terça-feira, 22 de outubro de 2013

Estudos revelam história do oxigênio no planeta - CARL ZIMMER

folha de são paulo

DO "NEW YORK TIMES"
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The New York Times
Para Donald E. Canfield, existe algo incrível a cada vez que respiramos. "As pessoas consideram o oxigênio um fato consumado porque ele está aí e o respiramos o tempo todo", disse o doutor Canfield, geoquímico na Universidade do Sul da Dinamarca. "Mas nós temos o único planeta conhecido que possui oxigênio."
O que é ainda mais surpreendente é que a Terra começou com uma atmosfera sem oxigênio. Passaram-se bilhões de anos antes que houvesse oxigênio suficiente para que animais como nós pudessem viver.
Os cientistas continuam fazendo descobertas. Recentemente, o doutor Canfield e seus colegas publicaram alguns estudos que forneceram pistas significativas sobre alguns dos capítulos mais importantes da história do oxigênio na Terra. Eles estão descobrindo que nossa atmosfera é o resultado de uma complexa dança entre geologia e biologia.
Para estudar a antiga atmosfera, os geoquímicos examinam as "impressões digitais químicas" deixadas nas rochas. Algumas contêm moléculas que só poderiam ter se formado na presença de oxigênio.
Quando eles examinam as rochas mais antigas da Terra, não encontram vestígios de oxigênio na atmosfera. Suas pesquisas indicam que o ar primordial da Terra era formado principalmente por dióxido de carbono, metano e nitrogênio. Os raios de sol criavam um pouco de oxigênio livre, ao separá-lo do dióxido de carbono e outras moléculas. Mas o oxigênio desaparecia logo depois de se formar.
Isso porque o oxigênio é um elemento extremamente amigável, formando ligações com um amplo leque de moléculas. Ele se ligava ao ferro nas rochas, por exemplo, criando ferrugem. Em outras palavras, nosso planeta foi um gigantesco vácuo de oxigênio em seus primeiros anos.
Isso mudou há cerca de 3 bilhões de anos. Na edição de 26 de setembro da revista "Nature", o doutor Canfield e seus colegas relataram impressões digitais de oxigênio nas rochas daquele período. Eles estimam que a atmosfera tinha apenas 0,03% dos níveis de oxigênio atuais.
Mas isso marcou uma enorme mudança na química terrestre.
A luz do sol por si só não poderia ter colocado tanto oxigênio na atmosfera.
Somente a vida poderia.
Alguns micróbios tinham desenvolvido a capacidade de realizar a fotossíntese. Flutuando na superfície do oceano, eles usavam a energia solar para crescer com dióxido de carbono e água e liberavam oxigênio como dejeto. Grande parte do oxigênio liberado por esses micróbios fotossintéticos era sugada da atmosfera pelo vácuo da Terra.
Mas uma pequena quantidade de oxigênio permanecia para trás porque parte da matéria orgânica dos micróbios mortos afundava da superfície do oceano para o leito, onde o oxigênio não podia reagir com ele.
O oxigênio permanecia no ar.
O oxigênio continuou bastante escasso durante algumas centenas de milhões de anos.
Mas, durante esse tempo, o vácuo da Terra enfraqueceu. O planeta esfriava e, por isso, os vulcões expeliam menos hidrogênio na atmosfera para sugar oxigênio.
Em seu novo livro, "Oxygen: A Four Billion Year History" [Oxigênio: uma história de quatro bilhões de anos], o doutor Canfield sugere que esse vácuo fraco promoveu um súbito aumento no oxigênio que os geoquímicos veem nas rochas de cerca de 2,3 bilhões de anos atrás. "Agora chegamos ao ponto em que a Terra se acalmou o suficiente para que o equilíbrio se incline a favor do oxigênio."
Em uma reportagem recente em "The Proceedings of the National Academies of Sciences", Canfield disse que havia tanto oxigênio na atmosfera que ele penetrou 300 metros no oceano. Segundo ele, o oxigênio pode ter sido tão abundante quanto hoje, pelo menos durante algum tempo.
Mas esse processo gerou seu próprio fim. Os micróbios desceram até o leito marinho, criando rochas ricas em carbono. Mais tarde, as rochas foram erguidas para formar terra seca, onde puderam reagir com o oxigênio, extraindo-o da atmosfera. A vida e a Terra continuaram brincando com o "botão" de oxigênio nos últimos 2 bilhões de anos.
Conforme o doutor Canfield conhece melhor a história tumultuada da Terra, ele tem menos certezas sobre seu futuro. "Não estou certo de que temos uma boa previsão", disse. "Isso depende muito dos caprichos da geografia."

