até a semana passada era secretário de governo, braço direito do prefeito Fernando Haddad (PT)-- e Miguel comandaram a comissão que buscava revelar falhas que reduziam a arrecadação de IPTU.
Havia à época a suspeita de que empreendimentos imobiliários de grande porte não pagavam o imposto.
Na condição de testemunhas estavam os auditores fiscais Ronilson Rodrigues e Eduardo Horle Barcellos, que segundo a Promotoria, acumularam junto com outros dois auditores R$ 80 milhões obtidos por meio de propina.
A máfia do ISS daria a construtoras descontos no ISS em troca de pagamentos.
Em seu depoimento naquele ano, Rodrigues disse que era dono de um "apartamentinho" na Vila Mariana --segundo a Promotoria, a quadrilha liderada por ele acumulou imóveis e carros de luxo nos últimos anos.
Barcellos disse na semana passada que, de 2011 até o ano passado, dava um pagamento mensal de R$ 20 mil para Donato --valor pago em dinheiro no gabinete do parlamentar, diz Barcellos. Donato pediu demissão depois disso.
O mesmo auditor disse que Ronilson, que era chefe da Receita no município até 2012, lhe confidenciou que deu "muito dinheiro" a Miguel.
APARTAMENTINHO
Trechos do relatório final da CPI assinado por Donato chamam de "elucidativo" o depoimento de Ronilson Rodrigues, quando ele explica os critérios usados para avaliar um imóvel.
Segundo Rodrigues, um luxuoso imóvel poderia ter a mesma base de cálculo de IPTU de uma modesta residência, de acordo com os parâmetros usados pela Secretaria de Finanças à época.
Para explicar, tentou mostrar ser uma pessoa de poucas posses ao comparar seu patrimônio ao do banqueiro falido Edemar Cid Ferreira.
"Realmente, para você ter uma ideia, o imóvel do dono do Banco Santos ou o meu apartamentinho na Vila Mariana, se chega a um nível de padrão em que ele não cresce [valoriza] mais", disse.
A mesma CPI ouviu Hussain Aref Saab, ex-diretor do Aprov que é investigado por enriquecimento ilícito, após a Folha revelar que ele comprou 106 imóveis durante a gestão Serra/Kassab.
Miguel diz que "graças à CPI", foram evitadas perdas de "R$ 350 milhões na arrecadação". No ano passado, ele foi acusado de receber dinheiro de construtoras para ajudar a intermediar a liberação de empreendimentos, como shoppings, irregulares na prefeitura e tirar os nomes delas do relatório final da CPI.
"Quando os auditores foram depor, eles eram vistos como profissionais respeitados. Nunca se imaginou esses esquemas de corrupção", disse o ex-vereador Cláudio Fonseca (PPS), que também era integrante da CPI.
Se Donato era considerado sereno em seus questionamentos, Miguel usava tom incisivo nas perguntas, segundo alguns depoentes. Como na pergunta feita a Barcellos: "Se há problema no IPTU, fico imaginando no ISS. Deve ser uma loucura o que nós perdemos em arrecadação".
Os dois parlamentares negam ter recebido qualquer quantia dos auditores.

