domingo, 20 de outubro de 2013

Helio Schwartsman

folha de são paulo
Finalidade sem fim
SÃO PAULO - Sempre instigante, Contardo Calligaris aproveitou a publicação de um estudo sugestivo de que ler ficção pode melhorar nossa capacidade de empatia para decretar que não devemos confiar em quem não esteja sempre com um romancezinho à cabeceira. Como Contardo, prefiro gente que lê a quem não o faz, mas hesito em erigir a literatura em critério de probidade.
O trabalho é muito interessante. Os autores submeteram voluntários a diferentes tipos de texto (literários, populares e de não ficção) e, logo em seguida, compararam a performance de cada grupo em testes que avaliam a habilidade para deduzir estados cognitivos e emocionais de terceiros, a famosa Teoria da Mente. Quem leu trechos de romances de qualidade se saiu melhor do que quem ficou com "best-sellers" e textos não ficcionais.
O problema com esse estudo é que ele suscita mais questões do que responde. Não indica, por exemplo, se esses efeitos são cumulativos ou duradouros. E, se forem apenas transitórios, como parece mais provável, desaparecendo ao cabo de dias ou horas, será que ainda conservam valor intrínseco? Nesse caso, a melhora da empatia seria só o resultado inconsciente de um estímulo manipulado pelos pesquisadores. Isso se parece mais com lavagem cerebral do que o exercício de uma virtude.
Cabe lembrar, como já ensinava Kant, que um homem pode fazer a coisa certa movido ou por constrangimentos externos ou por reconhecer a racionalidade por trás de uma norma ou regra. Só na segunda hipótese ele age de forma moral e livre.
Aqui, numa reviravolta à la Conan Doyle, a defesa da literatura como instrumento para cultivar pessoas melhores paradoxalmente esvazia o valor moral dos gestos empáticos executados por influência de livros.
Suponho que, nesse caso, seja mais prudente continuar fiel a Kant sustentando que, no plano filosófico, a literatura e a arte permaneçam como uma "finalidade sem fim".

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