Rosely Sayão

Quem precisa de balada?

FOLHA DE SÃO PAULO
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Muitos pais de adolescentes --mães, principalmente-- estão às voltas com a questão das baladas que os filhos dizem querer ir. E elas pagam muitos micos por conta disso, segundo as palavras de uma delas.
Elas vão pesquisar as baladas para saber se são consideradas boas ou se costumam apresentar problemas dos mais variados tipos, procuram saber se o clima é violento e quem costuma frequentar.
Aqui, elas procuram identificar grupos de determinadas escolas, bairros e até mesmo de classes sociais. Elas querem evitar que os filhos participem de grupos que elas consideram muito diferentes dos deles.
É que muitas delas consideram inevitável que o filho frequente as casas que produzem tais eventos e não sabem como evitar, mesmo quando elas mesmas percebem impedimentos. A idade, por exemplo.
Muitas casas de baladas só permitem a entrada de maiores de 18 anos. Mas, sabemos que os jovens conseguem facilmente documentos falsificados para ter acesso à balada que ele diz tanto querer ir. E muitas mães não só sabem disso, como até colaboram para que os filhos consigam tais documentos.
O envolvimento dessas mães com o assunto "baladas" é tão intenso que parece ser caso de extrema necessidade o filho estar presente nesse tipo de festa. Será mesmo? Vamos pensar a esse respeito.
Primeiramente, vamos lembrar que os jovens, hoje, estão totalmente submetidos à ideologia do consumo. "Consumo, logo existo" tem sido uma máxima a nos guiar em nossas vidas. Logo, na deles também.
Frequentar baladas, ingerir bebida alcoólicas muitas vezes além do limite físico --e insisto no termo ingerir em lugar de beber, porque a maioria deles ainda não sabe desfrutar de uma bebida alcoólica--, repetir os mesmos programas que os colegas, ir a lugares para "ver e ser visto": estas e outras possibilidades parecem, aos adolescentes, escolhas que são deles.
Mal sabem eles que não são eles que escolhem e sim que são os escolhidos para consumir tudo isso.
Será que eles gostam tanto assim desses programas? Tenho cá minhas dúvidas, e eles também.
Muitos até dizem que é isso o que eles têm de fazer para se divertir, relaxar do estresse da vida, ter prazer ao ficar com garotas ou garotos.
Que eles não se conheçam bem, que não percebam que ir a uma balada não é uma programação vital, que não entendam criticamente o que se passa na cabeça deles e no mundo que os rodeia e tenham dificuldades para encontrar outros tipos de lazer é compreensível.
Mas, tentar entender as razões que muitas mães de adolescentes têm para se envolver com unhas e dentes com esse anseio dos filhos, já é mais complexo.
Sim, elas também estão submetidas ao consumo e aderiram à ideia de que os filhos precisam --precisam!-- ter seus momentos de diversão e que isso significa ir à balada.
E elas fazem de tudo para propiciar esses momentos aos filhos, mesmo que lá no fundo discordem do fato, tenham receios.
Desagradar o filho? Permitir que ele fique de fora do estilo de vida dos colegas próximos? Enfrentar a resistência dele ao não?
Para muitas, tem sido mais tranquilo atender ao pedido do filho, mesmo contra a vontade.
Mas, se elas soubessem que há coisas muito mais importantes rondando a cabeça desses jovens --como o futuro próximo, a dificuldade de amar e de se relacionar, por exemplo--, certamente elas não dariam a menor importância aos pedidos deles para ir à balada.
rosely sayão
Rosely Sayão, psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Escreve às terças na versão impressa de "Cotidiano".