    Marcelo Leite

    folha de são paulo
    Desastre amazônico
    Desmate aumentou em termos percentuais, não tanto no valor absoluto, mas governo se atrapalhou
    Um desastre. Não merece outra descrição o processo pelo qual veio a público a péssima notícia de que aumentou 28% a taxa de desmatamento na Amazônia neste ano.
    A divulgação desse dado sempre foi traumática para o governo. Como ocorre em geral em novembro, coincide com a época em que se realizam as rodadas anuais de negociação internacional sobre a mudança do clima. Se a taxa sobe, queima o filme da delegação brasileira.
    Na próxima terça-feira, por exemplo, começa o segmento de alto nível --quer dizer, com a presença de ministros de Estado-- da reunião que teve início na semana passada em Varsóvia, apelidada de COP-19.
    O índice anual de desmatamento é calculado pelo sistema Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Ele se baseia em centenas de imagens de satélite, mas depende de laboriosa interpretação. Embora boa parte do processamento hoje seja digital, a palavra final cabe a especialistas humanos.
    O Inpe, órgão federal vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, havia recebido a determinação, como de hábito, para fechar a conta do Prodes antes da COP. Assim se fez. Com a demora na divulgação da cifra, porém, espalhou-se a impressão de que o Planalto estava enrolando para não passar vergonha em Varsóvia.
    Se foi mesmo essa a motivação --mais uma aplicação da Lei de Ricupero (o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde)--, alguém pisou na bola. Tentar esconder informação em Brasília sempre é um lance arriscado.
    Saiu primeiro o jornal "O Globo", na terça-feira, com a informação de que haveria aumento ("até 20%"). Na quinta, o Blog do Kennedy (Alencar) escancarou o percentual correto de incremento: 28%.
    A área desmatada tinha saltado de 4.571 km², no período de observação agosto/2011-julho/2012, para 5.843 km² (agosto/2012-julho/2013). Ainda assim, é o segundo menor valor desde o início da série histórica, em 1988. Os números vêm caindo desde 2004, quando se alcançou o pico de 27,7 mil km².
    A ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, convocou uma entrevista coletiva para o mesmo dia. Parecia bem irritada, quase furibunda. Disse que o governo não tinha perdido o controle do desmatamento nem era conivente com ele, que era errado atribuir às mudanças no Código Florestal o repique da taxa, que sua antecessora Marina Silva (PSB) deveria se informar melhor.
    Se os 28% fossem só uma flutuação, a ministra não teria dado a performance que deu. Ninguém que exerça o poder gosta de perder o domínio da situação. Para piorar, a ex-ministra e pré-candidata Marina Silva de fato tinha pisado na bola.
    Numa palestra relatada pelo jornal "Valor Econômico", Marina acusou o governo federal de "conivência" com o aumento da destruição. E foi além: "(A ONG) Imazon está dizendo que é muito mais (92%)".
    A ex-ministra misturou alhos com bugalhos. O Imazon, de Belém, faz um bom monitoramento de curto prazo, comparável ao sistema oficial Deter, mas os seus próprios técnicos dizem que ele não serve para fazer predições sobre a taxa anual.
    O fato é que o desmate aumentou muito, mas na taxa percentual, não tanto no valor absoluto. Bem preparada e explicada, não seria uma mensagem tão difícil de transmitir. Na base do improviso e da indignação, pareceu descontrole mesmo.

      A ciência e o vazio espiritual - Marcelo Gleiser

      folha de são paulo

      A ciência e o vazio espiritual

