domingo, 20 de outubro de 2013

Monica Bergamo

folha de são paulo

Norma Bengell disse que queria ver sua vida nas telas antes de morrer

"Acho que fiz tudo o que quis. Se eu voltasse um dia, em outra encarnação, se é que existe, ia fazer tudo diferente. Outros filmes. Se não, é replay, né?" A afirmação é de Norma Bengell, em entrevista inédita para o programa "Elas", que estreia amanhã no canal pago TCM.
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O episódio dedicado à atriz, que morreu aos 78 anos no dia 9, só vai ao ar em dezembro, no bloco dedicado às divas do cinema nacional. A repórter Eliane Trindade assistiu, com exclusividade, à íntegra da gravação. Norma recebeu Luciana Vendramini, apresentadora do "Elas", em maio, no apartamento onde morava em Copacabana.
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De cabelos louros e curtos e numa cadeira de rodas, a estrela de "O Pagador de Promessas" (1962), único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro em Cannes, rememorou momentos gloriosos da carreira iniciada aos 17 anos (com RG falso) como corista.

Norma Bengell deixa depoimento inédito

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Divulgação
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A atriz Norma Bengell, que morreu no último dia 9, concedeu entrevista para a apresentadora Luciana Vendramini, da série "Elas", em maio
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Norma já havia recebido o diagnóstico de câncer no pulmão. "Ela não contou da doença. Mas saí de um dos encontros com a impressão de que iria se matar ou sabia que iria morrer logo", relata o produtor Nelson Foerster, sócio de Vendramini na produtora Mocho. Nesta época, entregou aos dois um projeto antigo que não conseguira tirar até então da gaveta: a sua cinebiografia. Os dois saíram atrás de parceiros e diretor.
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Ao receber a notícia do falecimento, eles entenderam a pressa da atriz em fazer deslanchar o antigo sonho. "Ela me ligava todos os dias para saber se havia novidade", conta Luciana. A perspectiva de finalmente filmar a história era um ânimo. A primeira tentativa foi em 1998, quando Norma anunciou que dirigiria o longa.
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Antes de apostar na Mocho, a atriz entregou o roteiro para o produtor e amigo Luiz Carlos Barreto. Barretão passou a bola para o diretor e produtor Aníbal Massaini, mas o projeto não foi adiante. "É um filme caro, que atravessa épocas, tem cenas na Europa e a história do Brasil como pano de fundo", diz Julia de Abreu, que assina o roteiro com o americano Syd Field, guru em Hollywood.
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Norma nunca desistiu de "Norma", o filme, mas desistiu de lutar pela vida. "Ela não quis tratar do câncer nem prolongar o modo como estava vivendo", diz Barretão.
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A atriz sobrevivia com uma pensão de R$ 3.100 que recebia como anistiada política. Só o plano de saúde era
R$ 1.516. Amigos se cotizavam para ajudá-la. O cantor Milton Nascimento pagava o convênio médico. Carlos Manga, que dirigiu Norma em sua estreia no cinema em "O Homem do Sputnik" (1959), custeou gastos hospitalares.
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Manga foi o primeiro a ver em Norma o "animal cinematográfico". "A lente te desvenda, codifica e transforma a Norminha em Norma Bengell", dizia ele à atriz.
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Quarenta anos depois, a diva do Cinema Novo, com 54 filmes no currículo e uma das líderes da retomada da produção nacional, teve a prestação de contas de um dos longas que dirigiu, "O Guarani" (1996), financiado pela Lei Rouanet, recusada. Seus bens foram bloqueados pela Justiça para que devolvesse R$ 4 milhões aos cofres públicos.
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Declarava-se injustiçada. "Índio não tem CPF e almoço na floresta não é com nota fiscal", diz Fernando Drummond, advogado da atriz. "Ela não cuidava da burocracia."
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Foi também autuada em R$ 700 mil, em 2002, sob acusação de que sua movimentação financeira não era compatível com seus rendimentos. Em agosto, já debilitada, o juiz e o promotor foram até sua casa para uma audiência. "Foi um constrangimento", diz o advogado.
