Coletânea de CDs de Odair José estimula a reavaliação da sua obra, mal classificada como brega'; um dos nomes mais populares nos anos 1970, ele cantou o preconceito contra prostitutas e domésticas
Mais da metade do repertório atual desse goiano que chegou a ser chamado de "O Terror das Empregadas" é composta por músicas dos álbuns dos anos 1970: "Assim Sou Eu..." (1972), "Odair José" (1973), "Lembranças" (1974) e "Odair" (1975). Tudo isso será relançado neste mês na caixa de CDs remasterizados da série "Tons".
Este é um novo capítulo de reavaliação da obra de Odair, novela de roteiro nada linear. Um episódio de revisão aconteceu em 2006, no CD "Vou Tirar Você Desse Lugar", tributo a Odair gravado por artistas da cena pop.
Outro ocorreu em 2011, no CD "Praça Tiradentes", em que ele mesmo resgatava "o velho Odair", instigado por Zeca Baleiro (e com sua participação). "Odair inaugurou um jeito de fazer música brasileira", afirma Zeca.
"Ele construiu uma obra com temas populares como eram o rock, o country e o blues no começo, e foi corajoso, dando a cara a tapa para que, 20 e tantos anos depois, garotos do Leblon e Ipanema como Cazuza e Lobão pudessem brincar de bandidos", diz o músico.
Hitmaker incontestável, Odair está na formação de vários músicos das novas gerações, como Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A.: "Cresci no interior ouvindo rádio. Os sons românticos dele estavam entre meus preferidos".
Odair José conta que é inconformado com a percepção errônea sobre seu trabalho.
Em 1972, depois de estourar com "Vou Tirar Você Desse Lugar", lançado pela CBS, ele descobriu o folk rock de Neil Young, Cat Stevens e Ritchie Havens, e se empenhou em sair do gênero no qual foi inserido, a Jovem Guarda.
A sonoridade recorrente da gravadora, a mesma de Roberto Carlos, não lhe agradava. "Todos os discos tinham o som do órgão e das guitarras de Roberto", afirma.
Incentivado por amigos como Raul Seixas, Odair resolveu mudar o som e fazer letras que fossem como reportagens de jornal. A CBS não gostou e ele assinou contrato com a Polydor, "em busca de autonomia".
Lá montou banda com José Roberto Bertrami (piano), Alex Malheiros (baixo) mais Ivan "Mamão" Conti (bateria), que depois formariam o Azymuth; o soulman Hyldon (guitarras) e ainda Luiz Cláudio Ramos (violões), futuro maestro de Chico Buarque.
A safra de discos entre 1972 e 1975 evidencia a qualidade dos músicos e a intenção roqueira de Odair José, que difere de outros ícones românticos tidos como "bregas".
Para John, do grupo Pato Fu, Odair faz "música pop das mais genuínas, misturando influências estrangeiras com uma prosódia brasileira". O músico também destaca "a desconcertante franqueza nas letras".
Os quatro álbuns da série "Tons" venderam bem naquela década. E o autor dos hits radiofônicos como "Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)", canção que chegou a ser censurada pelo governo, extrapolou as expectativas: foi incluído na lista de artistas que assinaram contrato de exclusividade com a Globo para combater a saída de Chacrinha da emissora. Roberto Carlos era outro artista dos "top five".
O sucesso teve um revés na segunda metade dos anos 1970, quando saiu o álbum conceitual "O Filho de José e Maria", influenciado pela guitarra do britânico Peter Frampton e a leitura de "O Profeta", de Khalil Gibran.
Odair se desiludiu com a receptividade. "Ninguém entendeu nada, aí acabei descuidando da carreira."
Foi nesse período, diz, que passou a consumir maconha e cocaína. "Caí tanto na boêmia que, se não fosse a Jane [com quem casou nos anos 1980], teria morrido."
Hoje, ele se diz mais "focado" e feliz quando está no palco. Seria bom se fosse inserido num contexto pop rock, ao lado de Lulu Santos ou Kid Abelha. Se nunca mais fosse chamado de "brega", seria perfeito.
OPINIÃO
Cantor quebra a idealização romântica da música popular
THALES DE MENEZESEDITOR-ASSISTENTE DA "ILUSTRADA"
As novas gerações podem chiar, mas só quem já passou dos 50 anos ou está perto disso pode entender realmente a dimensão do impacto de Odair José na música popular brasileira. Aquela que era popular de verdade.
Não era pouca coisa ligar o "radinho" no início dos anos 1970 e ouvir um cantor se declarando apaixonado por uma prostituta, prometendo tirá-la da vida na zona e levá-la para um lugar melhor. Muito menos falar de pílula anticoncepcional em versos de uma canção.
Odair José teve outros hits, como a pegajosa "A Noite Mais Linda do Mundo". E canções muito boas que não alcançaram o sucesso merecido. Basta ouvir as faixas menos populares de um álbum como "Lembranças", de 1974, para conhecer um compositor sofisticado.
No entanto, "Eu Vou Tirar Você Deste Lugar" e "Uma Vida Só" (mais identificada pelo verso de seu refrão, "Pare de Tomar a Pílula"), são suficientes para classificar Odair José como revolucionário.
Seu grande fator subversivo foi quebrar a idealização romântica do cancioneiro popular. Deixou de lado as declarações de amor eterno e as promessas desmedidas --tirar a prostituta de seu ofício era uma ação possível, sem prometer mares de rosas.
Odair José cantou o namoro real. Ele manteve os pés no chão ao criar canções sobre relacionamentos críveis, letras que tratavam do dia a dia de milhares de casais, como tomar ou não a pílula.
Chamar isso de música brega é sem sentido. Ao lado dos artistas bregas de verdade que repartiam o dial AM do rádio, Odair José era a mensagem direta para quem estava tocando a vida com uma dose possível de romantismo.
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