Répteis e extremistas
Quando se fala em radicalismo, é preciso separar ideias dos atos concretos nelas baseados
Um dos bons livros que li este ano foi "Them", de Jon Ronson, jornalista britânico que acompanhou o dia a dia de extremistas religiosos e políticos. Entre seus personagens, há um chefe da Ku Klux Klan, um líder protestante contrário aos acordos de paz na Irlanda e um mulá que tenta arrecadar fundos para a jihad islâmica na Inglaterra.
O livro foi publicado em 2001, antes dos atentados do 11 de Setembro, e pode ser considerado peça premonitória do que seria a década seguinte. Ou instantâneo de um mundo que não existe mais, em que os resultados universais e trágicos do que é narrado ainda eram sombras sob a violência localizada ou a pregação de malucos.
A pergunta é se faz sentido dar voz a personagens assim, se a divulgação delas ajuda a propagar o comportamento antissocial.
Existem vários tipos de leitor, e acredito que os melhores são os que sabem alternar distância e proximidade em relação a seu objeto. Uma espécie de simulação: buscamos entender os argumentos de um autor, por mais repugnantes que pareçam à primeira vista, levando seus efeitos teóricos às últimas consequências e de lá voltando com algum ensinamento (edificante ou não).
Só que a desculpa da "abordagem crítica", que nos permitiria mergulhar no horror sem nos contaminar por ele, nem sempre funciona como desejável. Na arte, e estão aí os bandidos do cinema para provar, a experiência da plateia passa também por uma fruição imediata, mais baseada em sentimentos que em ideias, o que pode nos colocar numa posição incômoda: sermos atraídos pelo carisma de um personagem em detrimento da ética de outro.
No jornalismo é diferente, claro, mas tenho dúvida se no grau que gostamos de admitir. Um bom repórter ouve sem julgar, e o acompanhamento da rotina de seus entrevistados, que têm qualidades e falhas como qualquer pessoa, bons e maus momentos, atos generosos em meio a outros condenáveis, pode gerar no leitor uma empatia ambígua.
É o que ocorre em alguns momentos de "Them". Com a diferença de que o estilo de Ronson não é neutro. Pelo contrário, às vezes ele resvala no jogo fácil --mas irresistível-- de listar exotismos para a torcida. É o caso da suposta reunião, num hotel em Sintra, Portugal, do pequeno grupo que secretamente controlaria guerras, peste e fome pelo mundo. Ou do ex-cronista esportivo que largou uma carreira na BBC para pregar que tal grupo é composto por descendentes de répteis extraterrestres.
Entre o isolamento e o folclore, alguns dos tipos descritos acabam parecendo mais interessantes do que o previsto. Nem que seja por meio do humor. Como todo texto que trata de obsessão, de visões conspiratórias que se retroalimentam de forma crescentemente convicta e exasperada, "Them" provoca o riso. E este pode ser uma demonstração de espanto, reconhecimento, condescendência, até carinho. Jamais de raiva ou desprezo puros.
Quando se fala em radicalismo, é preciso separar ideias e motivos dos atos concretos nelas baseados. Ter vontade de esganar alguém não é o mesmo que esganar alguém. Deplorar o modo de vida ocidental, ou identificar razões históricas para a revolta de determinados grupos políticos, não é o mesmo que botar uma bomba no metrô.
O problema é que a separação só é possível para quem não pensa como os personagens de Ronson. E as ideias e motivos estão aí, ao nosso dispor tanto quanto deles. Cercear a sua exposição poderia evitar sofrimentos? Talvez. E o que perderíamos ao deixar de conhecer a matriz teórica de atos que afetam tanto a sociedade contemporânea?
Toda vez que se publica a biografia de uma figura como Hitler, há acusações de que se humanizou um monstro. A resposta clássica não é uma negativa: trata-se mesmo de um ser humano, não de um alien com cauda e escamas. Entender como, por que e em quais circunstâncias alguns de nós podem pensar de forma tão desviante, porque integramos a mesma espécie irredimível, é uma forma de tentar evitar que o horror aconteça ou se repita.
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