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      Alguns anos atrás, fui convidado para dar uma entrevista ao vivo para uma rádio AM de Brasília. A entrevista foi marcada na estação rodoviária, bem na hora do rush, quando trabalhadores mais humildes estão voltando para suas casas na periferia. A ideia era que as pessoas dessem uma parada e ouvissem o que eu dizia, possivelmente fazendo perguntas.
      O entrevistador queria que falasse sobre a ciência do fim do mundo, dado que havia apenas publicado meu livro "O Fim da Terra e do Céu". O fim do mundo visto pela ciência pode ser abordado de várias formas, desde as mais locais, como no furacão que causou verdadeira devastação nas Filipinas, até as mais abstratas, como na especulação do futuro do universo como um todo.
      O foco da entrevista eram cataclismos celestes e como inspiraram (e inspiram) tanto narrativas religiosas quanto científicas. Por exemplo, no antigo testamento, no Livro de Daniel ou na história de Sodoma e Gomorra, e no novo, no Apocalipse de João, em que estrelas caem dos céus (chuva de meteoros), o Sol fica preto (eclipse total), rochas incandescentes caem sobre o solo (explosão de meteoro ou de cometa na atmosfera) etc.
      Mencionei como a queda de um asteroide de 10 quilômetros de diâmetro na península de Yucatan, no México, iniciou o processo que culminou na extinção dos dinossauros 65 milhões de anos atrás. Enfatizei que o evento mudou a história da vida na Terra, liberando os mamíferos que então existiam --de porte bem pequeno-- da pressão de seus predadores reptilianos, e que estamos aqui por isso. O ponto é que a ciência moderna explica essas transformações na Terra e na história da vida sem qualquer necessidade de intervenção divina. Os cataclismos que definiram nossa história são, simplesmente, fenômenos naturais.
      Foi então que um homem, ainda cheio de graxa no rosto, de uniforme rasgado, levantou a mão e disse: "Então o doutor quer tirar até Deus da gente?"
      Congelei. O desespero na voz do homem era óbvio. Sentiu-se traído pelo conhecimento. Sua fé era a única coisa a que se apegava, que o levava a retornar todos os dias àquela estação e trabalhar por um mísero salário mínimo. Como que a ciência poderia ajudá-lo a lidar com uma vida desprovida da mágica que fé no sobrenatural inspira?
      Percebi a enorme distância entre o discurso da ciência e as necessidades da maioria das pessoas; percebi que para tratar desse vão espiritual, temos que começar bem cedo, trazendo o encantamento das descobertas científicas para as crianças, transferindo a paixão que as pessoas devotam à sua fé para um encantamento com o mundo natural. Temos que ensinar a dimensão espiritual da ciência --não como algo sobrenatural-- mas como uma conexão com algo maior do que somos. Temos que fazer da educação científica um processo de transformação, e não meramente informativo.
      Respondi ao homem, explicando que a ciência não quer tirar Deus das pessoas, mesmo que alguns cientistas queiram. Falei da paixão dos cientistas ao devotarem suas vidas a explorar os mistérios do desconhecido. O homem sorriu; acho que entendeu que existe algo em comum entre sua fé e a paixão dos cientistas pelo mundo natural.
      Após a entrevista, dei uma volta no lago Sul pensando em Einstein, que dizia que a ciência era a verdadeira religião, uma devoção à natureza alimentada pelo encantamento com o mundo, que nos ensina uma profunda humildade perante sua grandeza.
      Marcelo Gleiser
      Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".