Mirian Goldenberg

folha de são paulo
Botox no cérebro
Quem busca a 'bela velhice' quer, mais do que tudo, encontrar um significado para a última fase da vida
Escrevi para a Folha, em novembro de 2012, o texto "A bela velhice".
Um fato me chamou a atenção. Costumo receber muito mais mensagens de mulheres comentando os meus textos. No caso de "A bela velhice" só recebi e-mails de homens. O primeiro foi o seguinte:
"Cara Mirian, tenho 69 anos, acabei de me aposentar. Ler o seu texto me deu ânimo para buscar alternativas mais prazerosas para o futuro. Estava em busca de cursos de reciclagem. Sua crônica me induziu à reflexão: estou cheio de ser o que sempre fui profissionalmente. Mais do que isso: você me deu forças para buscar algo novo e que me dê prazer. Muito obrigado."
Os leitores enfatizaram o desejo de estudar e de trabalhar em algo que lhes dê prazer. Querem ser produtivos e ativos nessa fase da vida. Não querem apenas ocupar o tempo, passar o tempo, preencher o tempo, perder tempo. O tempo, para eles, é algo extremamente valioso e não pode ser desperdiçado.
Eles gostaram, particularmente, da ideia de ter um projeto de vida na velhice. Eles não precisam mais, mas querem continuar trabalhando em algo que dê sentido às suas vidas. Eles querem, mais do que tudo, encontrar um significado para a última fase de suas vidas.
Cheguei à conclusão de que o lema para uma "bela velhice" poderia ser: "eu não preciso (mais), mas eu quero". Eles querem ter tesão no que fazem, envelhecer do jeito que escolheram e não de acordo com as convenções sociais. Não querem se aposentar de si mesmos.
Em uma entrevista sobre a passagem do tempo e a velhice, a atriz Marieta Severo, de 66 anos, disse: "Vejo tanta gente preocupada em colocar botox na testa, eu queria poder colocar botox no cérebro. Tenho verdadeiro pavor de perder a capacidade mental, é isso o que mais me assusta quando penso na velhice. Quero ser uma atriz velha com capacidade de decorar um texto, quero ser lúcida na vida e na família".
A "bela velhice" não é um caminho apenas para celebridades. A beleza da velhice está exatamente na sua singularidade. E também nas pequenas e grandes escolhas que cada indivíduo faz, em cada fase da vida, ao buscar concretizar o seu projeto de vida e encontrar o significado de sua existência.
miriangoldenberg@uol.com.br

