segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Daniel Pellizzari

folha de são paulo
Gastando os beiços
Em jogos estranhos, o fascínio nasce da interação entre o que não poderia ser e o que poderia ter sido
Existem jogos estranhos, jogos imperfeitos, jogos estranhos e imperfeitos e existe "Chulip". Em jogos estranhos e imperfeitos, o fascínio nasce da interação entre aquilo que não poderia ser (mas está bem ali na tela) e aquilo que poderia ter sido (mas escapou aos desenvolvedores).
Isso está presente em "Chulip", que poderia ser um dos melhores exemplos da categoria se não fosse único a ponto de se tornar inclassificável. Criação de Yoshiro Kimura, o jogo foi desenvolvido pela Punchline e lançado para o PS2 em 2002.
Apesar da leve esquisitice da cena de abertura, o ar bucólico do início do jogo engana. Os primeiros momentos do jovem protagonista, recém-chegado na Cidade da Vida Longa, sugerem uma espécie de "Animal Crossing" no interior do Japão dos anos 1960, com cenários mais realistas e personagens humanos no lugar dos animais da franquia da Nintendo.
Quando levamos nosso anti-herói para explorar a cidade com mais cuidado, vestido de quepe e uniforme cinza de estudante, surgem indícios da mistura de fofo, sombrio e demente que caracteriza o universo de "Chulip". Num desses passeios ele encontra a garota com quem sonha na abertura, e que beija diante da Árvore dos Amantes.
Mas no mundo real ele é rejeitado por ser um pobretão desconhecido. Decidido a conquistar a menina com uma carta de amor, descobre que seu material de escritório foi roubado. Parte então em uma jornada para recuperar os itens perdidos, missão que também exige cair nas graças dos moradores locais. E em "Chulip" isso se faz com beijos.
Não é simples. Os beijos não podem ser roubados, e cada personagem --de moradores comuns, divididos entre quem mora na superfície e os habitantes subterrâneos, até alienígenas-- tem suas idiossincrasias. É preciso descobrir o que fazer para deixar cada um deles animado a ponto de permitir o beijo.
Depois de muita exploração meticulosa, diálogos absurdos (nem sempre propositais: a tradução é problemática) e fracassos em acertar o momento exato de realizar certas ações, a sensação de vitória é genuína quando uma tentativa de beijo enfim dá certo. Esse alívio é reforçado pela adorável tosquice da celebração: ao som da música-tema quase sinistra, por uns segundos somos lançados no espaço sideral enquanto a câmera gira ao redor dos beijoqueiros e fogos de artifício explodem.
Tanta dificuldade é uma das imperfeições do jogo. Na maioria das vezes não há indicação alguma do que deve ser feito para ganhar a simpatia de um personagem. Como "Chulip" se divide em períodos de 24 horas, há apenas uma chance por dia, o que não combina com uma mecânica baseada em tentativa e erro. Na edição americana, de 2007, o manual reconhece esse problema e traz um passo-a-passo.
"Chulip" vendeu mal mesmo no Japão, e nunca entendi como acabou lançado no Ocidente. Mas o jogo tem seus fãs, e prova disso é ter sido relançado na PSN em 2012. Jamais entraria em listas de melhores de todos os tempos, mas quem passou horas matutando estratégias para beijar um dinossauro cinéfilo não esquece a experiência.

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