      Sentidos do prosaico na obra de Luigi Ghirri - LORENZO MAMMÌ

      folha de são paulo
      O trivial maravilhoso
      Sentidos do prosaico na obra de Luigi Ghirri
      LORENZO MAMMÌRESUMO A obra do italiano Luigi Ghirri (1943-92) identifica as sutilezas de um cotidiano transformado pela modernização acelerada dos anos 1960. Voltadas para a representação do banal, suas fotos, que terão mostra em São Paulo, buscam retratar a nova paisagem dos territórios nem urbanos nem rurais do pós-Guerra.

      No ensaio incluído no catálogo da exposição de Luigi Ghirri que agora chega ao Brasil, Quentin Bajac alude à "grande desconstrução do meio fotográfico realizada na década de 1960, de que o contexto italiano foi na Europa o ator principal" e cita, entre outros, as fotografias sobre espelho de Michelangelo Pistoletto e o filme "Blow Up" (1966), de Michelangelo Antonioni.
      Vale ampliar o quadro de referência: a discussão sobre a fotografia se insere num processo de reconstrução dos códigos narrativos e descritivos que interessava a toda a cultura italiana da época. Estava-se saindo da experiência neorrealista, que tentara o resgate de um país arcaico e pobre (bem diferente daquele que a retórica anterior à guerra glorificava), mediante procedimentos narrativos modernos e altamente sofisticados, tanto na literatura como no cinema.
      O crescimento econômico que culminou nos anos de 1960, a americanização acelerada da sociedade, o desaparecimento rápido de tradições culturais seculares, quando não milenárias, tornou aqueles procedimentos insuficientes.
      As estratégias de representação precisavam ser reformuladas, para adquirir um alcance maior e, ao mesmo tempo, tornar-se mais transparentes. Não era apenas questão de novas realidades a serem representadas: a própria relação entre realidade e representação tornava-se problemática, sob o impacto dos meios de comunicação de massa.
      Por outro lado, a modernização não se instalava sobre um terreno quase virgem, como aconteceu na América. Para a Europa, e para a Itália especialmente, o arcaico não é só o atrasado mas também o antigo. Uma nova rede de imagens se sobrepunha a uma paisagem urbana e rural cuja legibilidade já era muito consistente, depurada pela experiência de séculos, mesmo nas camadas populares.
      A consciência moderna permitia uma nova leitura do mundo tradicional; mas o mundo tradicional também, com seu patrimônio de imagens, suas sabedorias artesanais, seu patrimônio de formas e objetos, enfim, sua história, permitia uma leitura diferente, mais matizada e problemática, do sistema moderno de produção e troca.
      O neorrealismo, nesse quadro, não foi repudiado. Antes, foi virado do avesso, fazendo referência constante a seus mecanismos internos, como para mostrar as linhas de costura. Surgiram, num período relativamente curto de tempo, o cinema de Antonioni, Fellini e Pasolini, a narrativa de Italo Calvino, a música metalinguística de Luciano Berio (a partir, não por acaso, das "folk songs"), a arquitetura tipológica de Aldo Rossi, a arte povera.
      Todas essas manifestações artísticas buscaram meios linguísticos mais reflexivos para lidar com uma realidade complexa em que traços culturais contrastantes conviviam, mas não renunciaram ao contato com essa realidade.
      Todas se caracterizaram pela tensão entre modernidade e tradição, novos códigos e escavação quase arqueológica de camadas de significado que se sobrepunham sem se encobrirem totalmente.
      A ressignificação do mundo se apoiava sobre um fundo de memórias. O grande desenvolvimento das pesquisas semiológicas, tendo Umberto Eco como figura de maior ressonância internacional (mas Roland Barthes também foi muito lido na Itália), dialogou com grande parte dessa produção, garantindo uma verificação contínua entre teoria e praxe artística.
      INFLEXÃO
      Na obra de Luigi Ghirri, que pertence à geração imediatamente seguinte à que descrevi, tais questões alcançam, no que diz respeito ao meio fotográfico, desenvolvimento pleno mas também um ponto de inflexão.