    Ives Gandra da Silva Martins

    folha de são paulo
    O direito e a liberdade do intérprete
    A adoção da teoria do domínio do fato, sem que haja provas materiais consistentes, pode trazer insegurança jurídica
    Causou-me um misto de perplexidade e bom humor que uma longa entrevista concedida à brilhante jornalista Mônica Bergamo fosse quase que inteiramente ignorada e que apenas dois parágrafos dela causassem desproporcional impacto.
    Tive mesmo a impressão de que --para muitos-- aqueles dois parágrafos estariam a concentrar não só tudo o que escrevi na vida, mas toda a minha concepção jurídica da ordem social.
    Na entrevista, eu disse que a teoria do domínio do fato, tal como foi aplicada na ação penal 470, trazia insegurança jurídica e que, se tivesse que ser aplicada, quem teria o domínio do fato completo seria o presidente da República.
    Como um velho e modesto advogado provinciano, aprendi com meus mestres --à época em que os lentes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco eram criadores de teorias, e não reprodutores eletrônicos ou presenciais de teorias alheias-- que a letra da norma, na esmagadora maioria das vezes, exterioriza o seu conteúdo.
    Meu velho e saudoso mestre Canuto Mendes de Almeida abominava as sofisticações teoréticas, lembrando sempre que, por destinar-se a ser aplicado, deve o direito ser inteligível pela sociedade, pois a clareza do legislador atesta a fidalguia do governante.
    Claus Roxin não foi o criador da teoria do domínio do fato, embora seu mais conhecido intérprete. Adaptou-a de Hans Welzel, seu verdadeiro autor, à sua concepção própria, e não pretendeu impedir outros juristas de fazerem o mesmo. Em direito, não há marcas e patentes a serem preservadas, e a ministra Rosa Weber (Supremo Tribunal Federal), quando a ela se referiu, apresentou-a conforme sua leitura.
    Quando, nos dois parágrafos e na breve nota que publiquei na Folha, aludi a seu criador (Welzel) e a seu mais conhecido intérprete e inovador (Roxin), apenas disse que tal teoria, segundo o meu direito de interpretá-la, foi aplicada à falta de prova material consistente.
    Lembro que, se há prova material contra quem comanda uma ação, a teoria é despicienda. As provas por si só já servem para condenar e, conforme o nível da participação do protagonista na condução dos atos delituosos, as penas serão agravadas. Quando as provas materiais inexistem, havendo apenas indícios ou provas testemunhais, é que se lança mão de uma teoria agregadora do comando.
    A aplicação de teoria do domínio do fato a Rafael Videla (Argentina) e a Alberto Fujimori (Peru) decorreu de serem presidentes da República. Embora os crimes tenham sido praticados por seus subordinados, estavam estes sob seu comando.
    É bem verdade que Hans Welzel não conseguiu a aplicação da teoria aos crimes praticados pelo partido nazista. Para Welzel, quem determina a execução do crime não é dele partícipe, mas autor.
    O certo é que os ministros do STF que se referiram à teoria interpretaram-na com a liberdade própria de doutrinadores, não podendo ser criticados de o terem feito, de acordo com suas convicções.
    Eu, pessoalmente, nos dois curtos parágrafos da longa entrevista, discordando da conformação que a jurisprudência brasileira dá à teoria do domínio do fato e dos eminentes ministros que a adotaram, suscitei minha preocupação de que sua adoção, sem que haja provas materiais consistentes, pode trazer insegurança jurídica. E manifestei minha preferência, em direito penal, pela teoria que levou o Supremo Tribunal Federal, após o impeachment do presidente Collor, a absolvê-lo por falta do nexo causal entre conduta e resultado e de prova material consistente.
    O aspecto positivo dos dois parágrafos, todavia, foi abrir-se um debate sobre a matéria, que permitirá o aparecimento de novas exegeses sobre o tema levantado por Hans Welzel em 1939.

    Vladimir Safatle

    folha de são paulo
    Violência e silêncio
    Passeatas de professores que acabam em depredações e batalhas campais, invasões de institutos que fazem pesquisas com animais, manifestantes que ateiam fogo no Palácio Itamaraty. Ao perguntarmos sobre o que pode significar a constância, cada vez maior na política brasileira, de fenômenos violentos como esses, duas grandes explicações são fornecidas.
    A mais clássica gostaria de nos levar a acreditar que estaríamos diante de simples atos de vandalismo, normalmente feitos por jovens pro- todelinquentes inebriados por seus delírios narcísicos de onipotência e infiltrados em meio a manifestantes de boa vontade.
    A segunda é o mero resultado da inversão de sinais, fornecendo-nos uma visão romanceada daqueles que responderiam à violência poli- cial com uma violência legítima. Melhor seria se procurássemos analisar tal violência como um profundo sintoma social da vida política nacional contemporânea.
    O psicanalista Jacques Lacan gostava de lembrar como aquilo que é expulso do universo simbólico sempre retorna no real. Quando não é possível simbolizar uma experiência ou um desejo, ele retorna como uma reação bruta, que acaba por expressar como o próprio universo simbólico se encontra bloqueado.
    Já há algum tempo, a política brasileira tem expulsado muita coisa de seu interior. Tendendo, cada vez mais, a se limitar a discussões gerenciais sobre modelos relativamente consensuais de gestão socioeconômica (vide o debate recente sobre o dito "tripé econômico", do qual ninguém parece discordar), ela perde a possibilidade de mobilizar populações por meio de alternativas não testadas e que ainda contenham um forte potencial criativo. Assim, ela perde também a capacidade de acolher demandas que, mesmo sendo urgentes, sempre colidem com boas justificativas tecnicistas para serem deixadas para mais tarde.
    A política brasileira tem se transformado, com isso, na arte do silêncio. Arte de passar em silêncio sobre democracia direta, como pagar dignamente professores, como implementar uma consciência ecológica radical, como quebrar a oligopolização da economia, como taxar mais os ricos e dar mais serviços aos pobres. Mas também a arte de tentar silenciar descontentes.
    Nesse contexto de mutismo, a violência aparece como a primeira revolta contra a impotência política. A história está cheia de exemplos nos quais as populações preferem a violência genérica à impotência. Ainda mais quando se confrontam com uma brutalidade policial como a nossa. Como todo sintoma, há algo que essa violência nos diz. A resposta a ela não será policial, mas política.