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Norma alegou que a conta bancária era de uma ex-sócia. Dois dias antes de sua morte, um ofício do banco informava ao juiz que a atriz não era, de fato, a titular.
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Depois de vender objetos e móveis para comprar comida e remédio, ela alugou a casa de 500 m² na Gávea, de onde se mudou após cair de uma escada. Vivia em pânico de ser "depositada" no Retiro dos Artistas. "Negaram a ela até a aposentadoria do INSS. Quando dona Norma ficou falida, ela passou por muita humilhação", relata Luciene Marques, 31, cuidadora da atriz nos últimos cinco anos.
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A cabeça de Norma estava a mil, mas o corpo não correspondia. "Ela ficava triste por não poder andar e também por não ser mais tão procurada", prossegue a jovem que se mobilizou para conseguir que a Prefeitura do Rio cobrisse os R$ 9.000 do funeral.
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Ney Latorraca foi um dos poucos da classe artística no velório, ao lado de Barretão e dos cineastas Silvio Tendler, Carla Camurati e Roberto Farias. "Mataram um ídolo em vida", afirma Latorraca, que coloca a amiga, com quem falava sempre por telefone, no panteão de Leila Diniz e Cacilda Becker. "Mulheres que vieram para mudar a História com suas histórias."
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O roteiro de "Norma" recria os bastidores de um desses momentos: a sequência de "Os Cafajestes" (1962), em que protagonizou o primeiro nu frontal do cinema brasileiro. O diretor, Ruy Guerra, avisou a atriz: "Se a cena não ficar boa, cortamos". Ela tirou o maiô e, ao grito de "ação", saiu correndo pela praia, protegendo os seios. Fez história.
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As senhoras da TFP (Tradição, Família e Propriedade) protestaram nas ruas. "Norma, uma aNORMALIDADE", diziam os cartazes. "A Igreja exigiu a censura do filme. Se pudessem, me queimavam viva na Cinelândia", dizia ela. O produtor Dino De Laurentiis se encantou com a brasileira no papel controverso. Nascia "La Bengell". Na Itália, estrelou filmes como "Mafioso" (1962) e atuou com astros como Alberto Sordi. Foi vizinha de Brigitte Bardot. Teve um affair com Alain Delon.
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Em meio ao glamour, Norma conhece Gabriele Tinti, ator italiano com quem se casaria no estúdio da Vera Cruz, em SP, durante a filmagem de "Noite Vazia" (1964), de Walter Hugo Khouri. O marido chegou a censurá-la pela cena de lesbianismo, ao lado de Odete Lara, no longa.
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Na cinebiografia, os roteiristas buscam tratar com delicadeza a história de amor da atriz com uma psicanalista, após se separar do italiano. "É um amor entre outros tantos que viveu. O que definia Norma Bengell era o cinema", diz Julia de Abreu.
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Na cena 60 do roteiro, a atriz e a namorada passam por constrangimento em um restaurante. "Dois mulherões. Que desperdício", diz um bêbado. Norma desabafa: "Não quero viver uma vida em que entrar num restaurante seja um ato coragem. Cansei de ser símbolo involuntário disso e daquilo".
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A frase pode ser, em parte, ficção, já que os diálogos do roteiro foram burilados por Millôr Fernandes.
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Na luta contra a ditadura, Norma aparece na linha de frente em passeatas históricas, como a dos 100 mil, em 1968. Foi presa várias vezes. Quando a barra pesou, exilou-se em Paris. "Eu era uma democrata. Não gostava de proibição de nada. Não pode proibir isso ou aquilo", disse Norma a Luciana Vendramini.
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Sem herdeiros diretos (afirmou ter feito 16 abortos), a atriz deixou um testamento que ainda não foi aberto.
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Proibida de produzir por causa das dívidas, Norma fechou o depoimento ao "Elas", no qual não trata das acusações de desvio de dinheiro, com uma declaração de amor à sétima arte. "Cinema para você é?", pergunta Vendramini. "Vital!" Cabe à apresentadora agora achar a atriz para fazer Norma seguir em cena.
Mônica Bergamo
Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

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