      Fotografias de Luigi Ghirri

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      Luigi Ghirri/Eredi Ghirri
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      Estúdio de Giorgio Morandi (1989-1990), em Bolonha
      O processo de transformação já não tem o impulso de outrora: o moderno começa a envelhecer, o antigo já não é um fundo compacto, mas uma substância que transpira entre as malhas não tão cerradas da modernidade. Mais que a energia propositiva e rebelde, passa a valer a sutileza capaz de identificar as resistências, as contaminações, os pontos de sutura num panorama já transformado, em que novidade e obsolescência se fundem, às vezes, no mesmo objeto.
      Quando Ghirri fotografa plantas recortadas em formas geométricas ou dispostas simetricamente no espaço exíguo entre uma grade e um muro de concreto, ou cadeiras de jardim no espaço diminuto da varanda de uma casa pequeno-burguesa de periferia, ele parece buscar, na terra de ninguém que cresce desmedidamente entre as cidades históricas e o campo, o aflorar de sentidos antigos: a ordem cósmica do jardim à italiana, traduzido em arranjo doméstico; a "joie de vivre" do subúrbio impressionista homogeneizada por um piso de granito industrial.
      O que o fotógrafo registra é a persistência dos homens em qualificar os espaços, atribuir valores às coisas, transformá-las em signos. E esses signos, por baratos e ingênuos que sejam, individualmente, se combinam em cadeias nem sempre intencionais, mas que sempre os tornam mais ricos.
      O lugar de eleição para que tal combinação se torne legível, se não decifrável, é o enquadramento fotográfico. Em Ghirri é sempre frontal, a ponto de o espaço representado parecer tão plano como uma página ou um mapa. A luz é uniforme, seja aquela leitosa da planície do rio Pó, ou a dourada de Capri e do litoral da Puglia.
      Ghirri não se pauta pela poética do momento decisivo, pelo esforço de resumir no instante o significado inteiro de uma ação. É fotógrafo dos tempos longos, das permanências: na ação humana, interessam-lhe os sedimentos, aquilo que se depositou e já não tem mais sujeito -a cultura, enfim, enquanto patrimônio coletivo de significados.
      A sensibilidade à luz é, de fato, um grande trunfo de sua arte. Nos tempos longos da narrativa ghirriana, a luz é o tempo longuíssimo, o que unifica, como um campo linguístico mais geral, a colagem e superposição contínua dos signos.
      Longuíssimo, mas não imóvel. As fotos justamente famosas de Versalhes, por exemplo, foram realizadas com meios simples e sem manipulação na impressão. Essencial foi esperar o momento e as condições atmosféricas exatas em que o ambiente adquirisse a aparência irreal de postal colorido.
      A vida imita não a arte, mas a imagem barata, de uso cotidiano. Toda imagem de Ghirri é releitura de outras imagens, não só quando fotografa outras fotos, mapas, propagandas, maquetes mas também ao retratar paisagens ou edifícios.
      Atrás de cada enquadramento há inúmeras imagens que, de tão repetidas, se tornaram banais: cartões-postais, decorações em "trompe-l'oeil" de palácios antigos (não as obras-primas, mas a pintura menor, quase artesanal), cartazes de agências de turismo, suvenires em gesso ou plástico.
      Esse repertório comum, aparentemente inexpressivo, Ghirri o subverte, conferindo-lhe uma intensidade inesperada. Suas imagens, quando vistas pela primeira vez, são reconhecíveis, como se já nos pertencessem. Ao mesmo tempo despertam uma sensação de estranhamento, como se aquilo que é excessivamente familiar se tornasse, por isso mesmo, enigmático.
      Em seus numerosos escritos, Ghirri insiste sobre dois pontos: o primeiro é a transformação da realidade em imagem, como se o mundo estivesse se tornando uma grande fotografia.
      Emblema disso é a famosa imagem da Terra vista do espaço, realizada durante a viagem da Apollo 11 à Lua, em 1969. Ela é, para Ghirri, a foto das fotos, aquela que contém potencialmente todas as outras. Ele a reencontra e a reproduz em 1978 numa sinalização em Lido de Spina, pequeno balneário no delta do rio Pó.
      Não é uma brincadeira sem intenção: se o mundo inteiro é um signo, também todo signo, pelas infinitas relações que entretém com todos os outros, é o mundo. A imagem da Terra tirada da nave e aquela pendurada no poste são dois polos de uma cadeia ininterrupta de significados. Uma não é mais real do que a outra.
      O segundo ponto focal da reflexão de Luigi Ghirri é a representação da nova paisagem.
      Esse termo define especialmente aqueles espaços nem urbanos nem rurais (periferias que se esgarçam em direção ao campo, regiões agrícolas atravessadas por rodovias e já contaminadas por complexos industriais e comerciais), cuja existência se tornou sempre mais evidente e invasiva a partir do pós-Guerra. Certamente, não era uma questão só de Ghirri, nem apenas italiana, muito embora na Itália, pelo valor icônico de que a paisagem se revestia anteriormente, ela fosse mais pungente.
      A esse respeito, Ghirri reconhece sua dívida com a nova fotografia de paisagem norte-americana: William Eggleston, Stephen Shore. Mas, atrás deles, sua referência principal declarada é o realismo enxuto de Walker Evans.
      Pode surpreender, num fotógrafo interessado na fotografia como signo, essa admiração incondicional por um artista marcado pela busca de um contato direto e despojado com os homens e as coisas.
      Para Ghirri, porém, não vale aquilo que a doutrina moderna do simulacro defende: o mundo das imagens e dos signos não é um substituto do mundo real.
      Ao contrário, as coisas são tão mais reais quanto mais carregam significados, quanto mais são marcadas por investimentos afetivos. Olhar para os hieroglíficos de que a realidade se compõe (o termo é do próprio Ghirri) significa olhar para a própria realidade, em suas infinitas articulações.
      Nota: Este texto foi adaptado pelo autor a partir de ensaio escrito originalmente para o catálogo da mostra de Luigi Ghirri a ser inaugurada no Instituto Moreira Salles de São Paulo no próximo dia 23.
      LORENZO MAMMÌ, 56, é professor do departamento de filosofia da USP, crítico de arte e de música.
      LUIGI GHIRRI (1943 - 92), fotógrafo italiano.