    Ilhados - Pedro Soares

    folha de são paulo
    Ilhados
    RIO DE JANEIRO - Quase alheios aos protestos do lado de fora, executivos do setor de petróleo discutiam, na manhã de ontem, os últimos detalhes do primeiro leilão do pré-sal em um hotel na Barra da Tijuca (zona oeste do Rio).
    A manifestação, que culminou em violência, não constava da lista de assuntos preferidos. Os temas mais recorrentes eram a presença dos chineses na oferta, que acabou sendo tímida, e se haveria um segundo interessado no megacampo de Libra --o que não ocorreu.
    Do lado de dentro, só o som das bombas rompia a tranquilidade dos instantes anteriores ao certame. E isso apenas quando o barulho se intensificou, por volta da hora do almoço. No momento do leilão, a manifestação já tinha perdido força e saiu complemente do radar dos executivos.
    O único a demonstrar alguma preocupação era o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que, todo tempo, tentava tranquilizar a imprensa e o Planalto. Repetia que a situação estava dentro do controle e minimizava o protesto violento, que teve feridos.
    Findo o leilão, o governo comemorou a presença no consórcio vencedor das gigantes Shell e Total, ao lado da majoritária Petrobras.
    Para os defensores do monopólio estatal no setor do petróleo restou apenas protestar diante da necessidade urgente da União de reforçar seu caixa com os R$ 15 bilhões a serem pagos pelos vencedores, o que fez o governo antecipar o leilão em um mês para o dinheiro entrar no cofre ainda neste ano.
    Nem mesmo o chamamento de alguns petroleiros para que os "black blocs" engrossassem a manifestação teve resultado. Em mais um ato que tinha tudo para ser uma manifestação democrática, os mascarados e seus simpatizantes promoveram a violência e acabaram com a festa --para a qual, dessa vez, tinham sido convidados.

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      Experimentação animal
      SÃO PAULO - É moralmente lícito fazer experimentos com cães? A meu ver, a mais consistente defesa dos animais vem pelo pensamento de Peter Singer, que é um consequencialista radical, isto é, alguém para quem o valor de uma ação é dado não por princípios deontológicos, mas pelos resultados que produz.
      Nesse contexto, agir moralmente é não infligir sofrimento desnecessário e maximizar o bem-estar. Isso já basta para legitimar experimentos que produzam mais bem do que mal.
      Para Singer, tais considerações valem não só para o homem, mas para todos os seres sencientes. Daí não decorre que não exista diferença entre uma criança e um pernilongo. Há uma hierarquia entre os seres vivos, que é dada por sua capacidade de experimentar dor e por seu grau de consciência. Vegetais aparecem lá embaixo e mamíferos vêm no alto. Complicador: uma pessoa em coma pode valer menos que um cachorro saudável. Singer aceita bem isso.
      Outro momento em que a porca torce o rabo para os consequencialistas é na hora de fazer as contas. Não é difícil admitir o sacrifício de algumas cobaias para encontrar a cura para uma doença fatal que afete milhões de pessoas, mas e quando os valores envolvidos são mais etéreos? Quantas dores de cabeça humanas justificam matar um ratinho?
      Não há resposta final. Para o vegetariano, abater um mamífero para comê-lo é errado, mas a maioria das pessoas e a totalidade das espécies carnívoras não pensam assim.
      A meu ver, a posição ética aqui é tentar limitar cada vez mais experimentos fúteis, como os que envolvem cosméticos, e seguir adiante com aqueles que, um dia, poderão resultar em benefícios mais palpáveis.
      Não há como avançar no conhecimento de doenças sem infligir sofrimento a cobaias. E não dá para invocar o consequencialismo, que funciona tão bem para estender considerações éticas aos animais, e jogar fora as partes que nos desagradam.
      helio@uol.com.br