      Eleonora de Lucena Entrevista István Mészáros

      folha de são paulo
      ENTREVISTA ISTVÁN MÉSZÁROS
      A barbárie no horizonte
      Filósofo húngaro encara a crise do capitalismo
      ELEONORA DE LUCENARESUMO O filósofo húngaro István Mészáros, principal discípulo e conhecedor da obra de seu conterrâneo György Lukács, lança livro e faz palestras no Brasil. O pensador marxista argumenta que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram e defende mudanças estruturais para conter a crise do capitalismo.
      A atual crise do capitalismo, que faz eclodir protestos por toda a parte, é estrutural e exige uma mudança radical. Essa é a visão do filósofo István Mészáros, 82.
      Professor emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), o marxista Mészáros defende que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram. Nesta entrevista, feita por e-mail, ele diz que o avanço da pobreza em países ricos demonstra que "há algo de profundamente errado no capitalismo", que hoje promove uma "produção destrutiva".
      Mészáros vem ao Brasil para palestras em São Paulo (amanhã, no Tuca, às 19h), Marília, Belo Horizonte e Goiânia. Maior discípulo e conhecedor da obra do também filósofo húngaro marxista György Lukács (1885-1971), Mészáros lançará aqui o seu livro "O Conceito de Dialética em Lukács" [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$ 39, 176 págs.], dos anos 60.
      A mesma editora lança, de Lukács, "Para uma Ontologia do Ser Social 2" [trad. Ivo Tonet, Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes, R$ 98, 856 págs.] e o volume "György Lukács e a Emancipação Humana" [org. Marcos Del Roio, R$ 39, 272 págs.].
      Folha - O sr. vem ao Brasil para falar sobre Lukács. Como avalia a importância das suas ideias hoje?
      István Mészáros - Lukács foi meu grande professor e amigo por 22 anos, até sua morte, em 1971. Ele começou como crítico literário e transitou para temas filosóficos fundamentais, em trabalhos com implicações de longo alcance. Fala-se menos de sua atuação política direta entre 1919 e 1929. Ele foi ministro de Educação e Cultura no breve governo revolucionário da Hungria em 1919 e é um exemplo de que moralidade e política não só devem como podem andar juntas.
      Sua vida e a dele unem teoria e prática. Que diferença há entre ser militante marxista no séc. 20 e hoje?
      A dolorosa e grande diferença é que os principais partidos da Terceira Internacional, que teve uma força organizacional significativa e até influência eleitoral durante algum tempo, implodiram. Como um militante intelectual por mais de 50 anos, ele estaria desolado hoje.
      Quando a União Soviética acabou, muitos previram o fracasso do marxismo. Depois, com a crise de 2008, muitos previram o fim do neoliberalismo e a volta das ideias de Marx. O marxismo está em expansão?
      Conclusões apressadas geralmente nascem mais de desejos do que de evidências. O colapso do governo [Mikhail] Gorbatchov (1985-91) não resolveu nenhum dos problemas em questão na URSS. Também não é possível descartar o neoliberalismo só pelo fato de que suas ideias são perigosamente irracionais. Em certas condições, até absurdos perigosos obtêm apoio em massa, como mostra a história.
      A mudança de humor que colocou "O Capital", de Marx, de novo na moda não significa que as ideias marxistas estejam avançando. É inegável que o aprofundamento da crise está gerando protestos mundo agora. Mas encontrar soluções sustentáveis requer a elaboração de estratégias e de formas de organização.
      E as ideias conservadoras? Elas estão ganhando mais adeptos?
      Inegavelmente, ainda que não sejam sustentáveis. "Não mudar" é quase sempre mais fácil do que "mudar" uma forma de comportamento. Na situação atual, respostas podem requerer esforços maiores do que seguir o que "deu certo".
      Qual seria uma boa definição para o período histórico atual?
      Há diferença fundamental entre as tradicionais crises cíclicas/conjunturais do passado (que pertencem à normalidade do capitalismo) e a crise estrutural do sistema do capital como um todo --que define o atual período. Nossa crise estrutural (que nasce no final dos anos 1960 e se aprofundou desde então) necessita de mudanças estruturais.
      Quais são as figuras mais importantes deste século 21 até agora?
      A figura política cujo impacto deve perdurar e se estender é a do presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013). Fidel Castro foi muito ativo na primeira metade desta década, mas as raízes de seu impacto histórico estão nos anos 50. Do lado conservador, se ainda estivesse vivo, eu não hesitaria em nomear o general De Gaulle. Ninguém neste século chegou a sua estatura no lado conservador.
      E o evento mais surpreendente?
      É provavelmente a velocidade com que a China conseguiu se aproximar da economia norte-americana, alcançando o ponto em que ultrapassá-los é considerado factível em alguns anos. No entanto seria ingênuo imaginar que a China possa permanecer imune à crise estrutural do sistema do capital. Mesmo o superávit de trilhões de dólares dos chineses pode evaporar numa turbulência.
      O capitalismo se fortaleceu ou se enfraqueceu com a crise?
      As tradicionais crises cíclicas/conjunturais fortaleciam o capitalismo, já que eram eliminadas empresas capitalistas inviáveis. Assim, ocorria o que [Joseph] Schumpeter (1883-1950) idealmente chamou de "destruição criativa". Os problemas são mais sérios hoje, porque a crise estrutural afeta de forma perigosa até a dimensão mais fundamental do controle metabólico social da humanidade, incluindo a natureza. É mais apropriado descrever o que ocorre como "produção destrutiva".
      A crise provocou mudanças políticas em muitos países. É possível discernir um movimento geral, para a esquerda ou para a direita?
      Até agora, é mais para a direita do que para a esquerda. Todos os governos "capitalistas avançados" adotaram políticas que tentam resolver problemas pela "austeridade", com cortes reais em salários e nos padrões de vida já precários dos "menos privilegiados". Mas é improvável que essas políticas produzam soluções duradouras.
      Como o sr. previu, a pobreza aumentou. Nos EUA, a desigualdade cresceu. O que está errado no capitalismo?
      Certamente há algo de profundamente errado e insustentável na maneira como o crescimento é perseguido sob o capitalismo. Há alguns dias o ex-primeiro-ministro britânico John Major reclamava que neste inverno muitas pessoas no Reino Unido terão de escolher entre comer e se aquecer. Em 1992, quando era premiê, ele disse, com autocomplacência: "O socialismo está morto; o capitalismo funciona". Eu disse, então: "Para quem e por quanto tempo?". O único crescimento com significado é o que responde à necessidade humana.
      A crise ampliou o desemprego em muitas regiões e abalou o Estado de bem-estar social na Europa. Multidões foram às ruas protestar. Os partidos de esquerda estão se beneficiando desses movimentos?
      O Estado do bem-estar social foi limitado a um punhado de países capitalistas e se ergueu sobre fundações frágeis. A tendência que se nota e que se aprofunda eu já havia caracterizado nos anos 70 como "equalização descendente da taxa diferencial de exploração". Isso diz respeito às diferenças nos ganhos por hora de trabalhadores para o mesmo trabalho na mesma transnacional na "metrópole" e em países "periféricos".
      Os protestos em muitos países capitalistas são compreensíveis e devem se agudizar. Eles surgem no arcabouço dessa tendência perversa. Os partidos que operam no enquadramento da política parlamentar, compreensivelmente, não podem se beneficiar dos protestos --eles tendem a acomodar seus objetivos a limites restritos.
      Os protestos no Brasil têm conexão com os de outros países?
      É impossível achar hoje um lugar no mundo onde não estejam ocorrendo protestos sérios. Eles parecem ter diferentes temas, criando uma impressão superficial de que não há correlação entre eles. É um autoengano. A grande variedade de protestos não se enquadra nos modos de ação da política tradicional, mas isso não é prova de sua irrelevância. Ao contrário, apontam para as razões mais profundas dos problemas e das contradições acumuladas.
      Qual a relevância das ideias socialistas hoje?
      As ideias socialistas têm sido definidas desde o início como as que requerem uma época histórica para a sua concretização, embora os problemas imediatos, de onde elas devem partir, sejam muito dolorosos. Elas requerem não apenas os serviços urgentes mas também prevenção para as doloridas infecções no longo prazo. As ideias socialistas são, portanto, mais relevantes hoje do que jamais foram.
      O socialismo ou o comunismo são objetivos atingíveis no futuro? Há risco de barbárie?
      Como já escrevi antes, se tivesse que modificar as famosas palavras de Rosa Luxemburgo, "socialismo ou barbárie", acrescentaria: "Barbárie se tivermos sorte". Porque o extermínio da humanidade é a ameaça que se desenrola. Enquanto falharmos em resolver os grandes problemas que se espalham por todas as dimensões da nossa existência e nas relações com a natureza, o perigo seguirá no horizonte.